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Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI
24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR
Jogos como uma ferramenta de resistência digital1
Rodrigo André da Costa Graça2
Resumo: O objetivo deste trabalho é, primeiramente, validar a prática de jogos como
uma ferramenta de resistência digital e um instrumento prático para a construção de
uma consciência crítica das tecnologias digitais; e, em um segundo momento,
demonstrar como o uso de uma mídia digital contribui para esta construção. Esta mídia
digital são vídeos postados na internet, onde seus "atores" estão engajados em
atividades de entretenimento em grupo não digitais, quer para divertir, informar ou
estimular sua audiência sobre esta prática. Para isto buscou-se fundamento nas teorias
de Mikhail Bakhtin, Vilém Flusser e Charles Gere; especificamente seus conceitos de
instrumentos e lei imanente, Bakhtin; aparelho, programa e jogo, Flusser; e, por fim,
resistência digital, Gere. O conceito de jogo de Flusser foi ampliado pelo uso das
definições de Johan Huizinga, Bernard Suits e Chris Crawford.
Palavras Chaves: Lei Imanente, Jogo, Aparelho, Resistência Digital.
Abstract: The objective of this work is, first, to validate the game play as a tool of
digital resistance and an empirical instrument to building a critical awareness of digital
technologies; and, second, to demonstrate how a digital media can contribute to this
construction. This digital media are videos, posted on the internet, where the "actors"
are engaged in non-digital entertainment activities; videos made, likewise, to entertain,
to inform or to stimulate the audience about this practice. For this we sought to ground
the theories of Mikhail Bakhtin, Flusser and Charles Gere; specifically their concepts
and instruments immanent law, Bakhtin; apparatus, program and game, Flusser; and
finally, digital resistance, Gere. The use of the definitions of Johan Huizinga, Bernard
Suits and Chris Crawford amplified the Flusser’s concept of game.
Keywords: Immanent Law, Game, Apparatus, Digital Resistance.
1 Introdução
Este trabalho é um desdobramento de uma apresentação para a disciplina
de Cinema e Novas Mídias ministrada pela professora Dra Denise Azevedo Duarte
Guimarães no programa de Mestrado em Comunicação e Linguagem da Universidade
Tuiuti do Paraná. O tema da apresentação foi as tendências da arte e tecnologia na
contemporaneidade e se baseou no capítulo Panorama de Arte Tecnológica, do livro
1 Trabalho apresentado no GT 5- Comunicação nas Interfaces Digitais, do Encontro Nacional de Pesquisa
em Comunicação e Imagem - ENCOI. 2 Professor na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Graduado em Licenciatura em
Desenho pela Escola de Música e Belas Artes (EMBAP). Mestrando em Comunicação e Linguagens
(2014) pela UTP.
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Culturas e Artes do Pós-Humano: da cultura das mídias à cibercultura, de Lúcia
Santaella (2003). O escopo da apresentação não permitiu uma discussão mais
profundada do tema, por isto a necessidade deste trabalho, cuja proposta é enriquecer o
debate buscando em outros autores um diálogo com o texto de Santaella.
Os autores utilizados neste trabalho são, além da própria Santaellla,
Charlie Gere para situar a cultura digital como uma construção histórica com raízes na
revolução industrial e seu conceito de resistência digital; Mikail Bakhtin e Vilém
Flusser para discutir o conceito de tecnologia e a relação entre aparelho e programa,
fundamentando a necessidade de uma resistência digital e introduzindo a noção de jogo;
Johan Huizinga, Bernard Suits e Chris Crawford para fundamentar jogos construir a
ideia de jogo como um instrumento de resistência.
2 Tecnologias Digitais
Lúcia Santaella em seu livro Culturas e Artes do Pós-humano (2003)
defende a tese de que os avanços das tecnologias digitais produzem mudanças radicais e
profundas para a humanidade. Estas mudanças não estão restritas ao âmbito social, elas
também possuem reflexo nas relações antropológicas e psicológicas, levando a um
questionamento do corpo e do que é ser humano.
