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Jornal Laboratório I Comunicação Social - Jornalismo I UFOP I Ano 4 - Edição Nº 15 - Julho de 2014 D HISTÓRIA SUJEITOS QUE OCUPAM TERRENOS POR MORADIA PÁG. 5 MEMÓRIA DO TREM DE PASSAGEIROS, O QUE FICOU FOI SAUDADE PÁG. 10 M A G I A ESPECIAL ADOÇÃO: DO AFETO À ESPERA PÁG. 6 E 7 FOTO: ARIADNE SELENE | ARTE: IAGO REZENDE

Jornal Lampião - 15ª Edição

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O Jornal Lampião é uma publicação laboratorial do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto. 15ª Edição - Julho de 2014.

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Page 1: Jornal Lampião - 15ª Edição

Jornal Laboratório I Comunicação Social - Jornalismo I UFOP I Ano 4 - Edição Nº 15 - Julho de 2014

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H I S T Ó R I A

SUJEITOS QUE OCUPAM TERRENOS POR MORADIA

Pág. 5

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DO TREM DE PASSAgEIROS, O QUE fICOU fOI SAUDADE

Pág. 10

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2 Arte: Ana Dias

Julho de 2014

Afeto significa afeição, amizade, amor. Um sen-timento intenso, que não precisa ser explicado. Mesmo porque, na maioria das vezes, não há explica-ção. O afeto como com-bustível. A 15ª edição do LAMPIÃO encontrou, no desafio de um novo olhar, o caminho para suas nar-rativas. Tal desafio impõe uma nova perspectiva, que direciona o olhar de todos - repórteres, fotógrafos, di-agramadores, revisores, ed-itores, professores e, final-mente, os leitores - para elementos que, invariavel-mente, poderiam passar despercebidos. Os laços afetivos conduzem nos-sas vidas, entre memórias e esperanças. E, por isso, talvez o leitor - você - possa sentir essa mesma afetividade conduzindo sua leitura nesta edição.

“Amar e mudar as coi-sas me interessa mais”. O verso de Belchior, presente na música Alucinação, con-segue elucidar o espírito desta edição do LAMPIÃO. O estímulo das pautas foi, justamente, imaginar uma espécie de “lente”, dire-cionando as abordagens e histórias para novas di-reções. O cuidado para afa-star-se do clichê, do sen-timentalismo barato, passa a ser fundamental. O pro-cesso de criação torna-se, portanto, mais complexo, já que uma mesma linha teria de perpassar todos os

EDitoriAl

Amar e mudar as coisastemas da edição. Mas fun-ciona, também, como uma motivação.

A primeira metade do jornal destaca os prob-lemas urbanos, que es-tão cada vez maiores e mais preocupantes. O sen-timento da insegurança é alarmante. A violência se faz presente, em todos os lugares, em todos os con-textos. Todos são afeta-dos. O medo é real, assim como os elevados níveis da criminalidade. Ouvimos a polícia e também os mo-radores. Buscamos obser-var quais são os reflexos e consequências diante de um cenário tão conturbado. Uma página inteira dedica-se a analisar o panorama da segurança pública.

Nas páginas seguintes, a ressocialização por meio da superação aparece em mais de uma reportagem, se mostrando como ele-mento fundamental ao que se refere à afetividade. Vencer o vício, o precon-ceito, o descaso público. É necessário compreender como conseguir superar as próprias dificuldades faz parte do nosso cotidiano. Como nos afeta e como afeta os outros.

A matéria principal de-sta edição apresenta o ato da adoção e tudo aquilo que o envolve: as buro-cracias, as dificuldades e as novas relações famili-ares. Entre preferências e responsabilidades, adotar

uma criança é a represen-tação do afeto simples e puro. O nascimento, como descrito na reportagem, acontece no coração.

A segunda metade do jornal destaca o poder de mudança. Iniciativas volun-tárias, coletivas e individ-uais. A dedicação é deter-minante. Na proteção aos animais, no cotidiano das repúblicas estudantis, no voluntariado em projetos. Nas tradições da música, nas tradições da fé. A in-terpretação pode destacar a busca de novos horizon-tes, novos desafios. A mo-tivação do próximo pas-so. Acreditar na vocação, no desejo mais pessoal. E há espaço também para as maiores riquezas do povo: as memórias. Elas têm for-ça, influenciam, estão vi-vas. Deixam mais fortes as saudades. Entre uma via-gem de trem e outra, o afeto é atemporal.

O ensaio fotográfico traz um grande símbolo do afeto: o amor ao próprio país. A Copa do Mundo no Brasil apresenta-se como um espaço para a expressão de todas as tor-cidas e cores, as mais di-versas possíveis. Aliás, plu-ralidade afetiva é o que norteia esta 15ª edição. A paixão, a dedicação, a su-peração... Tudo nos in-spirou, tudo está aqui, na produção deste LAMPIÃO. Para você, leitor. Com açúcar, com afeto.

tirinhA

Jornal Laboratório produzido pelos alunos do curso de Jornalismo – Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA)/ Universidade Federal de Ouro Preto – Reitor: Prof. Dr. Marcone Jamilson Freitas Souza. Diretor do ICSA: Prof. Dr. José Artur dos Santos Ferreira. Chefe de departamento: Prof. Dr. JB Donadon Leal. Presidente do Colegiado de Jornalismo: Profa. Dra. Denise Figueiredo Barros do Prado. – Professores responsáveis: Cláudio Coração (Reportagem), Ana Carolina Lima Santos (Fotografia)

e Priscila Borges (Planejamento Visual) – Editor Chefe: Danilo Moreira - Secretário de Redação: Charles Santos - Editor de Arte: Iago Rezende - Editora de Fotografia: Ariadne Selene - Editoras Multimídia: Flávia Gobato e Lara Pechir - Reportagem: Adriano Soares, Amanda Sereno, Ana Amélia de Melo Maciel, Aprígio Vilanova, Bruno Arita, Débora Simões, Joyce Mendes, Letícia Afonso, Pamela Moraes, Pedro Ewers, Rafael Melo, Raquel Satto e Sarah Gonçalves - Fotografia: Alessandra Alves, Fran Vilas Boas, Inaê Martins, Isânia Silva, Katiusca Demetino, Marília Ferreira e Pamela Moraes - Diagramação: Ana Clara Oliveira, Ana Cláudia Dias, Anna Antoun, Douglas Gomes e Geovani Barbosa - Revisão: Edmar Borges e Laís Diniz - Monitoria: Pedro Carvalho e Túlio dos Anjos - Colaboradores: Deivison Silvestre, Marcio Eustáquio e Neto Medeiros. Tiragem: 3.000 exemplares. Endereço: Rua do Catete, n° 166, Centro. Mariana - MG. CEP 35420-000

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EntrE olhArEs

“Buscar a pureza e a inocência que estão perdidas na alma envelhecida. Trazer para fora dela a viva cor ingênua para que tome o lugar da casca cinza, grossa, incolor. Olhar para trás. Encontrar-me, motivar-me. Lembrar do que fui, transformar o que sou.”

(Bruno Arita)

Bruno AritA

jornalismo.ufop.br/lampiao

Encontrou esse símbolo? Acesse os portais do LAMPiÃo e saiba ainda mais

sobre os temas abordados.

“A professora sabe a história e o nome de cada um dos 120 bichos que ocupam o lugar.”Raquel do Pilar Machado - Presidente do IDDA

“A segurança na cidade tem deixado muito a desejar não só em certos bairros, mas em geral.”Daniel Azevedo - Morador

“A região da estação era um brejo, havia poucas casas e uma lagoa, onde o pessoal vinha pescar.” Pedro de Oliveira - ex-maquinista

lAmpEjos

NOTA DE FALECIMENTO: É com muito pesar que informamos o falecimento de Luís Carlos Domingos, no dia 25 de maio. Ele foi um importante entrevistado em uma das reportagens da última edição do LAMPIÃO. Demonstrou como de-vemos nos atentar respeitosamente às trajetórias de vida das pessoas, que mes-mo estando em situação de rua, têm grandes e difíceis histórias vividas.

“Quando digo na escola que sou adotada, todos se aproximam querendo

saber da minha história.” Pág. 6 e 7

“Meu café era uma dose de cachaça.”

Pág. 4

“Eu não consigo olhar para a realidade, para essa injustiça social ao meu lado, ver que posso fazer alguma coisa e ficar com braços

cruzados, reclamando .”Pág. 11

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3Arte: Ana Dias

Julho de 2014

Muros, grades e portões fechados

Daniel Azevedo, morador“A segurança na cidade

tem deixado muito a desejar não só em certos bairros, em geral. Os crimes estão cada vez mais constantes e, se até pouco tempo eram fatos iso-lados e desconhecidos, torna-ram-se frequentes e passaram a assustar toda a população.

O que mais revolta é que os problemas são graves e a segurança tem que ser traba-lhada o mais rápido possível. Acredito que a Polícia tem di-ficuldades para manter o con-trole da cidade, além de muni-cípios que também dependem dessa assistência.

Um ponto importante é

números e relatos revelam a situação da segurança pública em mariana; as ocorrências de roubos disparam em abril

inAê MArtins

sEgurAnçA

Polícia para quem precisa

o uso de drogas em praças, ruas… Tanto de dia quanto à noite. Além da falta de ilu-minação em alguns lugares. Moro próximo aos principais pontos de Mariana - comer-ciais, acadêmicos e históricos - e os fatos ocorridos não se diferenciam em bairros popu-lares ou nobres.

A população, apesar de já se preocupar, tem que bus-car soluções. Discutir e exi-gir dos órgãos públicos ações que evitem que os jovens se envolvam com a criminalida-de. A segurança tem que ser prioritária. Não podemos dei-xar que a insegurança se tor-ne rotina.”

Raquel Satto

Até abril deste ano, 47 crimes violentos contra o patrimônio (roubos com o uso de violência ou arma de fogo) foram cometidos em Mariana. Em outras palavras: até este mês, o índice já correspondia a mais da metade dos 93 roubos registrados em todo o ano passado. Mas o que esses números representam e com quais circunstâncias estão relacionados?

O Capitão Erly de Jesus Costa, da Polícia Militar de Mariana, afirma que ainda não é sa-bida a real causa do aumento, mas que a Polí-cia supõe que esteja relacionada com duas va-riáveis: a não apreensão de veículos roubados em outras ocasiões, o que daria uma certa li-berdade aos infratores, e a liberação de alguns detentos. Essa liberação estaria ligada princi-palmente ao fato de que todos os autores de crimes identificados são reincidentes.

O aumento indicial se intensifica se anali-sado o mês de abril, que teve um crescimento progressivo no número de roubos notificados pela Polícia Militar: quatro em 2012, 16 em 2013 e 31 em 2014. Sobre essa intensificação, o Capitão atribui a responsabilidade à “saída temporária de alguns presos e alguns autores de outras regiões, que estão se aliando a auto-res da nossa região para a prática de crimes”.

Além do crescimento na quantidade de roubos efetuados na cidade, sem dúvida o cri-me mais frequente até agora, os homicídios consumados também aumentaram. Se no pe-ríodo de janeiro a abril de 2012 três homicí-dios foram cometidos, em 2013 foram quatro e, em 2014, seis.

