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FICHA TÉCNICA Título original: Sparks Autor: John Twelve Hawks Copyright © John Twelve Hawks, 2014 Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016 Tradução: Jorge Freire Revisão: Rui Augusto/Editorial Presença Imagem da capa: Shutterstock Capa: Vera Espadinha/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, agosto, 2018 Depósito legal n. o 443 290/18 Reservados todos os direitos para Portugal à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 BARCARENA [email protected] www.presenca.pt

John Twelve Hawks Copyright © John Twelve Hawks, 2014 ... · 13 passou‑se um minuto. — Não. Quando stetsko recuou novamente para tentar mais uma vez esta‑ cionar, a mulher

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FiCHa TÉCNiCa

Título original: Sparksautor: John Twelve HawksCopyright © John Twelve Hawks, 2014Tradução © Editorial presença, Lisboa, 2016Tradução: Jorge Freirerevisão: Rui Augusto/Editorial Presençaimagem da capa: ShutterstockCapa: Vera Espadinha/Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, agosto, 2018depósito legal n.o 443 290/18

reservados todos os direitospara portugal àEdiToriaL prEsENÇaEstrada das palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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Esqueça a fé e a incerteza, a rebelião e a escravatura. Esqueça a beleza em todas as suas formas. Esqueça, também, a fealdade.

Esqueça «Castelo Forte É o Nosso deus» e o kaddisha. Esqueça um exército de notas a marchar numa folha que se transforma nas Variações Goldberg. Esqueça o Taj mahal ao nascer do sol e o Grand Canyon ao pôr do sol, os sonetos de shakespeare, Guerra e Paz e A Importância de Se Chamar Ernesto. Esqueça as manchas de tinta azul‑clara que se tornaram nos olhos de Vincent van Gogh.

Esqueça o que sente nas pontas dos dedos ao tocar em pelo, veludo, num xaile de caxemira e num pedaço macio de vidro que deu à costa. Esqueça a textura húmida da carne crua e a secura estaladiça das folhas caídas que esmagou com a mão.

Esqueça o sabor da baklava ensopada em mel. manga madura. alho assado. arenque salgado. alcaçuz. Chocolate. Gelado de morango.

E os cheiros, esqueça‑os também. Lilases esmagados e o cheiro pungente do alcatrão quente. do pescoço de um bebé. Terra molhada. Scones acabados de fazer.

Esqueça as crianças mortas no dia da Fúria, e discursos, e sermões e parques em homenagem aos mortos com os seus nomes gravados em pedra. Esqueça todas as aulas de todos os professores, todas as piadas de todos os comediantes; todos os veredictos de todos os juízes.

Esqueça o que os seus pais lhe disseram. Esqueça o que lhe ensina‑ram quando era criança e o que aprendeu sozinho.

Esqueça o que acha ser certo. E errado.Esqueça tudo isto e talvez possa tornar‑se no que eu sou: uma Cen‑

telha contida num invólucro que parou à porta de um prédio na rua sessenta e dois em Brooklyn enquanto um homem de negócios russo chamado peter stetsko tentava estacionar.

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Foi em novembro em Nova iorque, num dia húmido e frio. a morte pairava na rua, mas não havia nada de dramático ou sinistro em relação à minha aparência. Naquela noite, usava apenas umas calças largas e cinzentas e uma camisola com decote em V. Tinha no bolso exterior da gabardina preta uma pistola semiautomática brasileira, com o punho coberto por fita‑cola de prancha de skate. o meu Bi Liberdade estava escondido num bolso especialmente criado para que o sistema oLHo não conseguisse detetar a minha localização.

passou uma carrinha pelo cruzamento, os pneus sibilando no alca‑trão molhado. Coloquei um auscultador ligado ao telefone no ouvido e Laura sussurrou:

— dez‑Trinta e Três na intersecção da avenida Flatbush com a rua Farragut. Uma unidade respondeu.