Entre as diversas tecnologias a nossa disposição Santaella escreve mais
detalhadamente sobre cinco: cibercultura, hipertexto, holografia, CD-Rom, VRML
(Virtual Reality Modeling Language) e a ubiquidade das novas tecnologias; em seguida
ela argumenta como estas tecnologias se interagem na construção de obras de arte
tecnológicas de vanguarda e como estas podem se articular na construção de uma
simbiose com o ser humano. A partir disto traça um panorama dos usos destas
tecnologias pela arte e se questiona para onde estes usos estão nos levando e quais as
mudanças em nossa compreensão corporal e entendimento do que é ser humano.
Santaella argumenta que estes usos simbióticos das tecnologias digitais são a força
motriz da revolução social, da quebra de paradigmas culturais e da construção de uma
nova ideia de ser humano.
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Apesar de algumas destas tecnologias ainda não terem atingido todo seu
potencial ou estarem obsoletas como o CD-Rom que foi substituído por conexões mais
rápidas da internet e pela navegação em nuvem; o VRML que não conseguiu se impor
como um padrão de linguagem livre 3D para internet e se transformou em X3D, mesmo
assim não conseguiu se popularizar e fazer frente ao DirectX utilizado pela indústria de
games; o conceito de cibernética, e o uso do prefixo “ciber”, que está caindo em desuso
por estar associado a paradigmas de engenharia, a sistemas idealizados de homeostasis e
feedback e posicionar o observador fora do sistema observado (Gere, 2002); nosso
corpo tem sofrido modificações. Estas modificações não têm vindo de implantes
robóticos, da manipulação genética ou de ligações neurais com ambientes virtuais
supercomplexos, elas têm surgido com o uso muito mais prosaico e cotidiano das
tecnologias comunicacionais. Não que avanços tecnológicos complexos não vão gerar
modificações radicais mas estas mudanças já estão ocorrendo e são muito mais
persuasivas.
Nossa memória tem se modificado pelo uso contínuo de instrumentos de
busca como o Google. Os pesquisadores Betsy Sparrow, Jenny Liu e Daniel M. Wegner
no estudo Google Effects on Memory: Cognitive Consquences of Having Information at
Our Fingers (2011) descobriram que nossa capacidade de reter informações tem
diminuído com o uso de instrumentos de busca. Segundo a pesquisa estamos mais
propensos a lembrar onde as informações estão armazenadas do que as informações
propriamente ditas.
Para Santaella há três formas de olhar estes usos da tecnologia e suas
transformações sociais. Dois mais utilizados e antagônicos são a visão utópica e a visão
distópica. Por exemplo uma visão distópica das transformações de nossa memória pelo
uso das ferramentas de busca é que este uso está nos tornando pessoas mais burras e
idiotizadas, a visão utópica vê esta mudança como uma troca de paradigmas, de
memorizar uma informação, como decorar a tabuada, para traçar maiores conecções
entre as informações desejadas e conseguir encontrar a informação com precisão. A
terceira forma de ver estas mudanças, e a que Santaella quer chegar, é a heterotópica.
Santaella propõe a heterotopia como uma posição equilibrada e consciente. Esta
heterotipia é conseguida pelo uso da semiótica filosófica para a distopia e a psicanálise
para a utopia. Em todos os casos a tecnologia é encarada ou como um meio, quando ela
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trata de ambientes virtuais como possibilidades de interação; ou como matéria prima
para a construção de algo, quando ela trata de convergência tecnológica, próteses e
modificações corporais. Neste livro Santaella não vê a tecnologia como mensagem, isto
é como portadora de um sentido historicamente determinado e que refrata, no sentido
usado por Bakhtin, discursos de poder.
3 Resistência Digital
Charlie Gere no livro Digital Culture faz questionamentos semelhantes
aos de Santaella, isto é, tenta responder o que é esta cultura do digital contemporânea.
Para Gere a cultura do digital não aparece com a popularização dos computadores
pessoais da década de 90, não é um salto quântico de um mundo analógico para um
mundo digital, mas sim um desenvolvimento mais complexo que tem suas raízes na
revolução industrial.
Gere argumenta que o digital necessita de cinco categorias, auto
regulação, programação, abstração, codificação e virtualização. Cada uma dessas surgiu
em diferentes produtos industriais entre 1788 e 1871 com a válvula centrífuga, com a
máquina de tear manual Jacquard loom, com o código Morse e com a máquina
diferencial de Charles Babbage. As ideias e os usos presentes na criação e
implementação destas máquinas constituem o fundamento das ideologias constituintes
nos produtos e máquinas digitais que consumimos hoje. Da invenção destes primeiros
produtos até a construção dos primeiros computadores, o ENIAC e o MK1 em 1946 e
1949, respectivamente, constituem, para Gere, o início do que chamamos Cultura
Digital.