Com relação aos níveis gerais de criminali-dade da cidade, os bairros Centro e Barro Pre-to se destacam. Juntos, eles correspondem a 28,79% das ocorrências de 2014 (até abril), sendo que 19,70% derivam apenas do Centro. Segundo o capitão da PM, tais níveis se devem

à facilidade de evasão que os bairros propor-cionam e ao acesso a outros bairros da cidade.

MobilizaçõesA compra de novas viaturas e motos em

2013, o projeto de construção de um novo ba-talhão da PM e a instalação de câmeras “Olho Vivo” para monitoramento do patrimônio histórico, além de outros investimentos, não impedem que a sensação de insegurança cres-ça cada vez mais em Mariana.

Essa sensação e a onda de assaltos no cen-tro da cidade incitaram manifestações como o movimento “Não mereço ser assaltada/o”, encabeçado pela estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto Gabriella Lima Visciglia. Ela conta que, por morar em Ouro Preto e ficar até tarde da noite em Ma-riana, sente bastante medo ao esperar o ôni-bus sozinha e que, à medida em que os as-saltos no Centro aumentavam, se sentia na obrigação de fazer algo a respeito. Foi quan-do, em uma de suas aulas, se sentiu impulsio-nada a agir: “me senti motivada, me achei tão parte da causa, principalmente por ser uma ví-tima em potencial”.

A manifestação, que tinha o objetivo de trazer o assunto à tona, deu frutos. Gabriella participou de uma reunião da Câmara dos Ve-readores que tinha como ponto principal a se-gurança pública, expondo as demandas e os problemas. Depois disso e de uma conversa que teve com a Guarda Municipal, percebeu um número maior de policiais perto do Ins-tituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA). Mas como ela destaca: “eu não quero segu-rança só pra mim, eu quero pra todos. Não é uma coisa que abrange só o ICSA ou o ICHS (Instituto de Ciências Humanas e Sociais), eu quero uma coisa pra todo mundo. Não somos só nós que precisamos de segurança.”

Diante desse cenário da criminalidade em Mariana, a Polícia Militar começa a desenvol-ver outras formas de prevenção e ação na co-munidade. Além de reforçar a presença de policiais nos horários entre 18h e 22h, há o re-forço de oficiais de outras cidades e operações em pontos com muitos usuários de drogas.

Ainda no âmbito da ação, um serviço de inteligência está sendo montado para identi-ficar autores de crimes e mapear quadrilhas, a fim de executar os mandados de prisão expe-

didos. O trabalho entre a Polícia Civil, a Mili-tar e o sistema prisional ainda foi citado como importante para a captura dos infratores.

Para a prevenção, o Capitão Erly pon-tua que serão realizadas campanhas e proje-tos com a população em geral “para preparar as pessoas e evitar o acontecimento do crime ou, mesmo que ele venha a acontecer, que ele seja minimizado.” O primeiro projeto de pre-venção tem previsão para começar na segun-da quinzena de junho.

RosárioO dono de uma loja que

foi assaltada este ano não quis falar sobre o acontecido, nem se identificar, muito menos dar depoimento. Segundo ele, o caso seria noticiado, sua loja seria visada, mas nada iria mu-dar na segurança pública. Ain-da disse que em cidade pe-quena é pior ainda, pois todos iriam saber quem fez a denún-cia, inclusive as pessoas que o assaltaram.

Uma mulher que mora no Centro foi atacada há dois anos por um garoto na fren-te da Prefeitura. Ela ainda tem medo quando sai, principal-mente quando passa perto do lugar, “pois na parte do Cen-

tro, onde fica a Prefeitura, não tem segurança nenhuma, ra-ramente passa alguma viatu-ra e muito menos algum guar-da patrulhando a região”. Na noite do ataque, acharam o garoto e o levaram dentro da viatura até a casa dela, para reconhecimento. Ou seja, ele sabe onde ela mora, e isso a deixa ainda mais temerária.

A violência é tamanha que mulheres que trabalham ou estudam no Centro sentem-se inseguras de andar sozinhas, temendo serem seguidas, as-saltadas ou mesmo violenta-das. As janelas ficam fechadas o dia todo e as praças ficam vazias na parte da noite.

CentroNozinho Cesário, morador“A [sensação de] seguran-

ça melhorou muito no bairro, com policiamento passando direto lá [no bairro Barro Pre-to]. Então agora tá tranqui-lo. Sempre de vez em quando tem – em todo bairro tem isso - esse negócio de fumar um ‘baseado’ e tal, mas em ma-téria de violência tá tranqui-lo. Não tem mais aquele medo na vizinhança de sair na rua e acontecer alguma coisa. Ago-ra não tá tendo isso mais não.

Depois que surgiu a Guar-da Municipal a segurança de Mariana melhorou muito. No Centro era uma violência da-nada, os idosos não podiam ir

ao banco receber que tinham vários problemas, roubava-se o dinheiro deles.

Do ano passado pra cá acho que a segurança deu uma melhorada. No ano pas-sado tava ‘bravo’ mesmo. Até a própria Guarda Municipal estava com medo de entrar em alguns bairros por aí, mas agora não. Acho que chegou mais policiamento na cidade e isso ajudou.

Até eu que ‘mexo’ com se-gurança quando chegava em casa ficava com medo de sair do carro sozinho. Em qual-quer lugar do bairro ficava com medo, mas agora saio de boa, de peito aberto.”

Barro Preto

32 câmeras “Olho Vivo” foram instaladas em Mariana, sendo 20 no centro historico

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AssassinatosRoubos

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Evolução das taxas de roubo e assassinato em Mariana de janeiro/2013 a abril/2014

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VILA MAQUINÉ

SÃO SEBASTIÃO

JD DOS INCONFIDENTES

CENTRO

CABANAS

BARRO PRETO 6

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3

3

3

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Bairros com mais de três ocorrências de crimes violentos em 2014

Entre janeiro e abril de 2014 foram regis-tradas 66 ocorrências criminais, sendo elas: seis homicídios, duas tentativas de assassina-to, um estupro e 57 roubos

inAê MArtins

Page 4: Jornal Lampião - 15ª Edição

4 Arte: Ana Clara Oliveira

Julho de 2014

Só por hoje eu espero conseguir

aí, queria beber cada vez mais, eu ficava em um estado deplo-rável, minha família buscava ajuda, até que conheci o gru-po, e consegui largar o vício.’’ Apesar de ter parado de be-ber, A ainda frequenta as reu-niões para compartilhar suas experiências. As reuniões do grupo A.A acontecem nas se-gundas, quartas e sábados.

Rafael Melo

Agressões, homicídios, as-saltos, sequestros e tráfico de drogas. Em geral, são essas as recorrentes histórias que acompanham parte da vida de muitos presidiários. A prisão é a pena para indivíduos que praticaram condutas crimino-sas, violaram princípios éti-cos e, sobretudo, colocaram em risco a segurança e o bem estar da sociedade. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em junho des-te ano o número de presos no país chegou a 715.655. Assim, o Brasil passa a ter a tercei-ra maior população carcerária do mundo. O estado que pos-sui o maior número de presos é São Paulo, com 204.946, se-guido por Minas Gerais, com 57.498 presidiários.

Esses dados mostram uma quantidade relevante de pes-soas penalizadas e privadas da liberdade por um tempo determinado pela lei. A pena máxima prevista é de 50 anos,

mesmo que a pessoa tenha sido condenada a ficar presa por mais tempo. Dessa for-ma, a ressocialização dos pre-sos deve priorizar a assistên-cia de políticas públicas para evitar a reincidência dos deli-tos e reinseri-los no convívio social. Uma responsabilidade que compete ao poder públi-co, ao julgamento da condição humana em sociedade e, prin-cipalmente, ao desempenho de qualquer indivíduo que de-seje resgatar os seus valores, sua educação e sua dignidade.

“Algumas pessoas passa-ram a me olhar de outra for-ma, quase que a maioria. Mas tem um detalhe, eu conto nos dedos essas pessoas que me fortalecem”, conta o ex-pre-sidiário, preso em 2003 por posse ilegal de armas e tráfico de drogas. E. M., de tom sere-no e lúcido, relata com deta-lhes os traumas e as dificulda-des que enfrentou no período de detenção, expondo lem-branças da precariedade de

assistência aos direitos básicos para sobreviver. “Quando ti-nha lua cheia, dava para ver as baratas brilhando pelo pátio, sem contar a quantidade de ratos que apareciam. Às vezes, pegávamos alguns e fingíamos que eles estavam passando por um julgamento antes de matá-los, isso era uma forma que encontravamos para pas-sar o tempo”, relembra.

Natural da cidade de Ma-riana, E. M. cumpriu pena de sete anos. Na cadeia, interes-sou-se pela leitura e chegou a fazer desenhos e artesanatos em sabonete. Conta que, an-tes de sair, ensinou algumas pessoas a fazer artesanatos e conseguiu negociar até obje-tos de higiene pessoal em tro-ca de cartas. “A maioria dos presos não sabe ler nem es-crever. Ali tem assassino, ban-dido, tem de tudo. Outro fator complicado é esse, tem cara que ‘caiu’ com três baseados, nem foi julgado e nem nada, mas colocam ele no meio de

pida evolução. Ele conta que acordava 5h30 da manhã para trabalhar. “Meu café era uma dose de cachaça.’’

Relata ainda que ficou qua-se dois meses internado, em recuperação. Recebeu alta e fi-cou sem beber até os 32 anos, quando teve sua primeira re-caída. ‘’Pensei, eram só duas cervejas. Mas não parou por

espalhados por todo mundo. Segundo a Organização Mun-dial de Saúde, o alcoolismo é uma doença e tem controle.

Começam os depoimen-tos, enfim, e uma história cha-ma a atenção. A, 45, trabalha em um ambulatório. Começou a beber aos 16. Aos 24, sofreu de tuberculose galopante, do-ença pulmonar aguda e de rá-

internada em uma clínica de reabilitação. Hoje ela leva uma vida equilibrada.

Quarta-feira. Dia de reu-nião do grupo do A.A, com-posta exclusivamente por de-pendentes. O incômodo é ainda maior. São histórias di-ferentes e um objetivo em comum: deixar o vício. No-vamente, me pediram que mantivesse o anonimato. O coordenador explica: ‘’ Somos uma sociedade nivelada, o anonimato significa seguran-ça do A.A como um todo, ga-rantindo, principalmente para aqueles que acabaram de che-gar, que sua identidade não será revelada.” Explica tam-bém que a instituição, nos úl-timos anos, tem fortalecido a tradição para se manter autos-suficiente, e que o único requi-sito para participar do A.A é a desejo de parar de beber. De acordo com o grupo, o A.A não esta ligado a nenhuma sei-ta, religião ou movimento po-lítico e não apoia nem comba-te quaisquer causas. Estima-se que hoje existam aproximada-mente 117 mil grupos e mais de dois milhões de membros

rio que ela também frequen-te as reuniões de auxílio. Isso reflete a seriedade do progra-ma. Mas a alegria da recupe-ração compete com o medo da recaída. Por isso, para a coordenadora, é importan-te que, mesmo após receber alta, o participante continue freqüentando as reuniões dos Alcoólicos Anônimos (A.A).

