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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA
Distanciamento e crtica: limites e possibilidades da teoria de sistemas de Niklas Luhmann
Joo Paulo Bachur
So Paulo
2009
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA
Distanciamento e crtica: limites e possibilidades da teoria de sistemas de Niklas Luhmann
Joo Paulo Bachur
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao do Departamento de Cincia Poltica da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Cincia Poltica.
Orientador: Prof. Dr. Fernando Haddad
So Paulo
2009
Um estado autntico estaria livre da ontologia da falsidade tanto quanto de sistema e contradio. Theodor W. Adorno, Negative Dialektik, 1966.
ndice
Agradecimentos .............................................................................................................................. I
Resumo ............................................................................................................................................ IV
Abstract ............................................................................................................................................ V
Zusammenfassung .......................................................................................................................... VI
Niklas Luhmann: nota biogrfica ................................................................................................ VII
Glossrio .......................................................................................................................................... XI
Introduo: Para uma recepo crtica da teoria de sistemas sociais ..................................... 1
I
1. A materialidade da comunicao ............................................................................................ 17
2. Capital e autopoiese ................................................................................................................... 72
3. Autonomia e interdependncia ................................................................................................ 118
Interldio: A funo da religio .................................................................................................. 174
II
4. Classe social, incluso e excluso ........................................................................................... 195
5. Protesto e procedimento nem reforma, nem revoluo .................................................... 263
Bibliografia ..................................................................................................................................... 323
I
Agradecimentos
Devo um primeiro agradecimento minha famlia, pelo apoio sempre presente ao longo
dos anos: a meu pai, Felipe Bachur Neto, por se envolver com esta tese como se o
doutorando fosse ele prprio, a minha me, Maria do Rosrio Silva Bachur, por insistir
em me lembrar que toda tese tem necessariamente um fim, e aos ermes, Lus Felipe
e Maria Carolina, pela amizade incondicional.
A Rosa e Chico Schertel, agradeo a calorosa acolhida em Braslia.
Sou sinceramente grato a meu orientador, professor Fernando Haddad, pelo entusiasmo
e pela generosidade com que acompanhou a confeco deste trabalho, bem como por
me encorajar a tomar as decises corretas no momento preciso.
Agradeo a ateno dispensada pelos professores desta Faculdade nas inmeras
discusses por ocasio da formulao de meu tema de pesquisa, especialmente a: Gildo
Maral Brando, Ccero Arajo, lvaro de Vita, Ricardo Musse, Braslio Joo Sallum
Jr., Antnio Flvio de Oliveira Pierucci e Leopoldo Garcia Pinto Waizbort.
II
Devo um agradecimento especial a dois professores que acompanharam muito de perto
a construo desta tese e que em muito contriburam para seu resultado final: Gabriel
Cohn e Marcelo Neves. A interlocuo prxima e constante foi indispensvel para
nortear a travessia do labirinto conceitual da teoria de sistemas sociais.
Agradeo ainda as discusses com o professor Joo Manuel Cardoso de Mello, em
Campinas, bem como a ajuda do professor Celso da Costa com a leitura de Laws of
Form.
Muitos amigos acompanharam, de perto e de longe, as agruras inerentes redao de
uma tese de doutorado. Esta tese certamente no seria a mesma se no tivesse contado
com a atenta leitura de verses preliminares e excertos dos captulos, bem como com as
vrias discusses e indicaes bibliogrficas de Leandro Mahalem de Lima, Stefan
Fornos Klein, Lus Fernando Massonetto, Slvio Rosa, Maria Paula Dallari Bucci e
Eugnio Bucci, Gilberto Bercovici, Samuel Barbosa, Cristiano Paixo de Araujo Pinto,
Paulo Svio, Guilherme Francisco Alfredo Cintra Guimares e Fbio Costa Morais de
S e Silva. Menciono ainda o apoio dos amigos: Fernando e Ricardo Masini, Frederico
Mahalem de Lima e Mateus Chagas; Gilberto, Eduardo, Daniel, Carla Zen, Fernanda
Hamada, Flvia Tone, Haaillih e Tet; Tales Krauss Queiroz; Carol Amiga e Samuca;
Helena, Cris e Jorge. Agradeo ainda o apoio dos colegas no convvio dirio do
Ministrio da Educao (no correrei o risco de tentar nomear todos aqui, pois
certamente cometeria injustias).
Agradeo ainda a hospitalidade de Andr Gustavo Mello Arajo e de Antnio Jos
Martins na Alemanha, no inverno de 2007, bem como a inestimvel ajuda em
xerocopiar parte significativa da biblioteca da Universidade de Frankfurt am Main e na
remessa de livros e materiais sem os quais esta tese teria ficado consideravelmente
defasada.
Devo uma palavra de agradecimento a Edith Nortrut, minha professora de alemo, pela
ajuda com a traduo das passagens mais difceis e pela pacincia com as declinaes.
Agradeo o apoio institucional do Soziologisches Seminar da Universidade de Lucerna,
na Sua, pela iseno de taxas de participao no congresso Niklas Luhmanns Die
Gesellschaft der Gesellschaft: Ten Years After, em dezembro de 2007.
III
Agradeo a ajuda personalizada do pessoal da secretaria do Departamento de Cincia
Poltica, Ana Maria Capel Sales dos Santos, Leonardo de Novaes, Mrcia Regina
Gomes Staaks, Maria Raimunda dos Santos e Vivian Pamella Viviani.
Agradeo a pacincia, o empenho e a eficincia do pessoal do Comut Internacional da
Biblioteca da Faculdade em obter as referncias bibliogrficas necessrias a esta tese:
Aline Lima Gonalves, Ana Cludia Pastor, Marta Glria dos Santos, Sandra Teixeira
Alves, Yuka Saheki Bastos de Siqueira e Anderson de Santana.
Por fim, agradeo o carinho e a compreenso com que a minha Laura acompanhou
todos os momentos deste doutorado: devo grande parte de minha motivao a voc.
Foram muitas as pessoas com as quais pude contar ao longo da redao desta tese e, se a
tentativa de mencion-las todas sempre imperfeita, valho-me de uma desculpa
antecipada: os eventuais esquecimentos certamente no tero sido intencionais. Por
bvio, todos os equvocos e as insuficincias deste trabalho so de minha integral
responsabilidade.
Braslia, janeiro de 2009.
J. P. Bachur
IV
Resumo
A teoria da sociedade de Niklas Luhmann, construda como teoria de sistemas sociais,
encontra freqentes crticas voltadas contra seu pretendido distanciamento moral e
poltico no diagnstico da sociedade contempornea. Pesa sobre a teoria de sistemas
sociais a generalizao de um juzo prematuro conforme o qual ela se reduziria a uma
sociologia conservadora de tendncia tecnocrata, uma herdeira radicalizada do
positivismo. Contudo, e contrariamente a essa percepo geral, a teoria de sistemas
sociais parece ter um potencial crtico ainda inexplorado em toda a sua extenso, e que
pode ser ativado por uma leitura que permita expandir o alcance da teoria. Essa
expanso pode ser promovida quando a teoria de sistemas sociais mobilizada para
fundamentar uma teoria da comunicao de matriz materialista (captulo 1), capaz de
permitir que sua categoria fundamental a autopoiese seja compreendida em estreita
relao com a apresentao do capital por Karl Marx (captulo 2) e confrontada com
uma teoria do capitalismo (captulo e 3). Na seqncia, a teoria de sistemas sociais
empregada para dar conta das mltiplas dimenses da desigualdade social (captulo 4) e
da dinmica dos conflitos e das contradies da sociedade atual (captulo 5). Esta tese
prope um primeiro passo na direo de uma recepo crtica da obra terica de Niklas
Luhmann. Trata-se de testar os limites e as possibilidades da teoria de sistemas sociais.
Palavras-chave: Niklas Luhmann, Karl Marx, teoria de sistemas sociais, diferenciao
funcional da sociedade, materialismo.
V
Abstract
Niklas Luhmanns theory of society, built as theory of social systems, is usually met
with criticisms pointed against its intended moral and political distance in diagnosing
contemporary society. Weights upon the social systems theory the generalization of a
premature judgement according to which, this theory would be reduced to a
conservative sociology with technocratic tendencies, a radicalised heir to positivism.
However, and against this usual perception, the theory of social systems seems to have a
critical potential not yet developed in its full extension and which may be activated by
an interpretation capable of expanding its range. This extension can be carried out when
we handle social systems theory in order to ground a materialistic theory of
communication (chapter 1), enabling a close connection between its main conceptual
category autopoiesis and Karl Marxs presentation of the capital (chapter 2), as well
as a confrontation with a theory of capitalism (chapter 3). Afterwards, social systems
theory is used to explaining the manifoldness of social inequality (chapter 4) and the
dynamics of contemporary conflicts and societal contradictions (chapter 5). This thesis
proposes a first step in the direction of a critical reception of Niklas Luhmanns
theoretical work. It is a matter of testing limits and possibilities of social systems theory
Keywords: Niklas Luhmann, Karl Marx, social systems theory, functional
differentiation of society, materialism.
VI
Zusammenfassung
Die von Niklas Luhmann aufgestellte Theorie der Gesellschaft, als Theorie sozialer
Systeme konzipiert, stt hufig aufgrund ihrer beabsichtigten moralischen und
politischen Distanzierung bei Diagnosen der zeitgenssischen Gesellschaft auf Kritiken.
Belastend gegen diese Theorie wird dabei die Verallgemeinerung eines voreiligen
Ermessens angefhrt, demzufolge sie zu einer bloen konservativen und technokratisch
ausgerichteten Soziologie, zu einer im Positivismus radikalisierten Erbin werde. Im
Gegensatz dazu scheint sich jedoch in der Theorie sozialer Systeme ein kritisches
Leistungsvermgen zu befinden, das noch nicht vllig entfaltet worden ist. Dieses
Potential knnte mittels einer Interpretation aktiviert werden, mit der eine umfassendere
Reichweite der Theorie ermglicht wrde. Eine derartige Expansion ist erreichbar,
wenn die Theorie sozialer Systeme als Ausgangsbasis fr eine materialistische
Kommunikationstheorie dient (Kapitel 1); wenn es dieselbe wiederum erlaubt, dass ihr
grundstzlicher Begriff die Autopoiesis eine enge Beziehung zu der von Karl Marx
vorgenommenen Darstellung des Kapitals vorweist (Kapitel 2), und dass ihr eine
Theorie des Kapitalismus gegenbergestellt wird (Kapitel 3). Im weiteren fut auf der
Theorie sozialer Systeme die Kennzeichnung der vielfltigsten sozialen Gegenstze
(Kapitel 4) sowie die Dynamik von Konflikten und Widersprchen der derzeitigen
Gesellschaft (Kapitel 5). Die vorliegende These schlgt einen ersten Schritt vor, das
theoretische Werk von Niklas Luhmann kritisch zu betrachten. Es geht darum, die
Grenzen und Mglichkeiten der Theorie sozialer Systeme zu berprfen.