A partir da segunda guerra mundial, com a convergência das categorias
digitais em uma única máquina, se inicia a era digital propriamente dita e vem até
nossos dias. Gere divide a era digital em quatro momentos distintos, a era cibernética, a
vanguarda digital, a contracultura digital e a resistência digital. A era da cibernética
envolve dos primeiros avanços dos computadores desenvolvidos pela Bell lab, IBM lab,
MIT, entre outros até o início dos anos 70 com o desenvolvimento de várias empresas
de desenvolvimento tanto de hardware e software no vale do silício na Califórnia. A
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vanguarda digital compreende as experiências de John Cage, o Grupo Fluxus, entre
vários artistas e designers com interatividade, performance, multimídia, mail art e
computação gráfica. A era da contracultura digital se inicia com o desenvolvimento de
pequenas empresas no vale do silício e é permeado por ideais utópicos de auto
realização e conectividade.
O início da era digital cria os paradigmas fundamentais dos produtos
digitais; a era cibernética com o rápido desenvolvimento de computadores e seu
emprego por grandes companhias geram uma série de discursos para compreender este
fenômeno, tais como "Cybernetics, Information Theory, General Sistems Theory,
Molecular Biology, Artificial Inteligence, and Structuralism (...) all concerned with
developing abstract and formalized systems (...)"(Gere, 2002, p 47); a era da vanguarda
digital é um momento de experimentalismos com as possibilidades criativas; a era da
contra cultura é um momento de massificação dos produtos digitais; e a era da
resistência digital é o momento de reflexão das tecnologias, é um momento regido por
três processos diferentes, uma autorreflexão com o movimento literário ciberpunk, um
distanciamento das tecnologias digitais com a música Punk e o desconstrutivismo
gráfico e um enfretamento do status quo com a cultura Hacker.
A resistência digital surge quando começamos a refletir sobre a
tecnologia digital e suas implicações em nossa sociedade e adotamos uma prática de não
naturalização das tecnologias digitais, vendo a tecnologia como uma construção cultural
espacial e temporalmente construída. Segundo Gere ela é impulsionada pelas teorias
pós-modernas e pós-estruturalistas, pelo movimento musical Punk, pelo
desconstrutivismo gráfico, pelo movimento literário ciberpunk e pela cultura Hacker.
Enquanto as teorias enfatizam a questão de não podermos compreender a tecnologia
sem uma contextualização cultural, histórica e social, o "Cyberpunk's juxtaposed
idiolects, techno's use repetition and sampling and eschewal of the artist's presence,
deconstructionist graphic design's use of layers and experimentation with typography,
all reflect a wolrd of diffused and distributed communication mediated through
networks of powerful information tecnology3" (Gere, 2002/ p. 190), e a cultura hacker
3 Cyberpunk justapõe idioletos; música techno utiliza de repetição, amostragem e distanciamento da
presença do artista; design gráfico desconstrucionista se utiliza de camadas e experimentação com
tipografia; todos refletem um mundo de comunicação difusa e distribuída, mediada por poderosas redes
de tecnologia da informação.
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"(...) proposes the possibility of alternative ways of organizing time and space and other
kinds of community than that relentlessly imposed upon the world by technologized
capital4" (Gere, 2002/ p.196).
Os avanços tecnológicos caminham para uma naturalização dos produtos
e processos digitais. Isto acontece porque é cada vez mais difícil perceber os processos e
produtos digitais em nosso entorno, eles estão se tornando invisíveis devido a aparelhos
mais amigáveis, a programas agentes e se incorporando nos menores aspectos de nossa
vida. Esta não é uma possibilidade remota Kevin Kelly, editor da revista Wired,
escreveu um livro propondo que olhássemos a tecnologia como um ser vivo (Kelly,
2010). Esta naturalização é uma das mais perversas facetas da tecnologia.