O orador e eu conversa-mos. Quando questionado so-bre o que é ser um alcoólatra, ele diz: ‘’As pessoas confun-dem dependência alcoólica com bêbados de rua. Pessoas dependentes do álcool estão por todos os lugares. O A.A não vai te curar, e sim auxiliar no controle do vício, mas isso vai depender exclusivamen-te de você’’. F é mulher, mãe e profissional bem-sucedida. Ela frequenta as reuniões e relata a dificuldade de tirar o pai do vício. “Eu e minha mãe não sabíamos como lidar com a situação. O auxílio do grupo foi fundamental para apren-dermos a nos comportar dian-te do alcoólatra”. Além do pai, a tia de F, que também era de-pendente, passou nove meses

PedRo eweRs

Terça-feira, dia de reu-nião para os membros do Al-Anon, associação de paren-tes e amigos de alcoólicos, em Mariana. Os componen-tes do grupo compartilham suas experiências e buscam solucionar problemas em co-mum. No caso, pessoas afeta-das por amigos e familiares al-coólatras. A reunião está para começar. Certo desconforto pode ser sentido no ambiente. Fui instruído a manter o ano-nimato, regra básica do grupo, sobre qualquer identidade re-latada neste texto. Aos poucos eles se acostumam com minha presença e ficam mais à von-tade. Pelos depoimentos, sin-to um incômodo de causas quase palpáveis, produzidos, provavelmente, por suas his-tórias. A importância do gru-po é ressaltada pela coordena-dora: ‘’Não estamos aqui para dar conselhos, e sim escutar-mos uns aos outros, pois são experiencias comuns’’

Uma senhora conta que sua irmã está internada em uma clínica de reabilitação e que para visita-la é necessá-

Durante as reuniões do A.A, os testemunhos de vida e leituras dão força para a luta do dia a dia

isânia silva santos

O doce valor da liberdade

inaê Martins

Após cumprir pena, E. M. garante sua reinclusão na sociedade produzindo e comercializando mel. Ele faz a extração e o processamento com materiais rústicos em oficina montada na própria casa

outros condenados há mais de dez anos, que sempre saem e voltam por ter cometido o mesmo crime”, declara.

Após cumprir a pena, E. M. conseguiu emprego em um escritório de advocacia. Devido à dedicação aos es-tudos jurídicos, recebeu uma oportunidade para trabalhar com advogados e, durante um ano e meio, realizou serviços de campo buscando clientes de processos da área criminal. Aos 54 anos, prefere dar con-tinuidade aos estudos e prá-ticas artísticas, e também tra-balha com produção de mel caseiro, que ele mesmo co-mercializa. Reafirma, ainda, o valor da liberdade e diz que a vida é muito boa para se des-perdiçar. Acrescenta que na cadeia existe um senso de res-peito e disciplina que, aplica-do no cotidiano, faz diferença. “Hoje em dia, já meço minhas atitudes para tudo, principal-mente em relação ao próxi-mo”, arremata.

PresídioDesde abril de 2011, a

Subsecretaria de Administra-ção Prisional (Suapi) assumiu a manutenção da Cadeia Pú-blica de Mariana, administra-da anteriormente pela Polícia Civil, e dispõe de agentes pe-nitenciários capacitados e trei-nados pela Escola de Forma-ção da Secretaria de Estado de Defesa Social. No local, são oferecidos atendimentos ju-rídico, social, odontológico, médico, psicológico e quatro refeições diárias.

Segundo o diretor geral do presídio, Paulo Cézar do San-tos, no momento o espaço abriga 140 presos. Na chega-da, cada detento separa seus pertences particulares em um saco, que serão devolvidos aos seus familiares. Em segui-da, eles têm a cabeça raspa-da e recebem um kit conten-do uniforme na cor vermelha, roupa de cama, escova dental, sabonete e toalha. Depois dis-so, são orientados a assinar o

regulamento sobre seus direi-tos e deveres. “Antes de serem assinados, os direitos e deve-res são lidos em voz alta. Le-mos porque grande parte dos presos são analfabetos, então preferimos ler para todos”, esclarece Paulo Cézar.

Diante da situação, o dire-tor geral enfatiza a necessida-de dos projetos de reinserção social. Ele destaca a reunião de abril deste ano que deba-teu o desenvolvimento de um programa de atendimento ao presídio de Mariana por meio da Prefeitura. “A proposta é criar oportunidades e pos-tos de trabalho. Até o próxi-mo semestre, vamos viabilizar uma sala de aula vinculada ao Educação de Jovens e Adul-tos (EJA), juntamente com um laboratório de informá-tica. Além disso, já classifica-mos alguns presos que vão es-tudar e trabalhar em uma sela fazendo artesanato, esse local funcionará a partir de semana que vem”.

sOCiedAde

em busca da reinserção social, obstáculos são enfrentados no incentivo à realização de projetos educativos e culturais

Page 5: Jornal Lampião - 15ª Edição

5Arte: Ana Clara Oliveira

Julho de 2014

Pelo direito do cidadão à moradiainaê Martins

Thaís e Adão enfrentam precariedade da rua a caminho de casa, uma situação comum aos moradores do bairro Morada do Sol

letícia afonso

As moradias de ocupa-ção tornaram-se paisagem co-muns em Mariana. Em todos os bairros da cidade, há pes-soas ocupando espaços públi-cos ou privados para construir suas casas. Essa é a única ma-neira que encontram para ob-ter um imóvel.

“As pessoas ocupam bus-cando melhores condições de vida na cidade”, diz Kátia Maria, presidente da Associa-ção de Moradores do Bairro Alto Rosário. Ela explica que a oferta de emprego no cam-po é escassa e que muitos mo-radores das ocupações foram expulsos da zona rural. Além disso, algumas pessoas vêm de outras cidades em busca de trabalho nas empresas instala-das na cidade.

A atual infraestrutura das cidades não abriga o número crescente de habitantes, oca-sionando o processo de ex-pansão urbana por meio de ocupação. Os órgãos públi-cos, por sua vez, raramente urbanizam os terrenos ocu-pados. De acordo com a Se-cretaria de Desenvolvimento Social e Cidadania de Maria-na, a maioria das habitações são erguidas em áreas de risco. Ainda segundo a Secretaria, a maior parte das terras ocu-padas na cidade pertencem a apenas um proprietário.

Em Mariana não existe o projeto “Minha Casa, Minha Vida”. Mas a Secretaria infor-mou que no primeiro semes-tre de 2014 se iniciou o pro-cesso de avaliação de terrenos onde serão construídas casas, alegando que o projeto virá a ser implantado. Além disso, a

a urbanizção do bairro, mas o projeto urbanístico foi impe-dido de continuar. Tramita na Justiça um processo levanta-do pelos proprietários das ter-ras pedindo que as casas sejam desocupadas, ou que a Prefei-tura compre o terreno por um preço que não condiz com seu valor real. A especulação imo-biliária, que cresceu conside-ravelmente nos últimos anos, também é um dificultante na cidade de Mariana.

Nem a Mina da Passagem e nem a Prefeitura têm a escri-tura que dá a posse das terras. Mas o processo judicial exis-te. Na gestão do prefeito Jo-safá Macedo, as terras foram doadas para a empresa Mina da Passagem, pois o prefeito havia se tornado cunhado do dono da Mina.

Os habitantes do Mora-da do Sol contam com as pro-messas feitas pelos órgãos públicos para solucionar o problema. Mas, enquanto an-dávamos fotografando as ruas sem pavimentação, nos para-ram perguntando o que es-távamos fazendo. Contamos nosso propósito e eles se abri-ram conosco. Dizem não ter muitas esperanças de que o problema seja solucionado, pois muitas promessas já fo-ram feitas a todos eles.

Se as promessas não forem cumpridas, será cada vez mais difícil resolver essa situação. Ela se ramificará desenvolven-do outros problemas sociais, como a violência. Se as condi-ções básicas de vida são nega-das a um cidadão, ele buscará maneiras de ter o que neces-sita. E ninguém poderá recla-mar do incômodo.

Prefeitura também construirá outros imóveis em bairros que possuem ocupação.

O maior temor dos mo-radores é que suas casas se-jam derrubadas, já que eles es-tão constantemente sujeitos à desapropriação por parte dos donos do terreno em que mo-ram. Na tentativa de solucio-nar o impasse, foi criado em 2008 o Conselho de Habita-ção de Mariana, que discutiu a urbanização das áreas.

A solução, no entanto, tar-dou e falhou parcialmente, pois o problema de habitação na cidade existe há mais de 45 anos. Só em 2011, foi iniciado o procedimento urbanístico, que não atende a todos os que

necessitam de moradia. Apre-sentado esse cenário, torna-se mais clara a necessidade de re-fletir o acesso à moradia em Mariana, e até no Brasil.

Esse tema, além de pouco debatido no país, não costuma atingir a empatia de grande parte da população, que, ape-sar de não reconhecê-lo, é afe-tado por suas consequências diariamente. Existem muitos relatos do desafio vivenciado pelas pessoas que tiveram ne-gada a urbanização do lugar onde vivem.

Relatos“A gente vai ficando e tor-

cendo para ficar tudo bem”, conta Thaís Aparecida en-

quanto amamenta seu filho mais novo, Ulisses Augusto, e observa seu outro filho, Luís Otávio, brincar. Thaís vive com seu companheiro, Adão Alves, e seus dois filhos em um bairro de Mariana.

O espaço, que há 15 anos é reconhecido como Morada do Sol, começou a ser ocupado há cerca de 20 anos com a in-vasão de um dos terrenos per-tencentes aos proprietários da empresa Mina da Passagem, que também são donos de 75% das terras ocupadas em Mariana. Adão comprou seu terreno das mãos de um ou-tro ocupante. Ele diz que no início fez um “puxado” pra ter como teto, mas que consti-

tuiu família e, aos poucos, vai erguendo sua casa enquanto vê o bairro crescer através de ocupações irregulares.

Impulsionados pela neces-sidade de ter uma casa própria, as pessoas subiram os morros e construíram suas moradias, que atualmente ameaçam des-pencar. Por terem sido ergui-das sem a permissão do pro-prietário das terras, não há asfalto no bairro e os residen-tes também não têm acesso a um sistema de saneamento básico e rede elétrica.

A família de Thaís não possui condições de alugar uma casa nem de adquirir um imóvel por meios legais. Eles contam que foi iniciada

Habitação digna é um desafio imposto para as pessoas que vivem nas áreas de ocupação irregular em Mariana

CrôniCA

CidAde

Evolução predatória e institucionalizada

Raquel satto

letícia afonso

Quem nasce está sujeito a crescer (ou não), se reprodu-zir, caçar e ser caçado. Ah, é verdade, está em curso o pro-cesso evolutivo. É descartado o que se considera sujo, fraco e despreparado. E o que nada acrescenta no desenvolvimen-to deve ser excluído para que a evolução de fato ocorra. Dito isso, e sabendo que ani-mais evoluem, nos encaramos como sendo animais parcial-mente racionais.

Afirmam que demos o pri-meiro passo quando saímos das cavernas que nos torna-vam cegos. Agora, uns poucos que conseguiram crescer pos-suem quintais grandes em ca-sas grandes e fazendas maio-res ainda. Grandes extensões de terra são (de)marcadas por poucas pessoas. Claramente porque passaram à frente na corrida evolutiva.