Schlsselwrter: Niklas Luhmann, Karl Marx, Theorie sozialer Systeme, funktionale
Differenzierung der Gesellschaft, Materialismus.
VII
Niklas Luhmann: nota biogrfica
Niklas Luhmann (08.12.1927 - 06.11.1998) foi um intelectual com uma carreira
acadmica relativamente heterodoxa para os padres germnicos. Tendo servido na
fora area da Wehrmacht (1944-1945) designao das foras armadas alems no
nazismo caiu prisioneiro de guerra por um curto perodo (1945). Terminada a guerra,
estudou direito em Freiburg im Breisgau (1946-1949), onde obteve o doutoramento,
tendo abandonado rapidamente a advocacia militante. Ingressou na administrao
pblica em Lneburg, sua cidade natal, onde trabalhou por quase uma dcada (1954-
1962), tendo l iniciado a confeco de seu clebre fichrio de leitura. Obteve licena
para uma temporada de estudos em Harvard (1960-1961), perodo marcado pelo
confronto com o funcionalismo estrutural de Talcott Parsons. De volta Alemanha,
deixou o servio pblico definitivamente para uma temporada na Hochschule fr
Verwaltungswissenschaften, em Speyer (1962-1965), instituto de pesquisa voltado
administrao pblica. Posteriormente, assumiu um posto na Universidade de Mnster
como chefe de departamento (1965-1968), a convite de Helmut Schelsky. Luhmann
pde se aprofundar efetivamente no estudo da sociologia somente em Mnster, tendo
inclusive cursado semestres acadmicos da disciplina (1965-1966). Obteve em Mnster
VIII
sua Habilitation docente em 1966 (Recht und Automation in der ffentlichen
Verwaltung. Eine verwaltungswissenschaftliche Untersuchung), junto a Dieter
Claessens e Helmut Schelsky. Luhmann apenas consolidou definitivamente sua carreira
acadmica na Universidade de Bielefeld, recm-criada no processo de reforma
universitria na Alemanha. Em Bielefeld atuou como professor de sociologia at se
aposentar (1968-1993). Ao longo de sua carreira, ocupou brevemente como palestrante
a cadeira Theodor W. Adorno da Universidade de Frankfurt am Main (1968-1969) e
foi co-editor da Zeitschrift fr Soziologie (1977-1980), tendo concentrado seus esforos
na construo de uma teoria da sociedade, o que lhe ocupou por cerca de trinta anos.
Luhmann morreu pouco antes de completar 71 anos de idade, no pequeno subrbio de
Oerlinghausen bei Bielefeld.
A construo de sua teoria da sociedade permite identificar quatro eixos bibliogrficos
centrais articulados entre si, sem prejuzo da publicao de monografias e artigos
esparsos: (i) os primeiros escritos, entre meados da dcada de 1960 e 1984; (ii) o
conjunto de artigos publicados entre 1962 e 1994, reunidos nos seis volumes de
Soziologische Aufklrung, coletnea cujo ttulo expressa o programa terico de
Luhmann e j permite identificar os contornos de sua teoria geral da sociedade; (iii) os
ensaios reunidos nos quatro volumes de Gesellschaftsstruktur und Semantik. Studien zur
Wissenssoziologie der modernen Gesellschaft, publicados entre 1980 e 1995,
acompanhados tematicamente de Liebe als Passion: zur Codierung von Intimitt (1982)
e do pstumo Ideenevolution (2008), voltados anlise da relao entre estrutural social
e semntica, ou seja, da relao entre histria social e histria das idias e dos conceitos;
e, finalmente, (iv) o vasto conjunto monogrfico dedicado aos sistemas autopoiticos
individualizados (economia, cincia, direito, arte, meios de comunicao de massa,
poltica, religio e educao), com publicaes concentradas entre 1984 e 1997,
incluindo tambm publicaes pstumas (1984 o ano da publicao de Soziale
Systeme: Grundri einer allgemeinen Theorie, marco definitivo de sua virada
autopoitica, considerado pelo prprio Luhmann como o captulo zero de sua teoria
da sociedade; 1997 o ano de publicao de Die Gesellschaft der Gesellschaft, magnum
opus que fecha seu programa terico e expressa, j no ttulo, a necessidade de que a
teoria da sociedade seja construda tendo como modelo a prpria sociedade portanto,
de maneira radicalmente social e, por isso, como teoria de sistemas sociais).
IX
Luhmann, dotado de um estilo argumentativo irnico e provocativo, era conhecido por
sua imensa capacidade de trabalho (no tinha equipe de pesquisa, apenas uma
secretria) e por se dedicar redao de diversos livros e artigos ao mesmo tempo, o
que era possvel em funo de um fichrio de leitura cultivado durante dcadas. Isso
explica sua extensa produo e a amplitude da bibliografia mobilizada, no obstante o
carter prolixo e s vezes redundante de seus textos.
O sentido de um texto ou de uma obra terica no deve ser buscado nos fatos
biogrficos do autor a comunicao escrita tem uma dinmica prpria que separa a
compreenso do texto da inteno original de seu autor. Quando se tem de recorrer a
elementos biogrficos para compreender o pensamento de um autor, porque segundo
o prprio Luhmann escreveu-se mal o que se pretendeu expressar.
Contudo, para os fins deste trabalho, h uma entrevista que merece destaque: ao discutir
o lugar do intelectual contemporneo (na mesma ocasio em que a dimenso biogrfica
rejeitada como explicao de uma obra terica), Luhmann toma Karl Marx como seu
modelo de intelectual. Na mencionada entrevista, Luhmann indagado acerca do papel
do intelectual em sua teoria de sistemas, ao que responde afirmando que o intelectual
no tem um lugar privilegiado; sua averso a essa categoria visa a recusar uma
personalizao excessiva da cincia, como se o intelectual pudesse se projetar para
fora da sociedade e obter um ponto de observao puro, por assim dizer. Quanto ao
conceito do intelectual, Luhmann oferece uma definio pouco usual: o intelectual no
definido por seu posicionamento pessoal com relao a valores (embora esse
posicionamento seja inevitvel, tanto para o intelectual como para qualquer outro
indivduo), mas pelo cultivo da capacidade de comparar fenmenos heterogneos em
termos gerais por intermdio da construo conceitual. Ao receber essa resposta, o
entrevistador pede um exemplo de intelectual, tendo em vista uma definio to
incomum. Ao que responde Luhmann: Ich nehme mal Karl Marx.
E esclarece:
Niklas Luhmann, Ich nehme mal Karl Marx [entrevista a Walter van Rossum, ps. 14-37] in Archimedes und Wir. Berlin: Merve, 1987, p. 19. Idem, ps. 26/27. A resposta se insere neste dilogo: Entrevistador: Essa uma definio to incomum do intelectual ou da intelectualidade que eu gostaria de lhe pedir um exemplo; Luhmann: Eu tomo Karl Marx.
X
A idia de construir uma teoria estruturante, semelhana de Hegel, com o
conceito de formao de classes [Klassenbildung], como aparece na literatura de
cincias sociais, e com o conceito de economia poltica, isto , combinar
determinados conceitos da economia monetria e a partir da fazer comparao
histrica, um tal exemplo. Trata-se de uma construo terica genial que vincula
elementos muito heterogneos, dizer, que transfere Hegel para a matria etc., e
que com isso procura ento fazer poltica (...). Mas no posso imaginar que essa
construo, sem tal intelectualidade no campo terico, na combinao de teorias
e, ao contrrio, partindo apenas do ponto de vista "Precisamos fazer algo pelos
trabalhadores" teria tido esse sucesso***.
No pretendemos legitimar ou fundamentar as hipteses desenvolvidas nesta tese com
essa passagem. Mas ela torna a tenso entre distanciamento e crtica presente na teoria
de sistemas sociais de Niklas Luhmann certamente instigante.
*** Ibidem.
XI
Glossrio
Em um trabalho como este, so muitas as dificuldades de traduo de termos e
conceitos empregados constantemente por Niklas Luhmann. A teoria de sistemas sociais
no conta ainda com tradues suficientes para que a verso de termos e conceitos seja
unvoca. A maioria das tradues disponveis est concentrada nas obras inicias de
Luhmann. As escassas tradues para o mundo latino e anglo-saxo foram tardias e
ainda no oferecem uma viso de conjunto suficientemente ampla da teoria social de
Luhmann (Sistemas sociais, por exemplo, s foi traduzido para o ingls e para o
espanhol em 1995 e 1998, respectivamente; e A sociedade da sociedade somente foi
traduzido para o espanhol em 2007). Por essa razo, organizamos um glossrio com os
conceitos de mais difcil traduo, bem como alguns termos clssicos da teoria social de
matriz alem que empregaremos com maior freqncia. Nosso glossrio foi composto
apenas para atender s necessidades expositivas desta tese. Todas as tradues aqui
apresentadas esto sujeitas a reviso e melhorias. Trata-se de um apoio no manuseio do
vasto aparato conceitual luhmanniano que no pretende substituir o emprego
contextualizado dos conceitos relacionados abaixo.
XII
Abwesenheit: distncia interacional ou ausncia interacional, em complemento
opo de verter Anwesenheit em presena interacional concreta.
Anwesenheit: presena interacional concreta. A rigor, a traduo literal do termo
seria simplesmente presena. Mas, luz da importncia que a distino
Abwesenheit/Anwesenheit assume na teoria da comunicao de Luhmann, optou-
se por uma traduo que faa justia ao contedo do conceito no contexto terico
da teoria de sistemas sociais.
Aufhebung: as dificuldades de traduo deste conceito j so usuais. Utilizou-se
supra-suno, supresso ou superao de maneira razoavelmente livre, de
acordo com o contexto, mantendo-se a expresso no original entre parnteses
sempre que necessria uma maior preciso conceitual.
Aufklrung: esclarecimento, para o conceito considerado mais abstratamente; ou
Iluminismo, como marcao do processo histrico tpico do sculo XVIII.
Ausdifferenzierung: no foi possvel encontrar uma traduo unvoca. O termo
geralmente designa o processo de gerao de uma diferena entre sistema e
ambiente [die Erzeugung einer Differenz von System und Umwelt cf. Die
Gesellschaft der Gesellschaft, p. 66, nota 83], no obstante seja tambm
empregada para expressar a diferenciao dos meios de comunicao
simbolicamente generalizados [cf. Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft.