4 Lei Imanente e Programas
Bakhtin descreve a tecnologia como um campo que "(...) conhece sua
própria lei imanente, e se submete a essa lei em seu desenvolvimento impetuoso e
inefável (...)" (1993, p.25). Neste sentido nenhuma tecnologia é neutra ela possui um
código que a define e determina seus usos. Bakhtin continua seu raciocínio "(...) os
instrumentos são perfeitos de acordo com sua lei interna, e, como consequência, eles se
transformam, a partir do que era inicialmente um meio de defesa racional, numa força
terrível, mortal e destrutiva. "Bakhtin está preocupado com o subjugo do ser humano às
engrenagens da máquina e da suspensão da responsabilidade humana por seus atos. Para
Bakhtin nossa vida é constituída atos espacialmente e temporalmente localizados que
não podemos nos desassociar e somos eternamente responsáveis. Neste sentido a
tecnologia"(...) quando divorciado da unidade única da vida e entregue à vontade da lei
imanente de seu desenvolvimento, é assustador; pode de tempos em tempos irromper
nessa unidade única como uma força terrível e irresponsavelmente destrutiva." (Bakhtin
et al., 1993, p.25) Assim os conceitos de instrumento e lei imanente de Bakhtin se
aproximam aos conceitos de aparelho e programa de Vilém Flusser.
4 A cultura hacker propõe a possibilidade de formas alternativas de organizar o tempo e o espaço e outros
tipos de comunidade daquela implacavelmente imposta ao mundo pelo capital tecnológico.
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Para Flusser existem os instrumentos e os aparelhos. Ele considera os
primeiros como prolongamentos empíricos do corpo humano e aproximam os objetos da
natureza ao ser humano (Flusser, 2002, pp.20-21). Os instrumentos se transformam em
máquinas com a revolução industrial passando a serem "técnicos". Para Flusser
máquinas são grandes e onerosos instrumentos empregados pelos capitalistas e
aparelhos são máquinas que produzem símbolos, manipula-os e armazena-os, eles não
produzem bens de consumo mas sim mensagens cuja função é apenas informar por isto
são pós-industriais (Flusser, 2002, p.22). Flusser se questiona quem possui as máquinas
e quem "funciona em função delas". A isto ele responde "antes os instrumentos
funcionavam em função do homem; depois grande parte da humanidade passou a
funcionar em função das máquinas" (2002/ p.21). Nas máquinas a relação é óbvia o
capitalista possui as máquinas e o proletário funcionam em função delas, o proletário se
entrega a lei imanente das máquinas. Por esta relação que ocorre em torno da máquina
não ser dúbia podemos criar instrumentos críticos, tanto teóricos quanto práticos, que
nos ajudam a combater e a compensar esta situação. Nos aparelhos esta relação entre
possuidor e funcionário não é tão aparente; o senso comum nos diz o aparelho funde
estas figuras em um único indivíduo. Flusser rejeita esta noção argumentando que
aparelhos necessitam de programas para funcionar e quem realmente possui o aparelho
é quem esgota o seu programa (Flusser, 2002, pp.21-24); logo quem apenas usa o
aparelho não o possui de verdade mas é possuído por ele, se sujeita a sua lei imanente,
materializada em seu programa. Nas relações humanas com a máquina as estruturas de
poder são aparentes, nas relações humanas com os aparelhos estas mesmas estruturas
são difusas. Quando pensamos na tecnologia como uma mediação entre o ser humano e
o seu entorno podemos enxergar as relações de poder e as forças que estão nelas
embutidas, como lei imanente ou programas.
5 Jogos
Flusser utiliza a metáfora do jogo para explicar a relação entre o ser
humano e os aparelhos. Ele define jogo como uma atividade que tem fim em si mesma
(Flusser, 2002) e o programa é um jogo de combinações de elementos claros e distintos.
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Para Flusser o aparelho subjulga o ser humano escondendo seus processos complexos
nos programas; simplificando o uso dos aparelhos através de agentes amigáveis; e
valorar o mundo a partir do produto do aparelho e não do processo transformar o
aparelho. Esta definição de jogo é simplista.