Como ser de consciên-cia coletiva e interdependen-te que é, o humano busca o mérito individual. Dá até pra lembrar daquela prisão (in)vi-sível que é a perda de direitos. É tipo aquilo que o pássaro

sente quando o colocam em uma gaiola.

Ele está encarcerado numa pequena gaiolinha por-que cantou muito alto – tal-vez de fome -, incomodou quem não queria ouvi-lo re-clamar. Cutucou a autoridade divina, chefes que foram no-meados para cuidar de nós. Mas a gente não consegue ver quem é que toma conta. Es-tão além do alcance das nos-sas asas cortadas. E o que pre-cisamos está além do alcance deles, sozinhos.

Como o pássaro respon-de quando lhe tiram a liber-dade? Confinado, sem opções para viver, tende a tornar-se melancólico e violento. Ten-ta buscar uma maneira de ob-ter a liberdade e as necessida-des básicas. Para que continue vivendo ele precisa de comi-da, acesso à educação e saúde edificantes, e que nas institui-ções possa se expressar com sua singularidade.

Mas voltando aos pássa-ros: são carnívoros, herbívo-ros, onívoros, e por vezes ca-nibais. Mas não hipócritas.

Se o joão-de-barro cons-trói sua casa é porque preci-

sa morar. Se o corvo invade uma plantação é porque pre-cisa comer. A águia não pre-tende extinguir o pombo, ela come o que cabe em si, não caça unicamente para limitar o viver. Já a espécie humana, de duas uma: ou vai além da sua necessidade real ou realmente necessita de mais do que cabe em suas mãos.

Talvez o ser humano não saiba conviver com as diferen-ças, se coloca um na frente do outro, mas jamais ao lado. Os pássaros encaram as maneiras de ser e se aceitam, não preci-sam estar iguais para coexistir no mesmo grupo, suas dife-renças complementam a coe-xistência no habitat. E funcio-na. Mas cada humano precisa necessariamente se considerar o melhor da própria espécie.

A maneira de evoluir é en-quadrada de tal maneira que estaciona a própria evolução.

E as diferenças? Para ser, tem que moldar

Para estar, tem que caber na caixa

Para se expressar, não deve incomodar

Quando incomoda, as ins-tituições não-passarianas rea-gem com violência. Daquela que silencia àquela que ma-chuca a carne. No fim das contas, tudo se torna gaiola. No sentido real e figurado.

Uma ave destituída de po-der segue a lei da sobrevivên-cia e se resguarda – ou ata-ca. A gente também faz isso. Mas o pensar faz com que en-contremos conforto, ou me-ras distrações que desviam o olhar do que nos aflige. Con-tudo, em algum ponto o sofri-mento pode estar latente, mas ignorado até o momento em que não se consegue mais per-manecer sem condições bási-cas de vida.

Da distração ao acalanto é necessária uma resposta, que alguns buscam no algo supe-rior além do entendimento. Entretanto, há quem busque essa resposta sem respeitar outros caminhos possíveis para tal jornada. Tem mais de uma pergunta, mais de um tentando responder. Logo, existe mais de uma resposta.

A fé humana é tornar seu deus ou a si mesmo mais ver-dadeiro do que o do outro.

Tabus, dogmas e nosso velho conhecido senso comum...

Crescemos imersas, apre-endemos. E onde mais pode-mos pousar? Esqueci, quando se é pássaro fêmea por ve-zes lhe são negados o vôo e o pouso. A falta do falo nos dei-xa mudas.

Surgiu um questionamen-to e a gente pergunta: o que é a evolução? A relação pre-datória ou a coexistência entre os seres? Talvez seja necessá-

rio se empoderar nesse pro-cesso. Não engaiolando nem deixando ser engaiolado.

Da mesma forma que os pássaros e sua sapienização, construindo moradia nos es-paços criados pela humanida-de, deve-se considerar a adap-tação. Tornar o ser humano mais pássaro e possibilitar sua transformação num ser com capacidade de voar. Respei-tando o espaço de vôo do ou-tro, sem hierarquia.

Deivison silvestre - reflexos para uM sonho

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6 Arte: Douglas Gomes

Julho de 2014

Claudinei, Aparecida, Leonardo e Carlos provam que ser família não significa ter laços sanguíneos. A força do afeto une e reconstrói suas histórias

ADOÇÃO

rou “um bobo, um pai coruja”. Muitas ve-zes, em rodas de amigos, ficava sem enten-der quando alguém falava que iria para a casa para ficar com os filhos. “Agora sei bem o que é isso, o que eles sentiam na época. Sempre que estou fora, sinto vontade de vir embora. Agora são eles que me chamam de papai ba-bão”, conta.

De acordo com Aparecida, a oportunida-de surgiu há seis anos, quando trabalhava na Casa Lar Estrela, uma instituição que ampa-ra crianças e adolescentes afastados tempo-rariamente de suas famílias. Por serem pa-drinhos de Léo e Claudinei perante a justiça, Aparecida e Carlinhos tinham autorização de levá-los para a casa nos finais de semana, e então surgiu a proposta da tutela permanen-te. “Quando a assistente social nos perguntou se tínhamos interesse em adotar o Claudinei, não tivemos dúvida. Ao conversar com o Car-linhos, ele logo sugeriu que adotássemos tam-bém o irmão, Leonardo. Os dois sempre es-tiveram juntos na instituição, e não quisemos separá-los”, relata Aparecida. Com a resposta positiva do casal, em dois meses o juiz liberou a guarda provisória dos meninos e os encami-nhou a um advogado para que dessem início ao processo de adoção.

Bruno AritA e Joyce Mendes

Adotar uma criança é muito mais do que um gesto de bondade ou compaixão. É, para muitas famílias, uma visão de plenitude - a ca-pacidade de amar incondicionalmente filhos não-gerados e a mudança de rotina demons-tram seu comprometimento com o gesto. Embora a adoção no Brasil envolva uma série de desafios, para a maioria dos casais os obs-táculos não impedem que continuem na ex-pectativa da construção de uma nova família.

EsperaNo país, quase 30 mil casais estão na fila de

espera para adotar uma criança. A lentidão do processo é ocasionada também por um ou-tro problema: a preferência dos futuros pais. É o caso da arquiteta Maria Aparecida Silves-tre de Faria, 52 anos, a Tida. Casada com o professor Frederico Garcia Sobreira, 55, Tida e seu marido estão há mais de três anos à es-pera para adotar uma criança. Essa demora se deve, por exemplo, à burocracia “Entregamos todos os documentos necessários em feverei-ro de 2011, a sentença do cadastro foi dada 8 meses depois”, conta Tida. Mãe de Ugo, de 16 anos, e Ernani, de 13, ela alega que, por ter dois filhos homens, gostaria de adotar uma menina de quatro anos. Essa restrição seria para que os irmãos não tivessem idades mui-to distintas. Pesa também o desejo de poder ajudar uma criança que foi privada de ter uma família logo no início de sua vida. Apesar de possuírem boas condições financeiras e quar-to individual para a menina, o casal optou por não adotar uma criança com algum problema de saúde incurável. A justificativa é que os fi-lhos ainda são dependentes financeiramente e o casal teme não conseguir administrar de forma razoável a necessidade de todos.

O que pode dificultar também o proces-so para os casais é a questão do vínculo fa-miliar biológico da criança a ser adotada. Para entrar no processo de adoção, ela precisa es-tar totalmente desamparada pela família. Se ainda tiver algum vínculo com algum paren-te, mesmo que o candidato à adoção consi-ga a guarda provisória, a criança voltará para a guarda de algum familiar que tiver condi-ções de criá-la. Tida recorda um caso próxi-mo de uma amiga que cuidou de uma crian-ça por três meses e que, com o surgimento de um familiar, teve a guarda provisória cancela-da pelo juiz.

SuperaçãoOs empresários Aparecida Tete, 41 anos, e

José Carlos da Silva, 49, são testemunhas da satisfação de adotar. Os filhos Leonardo, de nove anos, e Claudinei, de 22, ambos porta-dores de necessidades especiais, moram com o casal há um ano. A alegria dentro da casa da família é contagiante. Léo corre eufórico de um cômodo a outro, puxando cada um pe-las mãos para irem até seu quarto ver cenas de seu desenho preferido. Claudinei, com um jei-tinho tímido, é puro carinho. Quando se re-fere sobre ter ganho uma casa e uma famí-lia nova, ele sorri “sou muito feliz aqui com a mamãe e o papai!”. O pai Carlinhos, como é conhecido, acompanha cada movimento dos filhos com olhos de orgulho. Ele diz que vi-

Um encontro, O RENASCIMENTO DE UMA FAmiLIAO caminho da adoção é longo e exige muita paciência, mas pode reinventar a vida das famílias e das crianças adotadas

Todos podem adotarPessoas casadas, solteiras, viúvas ou que vivem em união estável. A adoção por casais homoafetivos ainda não está estabelecida por lei, mas alguns juízes já deram decisões favoráveis.

PerfilÉ possível escolher o perfil da criança: sexo, faixa etária, estado de saúde, irmãos, cor etc. No caso da criança possuir um irmão ou mais, é previsto por lei que eles não sejam separados, assim, se adotar um os outros devem ser adotados juntamente.

INTERESSEAssim que aparecer uma criança dentro do perfil indicado pelo candidato, ele será imediatamente avisado. Se houver interesse, ambos são aproximados.

Manifestar vontadeDeve-se comparecer à Vara de Infância e Juventude de seu município com os seguintes documentos: identidade; CPF; certidão de casamento ou nascimento; comprovante de residência; comprovante de rendimentos ou declaração equivalente; atestado ou declaração médica de sanidade física e mental; certidões cível e criminal.

Passos para A AdoCAo

PetiCAoPara dar início ao processo de inscrição de adoção, é preciso fazer uma petição no cartório da Vara de Infância. Caso seja aprovada, o nome do interessado será cadastrado regional e nacionalmente como pretendentes à adoção.

Certificado de HabilitaCAoA setença emitida pelo juiz, que dá o certificado para o adotante, é amparado pelo laudo da equipe técnica da Vara e do resultado emitido pelo Ministério Público acerca dos processos anteriores. Esse certificado inclui o candidato na fila de adoção nacional nos cadastros oficiais com validade de dois anos.

Curso preparatOrioO candidato deve fazer um curso de preparação psicossocial e jurídico para adoção. Apenas após isso que o candidato receberá visitas da equipe técnica para entrevista e avaliação.

Guarda provisOriaÉ concedida caso a relação entre a criança e o adotante seja boa (necessário entrar com um processo pedindo a guarda). Ela tem validade até o fim do processo e a criança passa a morar com a nova família. As visitas da equipe técnica continuarão até que haja um laudo conclusivo.

ConvivEnciaVisitas a instituição na qual vive a criança e pequenos passeios são permitidos para que se crie um laço. A criança possui liberdade para dizer se está gostando ou não e se quer continuar com o processo.

