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JL JORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS Ano XXXII . Número 1101 . de 12 a 25 de dezembro 2012 . Portugal (conte.) €2,80 . Quinzerário . Diretor José Carlos de Vasconcelos OSCAR NIEMEYER Último ato Joaquim Benite 1943-2012 a morte do génio das curvas eternas. Paginas 11 a 13 As inéditas notas do diretor do teatro de almada sobre Timão de Antenas, de Shakespere, que estreia no dia 20 Evocação da vida e obra do encena- dor, com os testemunhos de quem com ele trabalhou, por Maria Leonor Nunes * Textos de Filomena Oliveira/ Miguel Real e Vitor Gonçalves. Paginas 6 a 10 Guimarães 2012 O que continua e o que fica da CEC Paginas 1 a 23 Sena e ramos Rosa Cartas de poetas Paginas 14 a 15 JL / Educação * Camões* Agenda Cultural

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Page 1: jornal de letras

JLJORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS

Ano

XX

XII

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OSCAR NIEMEYER

Último atoJoaquim Benite 1943-2012

a morte do génio das curvas eternas. Paginas 11 a 13

As inéditas notas do diretor do teatro

de almada sobre Timão de Antenas, de

Shakespere, que estreia no dia 20

Evocação da vida e obra do encena-

dor, com os testemunhos de quem com

ele trabalhou, por Maria Leonor Nunes *

Textos de Filomena Oliveira/ Miguel Real e

Vitor Gonçalves. Paginas 6 a 10

Guimarães 2012O que continua e o que fica da CECPaginas 1 a 23

Sena e ramos RosaCartas de poetas Paginas 14 a 15

JL / Educação * Camões*Agenda Cultural

Page 2: jornal de letras

BREVE ENCONTRO

Vasco Graça MouraCCB de artes e letras

As humanidades, o fado e a arquitectura marcam forte presença na programação do CCB para 2013. São as grandes novidades numa em que se pretende inovar, sem perder de vista o que já foi feito. O JL falou com Vasco Graça Moura.

JL: Quais foram as suas maiores preocupações a criar a grelha de programação de 2013 para o CCB?Vasco Graça Moura: A grelha não é apenas da minha responsabilidade, é um trabalho de grupo. Uma das preocupações é manter uma linha de continuidade. Há aspectos emblemáticos na actividade do CCB, que se devem manter, sobretudo na música, dança e teatro. Ao mesmo tempo, tentamos encontrar uma programação complementar, que mantenha uma linha consistente. Por exemplo, não só há uma temporada ligada à música, com vários tipos de repertório, como criamos um programa para jovens intérpretes, chamado “Bom Dia Música”.

O fado parece ser mesmo uma das grandes apostas, com o ciclo “Há Fado no Cais”.É fruto de um protocolo com o Museu do Fado e a EGEAC. Além de concertos dados por grandes fadistas e alguns em princípio de carreira, temos um ciclo sobre a história do fado, coordenado por Rui Vieira Nery, e um outro, sobre a escrita de letras de fados, por Fernando Pinto do Amaral.

“Transformar a fraqueza financeira em força cultural”E as artes visuais?A grande novidade, sobre a qual poderia falar melhor a Dalila Rodrigues, é a abertura de uma nova galeria dedicada preferencialmente a exposições de arquitectura. A primeira, que já está patente, é dedicada ao Nuno Portas. Seguem-se muito outras.

Além das Artes, a programação de 2013 será rica em letras.Acrescentámos um ciclo dedicado às humanidades, no plano da Literatura, a História, o testro português. Há dias dedicados a Ruy Belo, António José Saraiva, António Lobo Antunes, Carlos Queiróz. Em 2014seguir-se-ão outros nomes. Há também um ciclo dedicado à grande poesia brasileira do século XX,coordenado por Arnaldo Saraiva. Esperemos que a partir daqui se criem pistas de diálogo sobre estas temáticas.

E mais alguma surpresa?Entre finais de 2013 e princípios de 2014, queremos consagrar uma iniciativa à necessidade de reabilitar as humanidades no ensino secundário e superior. Temos um documento de trabalho mágnifico, da autoria de Vitor Aguiar e Silva. Já contactamos todas as faculdades e departamentos de letras. Ainda não sabe-mos se o figurino será um encontro, um congresso ou um festival. Estamos em contacto também com o governo e é conhecida a importância da iniciativa. É possível despertar os espíritos e os interesses.

Em geral, há uma predominância de produçõesportuguesas?Nós temos todo o interesse em promover a cultura por-tuguesa. Mas, por outro lado, como atravessamos uma fase de construção económica, é evidente que sai mais barato recrutar artistas portugueses. Por isso, vamos tentar transformar a nossa franqueza financeira numa força cultural. Teremos menos estrelas internacionais, mas tal não afectará a qualidade. JL MANUEL HALPERN

Estreia de no Teatro Alberto Entre o ser e o parecer, uma peça do dramaturgo Neil LaBute para reflectir sobre as razões da beleza, das aparências e das ciências. Chama-se justamente Há muitas razões para uma pessoa querer ser bonita e estreia a 21, no Teatro Alberto, em Lisboa. A encenação é de Joao Lourenço, que também assina a realização vídeo e a versão

Há muitas razões para uma pessoa querer ser bonita

Histórias de Taipei é o título do ciclo dedicado ao cinema chines Edward Yang (1947-2007), a decorrer na Culturgest, em Lisboa, de 13 a 16 de Dezembro. O programa, comissário por Au-gusto M. Seabra, conta com os filmes In Our Time / Expectation (1982), Taipei Story (1985) a 13, às 21 e 20; The Terrorizers (1986), a 14, às21 e 30; A Brighter Summer Day (1991), a 15, às 15; e Mahjong (1996), a 16, às 18 e 30. Yang “foi certamente o mais ‘ocidentalizado’ dos realizadores de Taiwan, mas foi também, como poucos outros, o cineasta de uma cidade, Taipei. E foi um dos grandes cineastas das últi-mas duas dácadas do século XX”, refere o comissário.

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T Ler é Mágico é o mote do Festival do Livro, a decorrer no edifício AXA, na Avenida dos Aliados, no Porto, de14 a 16 de dezembro. Além de uma feira do livro e do artesanato, o certa-me, coorganizado pela CulturePrint e a Câmara Municipal, inclui ciclos de cinema dos quais se destaca a sessão de curtas ‘Tudo Isto é Fado’ (a 12, às 21 e 30) -, leituras de contos e de poesia, concertos, oficinas, peças de teatro,lançamentos de livros, e tertúlias. Entre outras, a tertúlia ‘Literatura, Política e Cidadania’, com António Veríssimo, Luís Isidro, Susana Campos, Carlos Vinagre, Bernardino Guimarães e Paulo Esperança.

Os Demonios, de Dostoeiévski, é o ponto de partida da nova criação da companhia Mala Voadora, que sobe ao palco do TeatroMunicipal São Luiz, em Lisboa, de 13 a 16 de dezembro. Um espectáculo “em torno de uma Comunidade, sobre aquilo que é Comum, e evoca o contexto cultural em que surgiu o Comunis-mo”, Revelação tem direção de Jorge Andrade, interpreta-ções de, entre ou-tros, Anabela Almeida, Cláudia Gaiolas e Miguel Fragata, e cenografia de José Capela. A 13 e 14, o Jardim de Inverno da sala lisboeta acolhe outro espectáculo do Temps d’Images: a performance Tempus Fugit, de Sónia Baptista e Cláudia Varejão.

“Será preciso que um dia um ator entregue o seu cor-po vivo à medicina, que seja aberto, que se saiba enfim o que acontece lá dentro, quando está a atuar. Que se saiba como é feito, o outro corpo. Porque o ator atua com um corpo que não o seu”. Eis um fragmento de Carta aos Atore, de Valère Novarina, uma reflexão sobre a arte do ator e o sentido do teatro, escrita em 1973, de que o en-cenador Jorge Silva Melo faz a leitura integral, a 20 e 21 de dezembro, às 19, no Teatro da Politécnica, em Lisboa. A sessão é de entrada livre mediante reservas.

Vai acontecer

Destaque 2

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dramatúrgica com Vera San Payo de Lemos. A interpretação é de Ana Guiomar, Jorge Corrula, Sara Prata e Tomás Alves. Os cená-rios são de António Casimiro e os figurinos de Dino Alves. Está em cena de 4ª a sáb., às 21 e 30, dom. às 16, na Sala Azul.

Page 3: jornal de letras

JL | jornaldeletras.sapo.pt | 12 a 25 de dezembro de 2012 3

Vencedores do cinema

A Última vez que vi Macau

Filme vencedor do Luso-Brasileiro

A Última Vez que vi Macau, a

mais recente longa-metragem

de João Pedro Rodrigues e

João Rui Guerra da Mata,

foi o filme vencedor da 16.ª

edição do Festival Luso –

Brasileiro de Santa Maria da

Feira (que decorreu de 2 a 9

dezembro). Joao rui Guerra

recebeu ainda o prémio de

melhor curta-metragem, com

O Que Arde Cura. O certame,

promovido pelo Cineclube da

Feira, atribuiu os calardoes

de melhor atriz à brasilei-

ra Cristiana Ubach, pelo seu

des jnempenho de Boa Sorte,

meu Amor, de Daniel Ara-

gão, e de melhor ator a Joao

rui Guerra da Mata, por A

ultima Vez que vi Macau. O

filme Sudoeste, do brasileiro

Eduardo Nunes, foi outro dos

grandes vencedores, arreca-

dando os palmarés do júri,

da critica e do publico.

Ainda na longa metragens em

competição, Cama de Gato,

de filipa Reis e João Miller

Guerra, foi distinguido com

o prémio revelação. Boa Sor-

te, Meu Amor, recebeu ainda

o prémio dos Cineclubes.

Nas curtas, Filme para Poeta

Cego, de Gustavo vinagre,

foi o vencedor do prémio de

revelação; A Mão que Afaga,

de Gabriela Amaral Almeida,

do prémio especial do júri,

que atribuiu ainda duas men-

ções honrosas:por Lullaby,

e a Maya Darin, por Versão

Francesa, também distinguido

Onda Curta. O Facínora, de

Paulo abreu, recebeu ainda

o prémio dos cineclubes. No

Córtex – Festival de Curtas-

-Metragens de Sintra (de 28

de novembro a 2 de dezembro),

que este ano homenageou o

realizador António campos,

foram distinguidos os filmes

Noite, de Flávio Pires, com

o prémio de melhor curta na-

cional pelo júri; Nada Fazi,

de Filipa Reis e João Miller

Guerra, com o prémio do

publico; e Blu, de Contan-

tim Nicolae Tanase, eleita

a melhor curta internacional

pelo júri.

Por lapso, não saíu no ul-

timo numero do JL a notícia,

já escrita, dos palmarés

do Cinanima e do Lisbon &

Estoril Film Festival, pelo

que agora os publicamos. Um

dos mais importantes festi-

vais europeus de cinema de

animação, o grande prémio

foi para o Canadá, com Les

Grands Alleur et le petit

ici, de Michèle Lemieux.

Entre os outros palmarés,

destaca-se o António, para

Outro homem Qualquer, de

Luis Soares; Cineasta, para

Branco, de Raquel Felguei-

ras; e Filme Publicitário, A

Energia na Terra chega para

Todos, de José Miguel Ribei-

ro. No Lisbon & Estoril Film

Festival, L’Intervallo, de

O Juri, composto por Alfred

Brendel, Fanny Ardant, pre-

miou Melvil Poupaud pela sua

interpretação em Laurence

Anyways, de Xavier Dolan, e

Student e Djeca receberam

o prémio especial do júri

Joao Bénard da Costa. O filme

colectivo Winter, Go Away!

Foi eleito o melhor primeira

obra, e Rengaine, de Ranchid

Djaidani, recebeu o premio

Cineuropa. JL

Fado na INCMO musicólogo Rui Vieira Nery é o denominador comum da colecção que a Imprensa Nacional/Casa da Moeda dedica ao fado. De início são editados quatro volumes. Para uma História do Fado, o mais completo livro sobre o assunto alguma vez editado em Portugal, tem uma edição, revista e aumentada pelo autor. Para o público estrangeiro, saiu A History of Portuguese Fado,mas antes uma adaptação, com o cuidado de explicar conceito, que muitas vezes subiste, de que o fado é de ‘direita’.O livro, que temporalmente se situa no início do século XX, está dividido em três secções: ‘O Fado e o Ideal republicano’, ‘O fado e o Movimento Operário’e a Grande Guerra’. Finalmente, foi reeditado o clássico, de 1937, Ídolos do Fado, de A. Victor Machado. Um dos mais importantes regis-tos sobre o fado nos anos 30, que sai em edição fac-similada, com uma longa introdução explicativa do próprio Rui Vieira Nery. JL

Dicionário do Cinema Português 1895-1961 e Fernando Lopes, Um Rapaz de Lisboa, dois livros do crítico e estudioso de cinema Jorge Ramos. O primeiro, editado pela Caminho, é uma obra de referência, com entradas para todas as longas metragens e grande parte das médias e curtas dos pri-meiros 56 anos do cinema em Portugal. Podem encontrar-se não só os títulos dos filmes, como realizadores, ato-res e técnicos. Em Fernando Lopes, Um Rapaz de Lisboa, numa edição conjun-ta Sociedade Portuguesa de Autores e Imprensa Nacional Casa da Moeda, faz uma homenagem ao realizador falecido este ano. De forma sintética e fluida, Leitão Ramos percorre, por capítulos, a vida e a obra do autor de Belar-mino, sempre com muitas imagens a acompanhar. É um olhar muito comple-to, passando pela infância, a criação da revista Cinéfilo, o Cinema Novo, o parêntesis televisivo, a sua curta experiência como ator e a filmografia completa, de Belarmino a Em Câmara Lenta. JL

EDITORIALJOSÉ CARLOS DE VASCONCELOSDuas figuras

Muitas vezes acontece isto no jornalismo: tem-se uma edição preparada, até com uma capa já feita, e os acontecimentos obrigam a mudá-la, de forma profunda. Mais habitual nos diários e na imprensa generalista, também acontece numa publicação como o JL. Antes de mais porque é “jornal”, com tudo que isso pressupõe e sig-nifica. Em geral são tristes, sobretudo a morte de alguém. Foi o que sucedeu agora, em ‘dose dupla’, com o desaparecimento de Joaquim Benite e Oscar Niemeyer. Niemeryer, um génio da arquitetura e uma grande figura humana, criador de uma cidade, “capital do futuro”, em que se fala português – e ele próprio neto de portugueses. Com uma ex-traordinária obra espalhada pelo mundo, plena de inventiva e fan-tástica beleza, dedicamos-lhe ao longo dos anos, muitas matérias, de que destacamos os temas, que foram capas, publicados pouco depois de completar 90 anos (nº 714,de 25/2/1998) e quando chegou aos 100 (nº 970,de 5/12/2007). Neste último, sublinhava aqui a circunstância rara, com paralelo no nosso Manoel de Oliveira, de se festejar o seu centenário continuando ele em plena actividade criadora e profissional. Inclusive indo, com regularidade, ao seu atelier em

Fernando Lopes e filmesportugueses em livro

Copacabana, frente ao mar e ao banco onde está agora, em pedra, o seu amigo Carlos Drummond de Andrade. Por aí com a mágoa de já não lhe poder bater à porta e recordando a sua simpatia substantiva, ou derrame, em especial o encontro e a conversa (e o almoço…) que ‘contei’ naquela edição de 1998. Edição para a qual até teve a generosidade de escrever “Aos meus amigos de Portugal”, uma espécie de longa carta autobiográfica em que falava de si, do seu percurso e da sua obra.

“Niemeyer, um génio da arquitetura e uma grande figura humana; Benite, uma obra das mais relevantes do teatro em Portugal

Seja como for, bem gostaríamos de neste JL falar mais do arquitecto que desenhou e edificou curvas eterna. Impossivel, por falta de espaço até porque queríamos dar, como damos, o devido destaque a tudo que conseguiu fazer no teatro português, e em particular no Teatro de Almada, o Joaquim Benite fazer inclusive um Festival Internacional que conquistou dimensão e prestágio europeus. Benite cuja morte prematura ocorreu em vésperas de estrear (no próximo dia 20) a suaultima encenação, Timão de Até nas de William Shakespear. Já estava previsto uma conversa

com o encenador, que infelizmen-te já não se pode realizar. E, como a vários títulos se impunha, a matéria passou a ser outra e muito mais larga.Conheci o Benite quando teria 20 e poucos anos, já jornalis-ta, trabalhamos ambos no Diário de Lisboa, onde fiz critica de teatro e conheci a sua paixão pelo teatro. Se bem me recordo, o início da atividade do grupo, ou de levar à cena a primeira peça, teve alguns adiamentos, o que levou a haver quem desconfiasse da capacidade de

realização do seu diretor. Pois essa capacidade foi-se impondo cada vez ‘melhor’, e a obra que o Benite deixa é mais relevantes das últimas décadas em Portugal.PS Acabar com o Câmara Clara, que a Paulo Moura Pinheiro faz tão bem, e é o melhor programa do género da televisão portuguesa. É uma vez mais negar o serviço público; e mostra a cegueira e/ou os interesses, em vários sentidos, de quem manda numa RTP a caminhar para oprecipício…JL

Page 4: jornal de letras

BrevesCONCERTO PARA JOSÉ SARAMAGO, por ocasião dos 90 anos do seu nascimento às 18 e 30,no Salão Nobre do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (R.do Jardim do Tabaco, 34). Interpretações de Ana Tomás (soprano), Tiago Oliveira (tenor), Duarte Martins (piano) e Philippe Marques (piano)

PESSOA E AUTOREFLEXIVIDADE, colóquio internacional na Universidade de Évora, a 12,13 de dezembro.Com Paula Morão, Rosa Maria Martelo,Ida Alves,António Carlos Cortez, Fernando J.B. Mar-tinho, Gastão Cruz, entre outros.

TITO PARIS Alma de Artista, fotobiografia e documentário sobre o músico cabo-verdiano, que comemora 30 anos de carreira, lançada amanhã, quinta-feira,13 no Salão Nobre da Câmara Municipal de Lisboa. A obra será também lançada em Cabo Verde, a 19 dedezembro, em São Vicente, na Academia Jotamont, e a 20, em Santiago, no Hotel Praia Mar.

A FONTE DAS PALAVRAS, exposição de Maria João Worm, inaugura amanhã, quinta-feira, 13, às 18 e 30, na Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais.

