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Jogo de cartas: a correspondência como fonte de pesquisas 142 UNESP – FCLAs – CEDAP, v. 5, n.2, p. 142-167- dez. 2009 ISSN – 1808–1967 JOGO DE CARTAS: A CORRESPONDÊNCIA COMO FONTE DE PESQUISAS Carlos Eduardo BEZERRA * Telma Maciel da SILVA * * Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar um estudo sobre cartas de escritores. Este texto é o resultado de uma pesquisa realizada em minicurso oferecido durante o V Encontro do CEDAP, quando abordada a correspondência dos seguintes escritores: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, João Antônio, Ana Cristina César e Lewis Carroll. Palavras-chave: Correspondência; Cartas; Literatura. CARD GAMES: THE CORRESPONDENCE AS A SOURCE OF RESEARCH Abstract: This paper aims to present some writer’s letters study. This text is the result of a research which was presented as a workshop during the V Encontro do CEDAP, when we discussed about the following writers correspondence: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, João Antônio, Ana Cristina César and Lewis Carroll. Key words: Correspondence; Letters; Literature. No campo dos estudos literários brasileiros, o uso da correspondência de escritores como fonte de pesquisa, notadamente as cartas, está em desenvolvimento. Em universidades no país, dissertações de mestrado e teses de doutorado são escritas tendo como fonte as cartas, o que resulta em uma bibliografia crescente a este respeito. Ao nosso ver, neste campo do conhecimento, as cartas têm a função de mostrar que a produção do texto literário é, assim como a própria carta, uma partilha, como a definiu Philippe Lejeune 1 . * Carlos Eduardo Bezerra - Doutor em Letras pela UNESP – Assis/SP – Brasil – E-mail: [email protected] * * Telma Maciel da Silva é Doutora em Letras pela UNESP/Assis. Professora de Teoria Literária e Literatura Infanto-junvenil da Universidade Estadual de Londrina (UEL).- Londrina – Pr – Brasil - E-mail: [email protected]

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Artigo: Jogo de Cartas

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    UNESP FCLAs CEDAP, v. 5, n.2, p. 142-167- dez. 2009

    ISSN 18081967

    JOGO DE CARTAS: A CORRESPONDNCIA COMO FONTE DE PESQUISAS

    Carlos Eduardo BEZERRA Telma Maciel da SILVA

    Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar um estudo sobre cartas de escritores. Este texto o resultado de uma pesquisa realizada em minicurso oferecido durante o V Encontro do CEDAP, quando abordada a correspondncia dos seguintes escritores: Mrio de Andrade, Manuel Bandeira, Joo Antnio, Ana Cristina Csar e Lewis Carroll. Palavras-chave: Correspondncia; Cartas; Literatura.

    CARD GAMES: THE CORRESPONDENCE AS A SOURCE OF RESEARCH

    Abstract: This paper aims to present some writers letters study. This text is the result of a research which was presented as a workshop during the V Encontro do CEDAP, when we discussed about the following writers correspondence: Mrio de Andrade, Manuel Bandeira, Joo Antnio, Ana Cristina Csar and Lewis Carroll. Key words: Correspondence; Letters; Literature.

    No campo dos estudos literrios brasileiros, o uso da correspondncia de escritores como fonte de pesquisa, notadamente as cartas, est em desenvolvimento. Em universidades no pas, dissertaes de mestrado e teses de doutorado so escritas tendo como fonte as cartas, o que resulta em uma bibliografia crescente a este respeito. Ao nosso ver, neste campo do conhecimento, as cartas tm a funo de mostrar que a produo do texto literrio , assim como a prpria carta, uma partilha, como a definiu Philippe Lejeune1.

    Carlos Eduardo Bezerra - Doutor em Letras pela UNESP Assis/SP Brasil E-mail:

    [email protected]

    Telma Maciel da Silva Doutora em Letras pela UNESP/Assis. Professora de Teoria Literria e Literatura Infanto-junvenil da Universidade Estadual de Londrina (UEL).- Londrina Pr Brasil - E-mail: [email protected]

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    uma partilha no somente porque uma carta pertence a dois sujeitos, mas porque envolve sempre vrios correspondentes indiretos, no momento mesmo de sua produo, tanto da produo da carta como do texto literrio. A partir das propostas de Hans Robert Jauss, sempre se pensou em um outro sujeito ligado escrita: o leitor. Somente aos poucos, com os trabalhos de historiadores como Roger Chartier e Robert Darnton, que lidam com a literatura e a leitura, se comeou a pensar nos chamados sujeitos intermedirios da literatura, aos quais parece que podemos ligar os correspondentes de cartas, em especial quando um deles tambm escritor de literatura de fico.

    Na primeira parte deste texto, apresentaremos alguns procedimentos e observaes no tratamento da correspondncia de escritores como fonte de pesquisa na rea dos estudos literrios. Serviu-nos de base a correspondncia dos escritores Mrio de Andrade e Manuel Bandeira, que constitui um importante conjunto epistologrfico nacional. Todos os exemplos citados foram retirados da edio organizada pelo Professor Doutor Marcos Antonio de Moraes2. Os leitores podem acrescentar aos procedimentos aqui apresentados outros tantos que, certamente, surgiro medida que se detiverem em conjuntos epistologrficos especficos escolhidos como fontes de pesquisa.

    Na segunda parte sero abordadas as cartas dos escritores Joo Antnio, Lewis Carroll e da poeta Ana Cristina Cesar, agora, sob uma perspectiva do trabalho com o texto epistolar em si.

    Parte I: Alguns procedimentos no tratamento da correspondncia de escritores como fonte de pesquisa na rea dos estudos literrios

    A origem:

    No tratamento das cartas como fonte de pesquisa, sempre importante buscar conhecer como se deu o incio da troca epistolar, ou seja, o processo de troca de informao mediado por cartas ou demais formas de correspondncia, que podem ser cartes-postais, telegramas, bilhetes. Nos dias atuais, o pesquisador no deve descuidar da possibilidade de pesquisar os diversos recursos disponveis na internet.

    Este processo pode se dar por motivos profissionais, artsticos, polticos, etc. ou mesmo por afinidades ntimas. No caso aqui analisado, a correspondncia de Mrio

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    de Andrade e Manuel Bandeira, teve incio antes da Semana de Arte Moderna de 1922. A este respeito afirmou Marcos Antnio de Moraes, pesquisador da epistolografia do escritor paulista:

    Os protagonistas desta correspondncia, o escritor paulista Mrio de Andrade (1893 1945) e o poeta pernambucano Manuel Bandeira (1886 1968) encontraram-se em 1921, no Rio de Janeiro, em casa do poeta Ronald de Carvalho, na Rua Humait, 64. Nesse momento, Mrio tinha se deslocado para a antiga capital da Repblica a fim de divulgar o poema Cenas de crianas e os versos de Paulicia desvairada, ainda em manuscrito. Tencionava arregimentar adeptos modernistas entre os escritores cariocas. Exigiu, ento, a presena de Bandeira, cujos poemas de Carnaval descobriu atravs de Guilherme de Almeida em uma nunca esquecida tarde de domingo, numa viagem de txi. Mrio queria conhec-lo fisicamente, no por curiosidade. Foi para um reconhecimento, diria em carta de 1923, explicando-se: Emprego a palavra com a sutileza dos poetas japoneses nos seus haicais. Com todas as significaes e associaes que ela desperta. E da em diante esse reconhecimento no cessou de aumentar, florir, frutificar.(Carta de MB, 22 maio 1923).3

    Neste sentido, Moraes afirma ainda: A troca de cartas comea por iniciativa de Bandeira, em maio de 1922, depois da Semana de Arte Moderna, quando oferece a Mrio de Andrade um exemplar de Carnaval, editado em 1919. E continua o pesquisador: A partir da as pginas dessas cartas testemunham a histria da amizade entre duas figuras de proa do modernismo brasileiro.4

    Diante destas afirmaes, vemos que a correspondncia de Mrio de Andrade e Manuel Bandeira est ligada pelo interesse literrio, notadamente o estabelecimento de novos parmetros estticos na literatura brasileira que foi identificado como modernismo. Assim, as cartas, alm de possibilitarem um conhecimento dos assuntos referentes a esta esttica e sua implantao no Brasil, possibilita-nos conhecer os bastidores desta implantao. Dizemos bastidores porque, devido ao direito de privacidade, os autores e correspondentes podiam tratar abertamente de conflitos e demais circunstncias que vivenciaram no perodo. Alm disso, as cartas constituem uma espcie de memria da poca que acreditamos ser necessrio conhecer no mbito dos estudos literrios.