Jogo é uma atividade cultural antiga e complexa. Segundo Huizinga, um
dos primeiros pesquisadores a estudar o assunto, jogo é uma atividade que seus
participantes engajam voluntariamente, existe dentro de um limite de tempo e espaço,
requer regras que os participantes se submetem conscientemente, é diferente da 'vida
cotidiana'. Atualmente, devido à grande expansão dos jogos eletrônicos, vários
pesquisadores têm escrito sobre jogos. Cada um destes pesquisadores tentam definir
jogo mas em geral não diferem muito da definição de Huizinga. Outras definições que
ampliam as de Huizinga são a de Bernard Suits e Chris Crawford. Para Suits jogo é uma
atividade cujo o objetivo deve ser completado da maneira mais difícil possível; por
exemplo a forma mais fácil de colocar uma bola em um cesto é se aproximar do cesto e
deixar a bola cair nele e não elevar o certo a 3,05 metros, impedir que você avance em
direção ao cesto sem jogar a bola no chão a cada passo e ter um grupo de pessoas que
querem jogar a bola em outro cesto oposto. Esta dificuldade é que gera o desafio a ser
superado. A definição de Crawford é feita a partir de uma série de dicotomias
diferenciando jogo como uma forma de arte ou entretenimento, entretenimento é quando
um jogo é produzido para gerar lucro; entretenimento interativo e não interativo,
interatividade é quando o participante modificar a ordem e o resultado final do
entretenimento; jogo e brinquedo, jogo possui objetivos e brinquedos não; jogo e
quebra-cabeça, jogo possui um agente, agente é pode ser uma inteligência artificial ou
um adversário humano, que o participante possa competir; por fim conflito e
competição, quando os participantes não podem influenciar o desenvolvimento um do
outro não é um jogo é uma competição, natação, corrida, salto, jogos olímpicos
clássicos, não são jogo pois não possuem interação entre os participantes.
Levando em consideração as definições de Huizinga, Suits e Crawford
um jogo é o oposto do que Flusser compreende jogo e aparelho. Para Flusser o jogo é
uma atividade de manipular um brinquedo e segundo Huizinga, Suits e Crawford, um
jogo é uma atividade complexa que pode complementar a definição de Flusser e ajudar
a construir um campo para uma filosofia do aparelho, tal como a máquina fotográfica.
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O aparelho, ao tornar o programa transparente, transforma o ser humano
em funcionário, inverte a relação entre ser humano e aparelho. O aparelho é capaz de tal
inversão devido a três coisas: serem produzidos para construírem um produto resultante
de uma forma de pensamento; facilitar a utilização do programa, portanto alienando o
'usuário' do processo de pensamento, tornando os aparelhos amigáveis; e o 'usuário' se
utiliza do aparelho de forma inconsciente. Um jogo é a antítese do aparelho também por
três motivos: um jogo é o que chamamos de design de segunda ordem, ele não é
desenvolvido para produzir algo, como uma imagem, uma planilha eletrônica ou um
texto, ele é desenvolvido tendo em mente a experiência de uso, não significa que os
jogadores não possam produzir algo, como um filme, mas eles produzem para ensinar
outros jogadores, mostrarem habilidade, exercerem sua criatividade, nenhuma destas
atividades faz parte do design do jogo propriamente dito; um jogo é produzido para
desafiar o jogador propondo desafios uma dificuldade compatível com a habilidade do
jogador, alguns jogos são adorados devido a sua dificuldade extrema; um jogador
quando começa a jogar ele está completamente consciente das escolhas que está
fazendo, as regras de um jogo são sempre claras e o jogador deve conhece-las antes
mesmo de começar a jogar. Por estas razões jogos são o principal instrumento de uma
resistência digital.
Uma postura de resistência digital não despreza os produtos de nossa
cultura digital mas é uma forma de pensar criticamente o que esta tecnologia nos oferta,
o que podemos fazer com ela e como não nos sujeitarmos inconscientemente a algo ou a
alguém. Esta consciência crítica é fundamental e jogos são um instrumento poderoso
para construir esta consciência. Por esta razão é necessário meios onde jogos sejam
abordados em sua plenitude, como uma prática social ampla e não restrita a um nicho
cultural preconceituoso, os chamados nerds, geeks, ou outra classificação estereotipada.
6 Tabletop
Atualmente diversos programas na internet são dedicados a jogos e são dos mais
variados assuntos. São programas de crítica, análise, dicas, comentários, entre vários
outros, porém programas que registram uma partida real são o objeto deste trabalho.