Frankfurt: Suhrkamp, 1997, p. 332]. Nesta tese, o uso mais tcnico de
Ausdifferenzierung expressa a diferenciao de um sistema social especfico
destacando-o do ambiente. No texto, optou-se por empregar a expresso conforme
as exigncias do contexto, seguida do termo original entre colchetes. Os usos mais
freqentes so no sentido de expressar a diferenciao funcional de um sistema
social especfico diante de seu ambiente. Ausdifferenzierung a diferenciao de
um sistema social a partir do pano de fundo do ambiente que o prprio sistema,
neste ato, produz. O conceito se ope, portanto, diferenciao interna do
sistema, tanto em estruturas, elementos, processos e programas quanto em
subsistemas funcionais (para a diferenciao interna, cf. Innendifferenzierung ou
interne Differenzierung).
Begrifflichkeit: aparato conceitual.
XIII
Buchdruk: imprensa, no sentido de tipografia, entendida como tcnica de
impresso de textos. No se utilizou simplesmente tipografia ao longo do texto
para evitar uma conotao excessivamente mecnica das transformaes pelas
quais passou a comunicao da sociedade historicamente.
doppelte Kontingez: dupla contingncia, expressando a situao comunicativa em
que a contingncia reciprocamente duplicada e que, com isso, conduz
improbabilidade da comunicao.
Eigengesetzlichkeit: legalidade prpria, expressando tanto a autonomia de esferas
vitais, em termos gerais, quanto a racionalizao interna a que esto submetidas
diferentes esferas simblicas do mundo da vida, tal como classicamente cunhado
o conceito por Max Weber, em termos mais tcnicos.
Entdifferenzierung: indiferenciao ou des-diferenciao.
Erfolgsmedien: meios de sucesso comunicativo.
Erleben: experimentar ou vivenciar. Em contraposio ao, como unidade de
sentido, traduziu-se Erleben geralmente por vivncia.
evolutionre Errungenschaft: aquisio evolutiva.
Handeln: ao ou agir.
Handlung: ao.
Information: informao no sentido de contedo informacional, expressando o
componente constativo (constative) da teoria da comunicao de Luhmann.
Innendifferenzierung: diferenciao interna de um sistema em subsistemas
funcionais (sinnimo de interne Differenzierung). ortogonal ao conceito de
Ausdifferenzierung.
interne Differenzierung: diferenciao interna.
Komplexittsgeflle: desnvel de complexidade.
Kontingenzformel: frmula de contingncia.
XIV
Lebensfhrung: conduo da vida, expressando a forma pela qual os indivduos se
comportam cotidianamente.
Lebenswelt: mundo da vida. O conceito foi popularizado por Jrgen Habermas,
mas deve ser entendido nesta tese em consonncia com a fenomenologia de
Edmund Husserl, como horizonte de possibilidades.
Medium (pl. Medien): meio (pl. meios).
Mitwirkung: co-atuao.
Mitteilung: elocuo. A traduo de Mitteilung uma das mais ingratas na
apresentao da teoria de sistemas de Luhmann. preciso ter sempre em mente o
conceito de comunicao como unidade sinttica entre trs selees: informao
(Information), Mitteilung e compreenso (Verstehen) [Luhmann, Soziale Systeme:
Grundri einer allgemeinen Theorie, Suhrkamp, 1984, p. 203]. A Mitteilung a
operao pela qual um sistema observa: (i) em si mesmo, a informao
selecionada internamente; e (ii) no ambiente, o efeito da comunicao da
informao sobre a compreenso; expressa o componente performativo
(performative) da teoria da comunicao de Luhmann. A traduo mais literal
empregaria ato de comunicar, mas dificultaria o distanciamento com relao s
teorias que assimilam a comunicao ao ato de fala. perfeitamente possvel
traduzir Mitteilung como mensagem [cf. Marcelo Neves, A constitucionalizao
simblica. So Paulo: Martins Fontes, 2007, ps. XIII/XIV]. Tercio Sampaio Ferraz
Jnior traduz Information como relato e Mitteilung como cometimento [cf.
Tercio Sampaio Ferraz Jnior, Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso,
dominao, 2 ed. So Paulo: Atlas, p. 104]. Gabriel Cohn verte Information em
informao, Mitteilung em enunciado e Verstehen em operao
interpretativa [As diferenas finas: de Simmel a Luhmann in Revista Brasileira
de Cincias Sociais v. 13, no 38, 1998, p. 60]. Optou-se nesta tese por elocuo,
figura de linguagem que designa a maneira de expressar um contedo, a forma
escolhida para a transmisso de uma mensagem, uma informao, mantendo-se,
contudo, o carter prtico e objetivo dessa operao comunicativa. Por exemplo,
quando o parlamento aprova uma lei que permite o aborto, temos: (i) uma
informao (aborto = permitido); (ii) uma elocuo (permisso do aborto =
XV
aprovao de uma lei, que pode significar derrota/vitria do governo/oposio); e
(iii) uma compreenso (recepo dessa lei pelos meios de comunicao de massa,
pelo sistema de ateno sade, pelo sistema jurdico etc.). Talvez a melhor
traduo para Mitteilung fosse performance ou performance comunicativa,
mas isso aproximaria demais o conceito de Mitteilung ao conceito de Leistung,
que Luhmann emprega em outro contexto. Optou-se por elocuo para realar que
o ato de comunicar algo se diferencia desse algo comunicado e da compreenso
do contedo dessa comunicao. Em qualquer caso, preciso manter sempre
presente que a elocuo uma operao objetiva, prtica, praticada pela
sociedade, e no por seus indivduos.
Objekt: objeto. Utilizado em sentido mais abstrato e geral, em oposio ao sentido
concreto que o termo pode adquirir (reservado para Gegenstand).
ffentlichkeit: opinio pblica ou esfera pblica, preferindo-se o primeiro termo
para evitar vinculaes imediatas com Jrgen Habermas e favorecer a
consonncia com Reinhart Koselleck.
operative Geschlossenheit: fechamento operacional.
Recht/Unrecht: lcito/ilcito ou licitude/ilicitude. A traduo espanhola
derecho/non derecho (legal/ilegal ou direito/no-direito) problemtica
porque sugere, com o plo no-direito, um mbito externo ao sistema jurdico.
O cdigo lcito/ilcito exclusivamente interno ao direito, significa que tudo que
ocorre no sistema jurdico ocorre como lcito ou ilcito.
Selektionsdruck: presso por seleo cf. Selektionszwang.
Selektionszwang: presso por seleo. Seguimos aqui a alternativa de algumas
tradues inglesas (pressure to make a selection).
Sinn: sentido.
Sozialitt: o social. Preferimos o emprego do artigo para substantivar o adjetivo ao
invs de empregar o neologismo socialidade, mais literal, mas menos preciso.
Sprache: linguagem.
XVI
steuern: controlar e regular, no sentido de dirigir, definir, determinar o
funcionamento ou o andamento de determinado processo.
Verbreitungsmedien: meios de difuso (da comunicao).
Verfahren: procedimento juridicamente regulado. Traduziu-se Proze como
processo, que assume uma conotao mais geral.
Vergleichbarkeit: comparabilidade.
Verstehen: compreenso, como um dos elementos da trade que compe a
comunicao.
Vorarbeit: pr-trabalho concentrado. A traduo de Vorarbeit trabalho pelo qual
um trabalho maior preparado [eine Arbeit, durch die eine grere Arbeit
vorbereitet wird]; e do verbo vorarbeiten trabalhar longamente em algo para
que se disponha futuramente de mais tempo para outras coisas [eine Zeitlang an
etwas lnger arbeiten, damit man spter mehr Zeit fr etwas anderes hat] cf.
Langenscheidts Growrterbuch Deutsch als Fremdsprache, 6 ed. (na nova
ortografia alem). Langenscheidt: Berlin/Mnchen/Wien/Zrich/New York, 2002.
Por essa razo traduzimos Vorarbeit por pr-trabalho concentrado: para
transmitir a idia de um esforo concentrado que permite poupar trabalho futuro.
Zeichen: smbolo.
Zufall: acaso.
Zahlung: pagamento, entendendo-se com isso um adiantamento de capital para
fomentar novas operaes econmicas.
Zurechnung: imputao, atribuio ou adjudicao, indistintamente.
1
Introduo:
Para uma recepo crtica da teoria de sistemas sociais
Se a filosofia, que uma vez pareceu superada, manteve-se em vida porque seu instante
de realizao efetiva fora perdido; a dialtica, que uma vez iluminara a superao da
filosofia, permanece todavia em vida, no obstante seu instante de realizao prtica
tenha sido efetivamente perdido; permanece em vida, contudo, no mais como dialtica
propriamente dita, mas como a contradio imobilizada por uma sntese invivel que se
desdobra pela reposio das condies sociais da prpria contradio. Essa dialtica
que, desde j, pode ser apenas impropriamente considerada dialtica permanece em
vida como negao operativa indispensvel reproduo da sociedade contempornea
que, por isso mesmo, somente pode ser descrita como a sociedade dos sistemas
autopoiticos funcionalmente diferenciados.
Como transparece de imediato, nossa exposio seguir um caminho contra-intuitivo e
pouco ortodoxo quer para os luhmannianos, quer para os marxistas.
2
O objeto deste trabalho poderia ser sinteticamente formulado como se segue: a teoria de
sistemas sociais de Niklas Luhmann possui um potencial crtico ainda inexplorado em
toda a sua extenso, mas que pode ser ativado por uma leitura que permita expandir o
alcance de sua teoria da sociedade. Essa expanso pode ser promovida quando a teoria
de sistemas sociais mobilizada para fundamentar a construo de uma teoria da
comunicao de matriz materialista (captulo 1), capaz de permitir que sua categoria
fundamental a autopoiese seja compreendida analogamente apresentao do
capital por Karl Marx (captulo 2) e confrontada com uma teoria do capitalismo
(captulo e 3). Na seqncia, a teoria de sistemas sociais empregada para dar conta das
mltiplas dimenses da desigualdade social (captulo 4) e da dinmica dos conflitos e
das contradies da sociedade atual (captulo 5). A partir de suas prprias premissas, a
teoria de sistemas sociais pode ser conduzida por meio de um desenvolvimento
imanente que acentue suas tonalidades crticas, oferecendo uma perspectiva de
renovao da teoria social. Esta tese prope um primeiro passo na direo de uma
recepo crtica da teoria de sistemas sociais.