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    Os correspondentes:

    Alm de conhecer a origem da correspondncia, cabe ao pesquisador buscar descortinar os sujeitos envolvidos nela. Eles podem ser definidos em dois grupos: 1. Os envolvidos diretamente so os missivistas ou aqueles que se carteiam e no cartear-se assumem os papis de remetente e destinatrio. 2. Os envolvidos indiretamente so aqueles citados ao longo do conjunto das cartas e que podem variar conforme o perodo ou o assunto tratado pelos missivistas.

    Conhecer estes sujeitos permite ao pesquisador traar um quadro mais amplo das relaes estabelecidas entre eles e, desse modo, perceber a carta como parte de uma rede de contatos. No caso especfico abordado por ns, os envolvidos diretamente no conjunto de cartas que analisamos nesta primeira parte so os escritores Mrio de Andrade e Manuel Bandeira. Os envolvidos indiretamente no conjunto epistologrfico imenso. Dele no fazem parte somente escritores, como tambm msicos, artistas plsticos e demais sujeitos que, de algum modo, participam do dia-a-dia de Mrio de Andrade e Manuel Bandeira.

    Estes dois nomes apontam para ns situaes espaciais e temporais que devem ser conhecidas, como, por exemplo, a origem dos escritores, a filiao esttica, as suas relaes com outros escritores, etc. No nos deteremos, aqui, em traar estes dados, uma vez que eles podem ser encontrados em diversos livros. O que nos interessa neste procedimento buscar conhecer como estas informaes tambm aparecem nas cartas, uma vez que, a princpio, elas fazem parte de um circuito privado, permitindo, assim, aos autores a apresentao destas informaes ao seu modo. Este fato estabelece uma outra ponte possvel: a da carta com biografia ou autobiografia, uma vez que o circuito privado, pessoal e ntimo da carta permite aos autores falar de si mesmos resguardados pelo direito privacidade.

    Segundo Marcos Antnio de Moraes, A correspondncia de escritores abre-se, normalmente, para trs fecundos campos de pesquisa5 um deles seria justamente o das expresses testemunhais. A este respeito afirmou Moraes:

    Pode-se, inicialmente, recuperar nas missivas a expresso testemunhal. Aes, confidncias, julgamentos e impresses espalhados pela correspondncia de um escritor evidenciam uma psicologia singular que, eventualmente, desdobra-se na criao literria. , assim, territrio frtil para estudos

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    biogrficos, biografias intelectuais e perfis, dirigidos a ampla (e diversificada) gama de leitores. Entretanto, na (auto)biografia desenhada no tecido epistolar pululam contradies. A carta atualiza-se invariavelmente como persona e discurso narcsico; a verdade que enuncia a do sujeito em determinada ocasio, movido por estratgias de seduo datada e cambiante.6

    Assim, as cartas permitem aos seus leitores conhecer um retrato de autor, que fontes mais usuais no permitiriam conhecer. Este retrato um compsito formado ao longo da carteao. No se trata somente de um retrato momentneo, mas de um conjunto de imagens que formariam uma espcie de retrato maior ou uma imagem de conjunto que no o autor, mas um autor entre tantos quantos forem possveis de ser registrados por ele, medida que este sujeito varia conforme o seu correspondente. Ainda que uma mesma carta seja enviada para mais de um correspondente, sempre haver pequenas modificaes a fazer e neste refazer da carta primeira que um novo retrato de autor se mostra.

    O perodo:

    O levantamento do perodo da correspondncia permite ao pesquisador um conhecimento do conjunto epistolar especfico submetido variante tempo. importante observar se h interrupes no perodo e procurar identificar os motivos, que podem ser das mais diversas ordens. Em alguns casos esto ligados vida pessoal dos correspondentes, motivados por viagens, trabalho, doenas, etc. Em outros so motivados pelas circunstncias histricas e sociais, como, por exemplo, a censura ou at mesmo a priso dos correspondentes, etc.

    No caso da correspondncia de Mrio de Andrade e Manuel Bandeira, o perodo compreende os anos de 1922 a 1944. O fim da correspondncia se deu somente com a morte do escritor paulista, no tendo aquela sofrido interrupes durante perodo referido. Em alguns anos, o nmero de cartas variou conforme as circunstncias, sobretudo pessoais, dos correspondentes. A carta aparece, desse modo, vinculada a diversos contextos: histrico, sociais, cultural, econmico e pessoal.

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    A materialidade:

    O pesquisador deve considerar tambm como de capital importncia, no trato da correspondncia como fonte, a materialidade das cartas, isto , a prpria corporalidade do objeto que reconhecemos como carta ou outro tipo material de correspondncia, desde o tamanho das cartas, o tipo de papel empregado, o tipo de envelope, a tinta. Todos estes elementos da materialidade das cartas dizem respeito s circunstncias de sua produo e tambm s circunstncias de vida dos correspondentes. Trata-se de uma dimenso que no deve ser desconsiderada. Ela requer que o pesquisador esteja atento a detalhes e lhe impe um trabalho de descrio importante, seja das cartas seja das condies em que ele as achou. Este trabalho descritivo constitui o que chamamos de inventrio descritivo da correspondncia, que ajuda ao pesquisador a conhecer melhor o conjunto epistologrfico pesquisado.

    Neste inventrio no podem faltar o registro das dimenses das cartas, ou melhor, a medida de cada folha utilizada para a escrita, bem como a presena de furos de grampeador, marcas de objetos, de digitais, etc. Este registro depositrio de um conjunto de elementos que foram observados durante a leitura e o manuseio das cartas, que deve ser feito com cuidado e usando os materiais exigidos por cada instituto ou arquivo onde estejam depositadas as cartas. Aconselhamos, tanto para a preservao das cartas como para a preservao da sade do pesquisador, o uso de luvas, de mscaras e touca para os cabelos, evitando que sejam contradas infeces orais e cutneas no manuseio do material.

    Voltando materialidade das cartas, no caso aqui analisado, encontramos em carta de Manuel Bandeira, com data de 13 de novembro de 1926, a seguinte afirmao a respeito do tipo de papel que o poeta utilizara para escrev-la. Lemos: Imagine que o meu bloco acabou e eu estou sem papel em casa. Por isso lancei mo do papel em que veio embrulhado o meu po! que no quero demorar resposta sua carta de ontem7.