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7Arte: Douglas Gomes

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Claudinei, Aparecida, Leonardo e Carlos provam que ser família não significa ter laços sanguíneos. A força do afeto une e reconstrói suas histórias

Um encontro, O RENASCIMENTO DE UMA FAmiLIAO caminho da adoção é longo e exige muita paciência, mas pode reinventar a vida das famílias e das crianças adotadas

Joyce Mendes

Por meio do contato com crianças adotadas e pais adotivos, nos deparamos com a imensa alegria e o sentimento de grati-dão que cercam essas famílias. E nos perguntamos, ainda, qual seria a visão de uma pessoa adulta, que foi acolhida por seus pais adotivos, ainda recém-nascida. Como no caso de Ana Ce-cília Maciel, de 36 anos:

Infância“Fui entregue aos meus pais com dois meses de vida. Ob-

viamente, não me lembro de quando cheguei até eles. Para mim é como se tivesse mesmo nascido nessa família. Aos meus 5 anos, a minha mãe Tereza e o meu pai Rogério mostraram-me uma foto de minha mãe biológica e disseram que eu havia nas-cido daquela barriga, mas que era filha deles. Não me lembro o que eu respondi, mas me recordo como se fosse hoje do meu sentimento de medo. A minha única preocupação era que os meus pais biológicos quisessem me pegar de volta. Temia que eles me tirassem daqueles pais maravilhosos que tanto admira-va. Acalentada por eles, logo perdi aquela insegurança. Sempre fui cercada de muito amor e carinho. Nunca tive crise de iden-tidade. Acho que foi graças aos meus pais, que souberam lidar com a situação de uma forma muito tranquila.”

Resgate “Quando fui me aproximando da adolescência senti uma

enorme necessidade de ir mais a fundo na minha história e na vida de minha família biológica. Meus pais tiveram um pouco de resistência em me dar detalhes na época. Falavam que não havia necessidade e queriam me poupar de sofrimento. Depois de muito perguntar e investigar, fiquei sabendo que a minha mãe biológica, muito pobre, abandonada pelo marido e mora-dora da zona rural, não tinha as mínimas condições de ter mais um filho, entre os outros cinco. Então, me deu para adoção. Consegui chegar até alguns irmãos biológicos, já bem mais ve-lhos que eu, que me noticiaram que a mãe e o pai haviam fale-cido há algum tempo. Me deram detalhes do dia em que nasci. Segundo eles, a mãe ‘já estava velha demais para ter mais filhos’ e o marido não hesitou em deixar a casa, mesmo com ela estan-do no final da gestação. Enfim, apesar de não ter conhecido os meus genitores, resgatei a minha história. Era um direito meu e confesso que, embora tenha ficado muito triste pela notícia do falecimento, esse resgate ao passado me deixou mais leve. Ao visitar a casa na qual, segundo meus irmãos, eu havia nascido, consegui refletir tão intensamente que tive a impressão de que havia voltado no tempo e podia sentir a minha mãe a falar co-migo. Parece loucura, mas foi uma espécie de acerto de contas. Saí daquela casa com uma conclusão: ela nunca me abandonou, ela apenas renunciou a mim. Por amor. Por saber que mais uma criança no meio de todas aquelas outras talvez não tivesse uma vida digna, talvez não tivesse o que comer, o que vestir, e até mesmo não tivesse um seio para sugar.”

Gratidão “Sou muito grata por ter sido entregue aos melhores pais

do mundo. Por terem me dado uma vida digna, me ensinado a amar e respeitar ao próximo, uma educação de verdade e me ensinando sempre o verdadeiro significado da palavra hones-tidade. Sou casada há seis anos, formada em Pedagogia, tenho um filho, Matheus, de três anos, e sou muito feliz. Meus pais são os avós mais radiantes desse mundo. Tenho muita vontade de adotar uma menina. Estamos amadurecendo a idéia, estru-turando a casa, fazendo visitas em instituições. Creio que quan-do chegar hora certa, iremos saber. Espero até que meu filho Matheus cresça mais um pouco para lhe contar a minha histó-ria. Terei o maior orgulho de dizer a ele que a mamãe não nas-ceu da barriga da vovó Tereza, mas sim do coração dela!”

SentenCa de adoCAoSe todas as etapas anteriores forem cumpridas, o juiz dará a sentença de adoção, na qual todos os direitos de um filho biológico são concedidos à nova família. Desde uma nova certidão de nascimento até a troca de nome e sobrenome da criança.

ReprovaCAoA inviabilização de uma adoção passa por inúmeras avaliações: incompatibilidade com a criação da criança, razões pessoais, como aliviar a solidão, superar a perda de um ente querido, atenuar uma crise conjugal etc.

olhando para trAs

No caso de Leonardo, o procedimen-to ainda está correndo. A família recebe visi-tas de assistentes sociais e membros do Con-selho Tutelar. Para adotarem Claudinei, que é maior de idade, precisaram apenas do ter-mo de curatela, um documento expedido pelo Juiz que dá a eles o direito de serem tutores. Aparecida e Carlinhos dizem que querem ado-tar também uma menina.

Final felizCom o casal Eurica Maria, 45 anos, e Ale-

xandre Martins, 50, não foi diferente. Após 6 anos de ansiosa espera, finalmente consegui-ram a adoção definitiva dos filhos Gabriel, de nove anos, e Gabriela, de dez. Em 2007, com a autorização do Conselho Tutelar, Eurica le-vou Gabriel para a casa a fim de ajudá-lo a se livrar de uma desnutrição. Na época, o meni-no tinha um ano de idade e estava muito do-ente. “Depois que ele veio para a casa nunca mais nos separamos”, conta a nova mãe emo-cionada. Logo após conseguirem a guarda de Gabriel, Eurica e Alexandre conversaram e decidiram adotar também sua irmã biológica, Gabriela, de três anos. “Quando a irmã en-trou em nossa casa, o reencontro dos dois foi emocionante. Tivemos a certeza de que tínha-

mos feito o certo. A Gabi gritou eufórica pelo nome do irmão e eles se abraçaram calorosa-mente”, Eurica lembra. Gabi diz que se sen-te muito feliz por ter sido acolhida. “Quan-do digo na escola que sou adotada, todos os colegas se aproximam, querendo saber da mi-nha história”, conta orgulhosa. Os filhos re-cém-chegados e o filho biológico se aproxi-maram imediatamente, segundo o casal. “O Alexandre Lucas, na época com 11 anos, re-cebeu os irmãos com um enorme carinho”, lembra o pai.

Eurica faz questão de reforçar o quanto a chegada das crianças mudou a vida da familia: “Sempre digo que foram eles que nos adota-ram. Vim de uma familia conservadora, que achava que filhos tinham que ser do mesmo sangue. Hoje em dia, todos os nossos fami-liares mudaram seus conceitos. Somos muito mais feliz agora”, comemora.

O acolher traz satisfação pessoal, apesar de toda a burocracia. Amar e cuidar de al-guém, de origem biológica ou não, exige pre-paro e comprometimento. O gesto de adotar pede dedicação incansável. O que mantém os casais na espera, e na esperança, é o desejo de poder oferecer a uma criança renovação e uma segunda oportunidade.

AlessAndrA Alves

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8 Arte: Geovani Barbosa

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Proteção capaz de transformarCIDADAnIA

120 animais, que sobreviviam na precariedade, agora vivem bem e saudáveis graças ao trabalho de um grupo voluntário

Autonomia por meio do saber

Raquel Pilar, fundadora do IDDA, zela pelos cães que estão no instituto à espera de um lar definitivo

Com apoio do programa de inclusão da APAE, o aluno Alan trabalha em supermercado da região

AmAndA Sereno

VoluntáriosO trabalho voluntário mo-

biliza e impulsiona os proje-tos da APAE de Ouro Preto. Os 14 voluntários da institui-ção, mobilizam e dão assistên-cia aos alunos dentro e fora da sala de aula, ajudam na cozi-nha e dão suporte nas oficinas de profissionalização. “Eu po-deria escolher qualquer lugar,

Alan de Oliveira e Geral-do Confesso, além de estudar na Associação de Pais e Ami-gos dos Excepcionais, têm algo em comum: o orgulho de trabalhar. O que para muitos é apenas uma fonte de renda, para eles é uma oportunida-de de inclusão social. Duran-te o trabalho, Alan Christian de Oliveira, 24 anos, embala compras, repõem o estoque do supermercado, faz todo o trabalho igual aos outros funcionários. Há dois anos e meio, ele foi contratado por um supermercado como re-positor de compras após fa-zer um curso de autogestão na APAE de Ouro Preto. Nas horas vagas Geraldo Confes-so, aluno da APAE há mais de 10 anos, trabalha em um lava jato e em festas como DJ. Além dos dois, a Associação têm 17 alunos que estão no mercado de trabalho.

“Muita gente costuma tra-tar pessoas com deficiên-cia intelectual como eternas crianças incapazes de assumir uma função. Mas o fato é que muitas delas são capazes de estudar ou ter um emprego”, afirma a professora que traba-lha há 19 anos na APAE, Re-nata Nunes Pinheiro.

Em novembro de 1982, foi fundada em Ouro Preto a APAE, para atender pesso-as com deficiência intelectual, motora e auditiva. Para cuidar do bem-estar dos 220 alunos, atualmente a escola mantém uma equipe com 52 pessoas, formada por professores, fi-sioterapeutas, terapeutas ocu-pacionais, fonoaudiólogo, psi-cólogos, assistentes sociais e outros funcionários.

Na escola são oferecidas oficinas de artesanato, infor-mática, horticultura, pintu-ra e gastronomia. A pedago-ga Roselene Alentino afirma que o objetivo das oficinas é aplicar o conteúdo aprendido em sala de forma mais práti-ca. “Os alunos aprendem de forma dinâmica como traba-lhar com medidas nas oficinas de gastronomia, tudo se torna mais fácil se eles podem de-senvolver na prática o conte-údo passado em sala”, explica. Segundo a presidenta da asso-ciação, Imaculada Gonçalves, as despesas mensais chegam a R$ 70 mil. “O município arca com 90% da despeças que são gastas com o transporte dos alunos, alimentação, ma-terial didático, higiene, manu-tenção da instituição e de al-guns funcionário, já o estado

ajuda só em 10% das despe-ças que cobrem o salário de alguns professores. O Fun-do Nacional de Desenvolvi-mento da Educação(FNDE), envia anualmente a Associa-ção uma verba de R$ 11 mil para investimento em projetos com os alunos.

Suporte familiar“Meus filhos consegui-

ram conquistar mais autono-mia e isso é muito importan-te, já que eu não vou estar aqui a vida toda”,afirma a dona de casa Maria José Dias, mãe de dois alunos. Seus filhos, que estudam na APAE há dez anos, Thiago Dias, 17 anos, e, Lucas Dias, 14 anos, tiveram um desenvolvimento signifi-cativo, o mais velho já anda e o caçula estuda .“Meu filho mais velho tinha muita dificul-dade de andar, só andou com 5 anos, usava fralda e tinha medo de sair de casa, já o mais novo devido uma estenose não conseguia acompanhar o ensino da escola regular.”. A escola oferece uma assistência psicológica e pedagógica atra-vés da Escola de Pais. Lá, são compartilhadas as dificulda-des e superações, os pais po-dem acompanhar de perto o desenvolvimento dos filhos.

mas optei por uma instituição onde as crianças precisassem aprender por meio da supera-ção”, diz a voluntária, Elenice Aparecida Ferreira. Há cinco anos ela dá oficinas de pintu-ra na escola para alunos de to-das as idades. Durante as au-las os alunos trabalham com a parte motora e cognitiva. Ela explica que duas alunas so-

O Instituto de Defesa dos Direitos dos Animais (IDDA) de Ouro Preto é resultado de um projeto idealizado pelo jornalista Ady Carnevalli. A professora de Fisiologia da UFOP, Raquel do Pilar Ma-chado, e a estudante de Ser-viço Social, Luciana Salles, foram as precursoras do Ins-tituto, que vem ganhando vi-sibilidade graças às suas ações. Em junho de 2013 houve uma manifestação que reuniu di-versas pessoas em frente à prefeitura de Ouro Preto. In-dignadas com a descoberta de que os animais que ocupavam o Centro de Controle Zoono-ses (CCZ) do município eram eutanasiados, essas pessoas decidiram ir à luta. Segundo Luciana, os bichos eram cap-turados pela carrocinha, so-breviviam precariamente no CCZ e permaneciam lá pelo período máximo de sete dias. Depois disso eram mortos. Revoltadas com a situação, Raquel e Luciana se uniram e fundaram o IDDA.