No ser possvel proceder a uma apresentao introdutria da obra de Luhmann, no
obstante ela ainda seja pouco conhecida e difundida, mantendo-se restrita a alguns
poucos feudos acadmicos1. Apesar de ter sido desenvolvida no ltimo quarto do sculo
XX, a teoria de sistemas de Luhmann permaneceu obscurecida por um bom tempo, no
sem razo, pelo impacto da teoria do agir comunicativo de Jrgen Habermas,
equiparvel em estatura terica iniciativa luhmanniana2. A polmica envolvendo
Habermas e Luhmann, pretensamente continuao da Positivismusstreit entre Theodor
1 Cf., para introdues teoria de sistemas sociais: Niklas Luhmann, Einfhrung in die Systemtheorie (org. Dirk Baecker), 3 ed. Heidelberg: Carl-Auer-System, 2006; Luhmann, Einfhrung in die Theorie der Gesellschaft (org. Dirk Baecker). Heidelberg: Carl-Auer-System, 2005; Luhmann, Introduccin a la Teora de Sistemas (org. Javier Torres Nafarrate). Barcelona: Anthropos, 1996; Walter Reese-Schfer, Luhmann zur Einfhrung. Hamburg: Junius, 1992; Georg Kneer, Niklas Luhmanns Theorie sozialer Systeme: eine Einfhrung. Mnchen: Fink, 1993; Georg Kneer & Armin Nassehi, Niklas Luhmanns Theorie sozialer Systeme: eine Einfhrung, 2 ed. Mnchen: Wilhelm Fink, 1994; Detlef Hoster, Niklas Luhmann. Mnchen: Beck, 1997; Detlef Krause, Luhmann-Lexikon: eine Einfhrung in das Gesamtwerk von Niklas Luhmann. Stuttgart: Ferdinand Enke, 1999; Margot Berghaus, Luhmann leicht gemacht: eine Einfhrung in die Systemtheorie. Kln: Bhlau, 2003; Uwe Schimank, Theorien gesellschaftlicher Differenzierung, 3 ed. Wiesbaden: VS, 2007, cap. 4, ps. 123-183; Giancarlo Corsi, Elena Esposito & Claudio Baraldi, Glosario sobre la Teora Social de Niklas Luhmann, trad. M. R. Prez & C. Villalobos. Barcelona: Anthropos, 1996; e Ignacio Izuzquiza, Sodiedad sin hombres: Niklas Luhmann o la teora como escndalo. Barcelona: Anthropos, 1990. 2 Cf., essencialmente, Jrgen Habermas, Theorie des kommunikativen Handelns [1981], 2 vs., 4 ed. Frankfurt: Suhrkamp, 1995.
3
W. Adorno e Karl Popper, permitiu a generalizao de um juzo prematuro sobre a
teoria de sistemas de Luhmann conforme o qual ela se reduziria a uma sociologia
conservadora de vis tecnocrata, uma herdeira radicalizada do positivismo3. Em
complemento, uma recente difuso de segunda mo refora essa percepo: trata-se do
que se conhece hoje como direito penal do inimigo (Feindstrafrecht), ligado ao nome
de Gnther Jakobs. Por meio do uso meramente metafrico das categorias
luhmannianas, Jakobs inaugurara uma corrente no direito penal para legitimar a
represso policial preventiva4. Por mais que essas circunstncias adversas pudessem
justificar uma abordagem introdutria teoria de sistemas sociais, a preocupao
monogrfica desta tese exige que os conceitos luhmannianos sejam incorporados
conforme as exigncias do argumento. Trata-se de um esforo de recepo crtica que
permita, a partir de Luhmann e para alm de suas limitaes, expandir o aparato
conceitual da prpria teoria de sistemas sociais, tomada aqui como ponto de partida para
uma teoria geral da sociedade.
O aspecto desafiador dessa tarefa est em virar do avesso a teoria de sistemas sociais:
concebida como anti-dialtica e, mais ainda, como anti-marxiana, a perspectiva adotada
nesta tese toma radicalmente toma pela raiz a diferena sistema/ambiente, premissa fundamental da sociologia de Luhmann, e a desdobra em todas as suas conseqncias,
mesmo ao custo de contrariar os desideratos declarados da teoria de sistemas sociais.
Mas, antes de mais nada, por que a teoria de sistemas pode ser considerada anti-
marxiana?
3 O debate est registrado em Luhmann & Habermas, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie was leistet die Systemforschung? Frankfurt: Suhrkamp, 1971. Para algumas repercusses, cf. os artigos reunidos em: Franz Maciejewski (org.), Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. Beitrge zur Habermas-Luhmann-Diskussion (srie Theorie-Diskussion, suplemento 1). Frankfurt: Suhrkamp, 1973; e Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. Neue Beitrge zur Habermas-Luhmann-Diskussion (srie Theorie-Diskussion, suplemento 2). Frankfurt: Suhrkamp, 1974; bem como Hans-Joachim Giegel, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. System und Krise: Beitrag zur Habermas-Luhmann-Diskussion (srie Theorie-Diskussion, suplemento 3). Frankfurt: Suhrkamp, 1975. Para a Positivismusstreit, cf. Theodor W. Adorno (org.), Der Positivismusstreit in der deutschen Soziologie. Neuwied & Berlin: Luchterhand, 1969; bem como Hans-Joachin Dahms, Positivismusstreit: die Auseinandersetzungen der Frankfurter Schule mit dem Logischen Positivismus, dem amerikanischen Pragmatismus und dem kritischen Rationalismus. Frankfurt: Suhrkamp, 1994. 4 Cf. Gnther Jakobs, Direito penal do inimigo, trad. G. B. O. Mendes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
4
O programa terico sustentado por Luhmann por cerca de trinta anos se permite
sintetizar como esclarecimento sociolgico (soziologische Aufklrung), pois seu
objetivo central era escapar aos dilemas de uma teoria social ainda profundamente
impregnada pela rotina de pensamento que se conhece como filosofia do sujeito5.
comum referir-se ao Iluminismo e sociologia como rtulos para pocas histricas
diferentes, atendo-se o primeiro ruptura com a tradio, cujo ponto alto poderia ser
localizado no final do sculo XVIII, reservando-se o segundo compreenso da
modernidade constituda, a partir de meados do sculo XIX em diante6. Nesse sentido,
um programa de pesquisa que se apresente como esclarecimento sociolgico tem um
contedo paradoxal, pois todo esclarecimento a partir da sociologia seria
inevitavelmente anacrnico. Por bvio, no isso que se pretende: trata-se no de
replicar o lan iluminista na teoria da sociedade mas, ao contrrio, de fugir s
dificuldades e unilateralidades do que Luhmann chama de esclarecimento racional
(Vernunftaufklrung), fundado em duas premissas de difcil sustentao: (i) a igual
participao de todas as pessoas em uma razo comum, sem mediaes institucionais de
qualquer espcie; e (ii) a possibilidade de construo de um estado social racional. Essas
premissas so articuladas entre si pela reflexo racional do sujeito transcendental: se
todo indivduo racional, possvel apontar para um estado social verdadeiro, para uma
forma de consenso substantivo7.
A teoria da sociedade tem de se desfazer da ingenuidade desse Iluminismo que, no
limite, revela-se arbitrrio, totalitrio8. A desiluso do racionalismo considerando que
o progresso tcnico e moral assegurado pelas filosofias da histria pr-revolucionrias
rumo perfectibilidade humana no se efetivou deu lugar crtica, mas no permitiu
que os problemas no solucionados (ou criados) pelo esclarecimento racional pudessem
5 Cf. Luhmann, Soziologische Aufklrung [1967] in SA 1, ps. 83-115. Parece curioso formular dessa maneira o programa terico de Luhmann, principalmente em comparao a Habermas, que reivindica expressamente para si tal tarefa em diversas oportunidades. Por isso, a teoria do agir comunicativo e a teoria de sistemas sociais se apresentem como alternativas concorrentes e no exagero dizer que ambas tm o mesmo objetivo, no obstante tenham se desenvolvido por caminhos antagnicos: intersubjetividade e ato de fala no primeiro caso, comunicao como objeto social no segundo. 6 Idem, p. 83. Sociologia entendida como sinnimo para teoria social, como auto-descrio da sociedade operada pela prpria sociedade a partir de um ponto de vista interno cf. Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1997, p. 33. 7 Soziologische Aufklrung, p. 84. 8 Luhmann tangencia, neste ponto, a dialtica do esclarecimento cf. Max Horkheimer & Theodor W. Adorno, Dialektik der Aufklrung [1947]. Frankfurt: Fischer, 1969, p. 18.
5
ser enfrentados por uma teoria altura da tradio da filosofia poltica vtero-europia:
a sociologia no esclarecimento aplicado, mas, ao contrrio, esclarecimento
solucionado; ela a tentativa de vencer as fronteiras do esclarecimento9.
Mas o que significa para Luhmann vencer as fronteiras do esclarecimento? Aqui o
esclarecimento sociolgico j se permite vislumbrar como o antpoda do esprito
hegeliano. Resolver o esclarecimento significa investigar as condies sociais para
apreender e reduzir complexidade; tomar o esclarecimento como problema significa,
mais especificamente, compreender a modernidade a partir do ponto de vista da
formulao e da soluo de problemas da sociedade (e no da conscincia) esse o
ponto de ruptura entre a teoria de sistemas sociais e a tradio da filosofia do sujeito. Se,
para Hegel, sua (correntemente mal interpretada) afirmao de que aquilo que
racional real; e aquilo que real racional10 no significa sancionar o estado de
coisas tal como verificvel imediatamente, mas justamente o contrrio, i.e., se ela
expressa a negatividade da razo que tem de destruir o estado de coisas dado para
amold-lo s suas potencialidades; a realidade racional somente quando amoldada
pela razo. S h realidade efetiva (Wirklichkeit), no sentido especfico que Hegel
atribui ao termo, quando todas as possibilidades so atualizadas, quando toda potncia
tenha se tornado ato: A realidade que atual, aquela na qual a discrepncia entre o
possvel e o real foi superada11. por essa razo que efetividade e idia, mundo e
pensamento, no se opem um ao outro como no empirismo, e por isso que a idia
antes algo ao mesmo tempo absolutamente eficiente e tambm efetivo, pois que a
transformao da realidade ter progredido conforme as possibilidades nela
manifestas12. Reduzir complexidade significa ento tomar como pressuposto a
impossibilidade de que todo o possvel seja atualizado; significa identificar as condies
sociais que fazem com que a ao e a experincia humana tenham sentido tomando
9 Soziologische Aufklrung, p. 85. 10 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Vorrede in Grundlinien der Philosophie des Rechts, 4 ed. Hamburg: Felix Meiner, 1955, p. 14 [no original: Was vernnftig ist, das ist wirklich; und was wirklich ist, das ist vernnftig]. 11 Herbert Marcuse, Razo e revoluo: Hegel e o advento da teoria social, 5 ed., trad. M. Barroso. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 139. 12 Hegel, Enciclopdia das Cincias Filosficas em Compndio [1830], v. I: A cincia da lgica, trad. P. Meneses. So Paulo: Loyola, 1995, 142, Adendo, p. 267.