    A respeito da tinta, encontramos em carta Manuel Bandeira de 3 de setembro de 1927 o seguinte: Puxa! Que fita voc arranjou pra sua mquina, suja a gente todo!8. Mrio de Andrade no deixou por menos, respondendo ao colega em carta de 4 de outubro de 1927: cuidado que a fita da mquina continua a mesma e suja a mo da gente. Imagine que atualmente estou devendo seis contos e tanto!...9

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    Fatos supostamente simples como estes, porm merecedores da observao dos correspondentes, levam o pesquisador de cartas a dois caminhos: o primeiro seria o dos materiais de escrita, tanto do ponto de vista das condies materiais de produo da literatura, como da existncia de uma tecnologia da escrita. O segundo seria o das condies em que vivia o escritor. Observar estes fatos e suas recorrncias nos levam a compreender como a literatura brasileira foi escrita, uma vez que as condies de produo das cartas eram as mesmas da literatura.

    O pesquisador deve considerar tambm o tipo de carta quanto a escrita, que pode ser dividida em, no mnimo, trs categorias: a primeira, a carta manuscrita, grafada com caneta tinteiro ou esferogrfica; a segunda, a carta dactiloscrita, produzida, portanto, a partir de uma mquina de escrever. Destas duas categorias, surge uma terceira, hbrida, pois compreende aquelas cartas escritas mo e mquina, o que normalmente indica mais de um momento de produo da missiva. Neste caso, h uma particularidade envolvendo a correspondncia de Mrio de Andrade e Manuel Bandeira, que diz respeito mquina de escrever usada por Mrio. A este respeito lemos:

    Manuel do corao, Comunico que comprei uma mquina. Se voc estivesse aqui era um abrao pela certa, tanto que estou contente. J se sabe: pelo processo amvel das prestaes. Engraado, por enquanto me sinto todo atrapalhado de escrever diretamente nela. A idia foge com o barulhinho, me assusto, perdi o contato com a idia. Isso: perdi o contato com ela. No apalpo ela. Mas isso passa logo, tenho a certeza e agora que voc vai receber cartas bonitas de mim. Afinal: Deus mesmo muito bom pra mim. Porque essa histria de compro-no-compro: compro me deu uma comoo e um interesse pra estes dias todos. Por isso no pude pensar muito nesse escandalinho Prudente-Ronald. Seno ele muito me havia de contrariar, tenho a certeza. E agora j sabe: quinze minutos que seja de descanso, estou na frente da Manuela batendo tipo sem parar. Manuela o nome da mquina, por causa de voc. Inventei agorinha mesmo isso. No refleti nem nada: ficou Manuela. Assim a homenagem saiu bem do corao.10

    Ao que Manuel Bandeira responde em carta de 6 de maio de 1925: Meus parabns pela mquina! Eu tambm estou pra receber uma, marca rika, ltimo modelo. Retribuindo a homenagem, vou cham-la... como mesmo? Mariana ou

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    Maroquinhas? Voc o padrinho, escolha.11. Mrio de Andrade voltou ao assunto, em carta de 11 de maio de 1925, em que lemos:

    Vou aproveitar meiorinha pra ver se converso um pouco com voc. Quanto ao nome da sua mquina-de-escrever, nesse caso o diminutivo fica mal. Faa que nem eu, arranje um nome grando, Mariona, por exemplo, Tenho um fraco pela palavra Mariona. No sei se por causa da criada de minha tia que, c pra ns, vale bem a pena. Porm, refletindo bem, me parece que no . Eu bem sei dessa historiada orgulhosa de que o homem domina a maquinaria, criaturas dele. Minha impresso diversa. Sem ter o preconceito moderno da mquina, vejo bem tudo o que ela organiza a vida do homem e o transforma. Eu, que lido muito pouco com mquinas, me sinto dominado por elas. A minha mquina-de-escrever me domina, mais grande, mais forte do que eu. Por isso que botei Manuela e no Manuelina ou portugamente Manuelinha. Ela me d a sensao de que tenho junto de mim uma grande mulher bondosa, ticianesca de to grande que , porm ticianescamente boa tambm. Me serve, me ajuda, me facilita sempre, cuidadosa de mim, com uma pacincia! Voc nem imagina a pacincia que ela tem comigo. O mais engraado que, embora de vez em quando ela tenha seus engasgamentos, no tenho a romntica impresso dum capricho feminino ou de outras coisas proustianamente assim, no. Quando ela se engasga, boto a culpa na fatalidade, na deficincia dos homens que no sabem ainda criar mquinas infalveis. Minha mquina s boa pra mim.12

    Tratar dos objetos de escrita faz com que a pensemos como uma atividade histrica, mediada pelos objetos que possibilitam a sua produo. Pela leitura dos excertos, podemos concluir que, a princpio, Mrio de Andrade no escrevia mquina, talvez caneta, que permitia um contato mais ntimo com a superfcie do papel, como que fixando de forma manuscrita suas idias. No nos parece por acaso, portanto, que MA diga que perdia as idias ao escrever diretamente na sua Manuela. O ato de nomear a mquina , possivelmente, uma outra forma de diminuir o estranhamento provocado pelo fato de lidar com ela. Estes exemplos deixam claro, portanto, que, muitas vezes, os autores trazem para as suas cartas e tambm para as suas obras a relao que estabelecem com os seus objetos de escrita.

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    Os anexos:

    Assim como hoje temos o hbito de anexar arquivos nos e-mails que escrevemos e enviamos, o mesmo se dava com as cartas. No raro, juntamente com as cartas, eram enviadas fotografia, artigos recortados de jornais e revistas, livros, etc.

    Nas cartas de Mrio de Andrade e Manuel Bandeira h sempre um pedido para que um envie uma foto ao outro, o que pode significar uma necessidade de ver o correspondente, ainda que ambos se conhecessem, pois j haviam se encontrado no Rio de Janeiro. Assim, alm de se lerem, precisavam se ver algo que, alis, muito usual nos ambientes de redes de relacionamento como o orkut e o facebook, isso para usarmos um exemplo dos dias de hoje. Alm da necessidade pessoal dos correspondentes, a fotografia e, mais especificamente o retrato, era tambm usado para divulgar a obra dos autores.

    Como afirmamos anteriormente, juntamente com as cartas eram enviados livros, o que podemos constatar numa carta de 25 de maio de 1922:

    Mando-lhe alguns exemplares do Carnaval a serem distribudos a entre pessoas de mau gosto e boa inteligncia, capazes de sentir que aquelas rimas bonitas so pura ironia e o Debussy laboriosa e voluptuosa manipulao de alquimia subjetiva, com incalculvel arsenal de subentendidos imponderveis. Vai um exemplar com o meu nome e a minha admirao afetuosa para voc.13

    Divulgao e afeto fazem parte do tratamento que os correspondentes se do na constituio de uma rede de comunicao, para usarmos aqui uma expresso bem em voga nos dias de hoje. Por meio das cartas e seus anexos, notadamente os livros enviados, os correspondentes iam divulgando as suas obras em outros estados e cidades, alcanando, desse modo, leitores em outras praas do pas. Estes envios de livros e pedidos de distribuio entre os leitores conhecidos de um dos correspondentes se multiplica ao longo da correspondncia de Mrio de Andrade e Manuel Bandeira. No perodo que analisamos, ou seja, de 1922 a 1930, Mrio e Manuel atuam como divulgadores, um da obra do outro, nas duas mais importantes cidades do pas: Rio de Janeiro e So Paulo.

    medida que a amizade e a intimidade entre eles vo-se estreitando, os pedidos de divulgao se ampliam. Quanto mais so amigos, mais divulgavam a obra

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    um do outro. importante para o pesquisador buscar conhecer essa dimenso da troca epistolar entre autores, uma vez que isto permite enxergar a sua evoluo. No caso de Mrio e Bandeira, por exemplo, as cartas que, a princpio, eram bastante formais vo dando braos amizade fraterna e troca de confidncias ntimas. Um bom modo de perceber esta evoluo conhecer a forma como se tratavam, o que veremos a seguir.