POESIA DE SEGUNDA categoria,curtametragem de Luís Santo Vaz, exibida a 13, pelas 18 e 30,na Casa Fernando Pessoa.

QUEM VIAJA PARA ALÉM da curva assume o risco de tocar a realidade, exposição que inaugura a 14, pelas 18, na Casa Museu Abel Salazar, em S. Mamede Infesta.

MEMÓRIAS DO PORTUGAL FUTURO, lançamento da serie documental com a presença de Mário Soares,a 14, às 19 e 30, no cinema São Jorge.

PINTURA E MÚSICA na poesia de Camilo Pessanha, encontro com a historiadora de arte e musicóloga Barbara Aniello, a 16, às 16, no espaço Prova de Artista, em Lisboa (R. Tomás Ribeiro, 115). Moderação de Maria Teresa Dias Furtado.

MOSTRIN, Mostra de Teattro para a Infância e Juventude, até 16 de dezembro, no Auditório de Alfornelos(Praça José Afonso 15) Sessões sempre às 16.

OFICINAS DE NATAL para crianças dos 7 aos 12 anos, no Museu doo Oriente. Entre dias 17 e 21 e 26 e 28 de desembro. Cinema e expo-sições unem-se para uma quadra multicultural.

POESIA E REVOLUÇÃO, tema do último número da revista Relâmpa-go, lançado a 18, pelas 18 e 30,na Casa Fernando Pessoa. Apresentação de Fernando J.B. Martinho e Luís Quintais.

INTERIORES: 100 anos deArquitectura em Portugal, exposi-ção que inaugura a 21 de dezem-bro, pelas 19 horas, no MUDE, Mu-seu do Design e da Moda de Lisboa. Comissariado por Pedro Gadanho.

Câmara Clara, o diário Cultural da

autoria de Paula Moura Pinheiro, na RTP2, vai

terminar no final do ano. O anúncio foi feito

em comunicação pela jornalista que também é

subdiretora

daquele canal. Explicou que a decisão lhe

havia sido comunicada, em junho

deste ano, por Jorge Wemans, que na

altura era diretor da RTP2. O

programa era exibido, de segunda a sexta, num

formato mais curto e, aos domingos, em

formato longo. Contactado pelo JL, Paula

Moura Pinheiro não quis prestar quaisquer

declarações, remetendo para o comunicado, em

que aforma: “Foi, para mim, um enorme

LeYa lança ‘Escrytos’O grupo editorial LeYa acaba de lançar

Escrytos, uma plataforma permite a

qualquer um a autoplicação de livros e

textos originais em formato digital, e a

comercialização em lojas online de todo o

mundo. A publicação é gratuita, sendo apenas

necessário que o autor tenha o texto em

formato Word e efetue o registo no sítio

(www.escrytos.com). Em comunicado, a editora

explica: “Esta plataforma vai ao encontro

daquela que tem sido a sua estratégia no

contexto da estimulação da criatividade

editorial e até mesmo no da procura de novos

talentos de língua portuguesa”.

Na Escrytos, o autor tem acesso ao software

de conversão do formato word em ePub, ou

seja, num ebook, e pode criar a capa do

livro, escolher imagens, cores, formatos,

fontes gráficas, entre outros elementos,

através de um programa próprio, bem como

criar o código ISBN, obrigatório para todas

as publicações. Terminado o processo de

publicação e defenido, pelo autor, o preço

do livro digital, o mesmo fica disponível

em lojas online parceiras do projeto

(Almedina, Amazon, Fnac.pt, Wook, Kobo,

entre outras). A plataforma disponibiliza,

ainda, um conjunto de serviços pagos, com

a solicitação de um parecer editorial (uma

avaliação prévia da qualidade dos textos,

sobretudo de poesia e ficção), serviços

de edição e revisão de texto, e de promoção (como a criação de press releases e booktrailers).

Conferência de Miguel WandschneiderO curador e programador da Culturgest

Miguel Wandschneider apresenta amanhã,

quinta-feira, 13, às 18,30h, a conferência

Copo Meio cheio, copo meio vazio, na

Sala Multiusos da Faculdade de Ciências

Sociais e Humanas, da Universidade Nova de

Lisboa. A comunicação, que irá focar a sua

experiência pessoal no domínio da curadoria

e da programação de exposições, abordando

as questões da difusão e divulgação da

arte contemporânea, integra-se no ciclo

Mediações, uma iniciativa do Instituto de

História de arte daquela faculdade.

Concerto solidário Aurea, Deolinda e David Fonseca são alguns

dos músicos que sobem ao palco do Teatro do

Tivoli, em Lisboa, hoje, 12, às 21 e 30,

para o concerto ‘ Live Freedom’. Promovido

pela Amnistia Internacional, o espetáculo

tem como objetivo chamar a atenção do

público para os direitos humanos e para o

trabalho desenvolvido pela organização, e

conta ainda com a participação da equipa das

manhãs da rádio Comercial: Pedro Ribeiro,

Ricardo Araújo Pereira, Vanda Miranda e

Vasco Palmeirim. A receita dos bilhetes

reverte a favor da Amnistia.

Êxito de tabu em FrançaEm cinco dias de exibição nas salas

francesas, Tabu, de Miguel Gomes, fez

mais de 27 mil espectadores, com sessões

esgotadas no fim-de-semana, situando-se no

15º lugar, no top 20 de França. O filme está

em exibição em 42 cidades, em Paris com seis

cópias, somando-se o sucesso de bilheteira

ao entusiasmo com que foi acolhido pela

crítica. Vai estrear ainda na Alemanha, a

20, em 28 salas. Entretanto, Tabu integra a

lista dos melhores filmes de 2012 (no segundo

lugar) da revista inglesa Sight & Sound.

Papiano Carlos (1918-2012)Estreou-se em 1942, com um livro de poemas,

em 46 publicou outro, com capa de Júlio

Pomar, e a partir daí deu a lume muitas

outras obras, em particular dedicadas

à infância e à juventude, sendo a mais

conhecida A Menina Gotinha de Água, de 1963,

que tem tido sucessivas edições. Comunista,

lutou contra a ditadura, foi três vezes

preso pela polícia política, colaborou

em jornais e revistas - como a Vértice,

a Seara Nova - e nos cadernos de poesia

Notícias de Bloqueio, de que foi mesmo um

dos diretores, com outros integrantes da

chamada segunda geração neorrealista, como

Egito Gonçalves, Luis Veiga Leitão e Daniel

Filipe. Falamos de Papiniano Carlos, nascido

em Moçambique mas desde cedo radicado no

Porto, onde estudou Engenharia e Ciências

Geofísicas, trabalhou e viveu até morrer,

no passado dia 5, com 94 anos. Militante

político e cultural, foi da direção do

Teatro Experimental do Porto (TEP), E EM

2009 foi-lhe atribuída a Medalha de ouro

da cidade. O seu último título,A Viagem

de Alexandra, para crianças, ilustrado por

Manuela Bacelar, saiu em 1989, e teve uma

reedição em 2008.

JL, erro técnicoNa nossa última edição, devido a um erro

técnico de paginação, na p.3, ao alto, onde

deveria ter saído a notícia dos Festivais de

Cinema Cortex a que se reportava a imagem,

que saiu, de um filme de António Campos Luso-

Brasileiro de Santa Maria da Feira, apareceu

a notícia “O livro objeto de conversas

em Lisboa”. Notícia repetida aliás, mais curta, na mesma página. Pelo facto pedimos desculpa aos nossos leitores.

Paula Moura Pinheiro “Orgulho-me do serviço que prestámos”

privilégio

trabalhar sobre as obras das muitas cen

tenas de criadores, artistas e

investigadores de que a Câmara Clara se

ocupou ao longo dos últimos seis anos e

meio”. E acrescenta Um serviço que é uma das

faces, em meu entender

inegociável, do serviço público de

televisão”. Que espaço e que

visibilidade reserva o serviço

público de televisão à cobertura de uma das

áreas nevrálgicas do

desenvolvimento do país: a inovação nas

artes e nas ideias e a conservação do nosso

extenso e precioso património cultural-

da literatura à arquitectura.” Entretanto,

decorre uma petição pública de telespetadores

pela manutenção do programa. Pode ler-

se:”Mais do que um programa de divulgação

cultural, o programa Câmara reflexão, debate

e procura de convergências, colocando-

nos a nós espetadoresperante nós mesmos,

perante o outro, pelo universo criativo

que herdamos, que partilhamos, em que nos

movemos.” Juntamente com o Câmara Clara,

também terminou o programa de divulgação

musical Top Mais, apresentado por Francisco

e Isabel Figueira. Era o programa mais antigo

da televisão pública, a seguir ao Telejornal,

com 20 anos de existência.

O fim do programa Câmara Clara

Destaque 4

Page 5: jornal de letras

tudo isto é fado

Pretende, na generalidade e em tópicos especificos, historiar a riquissima tradiçcao e patrimonio do fado e recuperar algumas das suas ediçoes clássicas.

Para uma hitória do fado, e asua tradição inglesa a HITÓRIA OF PORTUGUESE FADO, da autoroa do hitóriador

e crítico Rui Vieira Nery, oference-nos uma completa e bem, documentada história do Fado, das suas raízes

oitocentistas às vozes que asseguram a sua constante renovação. FADOS PARA A REPÚBLICA, do mesmo autor,

retrata a curiosa ligação do Fado ás transformações políticas e sociais mais radicais, como foi o caso da I

república. Por último, ÍDOLOS DO FADO, edição fac-símile de um clássico de 1937, de A. Victor Machado. Edi-

çãoes da IMPRESA NACIONAL- CASA DA MOEDA.

São os quatroprimeiros livrosde coleção

JL | jornaldeletras.sapo.pt | 12 a 25 de dezembro de 2012 5

Page 6: jornal de letras

Joaquim Benite (1942-2012)

Último atoUm dos nomes mais destacados do teatro portuguÊs do século XX, que fundou e dirigiu a Companhia e o Festival de Teatro de Almada, morreu no passado dia 5. Mas a 20, no Teatro Azul, estreia a sua úl-tima encenação: Timão de Atenas, de Shakespeare, pela primeira vez representado no nosso país. O JL evoca o encenador, com testemunhos de muitos que com ele trabalharam, revela as suas últimas notas, recolhidas pelo seu assistente, Rodrigo Francisco, que o irá substituir na direção, e antecipa o es-petáculo. Publica ainda textos de Filomena Oliveira/Miguel Real e Vitor Gonçalves, bem como um poema de Yvette Centeno.

Teatro de Almada (CTA) teria

muitas salas cheias, uma média

de 247 espetadores por sessão,

no ano passado, como saliente

Rodrigo Francisco, que agora será

o seu diretor.

Recentemente, por exemplo, O

Mercador de Veneza , com encenação

de Ricardo Pais, contabilizou sete

mil espetadores. “Um dos frutos mais

promissores e importantes do trabalho de

JB em Almada foi a formação desse público

invulgar”, diz ainda. “E não só soube criá-lo, como

mantê-lo, o que é ainda mais difícil. E é um público

militante, participativo, que gosta de refletir sobre o

que se vê e não procura apenas entretenimento. Esse

foi o segredo de JB. Como nos dizia sempre: podemos

fazer teatro de muitas maneiras, sem texto, sem

encenadores, até sem atores, mas não sem público.”

PEDAGOGIA E INVESTIGAÇÃO

Como encenador, acrescenta Rogério de Carvalho,

“Benite deixou uma marca”. E sublinha: “Os seus

espetáculos tinhas uma estética própria, uma

visão social e política característica de todo

o trabalho que realizava”. Era também um grande

diretor de atores. Mais, diz ainda, Era um

“homem pedagógico”. “A minha formação também

passou por ele, não só pelo trabalho, mas pelas

suas ideias que muitas vezes discutíamos”.

A vertente pedagógica também é destacada

pelo ator Luís Vicente, atualmente diretor da

Companhia de Teatro do Algarve, que teve com

o JB um relação de 3 décadas: “Com ele aprendi

muito do que sei. Fazia parte da sua maneira

de estar e de ser essa preocupação no modo como

se relacionava sobretudo com os mais novos. Quem

quisesse aprender tinha nele um mestre. Foi o caso

de Vítor Gonçalves, que foi assistente de encenação de

JB e diretor-adjunto da CTA, durante 27 anos. Cháma-

lhe justamente “mestre” e fala de uma certa natureza

“socrática”, do gosto pela troca de ideias, pelas conversas

madrugada dentro (ver texto, enviado de Moçambique,

onde agora vive e trabalha). E Rodrigo Francisco,que foi

assistente de JB desde 2006 e também diretor-adjunto da

CTA, fala de uma relação quase “filial”. Ainda lhe é difícil

falar no passado de JB, de que se considera um “discípulo”

e “amigo”. “No teatro, as relações são muito semelhantes

De quantas personagens fez a marcação em palco? Às vezes,

acudia-lhe ao espírito da conversa uma ou outra “fala”,

uma ou outra “deixa” de Brechet ou Shakespeare. Às vezes,

subitamente declamava um pedaço de texto, recitado entre

duas passas, o cigarro rápido entre os dedos, a voz

enrouquecida pelo fumo, forte. Voz de comando. O teatro para

ele era essencialmente literatura, como não se cansava de

dizer. E nesse sentido, o encenador, tal como o ator, eram

“intérpretes” do texto.

Quantas cenas desenhou, gesto a gesto? Às vezes, movia-se

repentino, hesitante sobre um calcanhar e entrava em cena,

mordaz, a mordiscar um dichote, uma história do Pacheco

ou do Cesariny. Em quantos atos dividiu a vida? O olhar de

intenso fulgor, o riso arrastado, a língua afiada.Não poupava

críticas, nem imprecações, ainda menos reivindicações para

a sua causa. Não era homem de poucas falas nem de meias

palavras.Representava o próprio teatro em qualquer palco.

“Espero que os teatros saibam resistir, porque eles são,

hoje, os refúgios da liberdade. Os teatros, na tradição

ocidental, não seguem ‘pensamentos únicos’. São fóruns

de reflexão e prazer estético, onde se discute sem limites

a multiplicidade dimensional do ser humano, que não o

esqueçamos é também social e política”, escrevia no Diário

que fez para o JL de 4 de Maio de 2011, quando estava em

cena a sua encenação de A Mãe, de Brecht. E acrescentava :

“Um teatro vivo é um teatro que se inscreve numa comunidade,

a tua e interage com ela. E cria , com o seu público e

os seus colaboradores, o que poderemos chamar uma relação

racional afetiva”.

Não se limitava a fazer bons espetáculos, criava diálogos

entre o apuro estético e o imperativo ético. Pensava o

teatro. “Não é um emprego, é uma vocação”, disse em 2004,

ao Correio da Manhã. “O teatro faz parte de mim”. Joaquim

Benite (JB) era um “homem de teatro”, diz simplesmente

Rogério de Carvalho, a quem, muitas vezes chamou para

encenar. Eram, aliás, da mesma geração e Rogério de

Carvalho chegou a integrar o Grupo de Campolide, como

ator. “Acompanhei sempre o seu percurso e era realmente um

grande dinamizador, formou gerações de atores e teve uma

importância relevante na formação de um público de teatro

em Portugal”. JB orgulhava-se disso. Recordava como nos

primeiros tempos em Almada chegava a ter um espetáculo com

17 atores em palco e cinco espetadores na plateia. Muitos

anos, persistência e regularidade depois, a Companhia de

Maria Leonor Nunes

Destaque 6

Page 7: jornal de letras

às de uma família, porque passamos horas juntos e criam-se

ligações muito fortes. Por isso, havia uma relação de mestre

aluno, mas também de um grande companheirismo”, lembra. “O

que é de salientar é a capacidade que ele tinha de juntar

pessoas dos mais diversos quadrantes. Isso é visível nas

centenas de mensagens de pesar que chegaram ao teatro,

vindas do mundo inteiro”.

Rodrigo Francisco passou, de resto, do conhecimento do

palco à escrita dramatúrgica. Escreveu duas peças, Quarto

minguante e Tuning, esta uma das últimas que JB encenou. E

o dramaturgo e agora diretor do TMA, não deixa de salientar

a “generosidade” dedicava à encenação, procedendo a uma

permanente “investigação, ao nível da compreensão do texto

ou da psicologia das personagens”. (Página 8 – continuação

texto página 7 – Joaquim Benite)

“Tinha esse olhar de cientista na abordagem, mas não

deixava de o fazer também pela trancedência, procurando uma

explicação para a vida fora dos limites da racionalidade”,

adianta. “E eram momentos de criação, de partilha

perfeitamente galvanizadores e fisicamente muito esgotantes.

Um ensaio cm JB, como um dia me disse, era um trabalho de

investigação muito sério, feito com muito esforço e honesto

estudo”.

E não tinha tempo, nem pressa. Houve ensaios que começaram

já noite dentro, mesmo de madrugada e não raramente

principiavam com uns dedos de conversa no bar, sobre uma

cena, uma personagem, e seguiam o fio da conversa até à sala,

a que curiosamente chamava “laboratório”. “Era um encenador

que gostava de perder tempo, de caminhar muito devagar, de

conversar pelo caminho. Criava assim uma atmosfera criativa

e o trabalho já ia meio feito para a sala de ensaios”, di<

Rodrigo Francisco.

Além do mais, JB, como frisa Rogério de Cravalho, foi

também “um homem que formou à sua volta um coletivo capaz

de sustentar o edifício que criou”. Gostava do teatro

também pela sua natureza de trabalho colectivo. E sobre a

sua equipa escrevia no referido Diário que fez para o JL:

“Penso que aprendi, desde muito pequeno e muito pobre, a

rafrear o orgulho e a dominá-lo, como um luxo a que só se

podem dar os bem-nascidos, ou os protegidos posteriores da

roda da fortuna. O ego inflado não é sinal de inteligência.

E é, de resto, uma das dificuldades com que nos denfrontamos

no teatro. Brecht dizia aos atores que, ao entrarem na

sala dos ensaios, deviam deixar os egos pendurados, com

os chapéus e os abafos, no bengaleiro. À noite, no Teatro

da Trindade, cheio como um ovo, assito à segunda parte de

A Mãe, de Brecht. Recordo-me dos ensaios, dos atores, dos

músicos, dos técnicos. E penso que é a sua luta constante

contra o orgulho egoísta e individual que faz da equipa a

que pertenço um caso especial da coesão”. Para Rogério de

Carvalho, tudo está profundamente implicado: “Todo o seu

trabalho foi sempre como o seu teatro: humano”.