6
como ponto de partida o fato de que nem todas as possibilidades abertas podero ser
atualizadas simultaneamente, sem bloquear ou dificultar a atualizao de outras13.
O esclarecimento sociolgico anti-iluminista para romper com a ontologia da filosofia
do sujeito: reduzir complexidade, portanto, no simplificar, generalizar ou
abstrair a realidade, mas romper com uma realidade ontolgica que pode ser acessada
ou transformada pela razo subjetiva, pela fora da idia absoluta. A linha do argumento
luhmanniano que o simples aumento de possibilidades nada significa se no vier
acompanhado de mecanismos que reduzam tais possibilidades a algo vivencivel e
atualizvel para o indivduo. Vale considerar que, ao contrrio da comum suposio
de que na teoria de sistemas sociais no h indivduos, trata-se, muito pelo contrrio,
da preocupao com a possibilidade da experincia e da vivncia individuais dotadas de
sentido o que Luhmann abandona a auto-evidncia da conscincia individual como
ponto de partida seguro para essa tarefa14. A reduo da complexidade do mundo no
pode mais ser assimilada a uma capacidade humana inata (a razo) e tem de ser
entendida socialmente, conforme estabelecida pela sociedade. O esclarecimento
sociolgico busca romper com a tradio metafsico-ontolgica do pensamento
iluminista, ou melhor, com a unilateralidade absolutista da razo subjetiva:
(...) preciso indagar ao conceito de sujeito, se ele se apresenta ento com
pretenses de unicidade [Einmaligkeitsprtentionen], do qu se diferencia o
sujeito: do mundo? Dos objetos? De outros sujeitos? Ou apenas de si mesmo, do
no-eu? Quando assim se entende o sujeito (transcendental), que depende apenas
de si mesmo, o problema do ser-no-mundo [In-der-Welt-Sein] se transforma no
problema do ser-em-si-mesmo [In-sich-selbst-Sein]15.
Este, com efeito, o ponto central: a nica forma de escapar s encruzilhadas da
filosofia do sujeito est na construo de uma teoria da sociedade amparada em sistemas
13 A questo da reduo de complexidade em Luhmann somente fica plenamente clara luz de Hegel. Nesse sentido especfico, Luhmann pode ser considerado conservador tanto quanto Hegel possa ser tido como revolucionrio. 14 Como exemplo da confuso entre eliminar o indivduo e abandonar a categoria do sujeito como ponto de partida para a teoria social, cf., e.g., Andreas Weber, Subjektlos: Zur Kritik der Systemtheorie. Konstanz: UVK, 2005, especial e curiosamente p. 98, em que se argumenta que Luhmann no consegue eliminar totalmente o sujeito porque a sua teoria foi desenvolvida por um sujeito emprico o prprio Luhmann! Cf., com maior preciso, Peter V. Zima, Theorie des Subjekts, 2 ed. Tbingen & Basel: A. Francke, 2007, ps. 324-345. 15 Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft, p. 870.
7
sociais funcionalmente diferenciados. Se, de um lado, o esclarecimento sociolgico
aponta para uma teoria da sociedade como teoria de sistemas, de outro lado, no seria
exagero afirmar que, dentre todos os cnones da tradio da teoria social, o
esclarecimento sociolgico se constituiu em um programa terico voltado especialmente
contra uma verso especfica da filosofia do sujeito a dialtica. O esclarecimento
sociolgico cuida no apenas de oferecer uma teoria da sociedade que escape ao modelo
da filosofia do sujeito, mas e mais importante a tarefa central oferecer um
adversrio altura da dialtica e, mais especificamente, da dialtica histrico-
materialista.
O sistema se define pela diferena sistema/ambiente. O sistema essa diferena. Esta
premissa fundamental, sobre a qual Luhmann assenta todo o desenvolvimento de sua
teoria da sociedade, exige conceber o sistema como diferena e no como identidade16.
A diferenciao funcional de sistemas contraria no apenas a intuio, mas a tradio da
teoria social: no representa a construo de uma totalidade mas, ao contrrio,
justamente sua impossibilidade. O conceito de sistema fora tradicionalmente empregado
para designar um todo passvel de decomposio em partes que, por sua vez, poderia ser
recomposto pela soma das suas partes ou constituir uma unidade prpria, maior que essa
soma. Essa modelagem foi empregada para atestar que a sociedade era composta de
indivduos, no obstante pudesse constituir uma unidade superior a eles. O problema
que o modelo todo/partes introduz arbitrariedades tericas: se o todo ser reconstrudo a
partir de suas partes, uma delas ter de ser o repositrio da identidade do todo e, por
conseguinte, a sociedade tem de contar com um cume hierrquico que permita
reconstruir o todo a partir de uma parte especial17.
Um sistema diferenciado no uma parte da sociedade, mas uma diferena operativa,
uma diferena sistema/ambiente replicada internamente pelo prprio sistema:
No se trata da decomposio de um "todo" em "partes", quer dizer, nem em um
sentido conceitual (divisio) nem no sentido de uma diviso real (partitio). O
16 Cf. Luhmann, Soziale Systeme: Grundri einer allgemeinen Theorie [1984]. Frankfurt: Suhrkamp, 1987, ps. 30/31. 17 Cf. Soziale Systeme, ps. 20 e 27. A recusa da sociologia clssica (Weber, Simmel, Durkheim) em reconstruir a sociedade a partir da economia poltica fez com que ela no dispusesse de um conceito de sociedade cf., e.g., Thomas Schwinn, Differenzierung ohne Gesellschaft. Umstellung eines soziologischen Konzepts. Weilerwist: Velbrck Wissenschaft, 2001, ps. 31 e ss.
8
esquema todo/partes descende da tradio vtero-europia e perderia, se aplicado
aqui, o ponto decisivo. Diferenciao do sistema no significa, precisamente, que o
todo seja decomposto em partes e, visto nesse nvel, compreenda ento apenas as
partes e as "relaes" entre as partes. Ao contrrio, cada sistema parcial reconstri
o sistema integral ao qual pertence e que ajuda a operar mediante uma diferena
prpria entre sistema e ambiente (especfica ao sistema parcial). Atravs da
diferenciao do sistema, multiplica-se o sistema em si mesmo, por assim dizer,
pelas diferenas sempre novas entre sistemas e ambientes no sistema. (...) [O
processo de diferenciao] no pressupe qualquer coordenao pelo sistema
como um todo, como o esquema do todo e suas partes sugerira18.
Tudo se passa como se Luhmann tivesse aceitado o desafio posto por Heidegger
metafsica ontolgica de pensar a diferena enquanto tal19 sem, contudo, procurar
uma sada filosfica. Luhmann constri uma teoria da sociedade que, por isso, tem de
buscar fontes epistemolgicas em ramos do conhecimento que no adotam o par
sujeito/objeto como premissa do conhecimento, tais como a ciberntica, a teoria geral de
sistemas e o construtivismo operacional. Compreendido o sistema enquanto diferena,
fica dito que o sistema ele mesmo e ao mesmo tempo no o ambiente. Em termos
hegelianos, a diferena sistema/ambiente permitiria definir o sistema como um ser-em-
si (Ansichsein) que ao mesmo tempo um ser-para-o-outro (Sein-fr-Anders),
vedado em qualquer hiptese o vir-a-ser (Werden) do sistema no ambiente ou do
ambiente no sistema. claro que essa formulao hegeliana do conceito luhmanniano
de sistema esdrxula. Mas ela serve apenas para demonstrar que, de sada, Luhmann
bloqueia Hegel e a categoria da Aufhebung. Na Cincia da lgica, um exemplo da
doutrina do ser deixa mais claro o significado (filosfico, seria possvel dizer) da teoria
de sistemas:
O ser o conceito somente em si; as determinaes do ser so determinaes
essentes: em sua diferena so outras uma em relao s outras , e sua ulterior
determinao (a forma do dialtico) um passar para outra coisa. Essa
determinao progressiva , a um tempo, um pr-para-fora e portanto um
desdobrar-se do conceito em si essente; e, ao mesmo tempo, o adentrar-se em si do
18 Die Gesellschaft der Gesellschaft, p. 598 gr. or. 19 Martin Heidegger, Die Onto-Theo-Logische Verfassung der Metaphysik in Identitt und Differenz [1957], 13 ed. Stuttgart: Klett-Cota, 2008, ps. 62/63.
9
ser, um aprofundar-se do ser em si mesmo. A explicao do conceito na esfera do
ser tanto se torna a totalidade do ser, quanto por isso suprassumida a imediatez do
ser ou a forma do ser como tal20.
A diferena sistema/ambiente mantm-se como diferena porque no h o passar para
outra coisa que, no por acaso, Hegel considera a forma do dialtico. Por essa razo,
o sistema social de Luhmann essa diferena: o sistema sistema na exata medida em
que no o ambiente (se em Hegel o sistema adquire um carter de completude, passa-
se com Luhmann justamente o contrrio: o sistema expressa a fragmentao). A
diferena sistema/ambiente, como se pode ver, no uma metfora ou um mero
elemento do discurso: o fundamento da construo terica de Luhmann21.
O sistema funciona ento como paralisao do movimento. claro, movimento
entendido aqui como o problema que deu origem filosofia, como a questo da
passagem entre o ser e o no-ser como o vir-a-ser, portanto. Luhmann congela o
sistema como diferena do ambiente (= no-sistema) e que, assim, constitui sua
identidade: por isso o sistema a unidade da diferena sistema/ambiente nessa
medida, rompe deliberadamente com a tradio dialtica22. O sistema ele mesmo e ao
mesmo tempo no o ambiente; o sistema somente existe sendo ele mesmo e no sendo
o ambiente fica excluda a hiptese de reconciliar, em um nvel superior, sistema e
ambiente. Essa diferena uma negao, mas uma negao no-determinada ou
indeterminada, i.e., uma negao entendida em sentido no-dialtico logo: no como
Aufhebung mas como rejeio (Rejektion)23.