— Há atividade policial em Bensonhurst?— a verificar... — disse Laura, que parecia uma mulher verdadeira

a pesquisar num fórum de discussão, ou a olhar pela janela, mas era apenas uma sombra. algures na internet, um computador fala com outro, verificando os dados existentes num site que lista os relatórios da polícia e dos bombeiros em tempo real. — Não há atividade, senhor Underwood.

o meu alvo alugara uma casa de dois quartos que me parecia uma construção de lego feita por uma criança. Tinha um muro de tijolo baixo na parte da frente, que limitava um espaço de cimento, pintado de verde, como se fosse relva. as duas janelas e a porta da frente tinham toldos vermelhos de alumínio.

desde a minha Transformação, só sou capaz de apenas um conjunto limitado de reações emocionais: curiosidade, tédio e nojo. sentira curiosidade, querendo saber se stetsko conseguiria enfiar o Mercedes--Benz entre uma carrinha de entregas azul e um Toyota enlameado. agora sentia‑me entediado ao vê‑lo estacionar cuidadosamente e estava pronto completar a minha missão.

Uma jovem num vestido de noite verde com lantejoulas estava sen‑tada no lugar do passageiro do Mercedes. Como era testemunha, teria de ser neutralizada. Começaria por alvejar stetsko na cabeça, pela janela lateral, contornaria o carro e trataria do alvo secundário, con‑tornando novamente o carro para disparar os tiros de confirmação. a sequência não era difícil, mas faria mais ruído.

— Há atividade policial, Laura?— Não.

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passou‑se um minuto.— Não. Quando stetsko recuou novamente para tentar mais uma vez esta‑

cionar, a mulher saiu do carro. Tal como um fotão de luz, o vestido verde brilhou pelo passeio, passou pelo portão e desapareceu ao entrar em casa. Nesse instante, a minha missão tornou‑se simples, direta e clara.

o Mercedes recuou quinze centímetros em direção ao passeio e parou. a cabeça de stetsko oscilou da esquerda para a direita, como se assistisse a uma partida de ténis. Virando bruscamente para a direita, o carro chiou.

a rua sessenta e dois estava escura e não havia pessoas no passeio, mas isso não me fez sentir solitário, ou assustado. o cheiro a podridão de um contentor do lixo era, na minha mente, de uma cor verde‑‑acastanhada, mas não gerou qualquer resposta emocional. X=X. o mundo não possui qualquer significado, para além do imediato.

No lado oposto da estrada, stetsko acabou finalmente de estacionar. sorriu e desligou o carro, tocando ternamente no volante como se o Mercedes fosse um cavalo de corrida que acabara de sobreviver a uma prova de obstáculos.

— mostra a fotografia digitalizada — disse eu a Laura, e o rosto do meu alvo apareceu no ecrã do smartphone.

Olho para a direita. Olho para a esquerda. Não havia ninguém na rua. atravessei a estrada aproximando‑me do carro e levantei o tele‑fone, comparando a fotografia de stetsko com a realidade que via diante de mim. depois levantei a arma e alvejei a realidade na cabeça.

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afastei‑me do alvo, caminhei cinco quarteirões em direção a leste, dirigindo‑me ao parque Gravesend, e atirei a arma para um bueiro. Um dia, talvez um funcionário camarário que trabalha nos esgotos encontre este artefacto, ferrugento e enlameado, mas não haverá qual‑quer relação entre o objeto e a minha identidade.

a alguns quarteirões do parque, chamei um táxi não registado e paguei ao condutor em dinheiro, pedindo‑lhe que me levasse para manhattan. Vivo há dois anos num loft, no último andar de um edifí‑cio industrial em Chinatown. a minha senhoria, uma idosa chamada margaret Chen, gosta que lhe pague em dinheiro e que nunca peça recibos. só há três regras para os inquilinos: é proibido pagar com cheque, usar fogo de artifício e matar galinhas.

antes da minha Transformação, vivia como uma Unidade Humana normal num apartamento do Upper East side e tinha tachos e móveis em teca, que tive de montar. Hoje em dia, tento só ter um objeto de cada categoria: uma cadeira e uma mesa, uma cama e um cobertor, uma chávena e uma colher. o loft foi usado como fábrica por empresas diferentes e algumas deixaram equipamento obsoleto aparafusado ao chão ou encostado à parede. Há uma máquina de costura industrial com uma cinta de borracha preta, um berbequim vertical e uma máquina do tamanho de um piano que servia para estampar slogans em lápis.

o espaço onde vivo é silencioso e limpo e desembaraçado. Nenhum dos objetos que possuo me recorda de algo que não a sua função. a minha caneca é só uma caneca, e não algo que me recorda uma viagem a itália.

depois de trancar a porta, despi‑me completamente e coloquei a roupa em sacos de nylon. Tudo o que usei naquela noite seria lavado numa lavandaria da rua mott. Vinte e quatro horas depois, todas as partículas queimadas e por queimar das balas que disparei desapareceriam.