Amparo

No dia 10 de junho de 2013, aconteceu, na Câmara dos Vereadores, uma audiên-cia pública em que foi votada a alteração do Código de Pos-turas do município. Na sessão foi definida a extinção da prá-tica da eutanásia. Esse foi o primeiro grande passo do Ins-tituto, que vem traçando um histórico de conquistas. Os animais que ocupam o CCZ agora são medicados, dividi-dos entre sadios e doentes e devidamente tratados. Depois quando estão prontos para se-rem doados, ficam em um ca-nil na chácara de Raquel.

O canil existe desde 1993. Porém, antes a estrutura su-portava um número bem me-nor de cães e Raquel, a pro-prietária, não morava lá. Em 2010, com a morte de seu marido, ela se mudou de um apartamento em Ouro Preto

para a chácara e pôde dar abri-go a mais animais. A profes-sora sabe a história e o nome de cada um dos 120 bichos que ocupam o lugar. “Essa é a Lucélia, ela tem esse nome porque é vesga, igual a atriz, Lucélia Santos. Quando eu a

peguei, achei que ela não resis-tiria ao atropelamento que so-freu, mas a minha menina está aí firme e forte”, conta Ra-quel realizada. Com a ajuda de Hélio Martins, adestrador que trabalha na chácara e passa o dia inteiro cuidando dos ani-

Fran Vilas Boas

Fran Vilas Boas

Você sabia?

mais, a professora consegue equilibrar a rotina da Univer-sidade com a do Instituto.

“Nós focamos em cães e gatos, porque é muito difí-cil resgatar animais de gran-de porte, mas o Instituto luta pelo direito de todos os ani-mais”, afirma Raquel e acres-centa, “Se não há infra-estru-tura nem para os animais de pequeno porte, imagina para os maiores”. A falta de espa-ço é frequentemente discuti-da nas reuniões do IDDA e a solução que eles encontraram para o problema foi a criação de um abrigo. O grupo já tem um terreno de 30.000 m² doa-do por um membro do Insti-tuto para a construção do lo-cal. Por ser uma organização sem fins lucrativos, o IDDA aceita doações de todo tipo. Quem se interessar em ser um voluntário, participar das reuniões ou contribuir com o Instituto deve acessar o grupo chamado IDDA - Instituto de Defesa dos Direitos dos Ani-mais, no Facebook.

Avanços e lacunas

Em Minas Gerais, há uma delegacia especializada em cri-mes contra a fauna, mas isso é insuficiente. Há muitos ou-tros animais que são esqueci-dos quando o assunto é maus tratos. Vacas, porcos e frangos são mortos de maneira brutal, sendo que a Constituição do Brasil garante proteção à fau-na e à flora, vedando práticas que submetam os animais à crueldade. Porém, grande par-te da população tende a acre-ditar que apenas animais de estimação estão sob a prote-ção da lei. Araras, porcos, le-ões, frangos, macacos, vacas e outros tantos seres animados

são transformados em objetos e mortos, traficados ou mau tratados da maneira que com-pensa, ou seja, a mais barata, a mais lucrativa.

É necessário ampliar a vi-são em relação ao que é con-siderado mau trato e em quais circunstâncias. Adotar um animal e deixá-lo em um lugar inadequado e com más con-dições de sobrevivência, sem água e sem comida é crime. A forma como os bois são man-tidos e tratados em rodeios é crime. A briga de galo é crime. A festa do boi é crime. E essas “tradições” ainda são pratica-das no Brasil em pleno século 21. Há muito o que amadure-cer na legislação brasileira em relação à proteção e aos direi-tos dos animais.

friam de depressão e depois do curso de pintura começa-ram a superar a doença e ver a vida de outra forma. “Quan-do eu cheguei na escola eu so-fria muito por causa da artrite, mas depois do meu trabalho consegui lidar com a doença e superá-la, é uma via de mão dupla, eu ajudo a APAE e eles me ajudam”, afirma.

EDuCAção

Ainda que existam mui-tas lacunas na luta pelo di-reito dos animais, uma im-portante conquista foi a lei aprovada pela Câmara Fe-deral que proíbe o uso dos animais em testes de cos-méticos. Após manifestação feita por ativistas, com o in-tuito de resgatar os cães que eram usados em testes pelo Instituto Royal, o projeto de lei foi apresentado. A partir de agora, as instituições que aplicarem testes serão mul-tadas no valor de R$50 mil a R$500 mil e as pessoas fí-sicas no valor de R$1 mil a R$50 mil.

SArAh GonçAlveS

VEJa o Ensaio FoToGrÁFiCo no siTE: http://jornalismo.ufop.br/lampiao

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9Arte: Geovani Barbosa

Julho de 2014

O coração das repúblicas ouropretanasPAmelA morAeS

O que você entende por “cuma-dre”? Em Ouro Preto, especifica-mente nas repúblicas estudantis, cumadre é a pessoa responsável pe-los afazeres domésticos da casa. Muito além do trabalho de uma em-pregada doméstica, de limpar, orga-nizar, cozinhar e passar, ela é vista como a mãe adotiva dos estudantes que passam pelas repúblicas.

São centenas de histórias úni-cas de afeto entre eles, como na Re-pública Dos Deuses, localizada no Bairro Rosário. A cumadre Tina Vi-cente Marques, mais conhecida por Tininha, é como uma protetora para os mais de 50 estudantes que já pas-saram pela casa desde sua chegada. “Cada dia que passo nesta casa é di-ferente. Eu adoro esses meninos, eles fazem todos os dias serem es-peciais”, Tininha conta emocionada.

Dos seus 58 anos de idade, 25 são dedicados à república. A dedi-cação é retribuída em forma de uma homenagem simbólica: Tina tem um quadrinho na sala principal. Pela tradição das repúblicas, recebem o quadrinho pessoas queridas que contribuem com a história da casa. Ela também recebe plano de saúde, pago pelos ex-alunos e moradores, e é sempre lembrada com visitas, al-moços e presentes em datas come-morativas como no seu aniversário, dia das mães e Natal. Tina, hoje, tem onze “filhos adotivos”, e seu maior orgulho é vê-los formados. “Eu já formei 37, e ainda faltam esses e

A cumadre da República Dos Deuses, Tina Marques, se orgulha do quadrinho que recebeu como homenagem da casa

os que virão. Se Deus quiser estarei aqui para a inauguração do quadri-nho deles”, complementa. Além dos cuidados com eles, a cumadre ainda toma conta de dois cachorros que, segundo ela, também são como fi-lhos, o Handu e o Odin. Tininha conquista gerações dentro da Repú-blica, de ex-alunos a atuais morado-res. Como Bruno Gonçalves, que a conhece há dois anos e tem um ca-rinho especial pela cumadre. “A Ti-ninha é nossa mãezona, ela faz a alegria dos nossos dias. Não tenho

palavras para explicar a importância dessa mulher”, declara.

A relação de companheirismo entre estudantes e empregadas tam-bém é vista em repúblicas femini-nas. Maria Madalena de Miranda, carinhosamente chamada de Madá, trabalha desde o ano da fundação na República Tanto Faz, que se en-contra no Bairro Pilar. Convive com 14 mulheres e o contato com elas é a sua maior motivação. Para Madá, o apoio de cada uma é fundamen-tal para manter-se nesses 27 anos

de emprego. Ela trabalhou em casa de família antes de conhecer a Tan-to Faz, e relata que o tratamento que recebe na república é completa-mente diferente. “Trabalhar em re-pública é tranquilo. Não sou tratada como empregada, eu que controlo meu trabalho. Essa casa também é minha, eu sou a segunda mãe dessas meninas e elas são a minha família”. A reciprocidade desse sentimento também é exposta: Madá se eterniza na república com a sua fotografia no quadrinho de homenageada.

PamEla moraEs

Na República Sinagoga, situa-da no Centro, a evidência dessa re-lação de cumplicidade é ainda mais comovente. No ano de 2010, a então cumadre Dercília de Oliveira Santos, a eterna Coró, recebeu dos denomi-nados sinagoganos a casa própria que tanto sonhou. Os rapazes tive-ram a ideia de homenageá-la com a compra da casa. A princípio, fo-ram em busca de um financiamento, mas optaram por unirem-se e jun-tarem o dinheiro. Em seis meses os ex-alunos da República arrecadaram a quantia e presentearam-na. O mo-rador da casa Thiago Huszar con-ta que a mudança de Dercília para a casa nova foi realizada pelos mora-dores da época e ex-alunos.

Foram 18 anos empenhados na república e, segundo Thiago, a cumadre adoeceu em decorrência de um aneurisma. Além do apoio de to-dos, recebeu toda a ajuda de custo para o tratamento. Mas, para a triste-za dos membros da Sinagoga, mor-reu no ano passado. “Ela era uma verdadeira mãe para nós”, lamen-ta Thiago. Com a perda de Dercília, sua filha de criação Lucinéia assu-miu o trabalho, prevalecendo o con-tato entre a família e a república.

O elo entre cumadres e estudan-tes vai além do contato entre empre-gada e patrão. Elas são símbolos de laços maternos. Cuidam, protegem, dão conselhos, carinho e são uma expressão presente de amor para os estudantes que deixam suas casas e encontram nelas um colo.

A fé como essência de vidaA caminho do sacerdócio, jovens depositam seu amor em Deus e dedicam oito anos para a descoberta vocacional

déborA SimõeS Há 263 anos, o Seminário de

Mariana, o primeiro de Minas Ge-rais, foi fundado pelo Bispo Dom Frei Manuel da Cruz. Com o tempo foi desmembrado e ficou conheci-do como seminário São José. Atual-mente é dividido entre o Propedêu-tico, localizado em Barbacena, o Instituto de Teologia e a Faculdade Arquidiocesana de Mariana (FAM), responsável pela escola de Filosofia.

O seminário recebe seminaristas das arquidioceses de Divinópolis, Governador Valadares e Mariana.

Como Luis Fernando Cruz, 19 anos, que veio da diocese de Divinó-polis, localizada no centro oeste mi-neiro, natural de Itaúna, mudou-se para estudar Filosofia na FAM.

Para Luis Fernando, a razão de estar no seminário é a vontade de querer levar Deus para o coração das pessoas. “A fé é o que dá sentido na nossa vida, sem ela tudo fica me-cânico” acredita o seminarista.

Diretor da FAM, padre Edmar José da Silva, 38, além de lecionar ajuda os seminaristas na descoberta da vocação, ele afirma ser um gran-de desafios, “todos estão aqui por-que entenderam que Deus os cha-mou discernir seus caminhos”.