E terá sido isso que sempre o moveu, aproximar-se da

natureza humana. “Gosto de trabalhar as subtilezas,

as obscuridades do ser humano. Trabalhar as coisas no

seu sentido simbólico e poético”, disse a Joana Emídio

Marques, do Diário de Notícias, a propósito dos seus 40

anos de carreira. “40 anos de corrida”, como escrevia na

altura no Diário para o JL. Uma corrida de obstáculos,

contra as dificuldades e falta de apoios oficiais ao teatro,

pela dignificação da sua arte e da cultura. Foi o teatro

que sempre o fez correr. E só a morte o poderia parar:

no passado dia 5 de dezembro. Tinha 69 anos e a estreia

absoluta de Timão de Atenas, de Shakespeare, marcada para

dia 20.

Porém, o pano nunca descerá para o encenador. Dos

encenadores, costumava dizer, não rezará a História, com um

desprendimento que talvez fosse mais mágoa do que alívio,

Notas para uma encenação

a sua consciência crítica que está a ser abordada.

• A encenação não procurará uma linha psicológica: é

a ação que determina o comportamento das personagens.

• “A atualização dos textos clássicos pode ser peri-

gosa: trata-se de textos atemporais, e atualizá-los impli-

caria muitas vezes amputar-lhes alguns dos seus significados

mais preciosos”. (JB)

• A mistura de tragédia com comédia é um das marcas

de Shakespeare, o que o levou a ser considerado, até ao

Romantismo, como um desrespeitador das leis aristotélicas:

curiosamente, são justamente a sua poesia e a sua desmesura

que tornam as suas peças tão apetecíveis ao teatro moderno e

contemporâneo.

• “Não basta querer representar. É preciso querer

levar o teatro até às ultimas consequências - querer sempre

superar-se a si mesmo. Não vale a pena querer ser ator: é

preciso querer ser um grande ator: é preciso querer ser um

grande ator”. (JB)

• O gesto do ator deve resultar de um movimento in-

terior dele mesmo, com um significado, senão redunda no es-

bracejar, que já Hamlet criticava nos atores: “Por que é que

agridem o ar? Ele fez-vos algum mal?”

DA DEIFICAÇÃO DO OURO

• Shakespeare introduz o tema do ouro como o fator de

inversão de todos os valores e de toda a lógica. Numa época

de disputas religiosas apoiadas no homocentrismo, Shakes-

peare volta a colocar o Homem num plano natural, ao nível

dos animais - a propósito desta posição, veja-se a carta de

Rousseau a Voltaire sobre o terramoto de Lisboa de 1755.

Rosseau adota o ponto de vista de que até uma grande calami-

Do Tema e Estrutura da Peça

• Na primeira cena resume-se, na fala do Poeta, todo

o enredo da peça: Timão, um homem rico e antigo chefe mili-

tar, um esbanjador, perde os amigos quando se vê desapossado

dos seus bens.

• Timão de Atenas é uma peça formalmente singular,

desequilibrada: “Shakespeare nunca escreveu uma peça que

fosse simples”. (JB)

• O texto aborda a falsidade das relações humanas,

a falsa lisonja (Timão diz “Devemos odiar a Humanidade”).

O cetismo em relação à Humanidade é total: os homens serão

sempre corruptos.

• Hoje em dia, no nosso País, 87% das pessoas não

acreditam na Democracia, dada a corrupção dos políticos e

dos seus ideais. A História tem-nos mostrado que um sistema

democrático pode descambar num regime político prejudicial

para o povo.

• A dimensão trágica e existencial é bastante forte:

“A tragédia de Timão, que escolhe afastar-se da Humanidade

para morrer sozinho, é a tragédia de cada um de nós”. (JB)

• “Não basta ajudar o fraco a que se erga, é preciso

depois sustentá-lo também”: no início do século XVII Shakes-

peare utilizava um expressão que podia ser utilizada ipsis

verbis para criticar o sistema liberal vigente hoje em dia.

• “Em Shakespeare a complexidade dos textos não resi-

de no enredo, mas na multiplicidade de significados. Não nos

interessa a história, mas a forma como a história é conta-

da”. (JB)

• A raiva interiorizada pode ser muito mais violen-

ta do que a “gritaria”. Se um ator gritar na direção de um

espetador, este é afetado emocionalmente por um ruído: não é

dade é necessária à transformação e à evolução da Natureza,

ainda que isso constitua um revés para os humanos.

• O outro passou a ser o Deus das sociedades moder-

nas. É alienante, porque tem a capacidade de transformar

características do ser humano no seu oposto (o feio torna-

-se belo; o velho novo; o desonesto honesto, etc.). O ter

destrói o ser. Em si mesmo, o ouro não vale nada: tem apenas

o valor que a Humanidade convencionou atribuir-lhe. Timão

demonstra isso claramente, quando na cena em que procura ra-

ízes só encontra ouro - e este não pode matar-lhe a fome.

• Karl Marx cita duas obras literárias no seu ma-

nuscrito sobre o dinheiro, de 1844: Timão de Atenas, de

Shakespeare, e Fausto, de Goethe. O facto de o filósofo ale-

mão citar justamente Shakespeare para ilustrar as caracte-

rísticas alienadoras de dinheiro para a Humanidade dá-nos a

ideia da dimensão gigantesca da poesia de Shakespeare, que

teve a coragem de fazer esta denúncia no seio da sociedade

inglesa do início do século XVII, já com Jaime I no poder.

• “Vivemos numa sociedade que se encontra imersa num

sistema financeiro que torna difícil, muitas vezes, pensar em

temas como a alienação pelo dinheiro. Se refletirmos pro-

fundamente, o ouro em si mesmo não vale nada - é apenas uma

convenção para facilitar trocas comerciais, tal como eram

as bagas de cacau nas sociedades índias da América do Sul,

antes da conquista espanhola”. (JB)

• “Toda a nossa vida pode ser enquadrada num sistema

de trocas - até os afetos”. (JB)

• “Só numa sociedade muito diferente da atual se po-

derá substituir o valor atribuído ao dinheiro por outro tipo

de valor: nomeadamente o valor artístico”. (JB)

Começamos a trabalhar com os atores no dia 1 de outubro, embora o Joaquim viesse concebendo a encenação já há mais de um ano, durante o período que passou internado. Às vezes, nas visitas, perguntava--lhe: “ E o Timão?”, e ele mudava o olhar e revelava-me mais uma ideia: o chão branco, os figurinos escuros, a distribuição dos pa-peis - tudo no sentido de uma depuração absoluta do espetáculo, que fizesse revelar o jogo dos atores e, sobretudo, o texto. “Nada de Cadillacs”, dizia, sarcástico consigo mesmo, referindo-se á adapta-ção dramatúrgica que havia dirigido, em 2008, no Festival de Mérida. A ideia final, a da bancada como único elemento cenográfico, revelou--ma o Joaquim no início de setembro, na sua esplanada favorita da Ericeira, local que ele elegeu para trabalhar nas adaptação drama-túrgica da magnífica tradução que Yvette Centeno lhe oferecera. “Olha lá, este Shakespeare devia ter lá muitos atores na Companhia dele: isto é gente que nunca mais acaba! Corta os criados.”E cortámos, adaptámos, lemos, relemos e o resultado foi conjunto de palavras “radiosas”, que os atores tomaram como suas logo desde os primeiros ensaios de leitura. Pelo que começámos a trabalhar com os atores - alguns jovens e ou-

tros, indefetíveis, com quem o Joaquim fez questão de voltar a tra-balhar. O momento ficou registado por Catarina Neves, que realizou um documentário sobre o Joaquim e sobre todo o processo de criação peça. Os atores mais velhos (e, mesmo mais velhos, a maior parte estreara-se profissionalmente com o Joaquim) sentiram que a forma de abordar o trabalho fora, desta vez, atípica. Desta vez preocupara-se em passar rapidamente da mesa para o palco, em deixar um esquema de marcações estabelecido, em ultimar pormenores, como se fôssemos es-trear daí a uns dias: “Põe o Horta a fazer as árvores. Quero sombras refletidas, de árvores verdadeiras. Nada de vídeos”. E as árvores lá estão. E lá está a bancada. E lá está a mesa a descer do teto. O chão branco, a representação sóbria. Este é um espetáculo “sem tru-ques”. É um espetáculo para atores e para um público que goste ver atores e de ouvir bons textos sejam eles de Shakespeare e de Middle-ton, como parece que este Timão é: mas que sejam textos bons.As notas que se seguem são os apontamentos possíveis, tirados à pressa nos ensaios de leitura, nas alturas em que consegui vencera vontade de deixar-me ficar simplesmente a ouvir o Joaquim, e a acom-panhar a lucidez e a riqueza do seu discurso.JL. Rodrigo Francisco

JL | jornaldeletras.sapo.pt | 12 a 25 de dezembro de 2012 7

Page 8: jornal de letras

apesar de ter dito numa entrevista ao DN, em 200o, “Os

encenadores não têm posteridade. No futuro, pode haver uma

referência nos livros a Luís Miguel Cintra, mas nunca vão

saber como ele foi. Essa impossibilidade de posteridade

traz-me felicidade. Não tenho de apanhar com séculos de

julgamentos, só tenho de me confrontar com os atuais. Isso

dá-me uma sensação de liberdade e impunidade”. Talvez se

enganasse. O seu teatro continuará sempre em cena. Como

revela Rodrigo Francisco ao JL, todos os anos será reposta

uma das suas encenações no Teatro de Almada. Em 2014, em

príncipio voltará à cena O Presidente, de Thomas Bernhard.

“Algumas peças que marcaram a carreira do Joaquim fazem

parte do património teatral português e vamos repô-las como

tal como o Teatro Piccolo de Milão faz com as de Strehler.

Essa vai ser uma das linhas da futura programação do TMA”,

asserva. “Isso permitirá também rever algumas das melhores

interpretações de Teresa Gafeira, uma grande atriz, que foi

a sua companheira de uma vida”.

A sua “escrita teatral” e a sua energia criadora não vão

sair de cena. E é assim mesmo que Yvette Centeno o deseja

ver celebrado: “Pela sua vida, pela sua obra e pela sua

paixão do teatro, verdadeiramente um herói ajudado a subir

ao Olimpo que merece” (ver poema junto).

ESCRITA POR ESCRITAFoi a 24 de abril de 1971 que JB se estreou como encenador,

no Campolide Atlético Clube, com O avançado centro morreu

ao amanhecer, do argentino Agustin Cuzzani. Do Grupo de

Campolide, que fundou, faziam parte “gloriosos malucos”

como José Martins, José Saraiva, Carlos Gonçalves, os

irmãos Carlos Francisco e Pedro Artur, Nuno Amorim, Teresa

Dias Coelho, que era a protagonista feminina dessa peça,

Manuel Coelho, Teresa Gafeira ou Manuel João Gomes. Ao

correr dos anos, encenaria cerca de uma centena de peças,

de dramaturgos como Shakespeare, Brecht, Molière, Marivaux,

Goldoni ou Beckett. Mas também de autores portugueses,

tendo sido o primeiro a encernar um texto teatral de José

Saramago. Também encenou ópera, nomeadamente a recente A

Rainha Louca, de Alexandre Delgado.

A sua inclinação teatral manifestou-se, no entento, ainda

nos verdes anos. Fez clubes de teatro e experimentou ser

ator amador. Mas como confessava, faltava-lhe a técnica e a

disciplina. Também fez critica teatral. E um dia pensou que

tinha que “sujar as mãos” e passar da escrita sobre teatro

à escrita do teatro. Olho por olho, escrita por escrita.

Escrever sempre foi aliás o seu empenho. Ero jovem e queria

ser escritor. Fazia poemas e chegou a publica-los. A relação

com a literatura vinha-lhe de um tio, Aleixo Macedo, um

humanista, republicano, que fora seminarista e cultivava a

leitura. Com ele, Jb cresceu, depois da morte dos seus pais,

quando andava pelos seis anos, a mãe de tuberculose com

38 anos, o pai de ataque cardíaco, com 64 anos.

Não foi, aliás, feliz a infância de JB e pouco gostava

de recordar esses tempos duros e dolorosos, em que andava

descalço pelos campos de Mem Martins, a pedir esmolas

e sopas de leite com os irmãos. O pai caiu em desgraça

e a custo conseguia sustentar os filhos. Foram os contes

de reis que rendeu um espetáculo de homenagem, que João

Villlaret lhe promoveu no Coliseu, que valeram a JB as

primeiras botas. Não admira que desse tempo gostasse apenas

de recordar as mimosas pelos caminhos palmilhados. E a

obstinada decisão de usar o nome da mãe, como “povocação e

irreverência”.

Estudou no Liceu Passos Manuel e a família paterna

predestinou-o à contabilidade. Mas as suas contas foram

outras. Aos 17 anos, começou a trabalhar na Enciclopédia

Luso-Brasileira, então dirigida por António Sérgio. Afonso

Cautela levou-o depois para o República, onde começou a sua

carreira de jornalista, que tivera os primeiros arroubos

no Notícias de Amadora. Passaria a seguir pelo Diário de

Lisboa, por O Século e já no final dos anos 80, depois de

um longo interregno, por O diário. Mal tinha chegado ao

República, quando um dia o chefe de redação, Artur Inês,

descobrindo o seu apelido paterno, o desafiou a puxar dos

pergaminhos e começou a fazer crítica. JB aceitou, mas não

começou bem. E advertiu que naquele jornal não se dizia mal

da Sr.ª D.

JB encontrava, de resto, parecenças entre o jornalismo e o

teatro, o primeiro pela mise en page, o segundo pela mise en

scéne. “Depois têm em comum o caráter efémero: o jornalismo

refaz-se todos os dias e o teatro também”, dizia ao DN. E

juntava por outro lado: “O teatro é ação. Quase todos os

grandes dramaturgos geriram teatros, como Brecht, Moliére.

Não há esse artista que está desligado da sociedade. O

teatro é a forma de escrever que está relacionada com a

acção”. E quando lhe perguntaram por que não escrever via

teatro, respondeu: “Não tenho tempo de vida para fazer todas

as peças de que gosto. Por outro lado, sei que posso dizer

coisas através da voz dos outros. Porque é que havia de

colocar uma voz que é inevitavelmente mais medíocre ao pé

destes homens? Ser escritor não é mais importante que ser

encenador, ou ser jornalista. O importante é ser feliz”.

LEGADO TEATRALDepois do 25 de Novembro, JB, que era chefe de redação

de O Século, teve um processo. Percebeu que era a altura

de deixar o Jornalismo e profissionalizou o no Teatro da

Trindade durante um ano. Levou então á cena uma peça de

Virgílio Martinho, 1383, adaptação da Crónica de Fernão

Lopes, e uma outra do dramaturgo brasileiro Dias Gomes.

Vergílio Martinho, João Vieira, Carlos Paredes ou Mário

Rio de Carvalho, de quem JB falava sempre com uma enorme

reverência em termos culturais, foram compagnons de route

do grupo que depois se mudou para a outra margem, fixando-

se em Almada, primeiro na Incrível Almadense, depois

num pequeno armazém abastecedor transformado em Teatro

Municipal, que foi a casa da companhia que passou a chamar-

se de Almada (CTA), durante muitos anos.

Só em 2006 se inaugurou o Teatro Azul, aquele por que

batalhou anos a fio, ate que Manuel Maria Carrilho, então

ministro da Cultura, o tomou como uma prioridade, percebendo

a importância do “movimento teatral” criado em Alamada. E

uma cidade com aquela, conforme afirmou o encenador francês,

Bernard Sobel, um teatro com aquela dimensão é um verdadeiro

ato poético. Um projecto dos Arquitetos Manuel Graça Dias,

Egas José Vieira e Gonçalo Afonso Dias, que alias já tinham

colaborado com a CTA a nível cenográfico.

“È a realização de um sonho. Mas sou uma pessoa que não

olha muito para o passado e diria que não é um ponto de

chagada, mas sim um novo ponto de partida”, declarou JB

na altura. Manuel Graça Dias recorda como foi gratificante

trabalhar no projecto do Teatro Azul, com o programado

fornecido pela companhia e acompanhado muito de perto por

JB. “Ele valorizava muito a surpresa. Tinha uma exigência

muito interessante para nós, arquitecto, porque achava que a

sala principal deveria de ter uma imagem, um carácter forte.

Não lhe interessava a ideia de um espaço neutro para que

os encenadores o pudessem povoar. Pelo contrario, dizia, os

encenadores são capazes de trabalharem em sala do século

XIX, porque não hão de trabalhar numa sala contemporânea,

cuidada. Nesse sentido, encorajou muito que a sala principal

tivesse uma personalidade, embora existisse uma sala

principal de maior anonimato. Isso foi muito estimulante

e surpreendente”, sublinha. “De resto, tivemos uma relação

sempre criativa e entusiasmante, em que o Joaquim foi muito

provocador. Aderiu ao que fomos propondo e inventando. E

continuou a consultar-nos ao longo do tempo. Acho que era

assim também no seu teatro. Sempre com uma relação criativa,

entusiasmada e divertida”.

Mas JB criou outros espaços teatrais, alguns provisórios,

outros ao ar livre, onde foram decorrendo muito dos

espectáculos da Festa e depois do Festival de Teatro de

Almada (FTA), criado há 30 anos (ver caixa). Se mais

não tivesse feito, como saliente Rogério de Carvalho, o

festival, o maior do país e um dos mais importantes da

Europa, bastaria para que “Joaquim Benedite ficasse na

História do Teatro em Portugal, nas últimas décadas. O FTA,

tal como o seu magnifico Teatro Azul, são “mareas” indeléveis

do seu legado.

A sua vida foi inequivocamente um palco. Conta-se que,

quando acumulava o teatro e o jornalismo, ele costumava

deixar sempre um casaco na sua cadeira, enquanto dava uma

saltada a Campolide. Se perguntavam “Onde está o Benedite?”,

logo alguém respondia: “Deve estar por aí, está ali o casaco

dele”. Se alguém agora perguntasse, a resposta talvez fosse:

“Deve estar por aqui, está ai o seu teatro”.