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Tomei um duche, vesti uma camisola e umas calças de fato de treino e voltei à sala. a regra n.º 4 indica que tenho de fornecer pelo menos duas mil calorias diárias ao invólucro, por isso, abri uma garrafa de ComPlete, uma bebida nutricional criada para idosos, verti o conteúdo para a caneca e acrescentei uma colher de sopa de um suplemento espesso de fibra.

Tenho boa memória, mas não gosto de relembrar o passado. se os pensamentos não forem controlados, cada experiência recordada torna‑se uma realidade alternativa. Quando pensei que tinha alvejado peter stetsko, a minha mente recuperou alguns detalhes: o som dos meus sapatos ao atravessar a rua e a imagem da primeira bala a esti‑lhaçar a janela lateral. mas estas memórias não geraram sentimentos de arrependimento ou felicidade. Tenho uma Centelha que cria os meus pensamentos.

a Centelha é clara e pura e transcendente, mas está aprisionada num invólucro de carne e osso.

a mulher do vestido verde e brilhante e todas as outras Unidades Humanas de Nova iorque sentem emoções porque as suas Centelhas estão ligadas aos seus invólucros.

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mas as minhas ligações desapareceram. sim, consigo respirar e engolir e disparar uma arma de fogo. sou muito semelhante a um ser humano. mas não há nada dentro de mim. Estou cheio de escuridão.

abri a segunda garrafa de ComPlete e voltei ao computador, diri‑gindo‑me a Edward. Tal como Laura, Edward é uma sombra: um programa de reconhecimento de voz ligado a um computador e com inteligência reativa. depois de se comprar uma sombra e a descarregar, pode escolher‑se o sexo, idade, língua e personalidade. Há sombras que contam anedotas, nos ajudam a deixar de fumar, ou nos dizem que nos amam. podemos passar o dia a conversar com uma sombra que foi programada para ser uma adolescente gira, ou uma sombra que fala e age como a nossa mãe.

— olá, Edward. — Boa noite, senhor Underwood — disse Edward, que tem pro‑

núncia inglesa e foi programado para ser bem‑educado e formal. — Em que posso ajudá‑lo?

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— abre Um Menino para Baxter.— do início, senhor?— sim, obrigado. Um Menino para Baxter é um documentário sobre um rapaz cha‑

mado Gordon a quem é dado um cão de assistência treinado chamado Baxter. Gordon é uma criança ameríndia que sofreu danos cerebrais ainda em gestação por a mãe biológica consumir álcool e snifar gaso‑lina. Quando era bebé, foi adotado por don e pat miller, um casal quacre, que tinha duas filhas. o documentário começa quando Gordon tem oito anos. atira brinquedos às irmãs, tenta saltar pela janela do carro e derruba latas de tinta que estão numa prateleira, numa loja de ferragens. mas as birras de Gordon são a parte mais espetacular do filme. deita‑se no chão, gritando e batendo com os punhos. Quando pat tenta ajudá‑lo, a criança pega num candeeiro e atira‑o contra a parede, desfazendo‑o.

depois de várias cenas aborrecidas em que os pais de Gordon con‑versam com um psicólogo e choram, uma agência de cães de assistên‑cia aceita testar se a criança pode viver com um animal de estimação. É então que Gordon conhece Baxter, um pastor‑alemão, numa escola de treino de cães em oregon. Nas semanas seguintes à minha saída da Clínica Ettinger, vi uma cena do documentário centenas de vezes. Gordon está na escola de treino com os pais e as duas irmãs mas, não sei como, Baxter sabe que tem de assistir aquela Unidade Humana. a cabeça do cão inclina‑se para a esquerda, depois inclina‑se para a direita, e o cão salta para o sofá, colocando‑se ao lado do rapaz.

o resto do filme mostra Baxter e Gordon juntos. Quando Gordon está preocupado, ou perturbado, o cão empurra‑o para o chão, deita‑‑se em cima dele e lambe‑lhe o rosto. se o rapaz se deita no chão e grita e se aninha, o cão enfia o focinho por entre os braços cruzados do rapaz como se abrisse um quebra‑cabeças.

Gostava de ter um cão de assistência que tivesse sido treinado para interpretar as diferentes emoções manifestadas pelas Unidades Huma‑nas. o cão ladraria, ou agitaria a cauda, ou lamber‑me‑ia a mão para me indicar o que alguém sentia. Juntos, quase faríamos uma pessoa.