Contra a dialtica de Hegel, Luhmann finca o p na diferena, na impossibilidade de um
movimento de reconciliao; contra Marx, Luhmann ergue uma teoria geral de sistemas
com base no primado da diferenciao funcional, de forma a impedir a reconduo e a
reduo do social a uma instncia privilegiada de observao (a sociedade civil, o
proletariado, a esfera pblica, o intelectual e, em termos mais gerais: a economia, o
20 Hegel, A cincia da lgica, 84, p. 173 gr. or., subl. acr. 21 Cf. Jean Clam, Was heit, sich an Differenz statt an Identitt orientieren? Zur De-ontologisierung in Philosophie und Sozialwissenschaft. Konstanz: UVK, 2002. 22 Cf. Luhmann, Soziale Systeme, p. 82. 23 Gotthard Gnther, Cybernetic Ontology and Transjunctional Operations in Beitrge zur Grundlegung einer operationsfhigen Dialektik, v. 1. Hamburg: Felix Meiner, 1976, p. 287. Trata-se de um crtico da dialtica hegeliana to heterodoxo quanto obscuro para o habitual leitor de Hegel.
10
direito, a poltica, a cincia, etc.). De maneira geral, a estruturao de sistemas e
subsistemas sociais que funcionam seguindo lgicas prprias no se reduz
decomposio de um todo em partes articuladas. Ao contrrio, os sistemas so
diferenas operacionais capazes de produzir sentido e que, nessas condies, no
conhecem uma totalidade ontolgica subjacente os sistemas so formas fractais24.
Por conseguinte:
No podemos mais definir a sociedade concedendo primazia a um de seus
domnios funcionais. Ela no pode ser descrita como sociedade civil, como
sociedade capitalista/socialista ou como um sistema cientfico-tecnocrtico. Temos
de substituir tais interpretaes por uma definio de sociedade que se refira
diferenciao social. (...) A sociedade no pode mais ser compreendida de um
nico ponto de vista dominante25.
A teoria de sistemas sociais exclui severamente o recurso a um observador externo, um
macro-sujeito social que detenha uma capacidade privilegiada de refletir a sociedade
como um todo, convertendo-a assim em seu objeto. No vale recorrer nem ao
movimento do esprito, nem ao proletariado revolucionrio. Isso no impede
reconstrues da sociedade como um todo, mas tais reconstrues somente so
possveis do ponto de vista da economia, da poltica, da arte, do direito, etc. e nunca
de um ponto de vista nico e especial, determinante, em ltima instncia, de todos os
demais. claro que, partindo da economia, do direito, da poltica, etc., sempre
possvel construir uma observao da totalidade social; mas nunca ser possvel
alcanar a totalidade ontolgica da sociedade porque tal totalidade no poderia ser
observada, j que significaria a impossibilidade de que o observador pudesse marcar
uma distino entre o que ele observa e o que ele no observa. A sociedade como um
todo somente observvel para um determinado sistema especfico e, portanto, a
totalidade observada pelo sistema s pode ser uma totalidade parcial,
paradoxalmente, e que, como tal, no assegura o acesso totalidade entendida como
categoria da teoria social. Com isso, fica vedado o acesso totalidade: os sistemas e
24 Die Gesellschaft der Gesellschaft, p. 1.146. 25 Luhmann, Authors Preface in The Differentiation of Society, trad. S. Holmes & C. Larmore. New York: Columbia University Press, 1982, p. XII.
11
subsistemas sociais observam de fato a sociedade como totalidade, mas sempre de seu
ponto de vista parcial e contingente26.
Ora, a questo da totalidade indiscutivelmente sensvel ao marxismo27. Seja no
movimento do esprito ou do capital, ou ainda na crtica de uma razo esclarecedora que
se converte em mito e impe com isso uma totalidade ontologicamente falsa; dizer, de
Hegel a Adorno, passando por Marx, a dialtica se deixa definir por um movimento que,
pela negao determinada de seus momentos interiores (negao entendida aqui no
sentido especfico da Aufhebung), orienta a reflexo totalidade expressa por esse
movimento. A histria da filosofia permite identificar uma conexo interna entre
dialtica e filosofia do sujeito e, por essa razo, em certo sentido, a tarefa de escapar da
filosofia do sujeito significa, para Luhmann, escapar tambm da dialtica. Essa
alternativa construda na teoria de sistemas sociais no apenas de maneira
absolutamente consciente mas, sobretudo, da maneira mais conseqente possvel.
Luhmann polemiza com Marx e com o marxismo em inmeros pontos esparsos e no
o caso de rastre-los aqui; basta citar a seguinte passagem:
A localizao histrica e terica dessa proposta conceitual [a teoria de sistemas
sociais] clara: trata-se de um substituto para premissas de desenvolvimento
dialtico, de um substituto complexo para a simplicidade de idias centrais ou
abstraes reais cuja negao, segundo Hegel ou Marx, executou o
desenvolvimento dialtico28.
Com efeito, ler Luhmann contraluz de Hegel e Marx permite delinear com maior
nitidez o alcance da teoria de sistemas sociais. Parece-nos impossvel, contudo,
empreender uma leitura diretamente dialtica de Luhmann. Ruy Fausto, em seu texto
sobre as significaes obscuras da dialtica, aponta como Hegel investe a dialtica na
lgica, [tal] como Marx a investe na economia poltica29. Esse modus operandi da
crtica pde ser mais ou menos reproduzido pela teoria crtica de Frankfurt: a dialtica
26 Luhmann, kologische Kommunikation. Kann die moderne Gesellschaft sich auf kologische Gefhrdungen einstellen? [1986], 4 ed. Wiesbaden: VS, 2004, p. 204. 27 Cf. Martin Jay, Marxism and Totality: the Adventures of a Concept from Lukcs to Habermas. Cambridge, Polity Press, 1984. 28 Luhmann, Evolution und Geschichte [1975] in SA 2, p. 195 gr. acr. 29 Ruy Fausto, Marx: lgica e poltica. Investigaes para uma reconstituio do sentido da dialtica, t. 2. So Paulo: Brasiliense, 1987, p. 174.
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de Marx foi recepcionada a partir de uma retomada profunda do prprio Hegel e foi
consistentemente replicada a Weber e a Freud e combinada com aportes de
Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche no obstante tal conjuno tenha implicado a
rejeio de outros elementos marxianos (o fetichismo da mercadoria e a modelagem da
sociedade capitalista a partir da relao de troca foram diretamente projetados sobre os
processos de racionalizao, de constituio da personalidade e de crtica dominao
intrnseca racionalidade subjetiva, muito embora tenham exigido a renncia teoria da
revoluo e teoria de classes). No seguiremos na presente tese essa estratgia30.
Partimos da premissa de que Luhmann opera uma ruptura com a ontologia ocidental
descendente da filosofia da conscincia e da metafsica elaboradas no bojo do idealismo
alemo e constri efetivamente uma rota de sada da filosofia do sujeito (no obstante
ele no tenha sido integralmente bem-sucedido em extirpar, com isso, toda dialtica de
sua teoria de sistemas). Portanto, se remanesce uma dialtica em Luhmann uma
dialtica da qual a diferenciao funcional de sistemas autopoiticos no consegue se
desvencilhar essa dialtica diferente do pensamento orientado pela contradio entre
sujeito e objeto porque conduzida pelo paradoxo. Se h alguma dialtica nesta tese,
ela no ultrapassa os limites das dialticas vulgares31. E, muito embora ela abra espao
para que se socorra de Marx em inmeros pontos, cuida-se aqui apenas e to-somente
de analisar a teoria social de Luhmann.
Bento Prado Jr., no prefcio a um dos livros de Paulo Arantes, comenta o manejo no
apenas da melhor tradio crtica, mas tambm de tericos em geral tidos como
conservadores, salientando como o autor se utilizara de certo materialismo presente
nestes ltimos, s vezes mais sensvel do que vertentes oficialmente alinhadas tradio
marxista mais ortodoxa. Luhmann deixa um pouco dessa sensao, pelo menos para
seus leitores menos dogmticos: por mais que ele tenha se esforado em se distanciar
30 Essa possibilidade no est excluda a priori. Apenas preciso registrar que talvez ela venha a forar uma leitura enviesada de Luhmann (a no ser que se compartilhasse a crtica de Habermas que, como se ver, no precisa). Tudo indica que tal empreendimento seria no mximo metafrico e provavelmente no se sustentaria perante uma anlise mais rigorosa cf., e.g. Izuzquiza, Sodiedad sin hombres, p. 78: Os sujeitos na teoria de Luhmann so os sistemas. por isso que, para Izuzquiza, Muitas das afirmaes de Luhmann sobre a sociedade resultam motivo de escndalo (p. 81), sem que fique claro como o escndalo pode colaborar na construo de uma teoria da sociedade. 31 No sentido expresso por Ruy Fausto, Marx: lgica e poltica. Investigaes para uma reconstituio do sentido da dialtica, t. 1. So Paulo: Brasiliense, 1987, p. 15. A crtica dialtica da teoria de sistemas sociais, que no est posta at o momento, somente ser realizada de acordo com as necessidades do argumento, quase como uma imposio do objeto de nossa exposio.
13
radicalmente de Marx, remanesce algum materialismo digno de nota na apresentao
da sociedade funcionalmente diferenciada.
Desde que, aps a Dialtica negativa, o materialismo histrico perdeu a clareza de seu
estatuto terico (se no integralmente, pelo menos em parte), talvez seja til recorrer a
uma descrio competente da sociedade contempornea. Note-se bem: no se trata aqui
do argumento mais que batido e formulado como palavra de ordem segundo o qual
Marx est morto! e que nada tem de terico. O que chamamos perda de clareza do
estatuto terico do materialismo histrico diz respeito mais precisamente
encruzilhada em que se depara a dialtica, enquanto fora crtica historicamente
moldada pela filosofia do sujeito, de Hegel a Adorno; e est relacionada s dificuldades
postas ao marxismo pela discusso acerca da exausto analtica do trabalho como
categoria fundante da teoria social, sua substituio pela categoria da interao e, por
conseguinte, emergncia de um novo paradigma de teoria social, aos quatro ventos
chamado comunicativo32. A sada dessa encruzilhada por uma teoria da
intersubjetividade, tal como proposta por Habermas, por exemplo, altamente
questionvel, por razes que no podem ser abordadas aqui. Independentemente de seus
resultados, a discusso em torno de uma eventual segunda gerao da teoria crtica
permitiu assimilar ou reconhecer um ponto de ruptura na tradio materialista
representado pela preocupao com a linguagem a questo quanto ao caminho a ser
tomado da em diante uma outra discusso33. Tendo-se em mente essas iniciativas,
talvez a presente tese possa ser vista como um prolongamento tardio dessa discusso ou
como uma alternativa a ela.