    As formas de tratamento:

    A princpio, o tratamento dos correspondentes bem formal. Na primeira carta de Manuel para Mrio, o colega paulista chamado somente de Mario de Andrade e a carta foi assinada com um Manuel. O tratamento direto, simples e objetivo, o que se repete na resposta a esta primeira carta do escritor pernambucano. Somente na carta de outubro de 1922, Mrio de Andrade diz Querido Manuel e Manuel manteve-se um tanto formal chamando o seu correspondente de Meu caro Mrio, em carta de 8 de outubro de 1922. E assim se mantm por muito tempo. Em carta de novembro de 1924, aparece uma novidade na forma de tratamento: um Marioscumque, que o professor Marcos Antnio de Moraes, explicou da seguinte forma:

    Cumque, advrbio latino que se liga a pronomes relativos, podendo ser traduzidos por em todos os casos, em qualquer circunstncia. Marioscumque trata-se possivelmente de forma ldica para eliminar os prembulos epistolares com sentido prximo a Mrio, como quer que estejas. Em outra perspectiva, esse neologismo e Mariusque, tambm usado nesta correspondncia, podem ser apenas brincadeiras calcadas no Latim. 14

    Em carta de 31 de maio de 1925 aparece um Manuel dear. Em um PS de missiva datada de 10 de outubro de 1925, Manuel Bandeira diz: Manuel dear estupendo. E, em outra datada de S. Joo de 1925, aparece um Manelucho.

    Em carta de 4 de outubro de 1925 aparece: Manuelucho dear Em 19 de agosto de 1925 aparece um Mario trabalhador e em carta do mesmo ano aparece um Mrio ocupadssimo. Em 9 de setembro de 1925, Manuel Bandeira assina-se como Maneco. E em 7 de outubro de 1925 apareceu, pela primeira vez, um Manu em carta de Mrio de Andrade.

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    Em 18 de abril de 1925 apareceu Manuel do corao. Em carta de 27 de agosto de 1926 aparece um Mano Manu. Na primeira carta de 1927, Manuel Bandeira chama Mrio de Andrade de Mario: Bons anos, Mario., que se repete na carta de 5 de maro do mesmo ano.

    O que queremos mostrar com estes fatos, que a amizade entre os correspondentes foi evoluindo para a intimidade. O formalismo inicial foi sendo, aos poucos, quebrado. Essa intimidade pode ser tambm constatada no trato de alguns assuntos pessoais, como, por exemplo, as finanas, os amores e as doenas. Vejamos um exemplo em missiva de Mrio de Andrade com data de 10 de outubro de 1926:

    Manu, estou escrevendo pra voc e esta a primeira carta de verdade que escrevo depois de creio que j um ms. Neste momento de agora estou me sentindo bem disposto porm por enquanto inda levo em geral uma vida sem vontade cheia de dores, de sustos e sobretudo de irritaes. Tive pssima idia de fazer a minha operao com injeo raquidiana e a diaba no que me esculhambou duma vez com o sistema nervoso! Esculhambou! Passo as noites quase no dormindo nada e os dias inquietos cansado e sem possibilidade nenhuma pro menor trabalho intelectual. Dou umas aulas completamente bestas que dinheiro roubado das alunas, porm careo refazer as minhas finanas completamente desnorteadas. Creio que sem menos de dois meses no reprincipio a vida financeira normal, uma merda! Quanto vida de mim inteirinho, creio mesmo que s com as frias e uns quarenta dias de fazenda que me retomarei inteiramente do deserto vizinho da morte em que vim parar. Afinal a minha operao no foi de morte, foram umas filhas-da... de hemorridas que careci tirar da noite pro dia porque no agentava mais viver sem gosto.15

    A evoluo da amizade e da confiana mtua no significa que a amizade no seja, em alguns momentos, posta em dvida. O pesquisador, assim como deve observar a materialidade das cartas, deve observar tambm a sentimentalidade que os seus autores registraram nelas. A carta uma teia de elementos materiais e sentimentais a que devemos estar atento, podendo utiliz-las como fonte de hipteses, problematizaes e teses. Acreditamos tambm que importante produzir um inventrio dos sentimentos, relacionando com as variantes tempo e espao, o que no

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    significa somente tempo e espao fsico, mas, sobretudo, tempo e espaos como instncias sociais.

    No deixam de estar registrados nas cartas, as dores, os dios, as incertezas, os sentimentos de inveja, de desprezo, etc. No cabe, no entanto, uma abordagem judicativa do pesquisador ao se deparar com estes registros. H sempre que se pensar e se buscar uma tica no tratamento da fonte, em especial no tratamento da carta como fonte. E pensar em tica e mais ainda em utiliz-la sempre um desafio para o pesquisador, sobretudo, se o seu conjunto epistologrfico envolve polmicas pessoais ou sociais.

    O pacto de privacidade:

    As cartas esto submetidas a tratamento especial, no que diz respeito ao seu acesso como fonte de pesquisa. Mesmo as de autores foram escritas para circular em um sistema privado e ntimo relativo somente aos correspondentes. Trata-se do pacto de privacidade que deve ser mantido entre as partes envolvidas diretamente na carteao.

    Tanto o pacto de privacidade como o direito privacidade garantiram que nas cartas os escritores fizessem afirmaes que jamais fariam em pblico. Por isso, a entrada de um terceiro, seja ele um pesquisador ou um leitor fora deste circuito ntimo, leva a carta para o espao pblico, domnio no qual as intimidades sero expostas.

    Ao dedicar-se pesquisa com cartas, o pesquisador deve procurar informar-se das condies de acesso a elas, o que varia de instituto para instituto, de arquivo para arquivo onde as cartas estejam depositadas em um determinado fundo de escritor.

    H, sobretudo quando se trata de cartas depositadas em institutos ou arquivos pblicos, uma batalha entre o direito privacidade e o direito informao. O direito privacidade guardado por lei; no entanto, o fato do Estado prover a guarda e a manuteno em bom estado de conservao do acervo causa estranhamento diante do fato de algumas famlias ou herdeiros de escritores manterem alguma gerncia sobre elas, impossibilitando que trechos de cartas sejam publicados, inviabilizando projetos de pesquisa e publicao de obras.

    Este um fato bastante delicado que, pouco a pouco, vai sendo discutido por membros da comunidade acadmica, sobretudo quando as cartas esto depositadas em universidade e demais instituies pblicas.

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    Quando ainda esto nas mos de seus proprietrios originais, estes tambm podem, nas prprias cartas, queixarem-se da quebra do pacto de privacidade no contedo das mesmas. Foi o que constatamos em duas missivas no conjunto da correspondncia de Mrio de Andrade e de Manuel Bandeira.