Na manhã seguinte, tomei outro duche, bebi uma garrafa de ComPlete e escrevi uma mensagem em linguagem dissimulada para a sra. Holquist, a dirigente da secção de serviços Especiais. a sra. Holquist é a minha supervisora. Escolhe os alvos e paga‑me quando completo as missões.

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// A apresentação que fiz ao cliente teve sucesso. Não são neces-sárias mais reuniões.

ao fim do dia, o pagamento seria transferido para uma conta de um banco britânico sediado em malta. para as despesas diárias, tenho alguns milhares de dólares num banco americano que tem máquinas de multibanco em toda a cidade. ambos os bancos exigem que use um leitor de reconhecimento ótico para aceder à conta. as minhas impres‑sões digitais verdadeiras levariam à minha identidade prévia, mas a sra. Holquist resolveu o problema. Quando mudei de nome, deu‑me três dedos de «goma» feitos de plástico macio. os dedos têm os cír‑culos concêntricos de uma identidade não registada e foram, provavel‑mente, copiados de alguém que vive na selva. se encostar um dos dedos a um sensor, o ecrã mostrará a minha conta bancária.

a morte de peter stetsko foi mencionada dois dias depois num artigo breve do New York Post. segundo a polícia, stetsko era o «con‑sultor de investimentos» da comunidade russa de Brighton Beach. Não tinha cadastro, mas fora interrogado no aeroporto kennedy por transportar uma grande quantidade de dinheiro numa mala de porão.

Tendo terminado a missão, voltei a exercer as atividades rotineiras. Levei a roupa à lavandaria, comprei uma caixa de ComPlete e limpei o pó. Gosto de ver desporto no computador, qualquer coisa que tenha atividade contínua e que faça com que os meus olhos sigam uma bola. Nessa noite, passei três horas a assistir a um jogo de futebol gaélico, apesar de não saber as regras.

Na manhã seguinte, acordei às seis da manhã. Brilhava uma luz cor de laranja por detrás de uma fila de edifícios, e depois o sol subiu, flutuando e passando por cima dos tanques de água dos prédios. Às oito da manhã, soou uma notificação no computador e Edward falou‑‑me educadamente ao auricular.

— Bom dia, senhor. — Bom dia, Edward. — Espero que se sinta bem, senhor.— Estou funcional.— recebeu uma mensagem de correio eletrónico. Normalmente, a sra. Holquist envia‑me emails em linguagem dis‑

simulada pela internet pública, mas esta mensagem continha informa‑ção codificada e fora enviada pela darknet. acedi ao programa de descodificação e inseri a palavra‑passe, lendo a mensagem:

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// Sei que terminou recentemente uma missão, mas recebemos um pedido urgente para lidar com um problema na Grã-Bretanha.

Indique por favor nas próximas 24 horas se aceita ou rejeita a missão. HOLQUIST.

Como sempre, a mensagem incluía o nome e a fotografia do alvo, o seu último endereço e a verba que receberia pela missão.

Fiz uma pesquisa rápida na internet. o alvo era um inglês chamado Victor mallory, o anterior diretor‑geral de um fundo de investimento privado chamado Endeavor investments. Endeavor falira há um ano e mallory tinha uns quantos processos em tribunal em vários países. assumi que estava a ser contratado por um investidor que queria manifestar a sua irritação de forma mais direta.

Normalmente, teria algumas semanas de tempo livre antes da missão seguinte. a proposta inesperada da sra. Holquist fez com que a minha Centelha ressaltasse no invólucro, por isso decidi acalmar‑me indo até ao percurso pedonal que atravessa a ponte de Brooklyn. duas torres de granito e calcário suportam um par de cabos enormes que exibem curvas catenárias, uma representação tridimensional de uma função hiperbólica de cosseno. Estão ligados às curvas numa rede diagonal e vertical de cabos que suspendem as plataformas da ponte. Quando paro no centro do percurso pedonal e olho em frente, o céu parece estar dividido em secções claramente demarcadas. a aleatoriedade desaparece e consigo organizar os meus pensamentos exteriores e colocá‑los em caixas diferentes.

atravessei a rua Worth, dirigindo‑me à imobiliária de margaret Chen, para pagar à sua sobrinha a renda do mês seguinte e depois dirigi‑me para sul. Há sensores no centro da cidade, por isso tirei o Bi Liberdade do bolso forrado a chumbo e coloquei‑o no bolso da camisa. Um sensor num poste de eletricidade detetou os meus movi‑mentos e os computadores do oLHo registaram que, neste dia, neste segundo, um objeto detentor do Bi de Jacob Underwood passou pelo parque Thomas paine. o parque tem uma escultura moderna e enorme intitulada O Triunfo do Espírito Humano. Está rodeada por câmaras de vigilância, para que vândalos não atirem lixo para a fonte.