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Programas como o Watch it Played, Jogando Offline e algumas postagens do canal
Dungeons and Dragons. O programa escolhido foi o TableTop5 (Figura 1) do canal
Geek and Sundry.
Figura 1: Logo do programa TableTop.
Fonte: (Wheaton, 2013)
Este programa foi criado por Wil Wheaton, a pedido de Felicia Day para
compor um canal no youtube, em 2011 e teve seu primeiro episódio postado em 30 de
março de 2012. A princípio o programa deveria ser de crítica de jogos e ter algo em
torno de 10 minutos, mas com a produção Wheaton decidiu por um programa onde ele,
como apresentador, jogaria diversos jogos de tabuleiro com convidados especiais
ampliando a duração do programa para 30 minutos.
Wil Wheaton é ator e seus papeis mais conhecidos são como Gordie
Lachance de Conta Comigo (Stand By Me, 1986), adaptação do livro homônimo de
Stephen King, e Wesley Crusher em Star Trek: a nova geração (Star Trek: the next
generation, 1987-1994). Wheaton consegue convidados ilustres para o programa devido
a este contato com o universo de entretenimento televisivo. Convidados como Grant
Imahara, apresentador; Rod Roddenberry, produtor; Seth Green, ator; Patrick Rothfuss,
escritor; Brandon Routh, ator; entre vários outros. Estes fatores aliados a uma produção
impecável garantem ao programa uma grande audiência, o primeiro episódio possui
mais de 1,5 milhões de visualizações em 25/07/2014.
O programa possui 40 episódios divididos em 2 temporadas com 11
episódios estendidos, onde toda a partida é exibida sem cortes com duração de 90 à 120
5 que pode ser visto em: https://www.youtube.com/channel/UCaBf1a-dpIsw8OxqH4ki2Kg.
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minutos. Em 5 de abril de 2014 o canal Geek and Sundry promoveu o evento
International TableTop Day, um dia inteiro onde qualquer um podia experimentar os
mais diversos jogos. O canal transmitiu o evento ao vivo, via streaming do youtube,
bem como 8 horas de 4 partidas de jogos com convidados, com a mesma estrutura do
programa TableTop.
A terceira temporada foi financiada com doações pelo site Indiegogo,
https://www.indiegogo.com/projects/tabletop-season-3-with-wil-wheaton, o pedido era
de 500 mil dólares e conseguiu mais de 1,4 milhões, um sucesso de 283%; isto não só
garantiu 20 episódios para a terceira temporada mas também um programa derivado de
partidas de RPG.
Este programa foi escolhido devido a seu sucesso, principalmente com
jogadores novos (Wong, 2012); sua produção acima da média, os outros programas são
apenas câmeras paradas filmando a partida; e porque retrata um grupo de convidados
interagindo em uma atividade de jogo não digital.
O programa é composto de quatro partes, apresentação e abertura,
resumo das regras, o jogo e conclusão. Na primeira o apresentador Wil Wheaton
apresenta o jogo e os convidados (Figura 2).
Figura 2: Apresentação do jogo e convidados.
Fonte: (Wheaton, 2013)
Em seguida entra a animação de abertura onde vemos um peão
tradicional de jogo de tabuleiro saltitando para fora de um tabuleiro quadriculado, uma
miniatura de RPGs caminhando para fora de um diorama, um lápis saltitando sobre uma
folha de papel quadriculado com esboços de uma aventura de RPG, um dado poliédrico
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de 12 faces rolando de um saco de dados e caindo de uma mesa, e ao final todos caem
em uma pequena mesa de madeira formada pelos dois T maiúsculos do logo do
programa (Figura 3).
Figura 3: Abertura do programa TableTop.
Fonte: (Wheaton, 2013)
Na segunda parte o apresentador explica rapidamente como é o jogo
(figura 4) e quais suas regras gerais e principais, regras mais detalhadas serão
informadas durante o jogo (figura 5).
Figura 4: Explicação das regras.
Fonte: (Wheaton, 2013).
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Figura 5: Explicação das regras detalhadas durante a partida.
Fonte: (Wheaton, 2013).
Na terceira parte o jogo propriamente acontece (figura 6), esta é a parte
de maior duração do programa, durante a seção de jogo comentários dos jogadores, em
geral de cunho divertido, são intercalados ao jogo (figura 7).