    A primeira ocorrncia se deu em 3 de maio de 1926, de Mrio para Manuel, em que lemos: O que voc no tem direito de revelar estas coisas a ningum nem s pessoas de que se trata.16. A segunda, em uma de Manuel para Mrio, resposta daquela, em que lemos: Recebi a sua carta de 3, acerca da qual guardarei a inteira reserva que me pede.17

    A violao das cartas por terceiros:

    Alm da quebra do pacto de privacidade entre os correspondentes, o pesquisador deve buscar saber se houve no conjunto de cartas pesquisado a violao por parte de terceiros. Esta violao pode ser motivo da escrita de uma carta ou tratada como um dos assuntos entre os carteadores, como observamos em missiva de Manuel Bandeira, datada de 12 de agosto de 1926:

    Agora um pedacinho de histria antiga. Lembra-se de uma carta que voc me escreveu quando publiquei um artiguinho mexendo com vocs? Alegando desconhecer o meu endereo certo, voc remeteu a carta por intermdio do Guilherme [de Almeida]. Este ao entreg-la declarou frisantemente no a ter lido, no que no acreditei e que no dei importncia. Pois bem, anteontem encontrei uma pessoa a quem o Guilherme leu a carta! E a leitura no foi s para ele foi para um grupo!! Sem comentrio...18

    A privacidade, ou a quebra da privacidade, bem como a violao da correspondncia tambm fazem parte deste jogo de cartas que a troca epistolar. So, enfim, elementos que sempre devem ser analisados e que devem colaborar na leitura de um conjunto epistologrfico. At aqui, destacamos aqueles elementos materiais e sentimentais ligados pesquisa a respeito das cartas que consideramos como importantes. A partir de agora, a leitura proposta segue outro vis, uma vez que

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    lida com o texto buscando, em sua construo, elementos que se ligam ao prprio fazer literrio dos autores.

    Parte II: Cartas literrias

    Como afirmamos na introduo, nesta segunda parte do trabalho, analisaremos a correspondncia de trs escritores cujas produes literrias diferem bastante entre si. Contudo, no que diz respeito escrita de cartas, apresentam traos semelhantes, especialmente quanto ao tratamento estilstico dado ao texto epistolar. Trata-se de Joo Antnio, Ana Cristina Cesar e Lewis Carroll.

    O que teriam em comum autores to diferentes, distanciados pelo tempo e/ou por seus projetos literrios, em certa medida, antagnicos? Para alm de debates mais aprofundados sobre a obra de cada um deles, o modo de pensar a carta e a funo desempenhada por ela em suas obras poderia ser uma primeira resposta.

    A carta, portanto que , em primeira instncia, um objeto que busca a aproximao de sujeitos distanciados surge, aqui, mais uma vez, como minimizadora de distncias, possibilitando o dilogo entre autores-obras afastados por circunstncias diversas.

    Neste tpico, a carta ser apresentada em seu aspecto textual. Faremos, portanto, anlises voltadas para a questo do estilo epistolar de cada um dos autores, procurando mostrar possveis aproximaes.

    Joo Antnio: escritor de realidades

    Em primeiro lugar, trataremos de parte da correspondncia do escritor Joo Antnio (1937-1996), cuja obra mistura lirismo preocupao com as realidades brasileiras. Interessado em levar para a literatura o indivduo simples, muitas vezes colocado margem, o autor acabou sendo identificado como intrprete da marginalidade, sobretudo daquelas oriundas das cidades de So Paulo e Rio de Janeiro, as duas metrpoles onde Joo Antnio viveu grande parte da vida.

    Esta associao direta entre o nome do autor e o estrato social preponderante em sua obra, fez com que outros aspectos de sua produo artstica fossem deixados de lado. Contudo, aps a morte do escritor, que ocasionaria a cesso de seu acervo literrio para pesquisa sob a guarda do CEDAP/UNESP-Assis houve um

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    redirecionamento crtico, possibilitado pelo contato direto dos pesquisadores, por meio do Acervo, com as vrias faces da produo jooantoniana. Em tese defendida no ano de 2006, por exemplo, a pesquisadora Jane C. Pereira19, uma das primeiras a trabalhar com a fortuna crtica do contista, busca demonstrar o lirismo presente naquele que considerado um dos livros mais importantes de Joo Antnio: Malagueta, Perus e Bacanao.

    Esta guinada na crtica fez com que fosse possvel, por exemplo, pensar a correspondncia de Joo Antnio sob diversos prismas, levando em conta os aspectos materiais, que dizem respeito ao tratamento fsico que o autor e seus correspondentes deram s cartas, mas tambm pensar estas cartas inseridas em um projeto literrio mais amplo.

    nesta perspectiva de dilogo com os pesquisadores do Acervo Joo Antnio que apresentaremos aqui alguns dos procedimentos de trabalho com a carta, sendo que, neste caso, temos no apenas as missivas publicadas, conforme os exemplos dados nos tpicos anteriores, mas tambm parte delas inditas, o que, portanto, amplifica a responsabilidade do pesquisador, uma vez que esto em cena documentos originais.

    Antes de entrar no aspecto da literariedade da carta, vale a pena pensar um pouco sobre a questo do trabalho com este documento em seu estado bruto. Em primeiro lugar, h a questo legal. Para que seja desenvolvida qualquer pesquisa com cartas, preciso que o(s) correspondente(s) esteja(m) de acordo. Por conta disso, abordaremos aqui apenas uma, das muitas correspondncias inditas de Joo Antnio. Trata-se da Coleo Jcomo Mandatto, manancial de documentos que recebeu o nome do seu doador20.

    So muitos os aspectos materiais que chamam a ateno nesta correspondncia. Para comear, h algumas curiosidades em relao ao tipo de papel utilizado pelos autores, assim como no caso de Mrio e Manuel, abordado acima. Conforme pode ser observado em outras reas de seu Acervo, Joo Antnio tinha o costume de usar maos de cigarro vazios para fazer blocos de papel, onde catalogava termos novos da gria ou listava frases curiosas que tinha ouvido em suas andanas. E neste sentido, tambm as cartas do conta de procedimento semelhante. Em muitas delas, o escritor faz uso dos maos de cigarro para acrescentar bilhetes, que, em geral, eram colados s cartas guisa de apndice.

    A escolha deste suporte representa mais do que uma simples propenso do escritor reciclagem ou reaproveitamento de papel. Dado o imaginrio em torno do

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    seu nome, a insero deste tipo de material, seja nas cartas, seja em vrias outras partes do seu arquivo pessoal, indicam uma postura de afirmao de valores, certamente ligados bomia e tenso entre norma e conduta21.

    Alm dos maos de cigarro colocados como apndice, encontramos na Coleo Jcomo Mandatto cartas escritas em papis velhos, que em geral trazem alguma explicao do autor. Joo Antnio, em dados momentos, diz ao amigo que estas cartas simbolizam, de certa maneira, o seu gosto pelas coisas antigas.

    H, ainda, momentos em que a carta vem escrita em papel vegetal ou de seda, tornando-se ainda mais vulnervel ao tempo. Por que motivo um escritor obcecado pela manuteno de sua memria pessoal escreveria neste tipo de papel? Certamente esta uma questo que no tem resposta, ou pelo menos no tem apenas uma resposta. Como isso acontece, nas cartas a Mandatto, somente no comeo da carreira, pode-se pensar que naquele momento o escritor ainda no estava to preocupado com a posteridade. possvel, ainda, associar esta atitude ao contedo da carta, como no caso em que a missiva viria a ser publicada como conto. Portanto, um contedo nobre mereceria papel tambm nobre. claro que ficamos apenas no terreno das hipteses, mas, seja uma coisa ou outra, o suporte material das cartas acabam por dizer muito de seus autores e acrescentam significado ao contedo de suas correspondncias.

    No que diz respeito aos temas tratados por Joo Antnio e Jcomo Mandatto, uma troca epistolar que alcana mais de trs dcadas, certamente oferecer uma variada gama de temas. Desta forma, no nos ser possvel aqui e nem este o objetivo do trabalho ora apresentado passar por todos eles. Por isso, faremos algumas indicaes de possibilidades de leitura, tendo em vista a natureza do corpus e a sua extenso.

    Conforme anunciamos neste tpico, o tema a ser tratado adiante a aproximao possvel entre carta e literatura. Nesse sentido, tambm abundante o nmero de exemplos propiciados por esta correspondncia entre Mandatto e Joo Antnio bem como pelas de Ana C. (mais especificamente aquela publicada sobre o ttulo de Correspondncia incompleta), e a de Lewis Carroll (cuja coletnea se intitula Carta s suas amiguinhas).