Destaque 8

Page 9: jornal de letras

Um

fes

tiva

l pa

ra o

fut

uroUm “milagre”, dizia

JB ao JL em 2008, a propósito do Festival de Teatro de Almada (FTA), que então celebrava 25 anos. O prodígio era de sobrevivência sempre com orçamentos reduzidos de um festival, que começou numas “tábuas” improvisadas na Rua dos Tanoeiros, expandiu-se para muitos palcos nas duas margens do rio e conquistou um público fiel, quen enche salas e ruas. Os orçamentos são cada vez mais minguados, mas o público continua na casa dos 20 mil espectadores. Ano após ano, confessava na altura JB, interrogava-se como era possível que o FTA resistisse e continuasse sempre. Mas todos sabem a resposta: só foi pssível criar um festival com a sua dimensão, apesar das limitações do país, porque um “trabalhador do teatro”, conforme gostava de se apresentar, como Benite o sonhou e levou para a frente, com a sua

equipa.A programação da edição de 2013, em que se assinala o 30º aniversário do FTA, já está preparada. Como sempre, cruzar-se-ão espetáculos de grandes criadores internacionais e estreias portuguesas, nomes consagrados e jovens revelações. Essa foi desde o primeiro momento a aposta de JB. Ganha. “Procuramos procuramos que todos os espetáculos apresentados tenham um nível de qualidade estética fora do comum, não só em relação aos estrangeiros como aos portugueses”, dizia ao JL em 2007. E essa é uma herança para o futuro, como assevera Rodrigo Francisco, que vai assumir também a direção do FTA. “Vamos respeitar, assim sejamos capazes de o fazer, ou seja, a seriedade, o rigor e a inspiração artística. E ressalva: “Claro que JB é insubstituível. E não se pode substituir pessoas que são insubstituíveis”.Quanto a financiamentos, o FTA já tem garantidos para 2013 os de alguns organismos europeus, apoiantes habituais, outros conseguidos o ano passado. Mas em relação aos apoios da Secretaria de Estado da Cultura, tudo em aberto. Como acontece de quatro em quatro anos, vai candidatar-se ao subsídio da Direção Geral das Artes. O projeto será apresentado até 21. “Vai ser por certo um ano de crise, já a edição do ano passado o foi, mas mesmo assim, temos asseguradas grandes produções de importantes companhias europeias, como o Joaquim tinha vindo a fazer”, sustenta. ”E aguardaremos qual será o subsídio atribuído. A diretora das Artes terá anunciado que havia um teto máximo de 400 mil euros. Nesse caso teria-mos então um corte de pelo menos 25 mil. É duro, mas julgo que vamos conseguir colmatá-lo a nível dos financiadores europeus”.

Chora o Olimpoo valoroso herói:caiu junto aos portões da cidade de Atenas.

Coronte não o deseja:não aceita as moedas,a sua luz mais forteofuscaria a trevada memória...

Diónisos vem buscá-locom as suas bacantes:ele sobe triunfantecom o Rei do cortejo...

Vénus abre-lhe o colode abraços generososE Hermes cede-lhe as asaspara poder voar...

Zeus entrega a coroa de fogoreservada aos heróis:o Olimpo é o Reinode memória perpétuaonde não há Carontesreceosos... JL YVETTE K. CENTENO

A Joaquim Benedite no seuOlimpo (in memoriam)

A escolha das peças que Joaquim

Benite levava a cena sempre

foi inspirada pelos sinais do

tempo. Nada de acasos. “Os seus

espectáculos eram feitos no

tempo certo e com uma leitura

própria”, salienta Rogério de

Carvalho. E Luís Vicente não

deixa de sublinhar: “A escolha

de um texto para o Joaquim

não era um ato leviano, nem se

prendia com o facto de poder dar

um bom espectáculo. Ele pagava

um texto para reflectir sobre a

contemporaneidade e era em torno

desses problemas que sentimos

dia-a-dia que montava as suas

dramaturgias”.

JB implicava-se social

e politicamente em cada

espectáculo, em cada ato, em

cada gesto do seu teatro e da

sua vida. Há muito que pensava

encenar Timão de Atenas, de

William Shakespear, uma peça

nunca antes representada no nosso

país. E este afigurou-se o tempo

certo para o fazer. A estreia

absoluta é dia 20, no Teatro

Municipal de Almada, como tinha

programado.

Foi há três anos que desafiou

Yvette Centeno a traduzir

Timão de Atenas. Era antiga a

cumplicidade teatral que os

ligava. Vinha ainda dos tempos

iniciais do Gropo de Campolide.

“Não houve nada que eu não

tivesse traduzido, nomeadamente

Otelo”, garante a poetisa. Disse

pois a JB que a tradução iria

levar o seu tempo, era “sem

prazo” porque só o poderia fazer

à noite. Levou justamente um ano.

Pesou também a complexidade do

texto, em parte em verso. “Fiz

várias revisões até me parecer

que soava bem na boca dos atores,

porque fiz verso livre, procurando

o ritmo, a verdadeira pulsão do

texto. Deu-me bastante trabalho.

Quando lhe entreguei disse-lhe

que era um prendinha, porque

nunca poderia pagar o esforço dos

meus olhos, quase todos os dias

Shakespeare em estreia absoluta

até ás quatro da manhã. Ele riu-

se muito.”

Depois de um prolongado

afastamento dos palcos, por

doença, JB tomou essa tradução e

começou a trabalhar na encenação,

que marcaria o seu regresso.

Ainda começou os ensaios,

arquitectou o “edifício” do

espectáculo, fez as marcações

dos atores.Como garante Rodrigo

Francisco: “Nos últimos tempos,

foi muito angustiante, porque ele

começou a sentir que talvez não

viesse até á estreia e chegou a

dar-me exemplos de fontes onde

eu deveria ir beber, quando ele

já cá não estivesse. Apontou-

me caminhos para o futuro para

manter o seu projecto”. Foi isso

mesmo que transmitiu aos atores,

quando tomou em mãos a encenação.

Timão de Atenas, como adianta

Yvette Centeno ao JL, “tem uma

dimensão social muito atual”.

Temos diante de nós a diferença

entre o momento do sucesso

e a tragédia da queda. È uma

atualidade trágica, a desgraça do

herói, que é como quem diz a de

um país em sofrimento, num mundo

em crise. E tem tudo a ver com a

consciência e a crise de valores

que estamos a viver”.

Literariamente, o mais

interessante para a profª

e tradutora é o “modo como

Shkespeare trata a loucura de

Timão, comparável á de Rei Lear”

E se “Lear enlouquece por culpa

própria, porque se enganou em

relação ao amor das filhas, Timão

enganou-se sobre a fidelidade de

quem é subserviente”.

Desde o primeiro momento em que

pensou fazer a peça, JB convidou

Luís Vicente para ser Timão. E

ao correr do tempo, diz o ator,

foi desenvolvendo “complicidades”

com o olhar de Shkespeare sobre

o tema central: o dinheiro. “ È

a questão do valor do dinheiro,

a importância que se dá ao

ouro que está em causa. Porque

razão o dinheiro é tão decisivo

na relação entre as pessoas?

Joaquim refletia muito sobre

isso e propunha-nos que também o

fizéssemos. Ele fez uma pesquisa

exaustiva e fomos confrontados

com o pensamento de vários

filósofos, nomeadamente com Marx,

porque ele era um marxista”.

Timão é a terceira personagem

Shakeperiana que Luís Vicente

protagoniza numa encenação

de Benite. Todas elas foram

uma “aprendizagem muito

gratificante”. Timão implica

algumas dificuldades, como

ressalva, pela própria natureza

do texto e por apresentar algumas

irregularidades do ponto de vista

psicológico da personagem. “A

propósito de Otelo, o Joaquim

falou de Shakespeare. È uma

expressão feliz julgo que se

aplica a Timão”, afirma. È um

espetáculo que JB orientou para

uma “reflexão sobre os tempos que

correm”, segundo o ator, mas

feito com uma “grande depuração”.

“ Tanto cenográfica, como ao nível

dos figurinos e dos comportamentos

ou da gestualidade, como em

nenhum outro”, adianta.

A depuração foi, de resto,

o caminho que seguiu na sua

arte de encenar como reconhece

Rodrigo Francisco. Curioso é

que, observa, “dispondo de um

dos maiores palcos do pais, um

teatro com condições uniccas, que

lhe permitia utilizar recursos

técnicos raros, JB tenha assim

mesmo enveredo pela simplicidade,

por “cenografias mais depuradas,

pequenos apontamentos cénicos

carregados de sentido, procurando

cada vez mais o texto”.

Timão de Atenas conta com

cenografia de Jean-Guy Lecat,

figurinos de Sónia Benite e

interpretação de Paulo Matos,

Teresa Gafeira, Ivo Alexandre,

Marques D’Arede, Alberto Quaresma

e André Gomes, entre outros. Em

Janeiro, a nove retumará a sua

carreira no Teatro de Almada, até

3 de Fevereiro. JL

JL | jornaldeletras.sapo.pt | 12 a 25 de dezembro de 2012 9

Page 10: jornal de letras

Espera um pouco

Esmagava-me quando eu me deborcava por sob a minha vaidade: confortava-me quando me escondia dos meus fracassos.Não sei se somos aquilo em que nos tornamos ou se nos tornamos naquilo que somos, nunca o percebi.Mas o Joaquim era aquilo que eu queria ser: a tenacidade feita corpo, a convicção feita verbo. Acreditava inabalavelmente na bondade intrínseca do ser humano: em quase três décadas não me lembro que alguma vez tenha despedido alguém só porque na alma, assumia que os fracassos dos que com ele colaboravam eram, antes demais, os seus.Nunca se cansava de ensinar, os atores, os assistentes, os técnicos, a senhora do bar, as senhoras da limpeza,

os vagabundos, o tipo que encontrava na rua por acaso, os ardinas, os varredores, e a mim também.Era profundamente socrático na sua pedagogia. Às vezes a minutos da estreia – era capaz de como se o tempo também parasse para o escutar divagar em rodopiantes e alarmantes considerações sobre assuntos que – para os encantos que se fazem surdos ao conhecimento – pareciam pura perda de tempo.Conversava, conversava, e voltava a conversar e, quando parecia que nada tinha acontecido a cena resolvia-se o dinheiro aparecia as estratégias de defesas estavam montadas. “È isto a morte” dizia-me então “È assim mesmo, não deve ser difícil. È quando já não

posso prenunciar nem mais uma palavra, fazer um só gesto, jogar num jogo quando o meu corpo exige estender-se e os meus olhos se fecham que, só então, quero repousar.Não gosto que um dia passe sem que me encontre exausto.”O Luís Vicente e eu, por razoes diferentes, e momentos distintos, um dia separamo-nos – só fisicamente – dele, mas, ainda hoje, quando em privado a ele nos referimos, é assim que o tratámos: - “o nosso Mestre”.Mas... Já basta de verborreicos panegíricos! Joaquim é simples: não podes desaparecer assim.Não vale a pena lembrar-te a obra, nem auspiciar-lhe este ou aquele futuro, não tenho forças para palavras de conveniência.Joaquim, agora a Teresa já não

te pode valer, nem eu, nem o Rodrigo. E como lamentámos.Ligo o teu numero e nada.Porque não atendes? Senão respondes que faço agora?Desde que parti que procura perceber porquê. È sempre em ti que penso em cada êxito ou derrota que enfrentei depois.Haverá Verdi no teu enterro amanhã?sempre que me pedias. “No meu funeral tens que por esta música...”com voz rouca eu ria-me e afugentava a realidade que esta madruga me revelou.Cria a cena, barafusta o que for necessário e não saias daí.Nós, os que te amamos estamos a caminho. JL

Vitor Gonçalves

Ainda não me conhecia quando o conheci. Tinha 17 anos e não sabia que iria fazer, deste homem, a razão da minha busca.A sua paixão contagiou-me e tornou-se tão minha que já as não sabia separar.Em noctívagos solilóquios instruiu-me e ensinou-me a ver. O que lhe devo? Tudo.Que falta me faz? Toda.O que mais me assalta a memoria? A sua pertinácia. “A única razão porque uns fazem teatro e outros não é porque, os que o fazem, nunca desistirão de o fazer. A que espécie pertences tu?” Durante 27 anos zanguei-me com a sua teimosia todas as noites, só para descobrir, manha rompida, que era ele que tinha razão.

Filomena Oliveira e Miguel Real

Joaquem Benite foi não só um dos

grandes encenadores portugueses e

europeus e um dos mais empenhados

e mais lúcidos “ trabalhadores do

teatro” ( como se auto-classificava)

da segunda metade do século XX,

como a sua visão no teatro se

integrava num explicito projecto

cultural para Portugal, alimentado

por quatro veios nervosos, que,

cruzados e unificados na criação

da Companhia de Teatro de Almada

(CTA) e do Festival de Teatro de

Almada, lhe desenharam uma vida

de luta, de resistência e de

esperança, ora extinta fisicamente

mas espiritoalmente.

Em primeiro lugar, uma conceção

cosmopolita e internacionalista

da arte da representação, recusando

nacionalismos ideológicos ou

sectarismos políticos, fazendo a

Companhia participar nos grandes

movimentos teatrais europeus,

tanto na criação de espetáculos

quanto na receção deste fossem

europeus, mediterrânicos, africanos

ou da América Latina. Não só por

Joaquim Benite mas sobretudo

também por ele, passou grande

parte da internacionalização

do teatro português a partir da

década de 1980. A estratégia

de internacionalização da CTA,

concretiza poderosamente na

criação e realização anual do

Festival de Teatro de Almada,

foi absolutamente singular no

espaço cultural português e devia

merecer um detalhadíssimo estudo

de caso, próprio de uma tese de

doutoramento. Não se tratou de

ir ao estrangeiro de apresentar

espetáculos ou de receber estes

em Portugal. Diferentemente, cada

peça recebida constituía objeto

de estudo de modo a preencher

uma lacuna ou uma atualização

no processo formativo português

ligado à arte do teatro. Em segundo

lugar, um apurado conhecimento

estético do teatro. Portugueses

possuíram porventura o conhecimento

pormenorizado a historia do teatro

que Joaquim Benite possuía,

a correntes dramatúrgicas,

os fundamentos filosóficos das

diferentes opções de encenação,

as matrizes da caracterização de

personagens, o leque de opções

na construção de diálogos, as

harmonias entre luz, música e

palavra. Verdadeiramente, de peças

clássicas encenadas realisticamente

a peças modernistas encenados

vanguardistamente, nenhum grande

texto de teatro, reflexo de uma

vibrante corrente cultural, esteve

ausente dos palcos dirigidos por

Joaquim Benite; nenhum grande

autor teatral europeu da Grécia

clássica ao pós – modernismo

francês e inglês, esteve ausente do

reportaria da CTA.

Em terceiro lugar, a sua aposta

na descentralização cultural.

Não foi a única, como evidenciam

o CENDREV, em Évora o teatro da

Serra do Montemuro ou o Bando,

em Palmela, entre outros. Mas

é indubitavelmente – a de maior

projeção nacional e internacional,

tendo ajudado vigorosamente a

colocar no mapa cultural português

e europeu uma cidade sem historia

dos subúrbios lisboetas como

Almada. Vasta pensarmos na Amadora,

no Cacem, em Loures, Oeiras ou

em Setúbal para de imediato

percebermos, culturalmente falando,

Benite e os seu companheiros

injetaram um pujante acrescento

cultural, tornando-se, de certo

modo, o rosto cultural da cidade

para efeitos exterior. Justifica-se,

assim, que o município retribuísse

o prestigio acrescido que a

Companhia trouxera para a cidade

atribuindo-lhe a direção do “Teatro

Azul”, atualmente um dos melhores

teatros europeus e uma bela peça de

Um mestre de gerações

“Nenhum grande texto de teatro, reflexo de um vibrante corrente cultural, esteve ausente dos palcos dirigidos por Joaquim Benite”arte arquitetónica.

Finalmente, em quarto lugar, a

busca e a conquista de uma ampla

base popular para a sua companhia e

para o seu Festival. Quem frequenta

as suas instalações (as antigas e

as atuais) sabe que nas cadeiras de

Almada se misturam o intelectual

mais bairoaltino com o trabalhador

mais tradicional, irmanados

no objetivo de aliar o prazer

estético com o empenhamento cívico

do cidadão. Uns privilegiarão

mais esta última vertente, outras

aquela, mas todos encontravam no

repertório da CTA e do Festival

motivo suficiente tanto para o

prazer dos sentidos quanto para a

reflexão interventiva.

Esta foi a base do segredo de

Joaquim Benite – a não separação

entre a representação ( o teatro)

e a vida real, social, politica,

económica ou, noutras palavras

na aliança inextrincável entre o

deleite estético e empenhamento

cultural. Transformar uma peça num

motivo cultural significa vincular

o teatro ás suas raízes sociais

mais fundas, integrando-o, como

lição para o presente histórico, no

movimento social de que se originou

e foi expressão.

Caro Joaquim, Não nos víamos á um

ano. Não voltaremos a encontrar-

nos. Lamentamos. Nós é que perdemos

a lição de um Mestre, habitualmente

enquanto jantávamos ou no convívio

a seguir ás estreias. JL

Destaque 10

Page 11: jornal de letras

Tinha no desenho a sua linguagem e na curva a sia assinatura, espalhada por centenas de obras únicas e inconfundíveis, em numerosos países. Construiu Brasília e morreu a 5 de Dezembro, no rio de Janeiro, a dez dias de cumprir 105 anos. Além de um genial arquiteto, que recebeu os mais importantes prémios, incluindo o Pritzker, em 1988, desapareceu um homem generoso e empenhado na luta contra as injustiças. O JL, que lhe dedicou nemerosas matérias (ler comentário de JCV na p.3), recorda-o aqui através das suas próprias palavras e das de outros artistas e arquitetos, algumas delas publicadas nestas colunas

Óscar Niemeyer ( 1907- 2012)O arquiteto prodigioso

“Meu nome deveria ser Óscar ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares. Ribeiro e Soares, de Portugal; Almeida, árabe, e Niemeyer, alemão. Sem contar algum sangue negro ou índio que, como se sabe, faz parte de toda a família brasileira. Uma mistura de raças que me faz bem integrado na mestiçagem de meu povo”.

MINHA ARQUITETURA NÃO ACEITA COMPROMISSOS, visa a beleza e a intervenção, sem cair em pequenos detalhes, atuando, isso sim, nas próprias estruturas, nas quais se insere e se exibe desde o primeiro traço

MINHA ARQUTETURA PREFERIDA: bela, leve, variada, criativa, criando surpresa.

TUDO COMEÇOU quando iniciei os estudos da Pampulha desprezando deliberadamente o ângulo reto tão louvado e a arquitetura racionalista feita de régua e esquadro, para penetrar corajosamente nesse mundo de curvas e retas que o concreto oferece.