Cerca de um terço dos habitantes de manhattan substituíram os Bi por chips que emitem frequências rádio, tendo‑os implantando sub‑cutaneamente na parte de trás da mão, o que deixa uma cicatriz

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claramente identificável. Nem os cartões nem os chips precisam de fontes internas de energia; são lidos por indução eletromagnética. o chip é lido sempre que entramos no metro, numa loja ou num edi‑fício público. os chips e os sensores são sempre tidos em conta quando recebo uma missão para neutralizar alguém.

recolher a informação dos Bi Liberdade é apenas uma das funções do programa oLHo, que é uma base de dados gigantesca controlada pelo Governo. o oLHo recolhe informação de milhares de fontes: buscas na internet e telefonemas feitos em telemóveis, artigos de blo‑gues e transações de cartões de crédito. Toda a informação é armaze‑nada em computadores quânticos e posteriormente avaliada por algoritmos do programa Norm‑al. o Norm‑al monitoriza as opi‑niões de grandes grupos, mas também determina o comportamento típico de cada indivíduo. Este perímetro de normalidade é como um círculo invisível que nos define... Nos contém. se fizermos algo de invulgar fora do perímetro, o nosso comportamento aciona um inqué‑rito de atividade invulgar, ou iai, que é enviado à polícia.

apesar de as minhas ações rotineiras serem limitadas e repetidas, o meu trabalho obriga‑me a viajar para países diferentes e a comportar‑‑me de forma invulgar. Felizmente, a sra. Holquist tem amigos no departamento de segurança interna. Quando perdi a identidade com que nasci e renasci como Jacob Underwood, o sistema oLHo foi atualizado e fui categorizado como um «paC», ou perfil anómalo Certificado, cujo comportamento não pode ser previsto dentro dos padrões normais. o que significa que posso atravessar a ponte de Brooklyn para cá e para lá repetidamente, sem que o Norm‑al crie um iai. as gaivotas grasnavam e lutavam por um bagel que fora atirado para o chão enquanto eu fitava os cabos que dividiam o céu infinito.

Todos os cidadãos que estavam na ponte sabiam que o sistema oLHo era necessário para poderem viver numa sociedade segura. E havia uma razão específica para a existência desta nova tecnologia: a morte e a violência causadas pelo dia da Fúria.

No dia da Fúria, eu estava internado na Clínica Ettinger. Normal‑mente, as notícias do mundo exterior não chegavam à clínica, mas aquela informação ultrapassou todos os obstáculos. os primeiros rumores foram passados dos enfermeiros e dos auxiliares aos cozinhei‑ros e aos jardineiros e, finalmente, aos pacientes, que usavam fatos de treino cor ‑de ‑rosa suave ou azul‑claros. os funcionários e os doentes

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nunca socializavam na clínica, mas naquela manhã reuniram‑se na cantina principal para assistir às notícias. o dr. morris Noland, o diretor, sentou‑se num banco entre o George Grande, o enfermeiro de dia do segundo andar, e a sra. Farca, a cozinheira. os pacientes anda‑vam pela sala ou fitavam o televisor.

a primeira peça foi sobre as bombas que explodiram no Colégio de Eton, a escola para rapazes que fica perto do Castelo de Windsor. a estas imagens dos cadáveres e dos pais em lágrimas seguiram‑se rapidamente vídeos filmados por telemóveis de uma explosão na Escola dalton em Nova iorque. À medida que o dia avançava, chega‑ram mais relatos vindos de França, do Canadá, do Brasil e da alemanha. Um grupo desconhecido de terroristas organizara os ataques bombis‑tas simultâneos a escolas de nove países.

o televisor ficou ligado toda a noite e eu estava presente na can‑tina, na manhã seguinte, quando as autoridades afirmaram que um grupo misterioso chamado dia da Fúria reivindicara os ataques bombistas. os paranoicos da clínica esconderam‑se então nos quar‑tos, assustados, e os pacientes que sofriam de perturbações obsessivo‑‑compulsivas inventaram rituais privados para que a clínica não fosse atacada. Quando uma mulher da Enfermaria Quatro teve um ataque de pânico e começou a gritar, o dr. Noland retirou o televisor da cantina.