Luis Fernando conta que seu processo de descoberta vocacional foi longo e se deu pelo contato com a igreja. Foi coroinha, acólito e par-ticipou do grupo de jovens. Está no segundo ano de Filosofia e diz ter um longo caminho a seguir. Esco-lher o caminho do sacerdócio e sair de casa não é fácil. “Eram 3h da ma-drugada e ainda não tinha arrumado minhas malas. Meu pai foi quem me ajudou a dar o primeiro passo”. Luis Fernando diz que a família sempre o apoiou, mas alguns amigos não en-tenderam sua escolha.

As etapas para o processo forma-tivo são muitas. Ao sentir que pode-ria ter vocação, Luis procurou o pa-dre de sua igreja e pediu conselhos sobre o sacerdócio. Depois foi para encontros vocacionais, onde teve o contato inicial com o seminário.

Luis Fernando fez o primeiro ano em Divinópolis, denominado propedêutico, onde os seminaristas têm uma intensa experiência de vida comunitária, aprofundam os estu-dos e refletem sobre o discernimen-to vocacional. Em Divinópolis, não há faculdade de Filosofia, por isso veio para Mariana. Ele está no se-gundo ano, no total são três de Fi-losofia. A última etapa é a Teologia, com duração de quatro anos, Luis cursará em Belo Horizonte.

Por ser bastante comunicativo, após se ordenar padre, Luis deseja, se a igreja permitir, especializar-se em comunicação para trabalhar com os meios que a igreja oferece, como rádio e televisão.

Dimensões da vidaNo processo de formação o se-

minarista é avaliado em cinco di-mensões da vida humana: espiritu-al, acadêmica, pastoral, comunitária e humana afetiva. A espiritual se dá por momentos de oração e reflexão.“O padre é o homem da fé, ele ajuda as pessoas irem ao encon-tro de Deus”, afirma Padre Edmar.

A dimensão acadêmica é o estu-do da filosofia e da teologia, O pri-meiro é para dialogar com o mundo externo: “O padre não pode se fe-char para a realidade do mundo” diz Padre Edmar. O segundo para en-tender as “verdades da fé”. Na pas-toral os seminaristas visitam as co-munidades da cidade nos fins de semana, para terem contato com as pessoas e às ajudarem. Há dois anos no seminário, Luis Fernando entrega-se às doutrinas da Igreja

A Faculdade Arquidiocesana de Mariana (FAM) foi fundada em 2003 pelo bispo Dom Luciano, com o intuito de reconhecer o curso de Filosofia do seminário perante o go-verno. O curso já existia, os semina-ristas estudavam em Mariana. Mas para receber o diploma tinham de apresentar a monografia na Pontifí-cia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

Reconhecida como faculdade, a FAM também oferece o curso de Filosofia para os não seminaristas. Os interessados devem se inscrever para o vestibular, que acontece anu-almente. Contudo não há muita pro-cura do público externo, pois além da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) disponibilizar o curso de filosofia, as aulas acontecem no período da manhã, o que segundo padre Edmar, não gera interesse.

O corpo docente é formado por 12 professores, entre eles padres e não sacerdotes. A instituição tam-bém oferece um curso de extensão em Filosofia e Teologia para a co-munidade. São abertas 30 vagas por ano, atualmente a FAM tem cerca de 50 alunos. As aulas são se segunda a sexta das 07h30 ao 12h05.

Curso de Filosofia

RELIGIão

PamEla moraEs A dimensão comunitária é para os seminaristas afastarem o egoís-mo. “É um grande desafio, porque hoje vivemos numa cultura de indi-vidualismo”, afirma o padre Edmar. Eles cuidam da limpeza, horta e jar-dim do seminário.

A humana afetiva é para o semi-narista se conhecer.: “Ele deve ter auto domínio e aprender a lidar com sentimentos e emoções humanas”, conta padre Edmar. Para isso há um acompanhamento psicológico.

tRABALho

Page 10: Jornal Lampião - 15ª Edição

10 Arte: Ana Luísa Reis

Julho de 2014

Todos os dias era um vai e vemHá três décadas, com o fim do transporte de passageiros, as cidades estão órfãs; na memória, os registros de saudade

Terra de lembranças, vozes históricas

Rua Frei Durão, em Mariana, na década de 1940 e nos dias atuais: passagem do tempo não apaga recordações da cidade

memóRiA

Bruno AritA

Memórias são como pes-soas. Se lembradas, vivem para sempre, são atemporais. Se es-quecidas, morrem, desapare-cem. Arrisco-me a dizer que Mariana é uma cidade imortal. Não pela obviedade histórica que ela passa, mas pelo orgu-lho e carinho de pessoas que não permitem que o passa-do desapareça.

Como as lembranças de um fotógrafo e retratista de 68 anos morador da cidade. Que vão desde registros fo-tográficos antigos até a histó-ria dos degraus da entrada do Museu da Sé, desgastados e afundados pelo lamber do sal dos bois na época da minera-ção. Lembra como se tivesse fotografado esse momento. Também parece que foi con-temporâneo à época da cons-trução das duas igrejas da Pra-ça Minas Gerais, pela maneira que conta. Eram feitas enor-mes rampas, que hoje são ocupadas pelas escadarias das Igrejas. Estas foram ergui-das e preenchidas com terra por dentro. E o retratista ain-da indaga “Já viu o tamanho do sino? Imagina subir aqui-lo por corda. Não passava pe-las aberturas laterais, tinha que ser por dentro mesmo”.

ou a usava la mesmo, para as necessidades comuns do dia a dia. O carinho aumen-tou em sua fala quando lem-brou dos tempos de frio na infância. “No inverno, mamãe esquentava a água em tacho de cobre e todos tomavam ba-nho de caneca”. É impossível não imaginar tudo isso. O ta-cho apareceu ali, bem a minha frente. A imagem da mãe es-quentando a água, o senhor que era menino tremendo de frio esperando o banho. Por palavras e momentos tão coti-dianos e comuns, um passado distante se fez muito presente. Criam-se realidades, trocam-se experiências que unem ge-rações em alguns minutos.

Mariana então existe por aqueles que trazem à vida tudo que é resumido pelo que entendemos da palavra sauda-de. Terra moldada em um pre-sente que se altera. Será lem-brada por quem a constrói hoje, em um futuro certamen-te diferente. Os degraus do Museu, a construção das Igre-jas, o  Jardim das flores e dos amores, personagens marcan-tes. Além de outras inúme-ras histórias que estarão vivas, não só em arquivos históri-cos, mas também nas vozes de novas gerações da cidade.

A dona de um comércio no centro da cidade e companhei-ra de vida do retratista, recor-da com muito carinho os cau-sos de Mariana. Um deles é o do Senhor Ivo. O anão jardi-neiro da Praça Gomes Freire, o tão querido Jardim. Quando o assunto era cuidar das plan-tas, ele se fazia gigante. Perso-nagem de infância, ela o com-para carinhosamente ao gato de botas. Ambos usavam tais

botas e tinham um porte fí-sico que não combinava com elas. O antigo Coreto, que está lá até hoje, possui uma entrada pequena na lateral. Era praticamente um portão para o anão, que passava por ele tranquilamente.

A vegetação cipreste que cercava a Gomes Frei-re, e que um dia já foi cui-dada pelo bravo Ivo, assistiu e eternizou grandes momen-

tos. Alguns contados por um viajador e vivido senhor de 80 anos, que está em Maria-na desde 1939 e diz que mui-tos amores nasceram na pra-ça. Os rapazes iam ao Jardim para olhar as moças e achar uma namorada. Muitos na-moros de lá deram até em ca-samento. Durante o prosear todo, houve uma coincidên-cia agradável: ele e o fotó-grafo são amigos de juventu-

de. “Moramos juntos ali, na atual Rua Dom Silvério. Ele é fotógrafo, você sabia dis-so? Apesar dele ser mais novo que eu, deve saber de muita coisa daqui”.

Com ar nostálgico ain-da falou sobre a Fonte da Sau-dade,  que  ficava  no  fim  da atual Rua Wenceslau Braz. A literalidade do nome des-sa fonte traz recordações de um povo que buscava água

márcio eustáquio AlessAndrA Alves

AlessAndrA Alves

Aprigio VilAnoVA

Passados 100 anos da construção da Estação Ferro-viária de Mariana, o que resta é saudade, histórias e o prazer de alguns personagens ao fa-lar da época em que as viagens eram feitas de trem. O aban-dono do sonho do transpor-te ferroviário de passageiros, mais seguro, econômico e efi-ciente,  significou  uma  perda com conseqüências materiais e imateriais para o país.

Das 23 estações do ramal, só quatro foram restauradas pela Vale para a implantação do trem turístico: Mariana, Passagem de Mariana, Vitori-no Dias e Ouro Preto. As ou-tras estações estão abandona-das, algumas em ruínas.

O projeto de interligar o país por trilhos, iniciado com o Barão de Mauá, em 1856, no Império de Dom Pedro II, foi deixado de lado definitiva-mente no governo de Fernan-do Henrique Cardoso, com a privatização da rede ferroviá-

ria. O trem de passageiros da cidade de Mariana foi extinto na década de 1980.

A cidadeA Mariana da época do

trem de passageiros em nada se parece com a cidade dos dias de hoje. A região onde funcionava a estação ferrovi-ária era um descampado e, em frente, foi construída a Fabri-ca de Tecelagem, em 1933.

A ferrovia trouxe trans-formações econômicas para a cidade.  Intensificando  assim, o movimento de pessoas, in-clusive operários.

Segundo o ex-maquinis-ta Pedro de Oliveira, que co-meçou a trabalhar na rede ferroviária em 1954, a cidade de Mariana se transformou a partir da ferrovia. “A região da estação era um brejo, ha-via poucas casas e uma lagoa, onde o pessoal vinha pescar. No lugar onde construíram a atual sede da Prefeitura existia um lindo jardim e uma praça

com uma fonte. Atrás da es-tação existiam muitas pitan-gueiras. O pessoal vinha aos domingos passear na região e colher pitangas”, lembra.

A cidade funcionava em torno da estrada de ferro. Cer-ca de 12 mil habitantes era a população de Mariana até a década de 1980. As notícias, as mercadorias para abaste-cer o comércio e as que saiam de Mariana, o transporte dos funcionários da fábrica, dos professores, de pessoas que deixavam seu lugar e de ou-tros que chegavam para um novo lar. O trem entrava de vez no cotidiano da cidade.

A professora Glória Ce-lestino viveu sua infância e adolescência na estação, seu pai era funcionário da Estra-da de Ferro Central do Bra-sil (EFCB). “Quando o trem ia chegar as pessoas corriam para ver. A chegada e a par-tida eram sempre um acon-tecimento na vida da cidade. As pessoas se produziam para

vir, o passeio na estação era o programa mais badalado da cidade”,declara a professora.

Meu casteloNa década de 1950, Gló-

ria Celestino era uma crian-ça de seis anos e seu pai, Vi-cente Celestino, funcionário da administração da ferrovia. Ela dividia seu tempo entre a escola e a estação. “Eu vinha sempre a estação trazer o café para meu pai, roupas e cober-tas para os dias em que ele pernoitava” diz.