A MONUMENTALIDADE nunca me atemorizou quando um tema mais forte a justificava. Afinal, o que ficou da arquitetura foram as obras monumentais, as que marcam o tempo e a evolução da técnica. As que , justas ou não sob o ponto de visita social, ainda nos comovem. É a beleza a se impor na sensibilidade do homem.

SEMPRE QUE VIAJO, olhar para as nuvens é a minha distração perdileta, curioso, procurando decifrálas como se estivesse em busca de uma boa e esperada mensagem.

COMO TODOS OS ARQUITETOS

da minha geração tive grande influência da obra de Le Corbusier, que pela nossa arquitetura, por sua vez, se entusiasmou. Encontrar os amigos, esquecer um pouco nossas angústias, rir, mesmo sem muita razão para isso, é velho um velho hábito que, como quem rega uma flor todos os dias, venho cultivando há muitos anos.PREFIRO A LINGUAGEM SIMPLES, do quotidiano. “A literatura engrandece quando se aproxima da linguagem oral”, disse Morávia numa das suas entrevistas. Mas se os livros de conteúdo social me entusiasmavam, outros, que nada disso oferecem, também me atraíam. Era a pureza literária a dispensar outros predicados, embora, juntos, pudessem, sem dúvida, enriquecer ainda mais. Como a beleza se impõe!

NUNCA ACREDITEI NA VIDA ETERNA. Sempre vi a pessoa humana frágil e desprotegida nesse caminho inevitável para a morte. O importante é dizer não aos que insistem em nos oprimir, incendiar o mundo, ricos e medíocres de mais para compreendê-lo.

UM DIA A VIDA SERÁ MELHOR, com certeza, sem as preocupações de luxo e poder que tanto a desmerecem. Modestos e realistas, os homens aceitarão afinal serem filhos deste velho planeta, como as florestas e rios os bichos da terra e os peixes do mar”

O HOMEM SEGUE O SEU DESTINO, satisfeito, quando suas convicções e esperanças com ele coincidem. Até hoje só fiz esculturas de protesto.

SEMPRE DEFENDI a importância que tem para qualquer arquiteto ou artista plástico uma boa experiência no desenho figurativo.Mesmo se na sua profissão não tiverem interesse ou necessidade de desenhar uma figura humana, naquela prática

lhe dará a habilidade manual do desenho à mão livre.NUNCA OLHO PARA TRÁS nunca me critiquei pelas faltas cometidas. Sou filho da natureza, um pequeno e humilde ser nela inserido para ela transfiro – em parte, pelo menos – minha qualidades e defeitos. Foi assim que ela me fez.

SÁBADOS E DOMINGOS SÃO OS DIAS QUE MAIS TRABALHno meu escritório da Avenida Atlântica. Sozinho, a folhear, alguns livros, escrever um texto qualquer, desenhar, pensar na vida ou simplesmente olhar o belo mar de Copacabana. Dizem que Descartes ficava na cama até as 11 horas da manha

a sonhar sias teorias, e isso é o que procuro fazer, nesses dias em que a maioria vai para a pria ou resolve assistir ao futebol.SOU PESSOA SIMPLES, aberta para a vida, apta a aceitar todas as mudanças que os tempos estabelecem. E, por isso mesmo, compreendo a evolução da família, o triste e inevitável

JL | jornaldeletras.sapo.pt | 12 a 25 de dezembro de 2012 11

Page 12: jornal de letras

afastamento entre pais e filhos, a liberdade que a juventude exige para assumir seus próprios destinos. Mas lembro com saudade e reservas, é claro, os nossos velhos tempos.

DUAS COISAS GUARDO COM SATISFAÇÃO. Uma é esse desinteresse pelo dinheiro, que mantive por toda a vida; a outra, minha vontade de ajudar as pessoas, ser-lhes útil, dividir. 12 DESTAQUE / Óscar Niemeyer

NINGUEM IMAGINA quantas vezes trabalho graciosamente, como fico longos períodos colaborando sem nada receber; como divido com meus amigos os projetos que elaboro, convidando-os para participar comigo.

BRASIL... Muitas vezes me senti jacobino ao defender meu pais no exterior. Ao recusar as criticas, não raro justas, feitas muitas vezes num tom amigo e conselheiro. Mas, não sei porquê nunca as tolerei. Lembro-me um dia, em paris, da minha resolta quando alguém começou a criticar o Brasil, as despesas imensas que eram feitas,

as obras gigantescas que surgiram, quando a situação, diziam, exigia politica mais económica e realista. E não me contive, ponderando que tudo isso era natural – uma espécie de moléstia infantil, inevitável nos países em vias de desenvolvimento. E explicava que o Brasil era um

continente. Um país jovem, que tudo justifica. Uma força da natureza.TODOS TEMOS DENTRO DE NÓS UM SER OCULTO, que nos leva para um lado ou para outro. E o meu gosta dessas coisas, de mulher, de se divertir, de chorar, de se preocupa com a vida, é um sujeito complicado.

ACHO QUE TUDO VAI DESAPARECER. O tempo cósmico é curto. Já me perguntaram : não lhe dá prazer saber que mais tarde vamos passear ver o seu trabalho? Mais tarde a gente desapareceu também. É a evolução da natureza. Tudo nasce, acaba, o tempo que isso vai perdurar é relativo.

PÚBLICO, eu tento fazer bonito, diferente, que crie surpresa, porque sei que os mais pobres vão poder usufruir de nada, mas podem parar de ter um momento de prazer.

POR ENQUANTO SÓ USAM ARQUITETURA quem tem dinheiro. Os outros estão fodidos vivem nas favelas.NO MEU TRABALHO SEMPRE CONVOQUEI OS ARTISTAS, os pintores, mesmo no primeiro trabalho, na Pampulha. A aquitetura não pode ser vista como uma coisa isolada. Quando um arquiteto está a desenhar uma parede, está a imaginar se ela vai ter uma pintura, uma escultura, uma parede de pedra. O artista não vêm depois colocar o quadro onde quer.

QUANDO FOI PARA BRASÍLIA LEVEI 15 ARQUTETOS, mas também um médico, em

engenheiro, dois jornalistas, cinco amigos meus que estavam na merda e precisavam de trabalho. Eu queria que a conversa em Brasília fosse mais variadae não só de arquitetura.

A VIDA É ASSIM: TEMOS DE SEPARAR AS COISAS. É chorar chorar e rir a vida inteira. Aproveitar os momentos de tranquilidade e brincar um pouco. E os outros é aguentar. A vida é um sopro.

O MEU ESCRITÓRIO FOI SEMPRE DE MUITA BOMÉMIA, mas que não prejudicavam o trabalho. A gente era jovem. Às vezes fechávamos o escritório e fazíamos uma semana de arte e brincávamos um pouco.

AH, BRASÍLIA, COMO LUTÁMOS PARA TE REALIZAR! Como me espanto lembrado que foste em quatro anos apenas, respeitando as nuances do plano - piloto do Lúcio Costa, com tuas ruas, praças, prédios de apartamentos e palácios! Mas quantas alegrias e angústias tu nos deste!

A ARQUITECTURA? VALE REPETIR. O importante é a vida, os amigos, este mundo injusto que devíamos

No seu atelier, no grande ecrã de cores florescente, onde nos últimos anos trabalhava por causa dos problemas de visão, Óscar Niemeyer ainda reviu, a poucas semanas da sua morte, o projeto que concebeu para o Museu da Arte Contemporânea de Ponta Delgada, adianta ao JL Amândio Silva, ex-secretário – geral da Fundação Luso Brasileira. A contrastar com as cores fortes do ecrã, o risco do arquiteto que reinventou, com a sua arquitetura, a alma moderna brasileira. Três salas de exposições espalhada por um edifício com duas cúpulas. A uni-la uma via deponal onde poderá também ser criado um auditório. Este é um dos tês projetos que Óscar Niemeyer fez para Portugal mas que ainda não foram concretizados. A inauguração da obra chegou a estar prevista para este ano, antes das eleições legislativas, mas não passou de boa vontade politica. A primeira pedra nunca foi colocada, nem há certezas enquanto só financiamento, sobretudo neste período de grandes constrangimentos orçamentais. E esse parece ser o destino das obras do arquiteto brasileiro para Portugal. “Um facto que lamento profundamente”, afinal ao JL Amândia Silva, lembrando o adiamento da construção da sede da Fundação Luso Brasileira, na Quinta dos Alfinetes. “Foi um projeto que Niemeyer ofereceu a Lisboa e que sempre esperou que viesse um dia a ser construído”, acrescenta. As obras chegaram

OS PROJECTOS PARAPORTUGALE EM CURSOa começar, construíram-se as fundações e o primeiro andar, nos terrenos cedidos pela câmara, mas o projeto acabou por ser suspenso. Várias entidades que se comprometerem com o financiamento acabaram por recuar. Sem meios para concluir obra, a Fundação Luso Brasileira devolveu o terreno a câmara Municipal de Lisboa e liquidou as dívidas junto dos fornecedores. A hipótese de voltar a avançar com a obra, que chegou a ser equacionada como sede da Comunidade de Países de Língua Oficial portuguesa, poderá estar a cima da mesa. Amândio Silva chegou a reunir-se com o anterior Governo, mas a actual conjuntura não favorece a obra. O mesmo aplica-se ao empreendimento turístico encomendado por Fernanda Pires da Silva, do grupo grão Para, para o Algarve.O cenário é muito deferente em outros países. Até aos últimos dias, incluindo os que passou no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro, Óscar Niermeyer foi sendo informado da andamento

dos trabalhos do seu atelier. No Brasil, estão em curso três, o Memorial Encontro das Águas, em Manaus, e a Igreja Adventista do Sétimo Dia, em Belém do Pará, e a Universidade da Iguaçu, no Paraná. Em África, tem a Biblioteca de Zeralda, na periferia da capital da Argélia, e em França, o edifício de boas vindas do Chateau Lacoste, em Aix-en-Provence. JL

Destaque 12

Page 13: jornal de letras

Não é o ângulo reto que me atraiNem a linha reta, dura, inflexível,criada pelo homem.O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhasDo meu país,No curso sinuoso dos seus rios,Nas ondas do mar,No corpo da mulher perferida.De curvas é feito todo o universo, O universo curvo de Einstein.

Óscar Niemeyer

POEMA DA CURVA

mudar. O resto… Vivemos num regime capitalista, e seus governantes, por mais progressistas que sejam, nada de essencial nos oferecem. Representam essa sociedade de classes, de ricos e pobres, de sem-terra, de sem-tecto, que só a revolução pode modigicar.PARA SE SER UM BOM ARQUITECTO é preciso fazer o que se gosta e não ter medo de errar, não olhar para a crítica.

EU ACHO QUE OS PROJECTOS QUE FIZ NA EUROPA são os melhores, o acabamento foi melhor. Eu fiquei com aquela preocupação de mostrar o progresso do país não apenas no campo da arquitectura mas também no campo da engenharia. As obras são mais amplas, os vãos são maiores. Mas o projecto que eu mais gosto é esse que fiz para o Memorial da América Latina. Pela liberdade que o tema me dava. Vou-te contar uma coisa que você vai ficar espantado. Fiz o projecto em cinco minutos. Eu estava no hotel, fiz uma perspectiva, como quem estava vendo uma coisa que estava surgindo.

UMA VEZ ESCREVI UNS CONTOS, mas achei que estavam uma merda e joguei fora. Mas um dia vou escrever, sabe porquê? Porque eu gosto de escrever. Quando não tenho ninguém para esperar, eu escrevo, qualquer besteira. Gosto de ver uma prosa limpa, correcta.

ENORME PLASTICIDADE da linguagem arquitectónica, possível devido a uma perfeita simbiose formal entre um invólucro muito livre e imaginativo e o sistema estrutural que o suporta.

Retirado dos livros Meu Sósia e Eu, A Curva do Tempo, do documentário A Vida é Um soproe das edições do JL 714, de 25 de Fevereiro de 1998, e

970, de 5 de Dezembro de 2007

Um homem militante“Oscar Niemeyer teve uma vida muito bonita. Foi um dos maiores artistas do seu tempo e um homem maior que a sua arte.

CHICO BUARQUE

Trata-se de ser fiel a princípios. E não a tácticas, estratégias de ordem política ou conquista de poder. Não tem nada que ver com isso. Simplesmente trata-se de princípios e não se pode renunciar a eles. O Oscar Niemeyer não renunciou eu eu não o felicito por isso,nem lhe agradeço porque simplesmente é uma expressão da sua própria humanidade. Eu creio que é uma pessoa que está em paz consigo mesmo. E estar em paz consigo mesmo não é fácil. Porque vivemos num mundo de contradições, de tensões, no fundo vivemos num temporal e manter o rumo no meio desse temporal, com ventos que sopram de todos os lados, isso Oscar conseguiu.

JOSÉ SARAMAGO

Oscar é um homem militante, engajado na luta pela igualdade social, pela transformação da sociedade, mas enquanto arquitecto quando faz

os seus projectos o que ele quer dar às pessoas é beleza, alegria da forma bela, porque sabe da importância e maravilha da beleza. Ele diz que quer que as pessoas se espantem.

FERREIRA GULLAR

A arquitectura de Niemeyer respira naturalidade e intemporalidade , superando as noções estereotipadas de tradição e de modernidade. A construção faz a Natureza.

ÁLVARO SIZA VIEIRA

Personagem solitária do seu percurso de corredor de fundo, difícil de fazer escola pela constante imprevisibilidade dos gestos, sobrevive ao barulho da arquitectura contemporânea recente que deles, gestos, abusa até à náusea. Há gestos e gestos: uns ficam, a maioria «dissolve-se no ar» ou seja, no tempo.

NUNO PORTAS

Percebemos que homem extraordinário, que grande intuição tem para conseguir captar o essencial da sua arquitectura num desenho tão rápido.

MANUEL GRAÇA DIAS

A sua capacidade de antecipar a modernidade em

cada momento é o que mais me surpreende. Uma alma tão consistente merece um corpo de o acompanhe.

ALCINHO SOUTINHO

Num continente em parte desconstruído e em parte não construído pode conceber-se outra opção que não seja a de tentar construir? É este optimismo que Niemeyer se sente no direito de transmitir aos povos condenados a cem anos de solidão – de que terão, por fim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra, como obra maior a exibir uma dignidade arquitectural irrecusável, criativa, diferente, livre do passado distante.

ALEXANDRE ALVES COSTA

A arquitectura é uma arte pública e os «objectivos» desenhados por Oscat Niemeyer são exemplos paradigmáticos, com traço inconfundível, sempre com selo de origem. Felizmente continua a haver lugar para «objectos» exepcionais.

MANUEL SALGADO

Retirado do documentário A Vida é Um Sopro e das edições do JL 714, de 25 de Fevereiro de 1998, e 970, de 5 de Dezembro de 2007

Desenhos A raiz de qualquer arquitecto

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Page 14: jornal de letras

4 52

1

Ideias/opinião 33

O diálogo transatlânticoatravés de Carlos Fuentes

Carlos Fuentes era um homem de

encantador convívio e múltiplos

talentos – romancista, contista,

ensaísta, diplomata. Era, ademais,

um homem elegante, inclusive no

trajar – o que surpreendeu José

Saramago que afinal concluiu que

somar exigência crítica com gravata

bem escolhida não era coisa pequena

(JL, 30 de Maio de 2012). Tinha

o dom de gentes e sabia ser um

agregador. Exerceu superiormente

esta dimensão de agregador no

âmbito do Foro, dimensão relevante

para uma instituição como a nossa

que reúne, e esta é de várias

tribos – a dos empresários, a dos

políticos, a dos intelectuais,

a de personalidade dos meios de

comunicação.

Celso Lafer*

Carlos Fuentes Acreditava na América Ibérica porque via o Atlântico não como um abismo mas sim como uma ponte dos vários encontros dos quais resultamos

A capacidade de lidar com a

diversidade de várias tribos

do nosso Foro e exercer a

função de agregador teve a sua

correspondência na diversidade das

direções e escrituras que sempre

foram um signo de vitalidade da

obra de Carlos Fuentes (CF), como

apontou com discernimento Octávio

Paz em Solo a dos voces. Assim,

respondeu ao estímulo de promover

a diversidade inerente ao dialogo

transatlântico no âmbito do nosso

Foro da mesma maneira que na sua

obra respondeu aos múltiplos

estímulos do seu “eu” literário.

3O seu ponto de partida de criador

literário e grande narrador foi

instigado pelo desafio de entender

o México (os cinco sóis de um país

que não tem começo mas tem origem

– Os cinco soles de México, pp.

7-9) e lidar com os caminhos e

descaminhos da Revolução Mexicana

(por exemplo: La Muerte de Artemio

Cruz, Los años com Laura Diaz).

Entretanto, a sua ficção e a sua

ensaística não se circunscrevem

aos estímulos da criação dada pela

circunstância mexicana do seu

eu literário e intelectual. Para

voltar a Octavio Paz: “en CF, por

ejemplo, coexisten varias voces y

cada una de esas voces, cada uno de

esos dialectos, es igualmente sujo:

como determinar que es mexicano,Lo

mexicano es el choque a la

confluencia de todas esas voces…” Na

confluência destas múltiplas vozes,

tem um papel relevante a voz da

literatura em língua espanhola, mas

também a voz da língua portuguesa

da literatura brasileira. Por

essa razão, é um agudo e sensível

estudioso e dos grandes romances

latino-americanos e não posso,

como brasileiro, deixar de destacar

o arguto apreciador de Machado

Assis, Machado de La Mancha, que

considerava como o único romancista

americano do século XIX.

No âmbito de múltiplas direções do

percurso de CF vou cingir-me ao seu

papel no diálogo transatlântico.

Vou explorar o tema, tendo como

foco a sua dimensão de intelectual

público, que foi uma faceta

importante da sua personalidade

literária – como foi a de Octavio

Paz e é a Mario Vargas Llosa.

O tema intelectual público diz

respeito à relação entre os

intelectuais e o poder, ou seja,

aos nexos ente política e cultura

– para falar com Bobbio, autor do

grande livro II dubbio e la scelta

– Intellecttuali e potere nella

società contemporanea (1993).

Nas democracias modernas e

pluralistas o poder ideológico

– que é o que se exerce sobre

as mentes através da produção

e transmissão de ideias – é

fragmentado. É um poder exercido

pela palavra e pela sua difusão de

impacta os comportamentos.