Figura 6: Tomada principal durante a partida.
Fonte: (Wheaton, 2013).
Figura 7: Comentário de um dos jogadores do programa.
Fonte: (Wheaton, 2013).
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Finalmente, com o término da partida, os perdedores vão para um sofá
onde conversam sobre a partida (figura 8) enquanto os vencedores vão para uma outra
sala receber um prêmio simbólico pela vitória (figura 9).
Figura 8: Sofá dos perdedores.
Fonte: (Wheaton, 2013).
Figura 9: Lounge dos vencedores.
Fonte: (Wheaton, 2013).
O cenário é simples e possui uma construção teatral, uma mesa ocupa o
centro do espaço, o apresentador está sentado na posição oposta à câmera e os
convidados sentam ao seu lado e nas laterais da mesa, ninguém ocupa a frente da mesa
para não obstruir a visão do tabuleiro e da interação entre os jogadores, o tampo da
mesa é inclinado diminuindo a necessidade de um plano plongé acentuado,
posicionando a filmagem um pouco acima dos jogadores permite uma sensação maior
de proximidade do espectador sem diminuir a visibilidade do tabuleiro, caso a filmagem
não estivesse em plongé a linha do horizonte (LH) estaria passando na mesma altura dos
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olhos dos jogadores (figura 10). As prateleiras da parede de tijolos ao fundo são sempre
decoradas com objetos com o tema do jogo.
Figura 10: Composição do quadro.
Fonte: O próprio autor.
Durante algumas cenas aparecem palimpsestos para explicar melhor as
regras do jogo ou para capturar a atmosfera do jogo (figura 11).
Figura 11: Palimpsesto temático.
Fonte: (Wheaton, 2013).
O vídeo aqui analisado é o quinto episódio da segunda temporada onde é
jogado o jogo Forbidden Island, projetado pelo designer Matt Leacock e editado pela
Gamewright nos Estados Unidos; este jogo possui uma edição traduzida para o
português pela editora Devir e se chama A Ilha Proibida. Este é um jogo cooperativo,
onde todos trabalham como uma equipe competindo contra o jogo, por isto na figura 9 a
caixa do jogo aparece como vencedor; de tabuleiro modular, o tabuleiro é dividido em
pequenas unidades que são organizadas de maneira aleatória para cada partida; e de
jogadores com habilidades variáveis, cada jogador possui uma habilidade diferente para
ser empregada durante a partida.
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7 Conclusão
Tecnologias digitais têm modificado todas as relações a nossa volta e
também nosso corpo. Tecnologias estas que estão carregadas de sentido construídos
historicamente. Este sentido está no programa dos aparelhos e dá poder a quem esgota o
programa. Utilizar tecnologias sem se questionar sobre estes sentidos é se submeter a
uma forma de pensamento de outrem. Uma forma de resistência digital, não no sentido
de negar a tecnologia digital mas sim se impor a ela, é necessária. Refletir sobre a
tecnologia digital é, em última estância, pensar nosso próprio corpo, jogos podem ser
instrumentos poderosos para uma práxis desta reflexão e programas, como o citado
neste trabalho, são importantes para desmistificar e divulgar esta práxis.
Referências
BAKHTIN, M. M.; HOLQUIST, M.; LIAPUNOV, V. Toward a philosophy of the act.
1st. Austin: University of Texas Press, 1993.
FLUSSER, V. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
GERE, C. Digital culture. London: Reaktion Books, 2002.
KELLY, K. What technology wants. New York: Viking, 2010.
SANTAELLA, L. Culturas e Artes do Pós-Humano: da cultura das mídias à
cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003. 357 ISBN 9788534921015.
SPARROW, B.; LIU, J.; WEGNER, D. M. Google effects on memory: cognitive
consequences of having information at our fingertips. Science, v. 333, n. 6043, p. 776-8,
Aug 5 2011. Disponível em: < http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21764755 >.
WHEATON, W. TableTop: Forbidden Island. 2013. Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=DxG_ahmF1uM >. Acesso em: 20/07/2014.
WONG, T. The Wheaton Effect. 2012. Disponível em: <
http://www.starlitcitadel.com/helm/2012/05/08/the-wheaton-effect/ >. Acesso em:
21/07/2014.