32 Cf., para o paradigma comunicativo os conceitos de trabalho e interao em Habermas, Tcnica e Cincia como Ideologia [1968], trad. A. Moro. Lisboa: Edies 70, 2001, p. 57. Cf. ainda Claus Offe, Capitalismo desorganizado: transformaes contemporneas do trabalho e da poltica, trad. W. C. Brant. So Paulo: Brasiliense, 1989, especialmente o captulo Trabalho: a categoria sociolgica chave?, ps. 167-197; bem como Albrecht Wellmer, Kommunikation und Emanzipation. berlegungen zur "sprachanalytischen Wende" der kritischen Theorie in Urs Jaeggi & Axel Honneth (orgs.), Theorien des historischen Materialismus. Frankfurt: Suhrkamp, 1977, ps. 482 e ss. 33 A segunda gerao da teoria crtica contaria, alm da teoria do agir comunicativo de Jrgen Habermas, com a teoria das lutas por reconhecimento, ambas engajadas em identificar um contedo normativo para a teoria social cf. Habermas, Theorie des kommunikativen Handelns, v. 2, ps. 548 e ss.; e Axel Honneth, Luta por reconhecimento: a gramtica moral dos conflitos sociais, trad. L. Repa. So Paulo: 34, 2003. Para a crtica da pretensa herana crtica por Habermas, bem como para uma proposta que retoma trabalho e linguagem em chave dialtica, cf. Fernando Haddad, Trabalho e linguagem: para a renovao do socialismo. Rio de Janeiro: Azougue, 2004.
14
A presente proposta contraria as pretenses declaradas da teoria de sistemas de
Luhmann e, apesar disso, pretende ser desenvolvida tomando como ponto de partida a
sua premissa essencial (a diferena sistema/ambiente). De maneira pouco rigorosa: uma tarefa ao mesmo tempo luhmanniana e anti-luhmanniana; e por outro lado,
provocativamente: se as premissas da teoria apresentam uma feio anti-dialtica, e se a
teoria de sistemas sociais ser submetida a uma crtica interna rigorosa que, em seu
ponto mais alto, nos permitir formular uma espcie de dialtica da diferenciao
funcional, trata-se, por uma outra via, de um ponto de partida anti-marxiano que
poder levar a concluses diretamente inspiradas por Marx. Trata-se, por outras
palavras, de testar os limites e as possibilidades da teoria de sistemas sociais
independentemente dos resultados a que seremos conduzidos. No importa se
luhmanniana ou anti-luhmanniana, marxista ou anti-marxista nossa tentativa
sobretudo anti-dogmtica. A crtica imanente no pode recuar nem mesmo diante de
seus prprios pressupostos e pontos de partida; mesmo eles tm de ser radicalmente
postos a prova. Visto mais de perto, nosso programa de pesquisa est formulado de tal
modo que testar os limites e as possibilidades da teoria de sistemas sociais poderia ser
visto igualmente como um teste para a prpria dialtica e isso, de novo,
independentemente dos resultados que obteremos ao final de nosso percurso pelo
labirinto conceitual luhmanniano.
Temos em mente a inquietao clssica que remonta fundao da teoria social: como a
ordem social possvel? e, em certo sentido, esta tese procura escrutar a resposta de
Luhmann a essa questo34.
A teoria de sistemas sociais de Luhmann pode oferecer modelos analticos altamente
sofisticados e suficientemente apurados para subsidiar a compreenso da sociedade
contempornea na medida em que seja submetida a uma recepo crtica capaz de
alargar seu aparato conceitual a partir de suas principais premissas e de seus
pressupostos mais elementares. Muitos crticos acentuam certo distanciamento por parte
de Luhmann no diagnstico da sociedade contempornea, to complexa quanto
34 Cf. Niklas Luhmann, Wie ist soziale Ordnung mglich? in Gesellschaftsstruktur und Semantik. Studien zur Wissenssoziologie der modernen Gesellschaft, v. 2. Frankfurt: Suhrkamp, 1981, ps. 195-285.
15
contraditria35. Desenvolvendo possibilidades ainda inertes da teoria de sistemas sociais
para alm de seus limites, veremos que mesmo partindo das entranhas do funcionalismo
luhmanniano ser possvel obter um resultado com traos dialticos; ao fim e ao cabo, o
distanciamento pretendido por Luhmann pode ser convertido em crtica sem recurso a
uma crtica externa, mesmo contra a orientao declarada da teoria. A teoria de
sistemas sociais de Luhmann parece oferecer um instrumento analtico para a
compreenso da sociedade atual de extrema valia e que pode viabilizar um quadro
terico competente e atualizado para a crtica da sociedade capitalista contempornea,
talvez mais rico e profcuo do que a pretensa segunda gerao da teoria crtica da
sociedade. No se pretende argumentar que, por essa via, ser possvel renovar a teoria
crtica da sociedade. Essa questo que no est bloqueada de sada, mas que no
constitui o objeto desta tese conscientemente deixada em aberto. O que, espera-se,
ficar claro, que a teoria de sistemas, polida em algumas de suas lentes, certamente
permitir renovar um ponto de vista crtico acerca da sociedade contempornea;
permitir abrir nova senda para uma teoria da sociedade com potencial crtico
revigorado.
35 Cf., e.g., Sergio Belardinelli, Una sociologia senza qualit: saggi su Luhmann. Milano: Francoangeli, 1993, ps. 7/8.
Parte I
17
1.
A materialidade da comunicao
A teoria de sistemas sociais ser apresentada neste captulo pelo vis da materialidade
da comunicao. Parece possvel apreender a sociedade contempornea do ponto de
vista da comunicao sem perder com isso a dimenso da materialidade dos processos
comunicativos, mas tambm sem o recurso a uma base material exgena enraizada na
esfera da produo, do trabalho ou dos interesses econmicos. A tarefa identificar a
materialidade inerente prpria comunicao e, como tal, guiada por regras da
sociedade. Tal apresentao, contra-intuitiva, sugere algum materialismo em
Luhmann que em geral no percebido pela literatura especializada. Ao invs de
principiarmos diretamente pelo conceito de autopoiese, apresentaremos uma via de
acesso teoria de sistemas sociais que destaca o substrato material da comunicao e
sua importncia para a diferenciao funcional de sistemas. Para tanto, abordaremos a
materialidade da comunicao a fim de realar um movimento de continuidade e ruptura
com a tradio materialista: continuidade, por conta da revitalizao do potencial crtico
da teoria da sociedade permitida pela dimenso material da prtica social; ruptura
18
porque essa dimenso material no est na esfera da produo, mas no elemento exterior
da comunicao, na auto-referncia objetiva que estrutura a comunicao da sociedade
(seo I). O sentido, categoria fundamental da sociologia luhmanniana, somente pode
ser bem compreendido tendo em conta o funcionamento dessa auto-referncia objetiva
(seo II). Por sua vez, a apresentao da diferenciao funcional de sistemas exigir
captar a teoria da comunicao de Luhmann ao longo dos processos de desenvolvimento
da imprensa (seo III) e da institucionalizao de generalizaes simblicas,
abandonando-se o ato de fala como fundamento da interao (seo IV). Sobre essa
base, ser possvel apresentar a diferenciao dos meios de comunicao
simbolicamente generalizados como elemento catalisador da diferenciao funcional da
sociedade (seo V). Finalmente, veremos como a diferenciao funcional da sociedade
orienta o comportamento humano (seo VI).
I
Talvez uma das mais interessantes recepes da teoria de sistemas de Luhmann possa
ser localizada no movimento terico auto-intitulado materialidade da comunicao.
Alis, mais precisamente, o aporte para a leitura de Luhmann por esse vis parte de
breves apontamentos de representantes desse movimento, deixados at hoje sem os
desdobramentos possveis. Com efeito, a indicao de um movimento parece
exagerada para uma iniciativa de pesquisa que no logrou estabelecer uma nova
corrente na teoria da comunicao ou na teoria social, tendo permanecido isolada,
restrita a pesquisas especializadas e pouco difundidas na comunidade acadmica
internacional. O movimento se resume na verdade a um pequeno nmero de artigos
publicados em decorrncia de uma srie de colquios organizadas por Hans Ulrich
Gumbrecht, professor de literatura na Universidade de Stanford e K. Ludwig Pfeiffer,
professor de ingls e teoria literria na Universidade de Siegen, na Alemanha1.
1 Cf., e.g., Hans Ulrich Gumbrecht & K. Ludwig Pfeiffer (orgs.): Materialitt der Kommunikation. Frankfurt: Suhrkamp, 1988; Schrift. Mnchen: Wilhelm Fink, 1993; e Materialities of Communication, trad. W. Whobrey. Stanford: Stanford University Press, 1994. Para a histria dos colquios, Gumbrecht, Diesseits der Hermeneutik. Die Produktion von Prsenz, trad. J. Schulte. Frankfurt: Suhrkamp, 2004, especialmente o captulo Materialitt/Das Nichthermeneutische/Prsenz Anedokten ber epistemologische Verschiebungen, ps. 17-37. A materialidade da comunicao parece ter estabelecido uma linha de pesquisa mais consistente somente no jornalismo e na teoria da comunicao cf., e.g., a
19
Entende-se por materialidade da comunicao o deslocamento da anlise do sentido
para a prtica social que o constitui, destacando-o das tradicionais formas hermenuticas
impregnadas pela filosofia do sujeito que assumiam o sentido como um dado da
conscincia como intencionalidade, para falar com a fenomenologia passando assim
a inseri-lo nas condies sociais em que ele se permite constituir. Se verdade que o
problema da linguagem alcanou uma posio semelhante ocupada pela conscincia
h cerca de dois sculos, seguindo o diagnstico de Hans-Georg Gadamer2, a
materialidade da comunicao cuida de substituir a apreenso do sentido pelo sujeito
que interpreta o mundo (com recurso apenas sua prpria conscincia) pela anlise das
condicionantes sociais da formao do sentido e dos portadores materiais do sentido. A
materialidade da comunicao expressa assim o conjunto de elementos materiais que
contribuem para a emergncia do sentido, mas que no pertencem, eles mesmos,
diretamente esfera do sentido propriamente dito: o corpo humano, a conscincia, o
texto escrito, as novas tecnologias comunicativas e os meios de comunicao so os
exemplos mais comuns a materialidade da comunicao expressa por isso uma
dimenso de exterioridade.
Essa exterioridade, junto com o corpo humano (ou, mais precisamente: corpos
humanos), um ponto de referncia central para o programa de pesquisa chamado
"materialidades da comunicao". (...) [Pode-se descrever] "materialidades da
comunicao" como a totalidade dos fenmenos que contribuem para a
constituio do sentido sem serem, eles mesmos, o sentido3.