    Em Joo Antnio, salta aos olhos a conscincia da posteridade, que vem acompanhada por uma espcie de obsesso por qualquer elemento relacionado sua obra. Esta conscincia de que suas coisas sero importantes depois de sua morte , segundo nosso ponto de vista, essencial para o modo como foi se formando esta troca

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    epistolar com Jcomo Mandatto. ela, portanto, quem faz das cartas um objeto precioso, designando-as a uma funo mais nobre do que a simples troca de informaes de um dia-a-dia que o tempo descolorir, como na cano de Toquinho.

    Nestas cartas, o escritor tratou de pintar as emoes e o dia-a-dia com cores fortes vibrantes e resistentes ao tempo do trabalho rigoroso com a linguagem. Ainda que os fatos tenham sido descoloridos, as palavras se mantiveram pulsantes, como organismos vivos que so.

    Desta forma, as cartas trocadas entre os amigos se tornam documentos ambguos; de uma natureza privada, como o feitio de (quase) todas as cartas, mas tambm pblicos, como da natureza de toda a Literatura. Esta escrita literria de que temos falado aqui se apresenta de vrias formas e, em muitas delas, possvel enxergar um dilogo entre esta prtica discursiva e a obra ficcional de Joo Antnio.

    Um bom exemplo disso a maneira como alguns temas aparecem na correspondncia. Nesse sentido, a morte uma questo que surgir constantemente nas cartas, ora motivada por fatos, ora por leituras que tratam do assunto, provocando longos dilogos e discusses. Em geral, nestes momentos, a linguagem muda, adaptando-se densidade do mote.

    Vale citar um trecho em que h um trabalho apurado com a linguagem, apesar de parecer apenas transposio direta da fala das ruas. Trata-se de carta enviada por Joo Antnio em julho de 1981. Nela, o escritor pede que o amigo cuide de sua correspondncia aps sua morte: Se eu pifar de uma hora para a outra e me apagar, bater com as dez e for conduzido chcara dos ps juntos, voc sabe: fica incumbido de organizar a minha correspondncia e publicar, se interessar.

    Aqui, o tema posto, aparentemente, de forma objetiva. No fosse a enumerao de ditos populares acerca da morte Se eu pifar de uma hora para a outra e me apagar, bater com as dez e for conduzido chcara dos ps juntos (grifos meus) , o pedido apareceria seco. Tal enumerao de eufemismos remete-nos ao poema Consoada, de Manuel Bandeira, em que a indesejada das gentes nunca nomeada, como se o fato de ocultar seu nome fosse capaz de evitar a sua vinda. Assim, o procedimento de Joo Antnio, alm de dar maior dinamismo frase, por meio do ritmo acelerado, deixa a constatao acerca da morte um tanto mais leve, palatvel, tornando o assunto quase um chiste. Somado a tudo isso, est ainda o fator da memria, uma vez que, ao fazer uso de termos do imaginrio popular, o autor, de certo modo, os mantm vivos e lhes empresta certo frescor.

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    Do mesmo modo, assuntos relacionados vida sexual dos correspondentes oferecem alteraes na narrativa das missivas. Nestes momentos, eles empregam um tom performtico, que beira a anedota. Vejamos uma carta do ano de 1977:

    No economizei dinheiro, nem esperma. Dei duas entradas em sanatrio, remexi muitos empregos e at o momento no peguei cadeia. Trepei o que pude, bebi outro tanto, viajei um pouco (minha grana sempre foi curta) sempre a trabalho. Casado e pai, descasado, casado de novo, hoje tenho uma bandeira: Mulher, mulheres. O resto so mulheres.

    H, nesse pargrafo, um matiz bastante literrio. Como em todos os seus textos auto-referenciais, o autor conta vantagens s avessas, associando vitrias e derrotas de um modo que lembra, mais uma vez, qualquer uma de suas personagens retiradas do submundo. Assim, dez anos so colocados dentro de um trecho diminuto e do conta das vivncias mais importantes do autor naquele perodo.

    Estes so apenas alguns dos exemplos das possibilidades de trato com a linguagem que as cartas de Joo Antnio a Mandatto oferecem. A carta , para o autor, mais um suporte no qual se pode fazer literatura. Neste sentido, a produo do contista de Malagueta, Perus e Bacanao dialoga com a da poetisa carioca Ana Cristina Csar, conforme veremos adiante.

    Ana Cristina Csar: as vrias faces de uma correspondncia

    Em uma carta de meados de 1977, direcionada a Maria Ceclia Londres, Ana Cristina Cesar fala sobre sua busca pelas obras completas de Lima Barreto, esgotadas poca, e aconselha a sua correspondente a procurar uma das poucas pessoas que certamente teriam todos os livros do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma: Voc tem que entrar em contato com o maior f do Lima no Brasil, que o (chato) Joo Antnio22.

    Em outra missiva datada de abril deste mesmo ano, agora enviada a Maria Clara Alvim, possvel encontrar outra referncia ao contista paulistano. Desta vez, no se trata de uma citao direta, como no caso anterior, mas de uma crtica ao projeto Malditos Escritores!, cuja direo naquele momento cabia a Joo Antnio: J tenho idia de escrever sobre os Malditos escritores! e sua relao com a ideologia

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    romntica-nacionalista-localista, sobre a qual fiz um trabalho legal para o nivelamento23.

    Estes dois pequenos exemplos j do a dimenso de como as concepes artsticas de Ana C. e Joo Antnio so distintas. Contemporneos, ambos vivenciaram a produo literria visceralmente, mas cada qual buscando bases distintas para suas obras. Pode-se dizer ainda que ambos experimentaram a marginalidade; ela, vista como parte da gerao do desbunde, dos poetas de mimegrafo; ele, por seu turno, tido como freqentador do baixo-meretrcio e das rodas de sinuca, orgulhando-se sempre de ter trazido a arraia mida para as altas literaturas.

    Contudo, se difcil encontrar em suas obras e projetos literrios alguma pedra de toque, no que concerne epistolografia, so muitas as semelhanas. No prefcio do livro Correspondncia incompleta, de onde foram tirados os exemplos citados, Armando Freitas Filho fala sobre a prtica epistolar de Ana Cristina:

    Em certas cartas e cartes temos a sensao de que, se suprimssemos o destinatrio e o remetente, estaramos lendo alguns de seus poemas, se no acabados, pelo menos ensaiados, que mais tarde vamos encontrar em seus livros, como em Correspondncia completa, de 1979, constitudo por uma carta nica.24

    Esta uma afirmativa possvel tambm em relao correspondncia de Joo Antnio com Jcomo Mandatto. As cartas, portanto, se tornam um elemento de aproximao entre os dois autores. Alm deste aspecto mais formal, h ainda o temrio: ambos tratam, em parte significativa de suas missivas, de suas relaes com a literatura e, paralelamente a isso, da constituio de suas obras.

    H, obviamente, uma mudana de tom de um para outro, mas no que tm de essencial, as cartas dos dois so reveladoras de semelhanas. Como vimos, Joo Antnio utiliza elementos da obra, nas cartas; procedimento igualmente usado por Ana C. Talvez, na poetisa, tais prticas sejam levadas muito mais a fundo, dada a complexidade da dialtica sinceridade x fingimento proposta por sua obra ficcional, ela prpria feita a partir de textos da chamada escrita de si, de que exemplo a(s) narrativa(s) de Luvas de pelica, isso para ficar apenas em um conjunto de textos emblemtico.