A política contemporânea em

sociedades complexas requer este

tipo de poder que está ao alcance

dos intelectuais. Refiro-me tanto

àqueles intelectuais que têm o

domínio dos conhecimentos técnicos

necessários para equacionar a

relação meios-fins, como é o caso

dos economistas, dos juristas,

dos educadores, dos engenheiros,

dos especialistas em meios de

comunicação, quanto àqueles

intelectuais que propiciam, para

a sociedade e para o poder – em

exercício ou potencial – principais

gerais, valores, sentido de

direção.

Exerceu a tarefa intelectual de

agitar ideias, suscitar problemas

(Bobbio, p 127) no âmbito mais

amplo do espaço público. Um destes

espaços que ele ajudou a criar foi

o Foro. No âmbito do Foro, exerceu

esta tarefa de intelectual público,

como diria Bobbio, com espírito

laico, vale dizer que o espirito

critico que se opõe ao dogmático

(Bobbio, p.130) – o que significa

que este espirito laico pode ser

exercido a partir de distintas

posturas

O sentido de direção do diálogo

transatlântico que CF, com sucesso,

empenhou-se em imprimir ao Foro,

está intimamente ligado à sua

conceção de intelectual público.

Neste sentido, um livro modelar

desta sua conceção é o seu livro

En esto creo, de 2002, publicado no

Brasil em 2006 pela Rocco, com o

título Este é o meu credo. O título

em espanhol é mais revelador.

Permite evocar a distinção que

Ortega y Gasset elaborou entre

crenças e ideias.”Las ideas se

tienen, en las creencias se está”.

Aponta Ortega que crenças não são

ideias que temos, mas sim ideias

do que somos. As crenças em que

estamos nos sustentam e são o fundo

a partir do qual pensamos as ideias

que resultam da nossa actividade

intelectual. As ideias, complementa

Ortega, necessitam de crítica como

o pulmão de oxigénio e se afirmam

apoiando-se em outras ideias que,

radicadas em nossas crenças, nos

permitem enfrentar o mar de dúvidas

que nos envolvem (cf. Ortegay

Gasset, Ideas y Creencias, Madrid,

Alianza Edit., 1986, pp. 23-38).

En esto creo é um livro da

maturidade de CF. É uma decantação

do seu percurso intelectual

público. O livro é constituído

por pequenos verbetes que são a

elaborada expressão das ideias que

resultam das suas crenças. Estes

verbetes são entradas, também

na aceção histórico-geográfica

brasileira, ou seja, vias de acesso

– caminhos mas também fronteiras –

para o entendimento de problemas do

continente das nossas preocupações.

Está alfabeticamente organizado de

A a Z.

Estes verbetes lidam com os temas

que dizem respeito às muitas

circunstancias que cercaram não só

o “eu” de CF, mas cercam o nosso

contemporâneo.

Page 15: jornal de letras

76

34JL | jornaldeletras.sapo.pt | 12 a 25 de dezembro de 2012

O primeiro verbete de En esto

creo intitula-se América Ibérica.

Para os propósitos desta minha

intervenção, pondero que não se

trata apenas de um caso alfabético.

Carlos acreditava na América

Ibérica porque via o Atlântico

não como um abismo mas sim como

uma ponte dos vários encontros dos

quais resultamos. Estes encontros

são uma expressão das varias vozes

que, como mencionei citando Octavio

Paz, caracterizam a pluralidade

da sua escrita. É por isso que

a sua crença na América Ibérica

é tão profunda e explicativa

da sua militante dedicação ao

Foro Iberoamerica e ao diálogo

transatlântico que constitui a

sua razão de ser. Neste diálogo CF

empenhou-se em incluir Portugal e

o Brasil que são a outra face do

mundo ibérico, - a da cultura e da

política lusitana e brasileira, que

se expressam em português e têm,

com a que se expressa em espanhol.

Por obra da História e da Geografia

a herança de um compartilhado

repertório de significados.

arlos Fuentes Acreditava na América

Ibérica porque via o Atlântico não

como um abismo mas sim como uma

ponte dos vários encontros dos

quais resultamos

Entre os muitos verbetes de En

esto creo, deixo de lado o que

dizem respeito ao mundo da vida

(a lebenswelt de Husserl) ou à

cultura no sentido amplo. Vou

fazer referencia apenas a alguns

que são relevantes para perceber

o sentido da direção de natureza

politica, subjacente ao modo

como, no meu entender, concebia o

diálogo transatlântico, destaco os

verbetes:

(i) Esquerda- na qual aponta que

a globalização permite à esquerda

chamar a atenção sobre a dicotomia

crescente entre o espaço económico

e o controle político e observa

que se o capitalismo porpoe as

razoes da economia a democracia

propõe os valores do consenso

político, para concluir que, no

meio-termo entre ambos, a esquerda

é o espaço político no qual os mais

fracos da sociedade e do mercado

podem combater e negociar as suas

conquistas.

(ii) Globalização – como tema do

final do século XX que se prolonga

no século XXI e que, com o Deu

Jano, tem duas faces – que vem

levando a união de Creso – o

dinheiro e o Hedonismo – o prazer.

Esta união permite que os vícios

da aldeia global façam surgir

os vícios da aldeia local – os

tribalismos, os nacionalismos

redutores e Chauvinistas, a

xenofobia, os preconceitos raciais

e culturais.

Neste contexto nega a política do

avestruz que esconde a cabeça na

areia, e a do touro que destrói

tudo na loja de louças, e evoca,

como caminho, globalizar a

solidariedade tsl como proposto

por Fernando Henrique Cardoso no

memorável discurso pronunciado em

30 de outubro de 2001, em sessão

solene na Assembleia Nacional da

República Francesa, que tive o

privilégio de ouvir, acompanhando-o

como seu chanceler (cf. Palavra do

Presidente 14, 2001, pp. 499-505).

(iii) Política – Na qual examina

as suas luzes (a de Roosevelt e a

de Cárdenas de sua infância), e

suas sombras (os seus carrascos)

, mas pondera que, se houve nos

EUA um senador McCarthy, houve

também uma Martin Luther King. Há,

portanto, esperança na postura

de CF. Esta explica a sua vocação

para o diálogo e a sua postura de

intelectual público que tem, na

linha de Tocqueville, a preocupação

salutar com o futuro que o fez

velar e combater.

(iv) Revolução – No trato deste

grande tema, que diz respeito,

como aponta Hannah Arendt, à

possibilidade de um novo início

fruto de uma aspiração trazida pelo

potencial da convergência entre

libertação e liberdade, observa que

as duas mais coerentemente modernas

foram a Francesa e a Americana.

A que teve desdobramentos mais

significativos foi a Francesa, pois

o capitalismo e a democracia foram

os seus rebentos.

“O caráter laico de uma Revolução

é, no seu entender, a garantia da

sua sanidade, o que significa, em

outras palavras, não acreditar,

como diria Bobbio, no milagre da

política. Daí, para Carlos, os

descaminhos insanos da Revolução

Russa, que associou a herança

religiosa bizantina com o

comunismo; da Revolução Chinesa

que, na época de Mao, trouxe a

rigidez legitimista e burocrática

do antigo Império do Meio; da

Revolução Cubana que, a partir da

esquerda, consagrou a fraude mortal

da direita latino-americana: o

culto ao líder máximo.

É claro que CF, a partir do eu da

sua circunstância, não deixa de

examinar os vários paradoxos da

Revolução Mexicana para concluir

que a Revolução, no século XXI,

como um novo início, que não se

confunde nem com a revolta nem com

a rebeldia, requer pluralizar o

mundo e valorizar dialogicamente

as diferenças étnicas, políticas,

religiosas, sexuais e culturais.

Daí o significado do verbete

xenofobia, no qual destaca a

importância do ato fraternal num

mundo globalizado rodeado de

abismos. O verbete está permeado

pela sua convicção de que as

culturas perecem no isolamento e

prosperam na comunicação. Daí o

alcance do diálogo transatlântico,

no qual se empenhou.

Concluo lembrando que, no verbete

Sociedade Civil, CF destaca a

sua importância, reflete sobre o

terceiro setor e sobre as várias

modalidades da sua articulação e

presença. Lembra que o terceiro

setor tem um pé na sociedade e

outro nas instituições e pode

enriquecer as instituições públicas

e privadas e abrir horizontes

em um mundo em transformação. O

Foro Iberoamerica e o diálogo

transatlântico como um terceiro

setor sui generis vem cumprindo

estas funções inspirados pelo

saber com sabor que é como podemos

definir a sabedoria de um grande

intelectual público como foi Carlos

Fuentes, que animou e vivificou

a nossas atividades desde o seu

momento inaugural.

* Celso Lafer é prof. catedrático de Filosofia do Direito da Universidade de São Paulo (USP) e tem uma vasta obra em vários domínios, incluindo o da Ciência Política. Entre muitos outros cargos, foi embaixador do Brasil na ONU, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e, duas vezes, ministro das Relações Exteriores. É membro da Academia Brasileira de Letras. Este texto tem com base a sua intervenção no recente XIII Foro Iberoamérica, em Cartagena de Indias. Recorde-se que Carlos Fuentes, que também integrava o Foro, morreu em 15 de maio último, tendo-lhe o JL dedicado várias matérias na sua edição de 30 de maio, que Lafer cita. JL

“ Nas democracias mo-dernas e pluralistas o poder ideológico é fragmenta-do É um poder exercido pela palavra e pela sua difusão”

Page 16: jornal de letras

Ideias/crónica, livro 36

Alterações climáticas fora de controle

ECOLOGIA

VIRIATO SOROMENHO MARQUES

18ª sessão dos países que subscrevem a Convenção das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (UNFCCC, na sigla inglesa) terminou sem resultados sequer mediocremente satisfatórios (se é que tal expressão seria legítima…). Em 2009, na 15ª edição da referida conferência, as esperanças eram altas. A União Europeia ainda aparecia dominada por um propósito de querer fazer a diferença em prol de um combate efetivo às alterações climáticas. Na altura, apesar da crise económica, a União ainda não estava devorada pela fúria fratricida em torno das “dívidas soberanas”. Nos EUA. Um presidente Obama. Recém-empossado, Prémio Nobel da Paz, enchia o mundo de esperança numa nova política de responsabilidade ambiental dos EUA, depois de oito anos de autismo de George W. Bush. Depois, foi o fracasso. O desapontamento. A manifestação da mais completa irresponsabilidade.O que se passou em Doha foi o dobre de finados na esperança de que o Protocolo de Quioto, cujo prazo de validade irá expirar em 31 de dezembro próximo, pudesse ser substituído sem deixar um ruidoso vazio. Infelizmente, é isso mesmo que vai suceder. Apesar de todos os relatórios científicos apontarem para um agravamento da situação climática ao longo deste século. É neste momento realista pensar que a temperatura mundial poderá estar 4º C mais quente, por volta de 2100. A política tornou-se numa máquina de cegueira colectiva. Uma arma de destruição maciça. Mas a geração que deixou esta ignomínia ser possível não vai ter uma velhice tranquila. Num mundo devastado pelas alterações climáticas, a guerra de gerações, a perseguição aos mais idosos, acusados de irresponsabilidade para com as gerações que ainda não haviam nascido, será um dos temas culturais e securitários mais recorrentes. Não há crimes perfeitos. JL

Onze livros, por exemploComo nas letras, também aqui reunimos alguns livros acabados de publicar e a que ainda não tínhamos registado, sem prejuízo de a eles voltar. Livros que, como muitos outros que ao longo do ano assinalamos, poderão ser bons presentes nesta quadraSendo, para este efeito, a ordem dos

fatores arbitrária, começamos por dois

livros sobre a História contemporânea

portuguesa e que têm o ditador,

Salazar, como “personagem central”.

O primeiro não é o típico livro de

investigação, divulgação ou análise:

dá-nos 41 anos de História(s) do

Estado Novo (As palavras. Os factos)

de uma forma original. Assim, entre

1933, quando se “institucionalizou”

a ditadura, com a “aprovação” da

Constituição, e em 1974, quando

ela foi derrubada, a 25 de Abril,

temos, ano a ano, os eventos mais

importantes ou significativos de cada

ano, sobretudo através ou a partir das

palavras dos protagonistas, dos quais

de fazem pequenas biografias, e entre

os quais avulta, até 1968, Salazar.

Há também uma breve referência ao

que ocorre no mundo, transcrições ou

excertos de documentos, regulamentos,

iconografia, etc. Uma leitura, pois,

muito interessante e ilustrativa

de toda uma época, a desta obra de

Marcelo Teixeira, licenciado em

História, escritor e ex director da

Oficina do Livro (Ed. Parsifal, 352

pp., 17,90 euros).

A arte de saber durar (Ed. Tinta da

China, 368 pp., 17 euros). Trata-se de

um ensaio “sobre o processo de tomada

do poder pela frente política liderada

por ele”, que o autor escreveu, como

sublinha, para “tentar perceber as

razões da durabilidade do regime

salazarista, a mais longa ditadura da

Europa no século XX”. E os mecanismos

que o permitiram, foram, segundo

Rosas, o apoio da oligarquia e a

composição dos interesses dominantes,

o corporativismo, o papel das forças

armadas e da Igreja Católica, a

violência preventiva e repressiva, a

apetência totalitária e o ‘homem novo’

salazarista.

De História é também, afinal, Melo

Antunes – Uma Biografia Política, da

igualmente prof.ª daquela universidade

e investigadora, que se tem dedicado

com especial atenção ao estudo (de

vários aspetos) do 25 de Abril (Ed.

Âncora, XXpp., 29 euros). Melo

Antunes (MA), figura central do

MFA, da descolonização, do período

revolucionário, do “grupo dos nove”,

da institucionalização da democracia

na sequência do 25 de Novembro, foi,

como salienta a autora, não só “um

militar de carreira, mas muito mais:

um grande intelectual, um ideólogo,

um doutrinador – há quem lhe chame

o intelectual fardado”. Rezola teve

acesso a documentação inédita e, em

seu juízo, “o papel do MA no processo

revolucionário ganha novas cores com

os dados agora descobertos e com a

documentação disponibilizada na Torre

do Tombo”. Quanto á dimensão humana

e intelectual do principal autor do

programa do MFA fala muito bem o

prefácio do seu amigo António Lobo

Antunes.

Biografia também como não podia

deixar de ser, sobretudo, mas

não só, política, é a de Marcelo

rebelo de Sousa, da autoria, como

é lógico, não de um historiador mas

de um jornalista, Vítor Matos

(Ed. A Esfera dos Livros,

712pp, 25 euros). Marcelo,

64 anos (feitos hoje, 12

de dezembro!), está aí,

ativíssimo, como comentador

político e político

disfarçado ou sob as

vestes de comentador,

potencial candidato a

Belém, etc., etc. Prof.

de Direito e em certos

períodos mais ou menos

jornalista, sempre

muito bem informado,

talentoso, com enorme

capacidade de trabalho,

frenético, amigo dos

amigos e intriguista,

sabedor e imaturo, desde

muito novo tem um percurso

singular na vida, em especial

na política do país (o pai foi

ministro de Marcelo Caetano, seu

padrinho). Vítor Matos fez um bom

trabalho e dá, por vezes até com

grande soma de pormenores, inclusive

familiares, esse percurso. A biografia,

esclarece o autor, além de 80 outras

entrevistas, teve toda a colaboração

do biografado, através de dezenas de

horas de conversa, mas não lhe foi

‘submetido’ para leitura prévia.

Mudando de área, para a Filosofia,

chega às livrarias uma entrevista de

João Maurício Brás a Onésimo Teotónio

Almeida, que é em simultâneo um

diálogo entre os dois, como aliás o

criativo título indica: Utopias em

dói menor – Conversas transatlânticas

com Onésimo (Ed. Gradiva, 320 pp,

14,50 euros). Decerto mais conhecido

como escritor, cronista e contador de

histórias, Onésimo é um universitário,

doutorado em Filosofia numa das mais

prestigiadas escolas dos EUA, a Brown,

em Providence, na qual é prof. nessa

área, em particular de Ética (Brás

doutorou-se na Nova de Lisboa). E

tem uma obra filosófica, aliás em boa

parte ainda não reunida em volume(s),

como desse livro se vê, até agora

talvez apenas devidamente valorizada

no substancial volume de Miguel

Real sobre a Filosofia em Portugal

editado pela IN/CM. Pois estas muito

interessantes “conversas” – às quais

em breve o JL voltará - têm também

o mérito de a divulgar e comentar,

de chamar a atenção para ela, graças

a JMB, que a conhece muito bem; e

graças, claro, ao próprio Onésimo, à

sua clareza e à forma como fala das

coisas mais complexas da forma mais

simples possível, sem ‘arrogância’,

sem jargão e sem querer mostrar

erudição… Prefácio de Carlos Fiolhais

e posfácio de José Eduardo Franco.

E, até porque estamos no Natal,

referência a um livro que tem como

título uma pergunta de certa forma

surpreendente: Quem foi quem é Jesus

Cristo?. A ela respondem, sob vários

ângulos, da sua “biografia impossível”

a Jesus e as mulheres, de Jesus e

o dinheiro a Jesus e a Igreja, dez

autores. A saber: Anselmo Borges,

Xabier Pikasa, Antonio Pinero, Juan A.

Estrada, J. Ignacio Gonçalez – Faus,

Isabel Allegro de Magalhães, Juan

José Tamayo e André Torres Queiruga. A

coordenação é de A. Borges – teólogo

e docente da Un. de Coimbra, autor de

uma assinalável obra neste domínio –

que assina o texto introdutório, “De

Jesus a Jesus Cristo” (Ed. Gradiva,

312 pp., 15 euros).

Três livros mais,em (quase) tudo: 1)

Vencer o medo – Ideias para Portugal,

de Manuel Carvalho da Silva (Temas

e Debates, 220 pp, 15,50 euros).

São seis textos do até há pouco, e

durante muitos anos, secretário-geral

da maior central sindical portuguesa,

a CGTP, que entretanto se doutorou

em Sociologia e coordena o CES em

Lisboa. Textos de intervenções, social

e política portuguesa, problemas e

desafios, em particular no mundo do

trabalho e do sindicalismo, contra a

inevitabilidade das atuais políticas,

apresentando e defendendo novas

Page 17: jornal de letras

A PAIXÃO DAS IDEIAS

GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS Onde a noite se

acaba…

A leitura do tempo tem sempre

magia e permite-nos partir daí

para a perceção da vida. Ao

acabar de publicar O Ano XX,

Lisboa 1946 – Estudo de Factos

Socioculturais: Dois homens, uma

só obra (Imprensa Nacional – Casa

da Moeda), José-Augusto França

prossegue uma obra multifacetada,

incansável e minuciosa, onde se

têm incluído estudos de tempo,

que nos permitem compreender os

acontecimentos emblemáticos de

determinados períodos, partindo

daí para o entendimento do país e

do mundo, uma vez que a história

sociocultural permite chegarmos

à visão de conjunto, sobretudo,

quando o cicerone é referência

da história da arte europeia e

mundial, como afirmou a diretora

– geral da UNESCO, Irina Bokova,

na bonita mensagem que enviou

no dia em que o mestre perfez

a bonita (e jovial, diga-se

abono da verdade) idade de nove

décadas.