alguns dias depois dos ataques, o mundo recebeu uma explicação e houve a quem culpar. danny marchand era um jovem brilhante, filho de pai francês e mãe inglesa. aos dezanove anos licenciou‑se em enge‑nharia na Universidade pierre e marie Curie, em paris. Começou a trabalhar numa empresa holandesa de desenvolvimento de software e juntou‑se ao movimento Vaga Final. Estes fanáticos acreditavam na singularidade tecnológica: o desenvolvimento inevitável de um super‑computador que reescreveria o seu próprio código‑fonte. o compu‑tador acabaria por assimilar todo o conhecimento do passado e prever comportamentos futuros. o supercomputador seria tão omnisciente como deus e tão inevitável como a História.

aos vinte e nove anos, danny marchand abandonou o movimento Vaga Final e começou a recrutar pessoas para uma organização secreta. alguns seguidores eram anarquistas, ou fanáticos religiosos que acre‑ditavam no Fim do mundo, mas a maioria das bombas foram fabrica‑das e detonadas por mercenários pagos e afiliados a organizações terroristas do médio oriente. Ninguém chegou a descobrir em que é

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que marchand acreditava, pois este foi morto três dias depois dos ataques bombistas às escolas, durante uma rusga policial ao seu escon‑derijo, na Normandia.

Fiquei no meio da ponte, a fitar os cabos, tentando tomar uma decisão. apesar de não precisar imediatamente do dinheiro, as minhas missões eram difíceis e mantinham‑me ocupado. Todas as Centelhas contidas nos invólucros são irrequietas. se estivermos aborrecidos, as nossas mentes famintas alimentam‑se de problemas imaginários. Não parece fazer diferença se estamos no meio de uma ponte ou deitados, imóveis, num hospital. Quando era paciente da Clínica Ettinger, acompanhei o dr. Noland ao segundo andar, onde se encontrava um paciente chamado donald Fitzgibbon. os olhos do paciente estavam fechados. o seu corpo alto e frágil estava ligado a um ventilador, a um cateter, a um tubo de injeção intravenosa e a dois sensores neurais. o quarto cheirava a urina e o ventilador fazia um leve som arquejante.

— Está mesmo vivo? — perguntei. — Está, mas sofre de paralisia total. Fizemos‑lhe uma TaC, que

revelou lesões graves na área da pontine nuclei do cérebro. — Consegue pensar?— Está acordado e consciente, mas não consegue mexer deliberada‑

mente qualquer parte do corpo — respondeu o dr. Noland, enco‑lhendo os ombros. — Nos últimos anos, fiz eletroencefalogramas a vinte e cinco pessoas normais. sempre que ouvem um bip, têm de imaginar que estão a mexer os dedos dos pés, ou a apertar algo com a mão direita. apesar de não contraírem realmente os músculos, a máquina do eletroencefalograma deteta pelo menos dois tipos de ati‑vidade no córtex pré‑motor. o cérebro reage de forma diferente ao mexer dos dedos dos pés e ao mexer dos dedos da mão.

— o que é que isso tem a ver com o senhor Fitzgibbon?— pus‑lhe auriculares e passei uma gravação com as mesmas duas

instruções: apertar a mão e depois mexer os dedos dos pés — respon‑deu o dr. Noland, sorrindo. — a máquina do eletroencefalograma detetou as mesmas descargas elétricas no córtex que ocorrem em cérebros não lesionados.

— Então ele está a pensar.— Está. mas está preso dentro do próprio crânio.

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a minha Centelha também está presa, mas continuo a ter de pensar em algo. Neutralizar alvos atribuídos pela sra. Holquist cria objetivos realizáveis a curto prazo, o que desafia a minha mente inquieta. depois de calcorrear a ponte repetidamente durante uma hora, voltei ao apar‑tamento e enviei um email.

// Aceito a nova missão. Obtenha por favor o equipamento para a venda. Contactá-la-ei quando tiver um endereço para o envio.

— Vai ao site da British airways — disse eu a Laura. — Fala com a sombra que faz a reserva de bilhetes e compra um de ida, primeira classe, com partida do aeroporto JFk na quarta‑feira de manhã.

— E para onde vai, senhor Underwood?— para Londres.

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