    Nas cartas verdadeiras, ou seja, nestas que compem o livro Correspondncia incompleta, ela fala mais de uma vez da ambigidade que enxerga

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    na prtica epistolar. Neste sentido, o excerto a seguir trecho de uma missiva enviada a Ana Cndida Perez bastante curioso, uma vez que a autora discute a escrita de cartas, deixando claro que est fazendo literatura. Vejamos:

    Voc grila de receber cartas datilografadas? Eu acho legal porque bato rpido e no tenho muito tempo de pensar, sai quase como um papo. claro que estou sabendo da pouqussima falta de inocncia de uma carta. Mas os papos tambm no so inocentes. Meu Deus, o que eu estou falando! Tem tambm o lado ttil: gostoso bater despreocupadamente, os dedos tocando, batendo, stroking. O que me inspirou sentar a esta hora e te escrever do meio deste calor foi um pensamento sbito: (aqui eu finalmente engasguei e parou o tictac ritmado) dou um espao para lembrar o tempo

    o pensamento de que cada prxima relao fica enriquecida pela anterior, fica mais livre. (no estou conseguindo desenvolver. engraado como os engasgos, por escrito, ficam mais grilantes e patentes do que num papo.)25

    Ana Cristina Csar mescla neste estudo sobre a sua escrita epistolar uma srie de expedientes de seu trabalho potico. O que era uma carta prosaica se transforma em poema, pra depois se transformar em estudo e novamente voltar ao poema, sem, contudo, deixar de ser uma carta. Em texto breve sobre sua correspondncia com a poetisa, Heloisa Buarque de Holanda (1999) afirma que uma das grandes questes sobre a sua obra a do interlocutor:

    No ser toa que a questo que sua escrita ainda hoje levanta a questo do interlocutor, de seu destinatrio. Para quem Ana escrevia? Ou para ser mais correta: quem escrevia, quando Ana C. escrevia? Uma pergunta que se conseguiu manter em aberto atravs de toda a sua obra. Essa, sua grande expertise.26

    A obsesso de Ana C. pelas cartas ultrapassa, portanto, o limite de sua correspondncia, fazendo com que tambm seus textos ficcionais busquem o dilogo com um destinatrio materializado na figura de um leitor de cartas ou de dirio ntimo. Em A teus ps, o eu lrico de um poema sem ttulo confessa: A intimidade era teatro,

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    e um pouco adiante, lamenta: As cartas, quando chegavam, certos silncios, nunca mais.

    Alm destes momentos em que a carta o tema da prpria carta ou do poema, h ainda muitos outros em que o tom potico da obra impregna a correspondncia. Uma missiva dos primeiros dias de 1980, escrita para Helosa Buarque de Holanda, um bom exemplo de como a escritora misturava elementos biogrficos a traos constitutivos de sua poesia.

    Hel, querida, O turismo est me deixando annima. O natal, com suas maldies, passou, enfim. Sonhei que o Marcos me trocava pela Carolina e eu espumava de raiva e perda e tal. Descubro a malignidade de certas freiras, horror. Acabo a dcada em Florena com o tal Giovani, que no pode furar outra vez. Leio o livro de Gabeira nas noites de convento. lindo, triste, cheio de japoneses, aqui na pedra fria na Praa de So Pedro.27

    Aqui, uma viagem a Florena narrada de maneira sumria, com frases curtas que trazem informaes diversas sobre as impresses da poetisa (ou do eu lrico). A estrutura a mesma de seus textos curtos de Cenas de Abril, que traz poemas disfarados de dirio. Impresses de leituras so adensadas pela atmosfera da cidade. No ltimo perodo os adjetivos condensam ainda mais toda a experincia descrita ao longo do pequeno pargrafo e o texto termina com palavras, cuja repetio das letras p, d e r, parecem mimetizar a dureza potica da paisagem.

    Sempre fiel aos acontecimentos biogrficos, conforme anuncia no segundo poema de A teus ps, Ana C. construiu uma obra que brinca (a srio) com os gneros da escrita ntima. Contudo, h uma ambivalncia no texto, sempre deixando clara a presena de uma teatralidade, construda pelo labor com a palavra. Ao leitor, correspondente acidental ou espio das folhas de um dirio alheio, resta a sensao ambgua de proximidade e afastamento, como os dois lados de uma moeda, ou para usar uma imagem da prpria escritora, os dois lados de um carto postal:

    Cartes postais escolhidos dedo a dedo. No verso: ateno, ests falando para mim, sou eu que estou aqui, deste lado, como um marinheiro na ponta escura do cais.28

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    Lewis Carroll: cartas-brinquedo

    Outro caso paradigmtico de produo epistolar o escritor ingls Charles Dogson, a quem conhecemos sob o pseudnimo de Lewis Carroll. O autor de Alice no pas das maravilhas, um dos livros mais vendidos em todo o mundo, cultivou o costume de escrever cartas s suas fs. No mesmo estilo nonsense de sua mais famosa obra, as cartas, ora assinadas por Carroll ora por Dogson, podem ser lidas como episdios soltos, independentes, de suas obras principais, conforme palavras de Carlito Azevedo colocadas na orelha da edio brasileira, intitulada Cartas s suas amiguinhas.

    Ler a compilao das cartas de Carroll realmente fazer uma viagem por seu estilo literrio. Em algumas delas, inclusive, ele brinca com a questo da sua dupla assinatura. Vejamos um exemplo:

    Tenho um recado que um de meus amigos mandou para voc. Trata-se de Mr. Lewis Carroll, que um escritor meio esquisito, um pouco inclinado a escrever histrias sem p nem cabea. Ele me disse que voc um dia lhe havia pedido para escrever outro livro parecido com o que ele havia escrito e cujo nome esqueci. Acho que havia nisso um pouco de malcia. [...] Nesse instante suas lgrimas comearam a cair sobre mim como chuva (esqueci de dizer que ele me falava da janela do ltimo andar de sua casa), e eu j estava todo ensopado quando gritei: - Pare com isso imediatamente ou no darei nenhum recado!29

    Interessa notar, entretanto, que cada uma das cartas constantes no volume apresenta caractersticas do gnero epistolar, no sendo somente um texto literrio enviado pelo correio. Alm do dilogo com um interlocutor, encontraremos ainda em todas elas um cabealho, com data e local de envio, seguido de uma saudao destinatria. Dessa forma, temos, sim, um texto literrio que dialoga com a produo ficcional do autor, mas temos tambm uma carta, direcionada a algum especfico.

    No texto que abre a edio brasileira de Cartas s suas amiguinhas, o tradutor Newton Paulo Teixeira dos Santos faz alguns comentrios sobre a importncia destas cartas para Carroll: No creio que ele fizesse questo de que fossem respondidas; ele

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    escrevia cartas como quem dava presentes no Natal, nos aniversrios ou sem razo especfica. Era um jogo literrio e ldico com o qual ele se satisfazia30.

    Neste jogo literrio que o autor estabelecia com suas correspondentes, tal como vimos nos casos de Joo Antnio e Ana Cristina Cesar, h uma retomada incessante de elementos da obra ficcional. Assim, as amiguinhas se tornam espectadoras e, ao mesmo tempo, participantes de novos episdios, autnomos e aparentemente despretensiosos, da produo do autor.

    A carta, para o escritor de Alice no pas das maravilhas, adquire ainda mais ambiguidade. De dilogo epistolar, alcana o status de produto literrio; e, de obra de arte, passa tambm a uma funo ldica, tornando-se brinquedo srio, como os parangols, do nosso Hlio Oiticica.