Lembramo-nos de Os Anos Vinte

em Portugal (1992), Lisboa,

1898 (1998), Lisboetas no

Século XX – Anos 20, 40 e 60

(2005) e O Ano X – Lisboa 1936

(2010), e esses antecedentes

constituíram preciosos meios

para a compreensão histórica de

anos significativos. Desta vez,

deparamo-nos no pórtico da obra

com uma homenagem, merecida

e significativa, a um primeiro

companheiro desses anos, um

jornalista, ficcionista e etnólogo

que em 1946 (um ano depois de

Calenga) escreveu A Maravilhosa

Viagem dos Exploradores

Portugueses, sendo obrigado a

deixar na gaveta um romance de

denúncia anticolonialista, Terra

Morta. Falo de Fernando Castro

Soromenho (1910 – 1968), exemplo

de intelectual e resistente,

analista lúcido da emancipação

africana.

O Ano XX é um ano chave da

chamada “Revolução Nacional”,

o ultimo a ser assinalado desse

modo, já de fugida, ressoando a

ironia imperial. É o ano a seguir

ao fim da guerra e por isso parece

ser de um certo alívio, apesar de

todas as esperanças frustradas.

E, quase surpreendentemente,

ouve-se a voz de Oliveira

Salazar a dizer: “Quando um país

encontra, como Portugal, uma

linha conveniente de pensamento

e de ação política, assente em

segura experiência, é desassisado

trocá-la, dando atenção ás vozes,

aliás, dissonantes, que se

erguem das ruinas e das divisões

da Europa a apregoar sistemas

salvadores”. Mas, no essencial,

isso serve para concluir: “Não

desejamos sair, pretendemos

ficar”.

Porém, num tom de certo humor, o

inefável Borda d’Água, fazendo o

juízo do ano, entre o conselho

para plantar couves e orégãos e

a indicação do tempo que faria,

diz: “Estão todos a olhar uns

para os outros como quem diz: Que

vai sair disto tudo? E a resposta

ninguém atina com ela”. De facto,

a obra procura, à distância do

tempo, responder à questão em

15 capítulos, organizados com

critério e minúcia. Começa com os

ecos do fim da terrível guerra e

com a revista Time a apresentar

Salazar como o decano dos

ditadores (uma maça apodrecida

e uma pergunta” Até que ponto

em Portugal o melhor é mau”…).

Armindo Monteiro regressara

de Londres sob a suspeita de

excessiva anglofilia (1943), mas

agora havia que elogiar, sem

alardes, a vitória aliada.

De facto, havia leves esperanças,

velhos republicanos como José

Domingues dos Santos esperam que

os ventos novos sejam propícios e

regressam. Realizam-se eleições

(novembro de 1945), mas a

continuidade prevalece. O ano de

46 é charneira em que os Aliados

hesitam quanto à questão ibérica,

por proximidade excessiva da

Guerra Civil espanhola e por

receio de mudanças bruscas.

As prometidas “eleições tão

livres, como na livre Inglaterra”

tornam-se uma miragem. Francisco

Valença, no Sempre Fixe,

lembra ambiguamente para o

ato eleitoral, o carneiro com

batatas, comparado com as batatas

a três escudos o quilo.

O certo é que Salazar quis ficar,

recusando a saída. O director

Reuters, Douglas Brown, é expulso

por simpatias oposicionistas,

como a revista Time passou a

estar proibida… É o tempo da

criação do MUD, Movimento de

Unidade Democrática, criado em 8

de outubro de 1845, ilegalizado

“José-Augusto França prossegue uma obra multifacetada, incansável e minuciosa”

em 1948, e José – Augusto França

(JAF), com conhecimento de

causa, fala-nos do processo das

assinaturas e das intimidações,

apresentadas por Marcelo Caetano

ao contrário do que realmente

aconteceu. A lista dos mais

prestigiados intelectuais,

que participam ativamente, é

significativa: António Sérgio,

Ferreira de Castro, João de

Barros, Lopes Graça, Ramada

Curto, Aquilino Ribeiro, Vieira

de Almeida, Palma Carlos, Joaquim

de Carvalho, Azeredo Perdigão,

Vitorino Nemésio, José Régio,

Casais Monteiro, António Pedro,

Hernâni Cidade.

Mas, naturalmente, a “situação”

acena com o “período comunista”.

E o autor, tem absoluta razão

ao dizer que então, para

Salazar, era fundamental criar

um “inimigo”, sobretudo com a

guerra terminada. O presidente do

Conselho, em 23 de fevereiro de

1946, fala de “ideias falsas e

palavras vãs” e é muito crítico,

especialmente para as Nações

Unidas, para a reconstrução e

para o processo de Nuremberga

– estando em causa episódios,

complacências e cumplicidades

bem próximos. O tema do Império

Colonial vem à baila, com a

lembrança da tradição republicana

do velho “ultimatum” inglês.

Uma das curiosíssimas chaves da

reflexão de JAF está no episódio

que intitula significativamente

como “Os Garotos”. O que estava

em causa era a perceção por

Salazar do crescente sentido

crítico que ia minando a base do

regime, em especial relativamente

aos mais jovens, que tomavam

consciência da abertura e da

modernização. Depois das eleições

ganhas inevitavelmente pela

União Nacional, o líder quis

ouvir os colaboradores. Afinal,

o país legal “não se imbuíra dos

princípios ideológicos e morais

com que o Estado Novo pretendia

definir-se”.

Segundo Franco Nogueira, Salazar

“exasperado com os ataques a que

assistira e que procuravam também

feri-lo, não pudera conciliar

o sono” numa determinada

madrugada, “considerando que,

perante as criticas que a si

próprio via dirigidas, devia ir

a Belém apresentar a demissão

ao Presidente da República…

porém, pelas cinco horas da

manhã, tomará uma decisão,

dizendo de si para si o que

na manhã seguinte revelou ao

ministro das Finanças que o veio

visitar (e que só esse ministro,

Lumbrales, podia ter contado ao

narrador). O que o chefe então

lhe disse foi exatamente: ‘Ora,

são uns garotos’. Após o que

adormecera tranquilamente”. E

tudo continuou. A I Conferência

da União Nacional (11 novembro)

pretendeu dar um impulso ao

regime. Salazar apareceu,

apesar da crise neurasténica,

enquanto o atento Marcelo Caetano

encerrou, notando-se uma luta de

protagonismo com Santos Costa,

que proferira em Braga o discurso

de 28 de Maio.

Ao longo do livro vai-se tomando

pulso ao tempo: a literatura,

a vida artística, o cinema, o

teatro e a música, a imprensa

possível, “os lisboetas tinham

mudado mais do que em 20

anos anteriores, levados pela

aceleração do ritmo da história,

mesmo alheia, em costumes que uma

nova economia de consumo fizera

alterar…”. Rodrigues Miguéis

intitularia a sua obra de 1946

Onde a noite se acaba. Era um

novo tempo que se abria, incerto

mas prometedor. Recomeçava tudo

José-Augusto França

O ANO XX, LISBOA 1946 – ESTU-DOS DE FACTOS SOCIOCULTURAIS: DOIS HOMENS, UMA SÓ OBRAImprensa Nacional – Casa da Moeda, 392 pp, 24,99 euros

alternativas;

2) Nos bastidores dos telejornais

– RTP 1, SIC e TVI, da autoria de

Adelino Gomes, um dos mais justamente

conceituados jornalistas portugueses,

com larga experiência de rádio,

televisão e imprensa escrita,

e que entretanto se doutorou em

Sociologia nesta área, em que é agora

investigador. Trata-se de um trabalho

muito completo, sério e rigoroso,

realizado entre 2007 e 2010 a partir

do estudo dos jornais das 20, os de

maior audiência, das três televisões

generalistas portuguesas. Trabalho

revelador, à altura de Adelino

Gomes, e que interessa não só à

gente dos media como a outros

públicos que queiram estar bem

informados (Ed. Tinta da China,

432 pp., 15,90 euros);

3) Julgamento – Uma narrativa

crítica da Justiça, por Laborinho

Lúcio (D. Quixote, 536 pp., 24,90

euros), é um misto de memórias/

histórias do autor, em especial

como figura destacada daquele sector

(desde delegado do MP e magistrado,

na segunda metade da década de 60,

a conselheiro, director do Centro de

Estudos Judiciários e ministro da

Justiça), e de um largo conjunto de

opiniões, um ensaio, sobre esse sector

da Justiça. E como o autor o conhece

muito bem, sabe da matéria, escreve

(como fala) com elegância e humor, a

obra, a que voltaremos, recomenda-se (

ler nota de Jorge Listopad na pag.39).

Enfim, para que não se diga que

só falamos de livros e autores

portugueses, duas notas finais sobre

dois books a merecerem também mais

larga referência do filósofo francês

Michel Onfray, que, tendo ‘acreditado’

e deixado de acreditar, considera a

psicanálise uma espécie de alucinação

coletiva, apresentando-nos o seu

criador como uma figura a vários

títulos ou mesmo condenável: intitula-

se Anti-Freud (“e se lhe dissessem

que Freud é uma fraude?”) e tem um

equilibrado prefácio de J.L. Pio de

Abreu, o qual salienta que Onfray

“também matou o Deus que existia em

Freud, permitido que, finalmente, o

possamos ler sem atavismos religiosos”

(Ed. Objectiva, 648 pp., 29 euros).A

Era Secular, um minucioso longo

trabalho de investigação e análise

(mais de 800 páginas compactas, em

corpo pequeno) sobre a secularização

do mundo, Charles Taylor, um filósofo

canadiano de 81 anos, pretende “definir

e delinear” a mudança que nos leva de

“uma sociedade em que é virtualmente

impossível não acreditar em Deus

a uma sociedade em que a fé, mesmo

para o mais sólido dos crentes, é

uma possibilidade entre outras”.

(Ed. Instituto Piaget, 820 pp., 57,24

euros)JL

37JL | jornaldeletras.sapo.pt | 12 a 25 de dezembro de 2012

Page 18: jornal de letras

Valter Hugo Mãe

AUTOBIOGRAFIA IMAGINÁRIA

Boris BucanPROPRIETÁRIA/EDITORA: Medipress

Sociedade Jornalística e Editorial, Lda. NPC 501 919 023

Rua Calvet de Magalhães, nº 242, - 2770 – 022 Paço de Arcos

Tel.: 214 544 000 – Fax: 214 435 319 email: [email protected]

GERÊNCIA: Francisco Pinto Balsemão, Francisco Maria Balsemão, Pedro Norton, Paulo de

Saldanha, José Freire, Luís Marques, José Carlos Lourenço, Francisco Pedro Balsemão, Raul

Carvalho das Neves

COMPOSIÇÃO DO CAPITAL DA ENTIDADE PROPRIETÁRIA:

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DIRETOR: José Carlos de Vasconcelos

DIRETOR DE ARTE: Vasco Ferreira

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Duarte, Francisca Cunha Rêgo, Carolinha Freitas, António Carlos Cortez, Carlos Reis, Daniel

Tércio, Eduardo Lourenço, Eugénio Lisboa, Fernando Guimarães, Guilherme d’Oliveira Martins,

Gonçalo M. Tavares, Helder Macedo, Helena Simões, Jacinto Rego de Almeida, João Medina,

João Ramalho Santos, João Santos, Jorge Listopad, José-Augusto França, José Luís Peixoto,

Lídia Jorge, Manuela Paraíso, Maria João Fernandes, Maria Alzira Seixo, Maria Augusta

Gonçalves, Miguel Real, Ondjaki, Onésimo Teotónio de Almeida, Pires Laranjeira, Rocha de

Sousa, Urbano Tavares Rodrigues, Valter Hugo Mãe e Viriato Soromenho-Marques

OUTROS COLABORADORES: Agripina Vieira, Alexandre Pastor, Álvaro Manuel Machado, André

Pinto, António Ramos Rosa, António Cândido Franco, Boaventura Sousa Santos, Carlos Vaz Mar-

ques, Cláudia Galhós, Cristina Robalo Cordeiro, Gastão Cruz, Inês Pedrosa, João Abel Manta,

João Caraça, José Manuel Canavarro, João de Melo, João Ribeiro, Joaquim Francisco Coelho,

José Manuel Mendes, José Sasportes, Lauro Moreira, Leonor Xavier, Luísa Lobão Moniz, Manuel

Alegre, Maria do Carmo Vieira, Maria Emília Brederode Santos, Maria Fernanda Abreu, Maria

José Rau, Miguel Carvalho, Marina Tavares Dias, Mário Avelar, Mário Cláudio, Mário de

Carvalho, Mário Soares, Marcello Duarte Mathias, Nuno Júdice, Óscar Lopes, Ricardo Araújo

Pereira, Rui Mário Gonçalves, Silvina Pereira, Teolinda Gersão e Vasco Graça Moura

PAGINAÇÃO: Filipa Lourenço e Miguel Dias

SECRETÁRIA: Teresa Rodrigues

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REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E SERVIÇOS COMERCIAIS: Rua Calvet de Magalhães, nº242, 2770-022 Paço

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JL JORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS

A neve trancou Zagred. O tram deixou de passar. As poucas pessoas na rua iam de botas agressivas assentando passos nervosos no chão. Um homem abria um carreiro na neve quando percebeu o meu nariz no ar, procurando. Perguntou-me se buscava Boris Bucan, eu respondi que sim. Indicou-me uma passagem discreta. Uma última porta a dar para o pátio onde o temporal, na hora certa, veio todo cair sobre mim.

Foi apenas então que percebi porque me haviam dito para cuidar do calçado, da cabeça, das orelhas, das pernas, do nariz, da alma mais imediata, da força de vontade. Fiquei, subitamente, branco de cima a baixo. Molhadamente branco e gelado. Toquei à campainha. Sacudi-me, imitando com incompetência o meu cão depois do banho. A porta estava aberta, entrei.

As telas brancas, quadradas, grandes, disseram-me que estava certo. Estava no atelier

Recebeu-me simpaticamente, indicando-me a sala mais quente, iluminada, onde as telas para uma exposição em 2013 se acumulam. A sua esposa, Inga, ajudou-me com o inglês e o croata. Era minha intenção dizer que queria sobretudo chegar perto, ter esse privilégio da proximidade e auscultar, como me é costume, a intensidade de alguém cujo trabalho me impressiona.

Percebi que Boris Bucan é como os seus quadros. Robusto, de olhar cirúrgico , retirando-nos gorduras. Retira-nos as gorduras aos gestos, às palavras, às intenções. É direto. Achei muito coerente com o seu trabalho de depuração das formas. Uma depuração pelo lado sensual, permissibo, prazeroso da arte, mas indubitavelmente uma depuração. Porque sempre reduz cada representação ao seu mínimo. É um caçador do elementar, da brevidade. Como se pesquisasse o modo mais breve de mostrar algo. Diria que reduz cada coisa à mais estilizada e imediata representação possível. A realidade torna-se irónica, mais irónica, o olhar é sempre humorístico e desarmante. Inusitado. Senti-me nu. Molhado, ainda, e nu.

Sem dúvida que é isso que mais me fascina no seu trabalho. A capacidade de deixar apenas a

dimensão mais bela e improvável de cada coisa representada. Estamos sempre no território da surpresa, da insinuação, da profunda originalidade. Faz-me lembrar, a cada quadro, a genial capacidade de criar logótipos, de criar símbolos, a iconografia. Algo de uma força comunicacional poderosa. Cada imagem contém, em potência, o discurso absoluto. Explica. Faz ver tudo na sua esplendorosa elementaridade, simplicidade, improbabilidade.

Pedi a Inga que nos fizesse um retrato, que ficou meio torto e desfocado. De todo o modo, aparecemos, bem esticados, em frente a uma das telas. Aparecemos bem, quero dizer. Pensei que a neve me entrava costas adentro, ainda caindo em pingas cruéis pela camisa. O casaco de malha dava-me, contudo, um ar confortável para todas as ilusões. Agradeci. Trouxe os catálogos que me ofereceu como folhas de ouro. Escondi-os na mochila para que ficassem protegidos. Sim. Do calçado, da cabeça, das orelhas, das pernas, do nariz, da alma mais imediata, da força de vontade. Os catálogos, acontecesse o que acontecesse, tinham de sobreviver o regresso ao hotel, regresso a Portugal.

Uma resma de folhas de ouro na mochila não ajuda a andar. Quase nos acende uma luz no coração, é verdade, mas para andar não é uma ideia boa. Tropecei no caminho, mesmo que com os sapatos de herói das neves que comprei na loja à entrada do hotel, e

fiquei de joelhos por um segundo. Comecei a rir-me. À minha frente, uma senhora levava um enorme cão se atreve a olhar para mim. Veio cheirar-me. A senhora disse-lhe qualquer coisa. O bicho parecia sorrir. Era simpático. Levantei-me. Fiz o resto do caminho com o cão a controlar-me. Ia virando o rosto para trás a ver se eu tinha mais ataques estranhos. Acho que percebeu que eu vinha de conhecer o Boris Bucan e que, com nevão ou sem nevão, o mundo não estava para me impedir tal aventura. Os bichos sentem estas urgências.

Fui comer a um italiano e pus-me a alongar as vistas nos catálogos como quem vê paisagens. Os quadros gráficos não são planos. Têm diversos sentidos, comportam-se como emaranhado de coisas longe e perto que importa descobrir ou apensa intuir. Quando me apercebi de que o tram voltou a passar, duvidei se não era um objeto de traçar uma linha na tela branca de neve. Quase vi os escritos de Bucan na rua, ali mesmo na realidade toda. Talvez a dizerem: instrumento de cordas. Orquestra Sinfónica de Zagreb. Nenhuma orquestra no mundo tem melhor património plástico do que esta. Nenhuma foi mais inteligente. Podem bem fazer espetáculos em que se paga para ver o cartaz e não o concerto. Com Boris Bucan essa inversão do protagonismo é um risco. Um risco bom.