Na origem, a corrente da materialidade da comunicao sustentava expressamente a
pretenso de se manter fiel ao marxismo4. O progresso dos colquios e das publicaes,
contudo, conduziu o movimento para uma perspectiva mais ampla de crtica das
cincias humanas como cincias do esprito (Geisteswissenschaften) fundadas na
tradio hermenutica isto , na interpretao, investigao e atribuio de sentido por
um sujeito ao objeto interpretado; tratava-se ento de substituir a conscincia
hermenutica pela anlise da prtica social que produz sentido objetivamente. coletnea de Klaus Merten, Siegfried J. Schmidt & Siegfried Weischenberg (orgs.), Die Wirklichkeit der Medien. Eine Einfhrung in die Kommunikationswissenschaft. Opladen: Westdeutscher, 1994. 2 Hans-Georg Gadamer, Die Universalitt des Hermeneutischen Problems in Kleine Schriften I [1967], 2 ed. Tbingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1976, p. 101. 3 Gumbrecht, A Farewell to Interpretation, in Materialities of Communication, ps. 394-398 gr. orig. 4 Gumbrecht, Diesseits der Hermeneutik, p. 23.
20
Mas se h uma afinidade entre a materialidade da comunicao e o materialismo
histrico e se, no obstante essa afinidade, a materialidade da comunicao tem um
sentido especfico, qual a linha demarcatria entre um e outro? Qual a relao entre o
materialismo e a materialidade da comunicao? E mais: se, com efeito, o materialismo
histrico talvez no permitisse passar diretamente a Luhmann, como e por que a
materialidade da comunicao permite alcanar nosso autor?
No possvel nem til para o argumento desta tese repassar a histria do marxismo e
de como o materialismo de Marx foi recepcionado no sculo XX em diferentes
matizes5. Mas h que se mencionar pelo menos a teoria crtica da sociedade
desenvolvida no Institut fr Sozialforschung em Frankfurt, capitaneado por Horkheimer
e Adorno; e, de outro lado, a semitica textual do grupo Tel Quel, em Paris, nos anos
1960 e 1970, que contava com Jacques Derrida e Julia Kristeva, dentre outros.
Enquanto a Escola de Frankfurt se organizou como teoria da sociedade no sentido
dialtico da crtica da economia poltica6, a semitica textual ou semanlise, para
falar com Kristeva orientou-se anlise da linguagem como trabalho, ao estudo da
significncia no texto que pretendia, com isso, renovar a crtica ideologia e aos
discursos estabelecidos7. A afinidade entre esses dois movimentos e a anlise marxiana
do fetichismo da mercadoria evidente8.
O movimento de recuperao da dimenso material da comunicao foi motivado em
resposta virada imaterial, por assim dizer, experimentada pelos estudos culturais na
Frana na dcada de 1980, originados por sua vez do estruturalismo dos anos 1960.
Entre 28 de maro e 15 de julho de 1985, o Centro Georges Pompidou, em Paris,
apresentou uma instalao intitulada Les immatriaux, objeto do livro homnimo de
Jean-Franois Lyotard. O projeto original, de 1983, cuidava de examinar a matria em
todos os seus estados, mas o resultado final da pesquisa trouxe significativa mudana
5 Basta, para tanto, fazer referncia erudita Vorlesung de Max Horkheimer, Geschichte des Materialismus [1957] in Gesammelte Schriften, v. 13. Frankfurt: Fischer Taschenbuch, 1989, ps. 397-451; bem como a Perry Anderson, Consideraes sobre o marxismo ocidental - Nas trilhas do materialismo histrico, trad. I. Tavares. So Paulo: Boitempo, 2004. 6 Horkheimer, Traditionelle und kritische Theorie in Zeitschrift fr Sozialforschung 6, 1937, p. 261, nota 1. 7 Cf. Julia Kristeva, Matire, sens, dialectique in Tel Quel 44, 1971, ps. 27 e ss.; e Introduo semanlise [1969], trad. L. H. F. Ferraz. So Paulo: Perspectiva, 1974. 8 Cf., nesse sentido, Karlheinz Barck, Materialitt, Materialismus, Performance in Materialitt der Kommunikation, p. 131.
21
de perspectiva com relao ao escopo inicial: a execuo do projeto deixou claro que as
novas tecnologias, especialmente as chamadas tecnologias da informao e da
comunicao, representavam materiais imateriais, conduzindo o experimento da
perspectiva da materialidade para a perspectiva da imaterialidade e, com isso,
crtica do materialismo, marxista inclusive. O ponto central, contudo, que a crtica ao
materialismo (de novo: marxista inclusive) no tem necessariamente de conduzir ao
puro imaterial9.
certo que a materialidade da comunicao no se apresenta como substituta do
materialismo histrico luz de sua prpria histria, o materialismo traz consigo uma
carga (poltica, ideolgica, terica etc.) da qual ele no pode se despir de um golpe, e foi
para renovar a capacidade crtica permitida pela dimenso material da prtica social que
se desenvolveu o conceito de materialidade da comunicao10. Tratava-se de sustentar a
possibilidade da crtica a partir da dimenso exterior ao sentido que, como tal, diz
respeito s condies materiais de sua constituio. Por essa razo, ela pode parecer um
programa terico obsoleto. Mas, se no obsoleto, ou: ainda que obsoleto, a perspectiva
da materialidade da comunicao certamente uma aproximao improvvel teoria de
sistemas de Luhmann. Contra a intuio e o senso comum (e, a rigor, contra o prprio
Luhmann), a teoria de sistemas sociais permite o mais adequado tratamento da
materialidade da comunicao. Luhmann, em seu livro sobre os meios de comunicao
de massa, menciona a importncia das materialidades da comunicao para esse sistema
social especfico precisamente para excluir tal dimenso de sua teoria da comunicao,
sob o argumento de que a materialidade no pode ser comunicada11. Ora, mas s por
isso que ela condiciona a comunicao. A materialidade da comunicao no diz
respeito apenas ao sistema social dos meios de comunicao de massa mas, em um nvel
mais geral, est relacionada alterao da infra-estrutura social da comunicao em
funo da difuso da escrita e da imprensa e, por essa razo, determina a diferenciao
funcional de sistemas a despeito da rejeio expressa do prprio Luhmann.
9 Cf., nesse sentido, Pfeiffer, The Materiality of Communication in Materialities of Communication, ps. 1/2; e Barck, Materialitt, Materialismus, Performance, ps. 121-129. Para a crtica dos estudos culturais na Frana, cf. Terry Eagleton, After Theory. New York: Basic Books, 2003. 10 Barck, Materialitt, Materialismus, Performance, p. 128. 11 Luhmann, Die Realitt der Massenmedien [1995], 3 ed. Wiesbaden: VS, 2004, ps. 13/14, nota 5.
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Para entender por que Luhmann oferece o melhor enquadramento para o
desenvolvimento de uma teoria social que parte da materialidade da comunicao (e
tambm para entender por que a escrita crucial para a diferenciao funcional da
sociedade), vale uma breve digresso que toca o primeiro Derrida.
A materialidade da comunicao est relacionada exterioridade da linguagem, tal
como concebida por Derrida em sua crtica ao fonocentrismo e ao logocentrismo. Na
tradio ocidental, a fala subsume, como modelo comunicativo totalizante, todas as
outras formas comunicativas, fazendo com que a escrita seja imaginada como derivada
da fala (e o gesto, por exemplo, um rudimento da fala), tendo essa tradio alcanado
sua forma mais radical na fenomenologia de Edmund Husserl. Em seu clssico ensaio A
voz e o fenmeno, Derrida faz uma crtica da metafsica com recurso lingstica tendo
em mente o privilgio ininterrupto conferido fala em detrimento da escrita, como se
essa fosse apenas a reproduo grfica daquela12. Essa , com efeito, a apresentao da
diferena entre fala e escrita na lingstica de Ferdinand de Saussure:
Lngua e escrita so dois sistemas distintos de signos; a nica razo de ser do
segundo representar o primeiro; o objeto lingstico no se define pela
combinao da palavra escrita e da palavra falada; esta ltima, por si s, constitui
tal objeto13.
O ponto de partida o liame originrio entre o logos e a phon que remonta aos
primrdios da filosofia ocidental. Se, para Aristteles, os sons emitidos pela voz so
smbolos dos estados da alma, e se as palavras escritas so os smbolos das palavras
faladas, tem-se uma irmandade originria entre a voz e a alma: a phon tem um acesso
privilegiado e imediato ao sentido produzido idealmente como logos14.
Husserl enfrenta o problema da intersubjetividade partindo da conscincia individual
orientada pela intuio, de forma que a reduo ao monlogo um pr entre parnteses
12 Cf. Jacques Derrida, La voix et le phnomne [1967], 2 ed. Paris: Quadrige/Presses Universitaires de France, 1998. Quanto crtica de Derrida a Husserl, cf. Gumbrecht, A Farewell to Interpretation, p. 393 e ss.; e Habermas, Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt: Suhrkamp, 1985, ps. 191-218. 13 Ferdinand de Saussure, Curso de lingstica geral [1916], 27 ed., trad. A. Chelini et alii. So Paulo: Cultrix, 2006, p. 34 gr. acr. 14 Cf. Jacques Derrida, Gramatologia [1967], 2 ed., trad. M. Chnaiderman & R. J. Ribeiro. So Paulo: Perspectiva, 2006, p. 13.
23
da existncia emprica15. A fala, ento, o medium por meio do qual as conscincias
constroem a intersubjetividade: o falante se manifesta, emite um som associado a atos
dotados de significado e o ouvinte compreende o sentido dessa fala. Seguindo a
premissa kantiana da filosofia da conscincia a saber: compreendendo o significado
idntico a si mesmo como idealidade acessvel conscincia pela subjetividade
transcendental e nessa medida independente da esfera emprica Husserl concebe um
processo de auto-certificao da vivncia atual que somente pode ser um processo auto-
referencial e subjetivo, enraizado na representao lingstica das palavras que
acompanham o pensamento silencioso como palavras imaginadas, tal como se fossem
pronunciadas pela prpria voz do sujeito desse pensamento. A reduo fenomenolgica
do problema da intersubjetividade ao monlogo, a um expediente de ouvir-se falar,
faz com que todo o sentido seja concebido em uma esfera de interioridade. Dessa
maneira, a voz fenomenolgica assegura a auto-afeco pura e independente de
qualquer exterioridade, como se o sujeito dominasse perfeitamente o significante16. O
falante, quando se ouve em pensamento, efetua trs operaes simultneas: produz
uma forma fontica, percebe que o significado dessa forma o afeta e entende a inteno
de significado expressa nesse ato: Essa propriedade explica no apenas o primado da
palavra falada, mas tambm a sugesto de que o ser do inteligvel seja a presena
vivenciada sem corpo, por assim dizer; presentificada e certificada por