    Algumas das cartas-brinquedo, recebidas de presente de Natal, de aniversrio etc, conforme as palavras do tradutor, tambm discutem a questo da performance da escrita, mesmo que elas prprias, em seu projeto inicial, j sejam a expresso primeira desta performance. Vejamos um trecho:

    Da prxima vez no seja to apressada em acreditar nos outros, e eu vou lhe dizer por que: se voc se esfora para acreditar em tudo que lhe contam, voc vai cansar os msculos do seu esprito e vai ficar to enfraquecida, que no ser mais capaz de acreditar nas verdades mais elementares. No faz nem uma semana, um de meus amigos fez um esforo para acreditar na histria de Jack-o-Matador-de-Gigantes. Conseguiu, mas perdeu tanta energia que, quando eu lhe disse que estava chovendo (o que era verdade), ele foi absolutamente incapaz de acreditar, e saiu para a rua sem chapu nem guarda-chuva. Em conseqncia, seus cabelos ficaram inteiramente molhados e seu topete levou mais de dois dias para recuperar a forma. (N.B. receio que parte dessa histria no seja verdadeira).31

    Ainda que de maneira nonsense, o dilogo que Carroll estabelece nas cartas com as suas amiguinhas quase sempre na funo de adulto conselheiro. Ele assume a posio de tio e/ou amigo mais velho, cujas palavras ganham um matiz, muitas vezes, solene. Entretanto, os conselhos do escritor quase nunca obedecem ao padro esperado de dilogo entre uma criana e um adulto, acompanhando, portanto, o carter fantstico de sua obra. Vejamos mais um exemplo:

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    Minha querida Agnes, Como voc preguiosa! O qu? Devo dividir os beijos comigo mesmo? Na verdade seria muito difcil fazer semelhante coisa! Mas vou dizer como proceder. Primeiro pegue os beijos e isso me faz lembrar uma coisa curiosa que me aconteceu ontem s quatro e meia da tarde. Trs visitas bateram em minha porta, pedindo para entrar. Quando abri, quem voc pensa que eram? Voc nunca vai adivinhar. Eram trs gatos! No engraado? Mas eles tinham uma cara to zangada e desagradvel que peguei o objeto mais prximo (por acaso era um rolo de pastel) e esmaguei os trs como se fossem panquecas! Se voc, minha querida, um dia bater em minha porta, juro que vou esmagar sua cabea. Vai ser engraado, no acha? Com todo afeto do Lewis Carroll32 (grifos do autor)

    O exemplo anterior traz uma carta na ntegra. As expresses de afeto que iniciam e terminam o texto contrastam com o contedo expresso no que poderamos chamar de miolo da carta. Aqui, h uma ameaa interlocutora, o que se d por meio da narrao de uma histria grotesca, mas que contada em um tom de extrema normalidade. Alis, este tipo de interlocuo bastante comum nesta coletnea; em um dado momento, Carroll se desculpa pela ausncia de uma carta (que era justamente aquela que enviava) dizendo-se avesso crianas:

    [...] tenho horror a crianas. No sei porque, mas eu as detesto tanto quanto algum pode detestar poltronas ou pudins de ameixas. Voc tambm no acredita nisso, no verdade? [...] Espero que voc fique muito triste por no receber uma carta de seu amigo dedicado33.

    Esta correspondncia, portanto, demonstra, em seu aspecto radical, as vrias faces que a escrita de cartas pode alcanar. Produzida no sculo XIX e, portanto, ainda no inserida na discusso sobre o hibridismo, ela nos oferece um exemplo incontestvel de que a carta pode, sim, ser literatura.

    PS: consideraes finais

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    Pelo que aqui foi exposto, consideramos que as cartas so fontes importantes para a pesquisa em literatura e em outras reas do saber como, por exemplo, a Histria. Cremos que os procedimentos e temas aqui apresentados e trabalhados contribuem para o tratamento da correspondncia como fonte, o que significa quebrar com um horizonte de expectativa sempre presente nos estudos literrios: a valorizao do texto ficcional em detrimento de outras fontes.

    Buscamos ao longo do artigo partir de exemplos retirados das prprias cartas e assim montarmos os procedimentos que acreditamos serem necessrios no trabalho da correspondncia como fonte. Obviamente que outros procedimentos podem e devem ser pensados e aplicados pelos leitores de conjuntos epistolares especficos, sejam estes brasileiros ou estrangeiros, como aqui analisamos algumas cartas de Lewis Caroll.

    Para a rea especfica dos estudos literrios acreditamos que o maior desafio a vencer ao lidarmos com as cartas como fonte o de cada vez mais buscarmos relacion-las com a obra ficcional de seus escritores/autores. Buscar a literariedade nas cartas, para citar aqui um conceito caro aos estudos literrios definido por Ren Wellek e Austin Warren no clssico Teoria da Literatura, fato que enriquece ainda mais o tratamento da carta no estatuto de fonte.

    Para ns, parece-nos clara esta presena da literariedade nas cartas apresentadas, sobretudo nos exemplos citados na segunda parte do artigo. Mas esta , certamente, uma questo que precisa ser mais e mais explorada, o que pode ser feito medida que os estudos na rea avanarem.

    Recebido para publicao em novembro de 2009. Aprovado para publicao em novembro de 2009

    Notas:

    1 La lettre, par dfinition, est un partage. LEJEUNE, Philippe. Pour lautobiographie: chroniques. Paris: Seuil, 1998. p. 98.

    2 MORAES, Marcos Antonio de. (Org.). Correspondncia de Mrio de Andrade e Manuel Bandeira. 2. ed. So Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de So Paulo, 2001.

    3 Idem, p. 13 14.

    4 Idem, p. 14.

  • Carlos Eduardo Bezerra e Telma Maciel da Silva 167

    UNESP FCLAs CEDAP, v. 5, n.2, p. 142-167- dez. 2009

    ISSN 18081967

    5 MORAES, Marcos Antonio de. Edio da correspondncia reunida de Mrio de Andrade: histricos e alguns pressupostos. In: Patrimnio e Memria. Unesp, FCLAs, CEDAP, v.4, n. 2, p. 1 14 jun. 2009. p. 2.

    6Idem, p. 2 3. 7 Idem, p. 326.

    8 Idem, p. 354.

    9 Idem.

    10 Idem, p. 200 201.

    11 Idem, 204.

    12 Idem, 210.

    13 Idem, p. 60.

    14 Idem, p. 153

    15 Idem, p. 313

    16 Idem, p. 291

    17 Idem, p. 292.

    18 Idem, p. 303 304.

    19 PEREIRA, Jane Christina. A poesia de Malagueta, Perus e Bacanao. Tese (doutorado) Assis: UNESP, 2006.

    20 Maiores informaes ver: SILVA, Telma Maciel da. Posta-restante: um estudo sobre a correspondncia do escritor Joo Antnio. Tese (Doutorado). Assis: UNESP, 2009.

    21 Sobre esta tenso entre norma e conduta na obra de Joo Antnio ver MARTIN, Vima Lia. Literatura e marginalidade: Um estudo sobre Joo Antnio e Luandino Vieira. So Paulo: Alameda, 2008.

    22 FREITAS FILHO, Armando, HOLANDA, Helosa Buarque de (orgs). Correspondncia Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 1999. (p.152)

    23 Idem, p. 27.

    24 Idem, p.09.

    25 Idem, p.238-39

    26 Idem, p. 300.

    27 Idem, p. 85.

    28 CSAR, Ana Cristina. A teus ps. 6. ed. So Paulo: Brasiliense, sd. (p.51)

    29 CARROLL. Lewis. Cartas s suas amiguinhas. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1997. (p.25)

    30 Idem, p. 11.

    31 Idem.

    32 Idem, p. 107.

    33 Idem, 101-102.