Depois de seco, nenhuma constipação me pegou. Lembrei-me do que se dizia antigamente. Que a constipação apanha-nos sobretudo pela tristeza. E eu estava contente de mais.

“Boris Bucan é como os seus quadros.Robusto, de olhar cirúrgico, retirando-nos gorduras. Retirando-nos gorduras aos gestos, às palavras, às intenções.”

Debate-Papo 36

Page 19: jornal de letras

JORGE LISTOPAD

QUARTETO DE ALEXANDRIAQuem alguma vez passou em Alexandria, não só que nunca se esquece mas ainda se lembra do romance de Lawrence Durrell (1912-1990), ou melhor: dos quatro livros do romance sobre Alexandria. E ao contrário, quem leu a obra-prima do escritor inglês, vai lembrar-se da cidade onde nunca esteve e que está à sua espera. Uma vez escrevi um conto que se passava nessa cidade, que tinha visitado pouco antes. No seu conteúdo havia um misto de estranheza e de paixão. Amanhã vou procurá-lo. Porém, agora tenho outro agradável dever: abrir a edição de O Quarteto de Alexandria publicado pela D. Quixote, quatro romances num único livro. Justine, Balthazar, Mountolive e Clea, talvez que este último esteja estilisticamente mais afastado desse já clássico romance inglês. Para completar a informação: este megalivro tem mais de 900 páginas e pesa muito, mas uma vez diante dele esquecemos o peso mecânico da existência. Como se pode verificar, adoro este livro e não só a partir da edição hodierna. Ao lado do nosso mundo criou um outro mundo completo. Felizes daqueles que podem dar os primeiros passos de hibernação com O Quarteto ao seu lado. O inverno será leve. Que bom é por vezes podermos depender do eloquente silêncio de alguém outro.

KEERSMAEKEREnquanto Anne Teresa de Keersmaeker abandou Lisboa para hibernar algures noutro território de sua escolha, posso apenas lembrar o espetáculo em três “volumes” realizado no Teatro Camões, coreografado para os bailarinos da Companhia Nacional de Bailado (CNB), ao que saiba a única além da sua para quem a coreógrafa belga trabalhou. A primeira coreografia dessa trilogia foi o Preludio à sesta de um fauno com toda a sua famosa história desde Debussy a Nijinsky. Claro, Anne Teresa não brinca com a sua inspiração: foi bem diferente, inclusive no início a homenagem sem som feita ao bailarino russo que criou pela primeira vez o bailado e que levantou tanta celeuma em Paris, aquando da visita dos Ballets Russos àquela cidade. O que evidenciou maior diferença foi a caracterização do fauno, não como ser solitário e melancólico numa shakespeariana floresta de fadas, mas um delírio de presença mútua algo animalesca, e onde a diferença entre o homem e a mulher é reduzida ao mínimo, andrógina. A segunda peça, Grosse Fugue, segundo Beethoven, apesar de 20 anos volvidos sobre a sua criação, deu ocasião aos bailarinos da CNB, acompanhados pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, com dois violinistas, uma viola e um violoncelo. Talvez tenha sido o terceiro ballet da noite a convencer aqueles que ainda não o estavam sobre a maestria da coreógrafa: Noite Transfigurada de Arnold Schonberg é uma das grandes partituras do compositor, aqui ainda com um pé na música antes de si próprio como criador de novas formas e a música trabalha com harmonias. Ess rotura interna da peça musical foi justamente recriada num cenário de sombras e de claro-escuro a exprimir, na tensão da composição, algo pertencendo aos primeiros anos do expressionismo. Noite Transfigurada, nesse sentido, é exemplar da maestria estilística de ATKM.

O JULGAMENTOAgora vamos pôr os pés na terra manontroppo: fala de Laborim Lúcio, autor de O Julgamento – Uma Narrativa Crítica da Justiça (D. Quixote). Homem de exatidão, de rigor de palavra, sentido de humor, que nas mais de cinco centenas de páginas reaprecia a

O HOMEMDO LEME

MANUEL HALPERN

Em fim o mundo“O mundo não vai acabar a 21 de dezembro de 2012, nem em nenhum outro dia de 2012”, assegura o governo americano, no seu site oficial. Eles devem saber do que estão a falar, porque têm bombas suficientes para acabar com este mundo e o outro. Quanto a 2013, isso logo se vê. O governo americano para já não arriscar qualquer palpite. Essa ausência de informação sobre o estado de saúde do mundo no próximo ano é, no mínimo, inquietante. Talvez eles estejam à espera do reveillon para nos dar a notícia: “Lamentamos informar os habitantes da Terra que o planeta vai explodir em meados de março, por favor mantenham a calma”. Mas pelo menos até ao final do mês estamos safos, o que já não é nada mau. Parte-se do princípio que, nesta matéria, os americanos sabem mais que os Maias. E este último fizeram a profecia há um milhar de anos só para semear a confusão nos povos do futuro (atenção, não confundir o povo Maia com a astróloga Maya). Contudo, os profetas Maias enganaram-se num ponto fulcral: estavam convencidos Mitt Romney ia ganhar as eleições americanas. Com Barack Obama tudo fica um pouco mais tranquilo. Nós por cá, no meio desta crise, estamos demasiado ocupados em (sobre) viver o dia a dia, para nos preocuparmos com assuntos de tal envergadura. Primeiro o dinheiro para o bife, depois as grandes questões do universo. Porque sem dinheiro para o bife não há cosmos que resista. Mas isto dos bifes é como os mundos: ou há moralidade ou comem todos. Bum!

SEGUNDA VIA Primeiros passos para a hibernação

matéria de que é feita a justiça; quer a justiça em si, quer a justiça como instituição, quer a filosofia de estarmos no mundo. Fui ao lançamento do livro do autor, que me dá a honra de ser seu amigo, na livraria Buchholz. Nem cheguei nada atrasado, mas já não havia lugares; então, num cantinho, ouvi e depois aplaudi comme il faut o discurso de Jorge Sampaio, e o do fazedor do livro, esperando que através da instituição ambos reconhecem o meu aplauso invisível. O livro já está em minha casa à espera da dedicatória e só nessa altura vou ler todas as páginas por inteiro, estando neste momento apenas a folhear alguns capítulos. De uma vez por todas quero afirma publicamente que gosto de Álvaro Laborim Lúcio e não desfazendo sempre pensei que seria um bom Presidente da República: figura, verbo, seriedade, autocrítica em forma de humor ou dialeticamente ao contrário, tudo possui; mas visto que as coisas são como são, não acalento muitas esperanças.

PONTE DE SORSim senhor, fui à província: surpresa. Encontrei, num Centro de Artes e Cultura local, em primeiro lugar: bom gosto extremo, distribuição de espaço adequado para as múltiplas atividades, simpatia. Segundo: assisti à inauguração da exposição de dois jovens pintores: Gabriel Garcia, que sintetiza fantasia com imaginação (como se sabe, são duas coisas distintas), e Emanuel Berenguel, cuja pintura vem melhorando de exposição para exposição. Terceiro: pude encontrar-me, depois de algum tempo de ausência, com o marquês de Fronteira e Alorna, Fernando Mascarenhas, com quem jantamos na sua “casinha” que é um palácio, com alguns amigos, e pré-combinámos alguma coisa em comum. É segredo. É ele o mecenas desse Centro de Artes e Cultura de Ponte de Sor. Ao viajar para lá, através da passagem chuvosa ergueu-se um arco-íris absolutamente excecional. Ao voltar, era a noite noitíssima.

INÊS PEDROSAE porque estamos no tempo da pré-hibernação, o que provavelmente e inconscientemente para mim significa leituras, apresento mais um livro e mais uma vez da D. Na página 30 diz ela: “O problema é que as palavras, as que são ditas e as que ficam por dizer, alteram as relações entre as pessoas e por consequência a história do mundo. A literatura apenas testemunha esse fenómeno.” Esta citação podia ser o leitmotiv do livro que, aliás como todos os textos de Inês, remetem ao Lust zum Fabulierem de Goethe. A autora é, do ponto de vista dessa história, de grande inventividade das pequenas coisas e de narrá-las, não sendo este romance de algum amor e desamor no domínio de sentimento único; é evidente o prazer de descobrir, e ainda por cima quando lemos ouvimos música. Se se quiser, este livro ainda mais do que alguns outros da mesma autora lembra a desenvoltura do checo Milán Kundera, do feminino e em português tout compris.

FIM DE HIBERNAÇÃO É fácil dizer a palavra hibernação. Mas seja-me permitido constatar que a natureza como recusa essa secular ordem dos animais e, talvez devido a uma qualquer alteração climatérica, tenha a casa cheia de formigas muito ocupadas, sem parecerem conhecer as ordens antigas. Nada está certo.

O COELHINHO

(JORGE LISTOPAD)

O coelhinho irrompeu no meu quarto, de saco às

costas. Não lheperguntei nada, apenas o olhei com surpresa. Foi

ele que começou:

- Vou emigrar.- Pois bem, para onde?

- Para a Grécia!

39JL | jornaldeletras.sapo.pt | 12 a 25 de dezembro de 2012

Page 20: jornal de letras

20 de OutubroChegámos cedo a Vila Nova de Foz Côa e andámos às voltas pela cidade sem encontrarmos o Centro Cultural. Mas no meio das andanças acabámos por dar com a antiga casa da minha avó, no Largo da Igreja, onde em miúdo, com o meu irmão, incitados pelos primos mais velhos, estivemos clandestinamente pisando uvas no lagar do vinho – com o consequente castigo quando os pais notaram que as nossas pernas se tinham tingido de roxo. Hoje no sítio do lagar estão escritórios. Muita coisa mudou. A vila passou a cidade, já não desligam o gerador de eletricidade às dez da noite, a Avenida é finalmente uma verdadeira avenida, no Pavilhão de Exposições e Feiras decorre o Festival do Vinho do Douro Superior, a Câmara Municipal tem um Centro Cultural.Centenário. Fez 100 anos que o meu pai aqui nasceu. Em maio e junho a Hemeroteca Municipal de Lisboa tinha organizado uma pequena exposição a propósito do centenário do nascimento de Guilherme de Castilho. Aproveitando documentação da Hemeroteca, a Câmara Municipal de Foz Côa organizou no Centro Cultural uma exposição mais ampla, com manuscritos, livros, artigos, correspondência, fotografias, começando nos anos 30 nos tempos da Presença em Coimbra e cobrindo depois a vida literária de Guilherme de Castilho até aos anos 80.Durante as últimas semanas estive em contacto quase diário com as pessoas ligadas à exposição para dar a minha ajuda, facultando documentação que está comigo. Deu-me gosto voltar a vasculhar os papéis do meu pai e selecionar cartas de presencistas e outros escritores. E também fotografias velhas, perdidas em álbuns ou amontoadas em envelopes, no geral muito pequenas e já bastante desvanecidas: graças aos Photoshop transformei-me em restaurador, digitalizando imagens de Régio, Casais Monteiro, Gaspar Simões, Saúl Dias/ Júlio, Ruben A, etc.A abertura da exposição foi feita com uma cerimónia simples, como o meu pai teria gostado. Num país que vive como se não tivesse um passado, foi bom saber que em Foz Côa existe um município e um grupo de pessoas, com entusiasmo e amor pelas Letras, que quiseram recordar quem veio antes.À noite o jantar foi num restaurante, em família, várias gerações.

4 de Novembro

Por volta das nove telefonou o Vasco Graça Moura para me dizer que tinha sido atribuído o Prémio Fernando Namora pelo romance Domínio Público. Fiquei naturalmente muito satisfeito, tanto mais que andava desconsolado – e até um pouco intrigado – com a “carreira” discreta que o Domínio Público até agora teve, não obstante críticas muito boas, para

além de referências positivas no universo que me é menos familiar dos blogues. Intrigado porque o livro conta uma história atual, que me parece ter muito a ver com o país que hoje somos. A história decorre em 2009 e 2010 e as vias e os dramas das personagens estão no livro muito ligados às circunstâncias bastante angustiantes em que Portugal e os portugueses viviam já na época dos PECs do Eng. Sócrates e em vésperas de nos cair em cima a simpática Troika.O Domínio Público lida também com questões da cultura e da língua portuguesa. O património cultural do nosso país, que nasceu quase há 900 anos, está em grande medida votado ao esquecimento e ao desinteresse generalizado, sobretudo quando se trata de literatura. O próprio Namora, alguém o lê? Tirando o Eça, alguém lê os escritores do passado? E o Pessoa está transformado em “calebrity”, uma espécie de Paris Hilton das letras lusas, famoso, festejado, mas pouco lido. Quanto à língua, vivemos na regra do desleixo e do vale tudo – incluindo o acordo ortográfico, que entre muitas outras calamidades, faz tábua rasa da origem latina da nossa língua. Mais um fenómeno de aculturação. É irónico que tenhamos agora de ir a outras línguas, como por exemplo o inglês, que é essencialmente germânico, para encontrar muitas das raízes latinas que deitamos fora nas nossas palavras. Por tudo isto, deu-me grande satisfação o facto de o júri do prémio ter expressamente salientado o modo como no meu livro utilizo a língua portuguesa.

6 de Novembro

Acabei de ler o primeiro volume das Passions Intellectuelles, em que a Elisabeth Banditer escreve longamente sobre o século das luzes em França. Este volume é dedicado sobretudo às Academias (Letras e Ciências) e à Enciclopédia. É fascinante constatar que é no século XVIII que nasce o mundo em que ainda

hoje vivemos. Também fascinante o papel que as mulheres (em muitos casas aristocráticos) desempenham no movimentodas luzes. Mas com a revolução (da burguesia), a partir de 1790 as mulheres desaparecem da vida pública durante mais de um século. Antes de passar aos outros dois volumes de Badinter vou ler Le Règne des Femmes 1715-1793, de Jean Haechler.

É uma pena que atualmente em Portugal sem despreze o francês e já quase ninguém o fale ou leia. Foi e é a língua de uma grande cultura, ainda hoje com um movimento editorial de um enorme vigor em muitas áreas superiores ao inglês. Agora corremos atrás da língua inglesa e de tudo o que tenhas um ar de Inglaterra ou de América sem nos darmos conta de quanto no encontramos longe da mente anglo-saxónica. Não os compreendemos plenamente e eles não nos compreendem a nós e, na verdade, tendem a tratar-nos com alguma condescendência. Os Franceses não são certamente perfeitos, mas são mais “a nossa gente”.

16 de Novembro Como sempre, era já noite quando chegámos a Monsaraz. O largo da igreja, totalmente deserto e silencioso, com o pelourinho e as casas todas em volta, parece sempre, à luz dos candeeiros, uma paisagem imaginária e irreal, um quadro inventado por um pintor. Ainda mais irreal quando o grupo de cante alentejano ensaiava no clube – há muito no mundo das mulheres por quem tenho tanto carinho, uma é a minha mãe, outra a mãe do meu filhinho... – o som espalhando-se pela terra e depois até dentro da nossa casa mesmo em frente. Monsaraz para nós é sobretudo o verão. Mas acabamos sempre por não resistir a um último fim de semana de paz e sossego absolutos. Estivemos quase para desistir e regressar a Lisboa logo após a chegada. A tremer de frio pusemos a mão na parede da sala e era como se estivéssemos numa câmara frigorífica. Mas não desistimos. Acendemos a lareira e durante a primeira noite não chegámos a despir parkas e casacos. Na manhã seguinte a casa estava habitável e até apareceu um pouco de sol. Tirei do saco os NY Times Book Review e os New York Review of Books, que vou juntando e depois leio de atacado para saber o que passa nas letras USA. Quando me cansar tenho A Vida em

Lisboa, de Júlio César Machado, publicado em 1857 (mais um esquecido), que não é um grande romance, mas nos conta como se vivia e como se pensava em Lisboa há século e meio. A Luisa continua nos mistérios suecos do Henning Mankell.

17 de Novembro Absolutamente nada para nos distrair. Horas e mais horas de leitura interrupta. Depois, até ao terraço para o pôr-do-sol que nesta época não é tão glorioso como no verão, mas mesmo assim ... Às oito e meia estávamos no Lumumba para o ensopado de borrego seguido de bolo rançoso, sem esquecer azeitonar, queijo curado cortado em fatias fininhas e tinto da Adega Cooperativa de Monsaraz. Passeio pela terra para fingir que assim fazemos a digestão e depois regresso a casa. Trouxe o computador, mas hoje vou fazer gazeta ao e-mail e, em vez disso, fico com o belíssimo livro do Ben Almeida Faria O Murmúrio do Mundo.

19 de Novembro Uma última ida ao terraço para um pôr-do-sol de despedida. Felizmente estamos virados para o lado de Reguengos e Évora e nao temos que padecer a vista do Alqueva. Dizem que é o maior lago artificial da Europa. Gostamos sempre muito de ser os maiores de qualquer coisa. Mas a verdade é que o Alqueva, visto lá de cima, de Monsaraz, não parece um lago. Parece um charco. Parece que choveu demais e a água ainda não teve tempo de ser absorvida pela terra. Além disso, tremo ao pensas nas monstruosidades que à pala do turismo vão ser perpetradas naquele pobre recanto do Alentejo. Temos vocação para fazer cimento e estragar paisagens, o que no turismo é o mesmo que matar a galinha dos ovos de ouro.

28 de Novembro Programa da RTP Ler+, Ler Melhor. Estiveram esta tarde cá em casa a filmar, para uma entrevista de 5 minutos. Começaram por me pedir que fizesse um breve resumo do livro. Sempre a pergunta a que me é mais difícil responder de forma minimamente satisfatória. Como hei de resumir em um minuto um história que demorei 400 páginas a contar? Apesar dos temas sérios em que toca, muita gente me disse que o Domínio Público é divertido de ler, com diálogos vivos e algum humor. Não sei se consegui transmitir esta ideia na entrevista. O livro, entretanto, voltou a aparecer nas livrarias, agora com um pequeno autocolante alusivo ao prémio. Ter direito a uma segunda vida é um luxo. Vamos ver como se porta.

Paulo Castilho, 67,escritor, diplomata, foi diretor-geral dasComunidades Portuguesas e embaixador de Portugal na Suécia, no Conselho da Europa e na Irlanda. Estreou-se como ficcionista, em 1983, com O outro lado do espelho, a que se seguiu Fora de Horas, distinguido com os três principais prémios nacionais, e Letra e Música, entre outros. Domínio Público, o seu último livro, aca-ba de receber o Prémio Fernando Namora

Paulo Castilho Uma segunda vida

Diário

40jornaldeletras.sapo.pt | 12 a 25 de dezembro de 2012

JN