O movimento na esta-ção não parava. As crianças iam para brincar e Glória es-tava sempre no prédio e nu-tria uma relação especial com o espaço: “Aqui (a estação) era meu castelo. O prédio grande com torres me fazia crer que era meu palácio. Ideal para a diversão das crianças. Eu co-nhecia a estação de ponta a ponta” esclarece .

A menina Glória também tinha outros motivos que a

atraiam. O aparelho de comu-nicação entre as estações fas-cinava a menina. “Eu vinha também por que adorava falar no teleponto. Nem sempre eu falava, mas as vezes meu pai permitia. Eu achava o máxi-mo”, relembra.

Fogo e chuva O ex-maquinista Pedro de

Oliveira trabalhou na EFCB durante 35 anos. Foram 20 anos como auxiliar e 15 como maquinista. Pedro lembra da locomotiva que comandou nesses 15 anos. “Era a 1511, uma locomotiva de fabrica-ção americana.Eu vivia via-jando, o tempo todo. Fazia a linha Ponte Nova – Belo Ho-rizonte, e de tanto viver via-jando não consegui acompa-nhar o crescimento dos meus filhos” lamenta.

O trabalho na Maria Fu-maça exigia esforço. “O cabra tinha que ser macho. Dentro da máquina era pesado, quan-do liberava a água na forna-

lha subia aquele vaporzão e eu ficava doidão. Jogava o va-por para fora, colocava car-vão para dentro e ficava nisso até a máquina atingir a cali-bragem ideal. Saia carvão até do meu nariz e eu vivia com a mão cheia de calos, parecia até um trabalhador rural. Naquela época era fogo no peito e chu-va nas costas” desabafa.

A casa onde o ex-maqui-nista reside hoje foi compra-da graças ao trabalho na Es-tação Ferroviária. “Comprei minha casa a vista com o sa-lário que recebi em apenas um mês de trabalho. Era tanto di-nheiro que não cabia nos bol-sos, tive que levar tudo numa sacola. Nesse mês fiz 200 ho-ras extras. Era mais dinheiro de horas extras do que do pró-prio salário” recorda orgulho-so o ex-maquinista.

conHeÇA um Pouco mAis soBre A HistÓriA do trem em: www.jornalismo.ufop.br/lampiao

Distrito de Bandeirantes, conhecido como Ribeirão do Carmo, fazia parte da rota do trem que levava viajantes ao Rio de Janeiro. A estação, hoje abandonada, é ocupada apenas por lembranças

Page 11: Jornal Lampião - 15ª Edição

11Arte: Ana Luísa Reis

Julho de 2014

Banda que encanta geraçõesA Sociedade musical São Sebastião de Passagem de mariana forma musicistas gratuitamente há 104 anos

kAtiuscA demetino

Regido por amor à música , Zé Mauro transmite seus ensinamentos a jovens aprendizes na mesma instituição em que ele estudou

Projeto revela talentos em MarianaAdriAno SoAreS

A  tentativa  de  modificar o ser humano pela arte: foi com este intuito que a pro-fessora Andréa Maria Fer-reira, 48 anos, começou a re-alizar o projeto Luz em Sol Maior, que ocorre duas ve-zes por ano no teatro SESI, em Mariana. Desde 2005, o evento tem como principais objetivos, apresentar o talen-to de crianças e adolescentes das comunidades e arrecadar fundos para entidades como o asilo Lar Santa Maria e a co-munidade da Figueira.

O projeto começou 20 anos atrás. O então pároco da cidade, o Padre Paulo Barbo-sa, percebeu que as crianças paravam de frequentar a Igre-ja depois da Primeira Eucaris-tia. Para atraí-las, ele resolveu criar um coral, chamado An-

gelus, que se apresentava nas missas de domingo.

No início participavam cerca de 120 crianças. Entre-tanto, com o passar dos anos, o grupo começou a diminuir até chegar a 30 frequentes. An-drea que já coordenava o pro-jeto, percebeu que as crianças que saíram do coral estavam se envolvendo com drogas, entre outros problemas.

A primeira saída encon-trada para atrair as crianças foi  diversificar  as  atividades. “Era um número muito alto para deixar na rua. Então, co-meçamos a sair mais com eles pela cidade, fazer piquenique, ir para sítios. Nós percebe-mos que quando tinha algum passeio as crianças apareciam; quando voltava à rotina, o nú-mero caía de novo”, conta a coordenadora do projeto.

Outra solução encontra-da foi o recital de Natal, que servia para reunir o coral An-gelus com grupos dos bair-ros Cabanas e São Gonçalo, além de encerrar a novena na-talina. Nessa apresentação os coordenadores perceberam que algumas crianças que ti-nham deixado o projeto esta-vam formando pequenos gru-pos artísticos em seus bairros. Então, desenhou-se um novo projeto que deixou de ser ape-nas o coral Angelus e passou a se chamar, por sugestão do violonista Antônio Carva-lho, Luz em Sol Maior. “Todo mundo gostou. O pessoal per-guntou se continuaria cantan-do só na igreja. Eu disse não, nós vamos montar um gru-po de dança, então vai cantar quem quer cantar e vai dançar quem quer dançar”, revela.

No ano de 2005, Dom Lu-ciano Almeida conversou com os coordenadores do proje-to e revelou sua preocupa-ção com o consumo de dro-gas na cidade. “Nós estamos nos preocupando muito com a coisa de cantar, com a Igre-ja, mas o ser humano, estamos esquecendo de trabalhar. Te-mos que arrumar um jeito de atrair essas crianças para nós de vez”, relembra Andrea.

No mesmo ano aconteceu a primeira edição do Luz em Sol Maior no SESI, que con-tou com cerca de 40 crian-ças participantes. Desse even-to firmou-se a parceria com o teatro, que cobra uma taxa de R$350 para a utilização do es-paço. O que é arrecado pela bilheteria é revertido para en-tidades que precisam de pro-dutos de limpeza, hidratante corporal e mantimentos.

Do trabalho do Luz em Sol Maior, Andrea chegou a conclusão de que a transfor-mação social é o combustí-vel para continuar à frente do projeto. “Eu não consi-go olhar para a realidade, para essa injustiça social ao meu lado, ver que posso fazer al-guma coisa e ficar com braços cruzados, reclamando. Não vou acabar com o uso de dro-gas em Mariana. Mas que eu posso resgatar uma criança, eu  posso,  já  fiz,  e  vou  conti-nuar fazendo”, relata a profes-sora, que também é coorde-nadora das crianças do grupo artístico “Arte, Cor e Raça”, uma das atrações do evento Luz em Sol Maior que ocor-reu este ano.

Luz em Sol Maior destaca jovens em evento de música e dança

Grupo comemora com entusiasmo o final de semana de apresentações no SESI Mariana

O espetáculoDiferente dos eventos

dos anos anteriores, a primei-ra edição do projeto Luz em Sol Maior, ocupou o SESI por dois dias, 30 e 31 de junho.

O primeiro dia de apresen-tação foi dedicado ao canto: com o título “Vem cantar Bra-sil”, crianças e adolescentes apresentaram os seus talentos. Não seguiram um único esti-lo: os jovens cantaram MPB, Rock e Sertanejo. Ao todo, fo-ram 14 grupos.

No segundo dia seguiram-se as apresentações de dan-ça, que contaram com gru-pos dos bairros e de distritos como Passagem e Monsenhor Horta. Houve também a par-ticipação de representantes

de outras cidades como Ouro Preto e Divinópolis.“Chega no dia da apresentação todo mundo quer participar. Só que nós temos duas horas de con-trato com o SESI, nossa ideia é de levar o movimento pra rua, porque está se amplian-do”, conta a coordenadora.

A renda obtida através da bilheteria foi revertida para o asilo Lar Santa Maria, que es-tava precisando de hidrantan-tes. A próxima edição do Luz em Sol Maior já está agendada para o dia nove de novembro.

AnA AméliA de melo mAciel

Ao se chegar à sede da So-ciedade Musical São Sebas-tião (SMSS) em Passagem de Mariana no horário da aula de música depara-se com um enorme salão e um palco de tábua corrida ao fundo. Al-guns jovens estão em torno de um adulto, muito empol-gados com seus instrumentos que nem percebem a presença de outras pessoas.

José Mauro, conhecido como Zé Mauro, não gosta da denominação de professor nem de contramestre. Argu-menta que só está repassando o conhecimento que adquiriu ali e, de certa forma, retribuin-do o que a Sociedade fez por ele quando era mais novo. Foi convidado a aprender música há 42 anos por Firmino Fran-cisco de Assunção, atual presi-dente de honra da SMSS, que o ensinou não só a tocar ins-trumentos, mas também o ofí-cio de torneiro mecânico, que é sua profissão até hoje.

A relação de ensinar músi-ca e colocar o sujeito para ca-minhar pelas próprias pernas em algum ofício permanece na Sociedade. Os aprendizes, que muitas vezes vêm de fa-mílias humildes, são instruí-dos nas notas musicais e tam-bém nos valores morais. E, quando possível, são encami-nhados como Menor Apren-diz para empresas da região.

Ao ingressarem, os alu-nos têm aulas sobre leitura das

partituras e escolhem qual ins-trumento desejam aprender, podendo levá-lo para praticar em casa (sendo exigido ape-nas sua preservação). A ban-da São Sebastião tem um es-tatuto de conduta que prevê o respeito ao espaço e ao próxi-mo e as normas de comporta-mento na sede e nas apresen-tações realizadas.

Alguns jovens são atraídos pelas viagens que a banda faz para tocar, outros pelo interes-se de aprender algo diferente. Há aqueles que, pelo conta-to com os aprendizes, desco-brem as experiências positivas

e se interessam. Para manter estes alunos, são oferecidos alguns incentivos no final dos ensaios, como brindes, algu-mas vezes, até lanches.

Para quem se interessar em aprender algum instrumen-to de sopro, as aulas ocorrem gratuitamente, de segunda a sexta-feira, a partir das 18h30, para todas as idades.

Recursos

A Sociedade Musical São Sebastião é uma organiza-ção sem fins lucrativos. Aque-les que prestam algum serviço são voluntários e o fazem por

carinho à banda e sua história. Como para Firmino, que diz frequentar o local por amor.

A Prefeitura de Mariana concedia a cada banda uma verba anual de R$9 mil. A So-ciedade da Bandas de Músi-cas de Mariana e Distritos é composta por 11 bandas. E no ano passado conseguiu, em reunião com o prefeito Celso Cota, que a verba anu-al aumentasse para R$20 mil e que fosse oferecida uma verba complementar para a confec-ção de novos uniformes.

O maestro Daltro de Pau-la Novaes alega que, além dos

gastos com a manutenção da sede, há ainda a conservação e a aquisição de instrumentos. Esta última é a mais cara. Sen-do estas despesas muito altas, a SMSS realiza festas duran-te o ano para arrecadar fun-dos e aluga parte da sede para uma escola infantil municipal. Mas, o que sempre manteve a Sociedade foram as apresen-tações que são realizadas em outros distritos.

HistóriaA Sociedade Musical São

Sebastião possui 104 anos. Começou como Sociedade

Beneficente  Operária.  Nesta junta foi formada uma ban-da, que ficou de posse da sede na Praça Capitão Ignácio 44, no Centro de Passagem, quan-do a Sociedade se desfez. Em janeiro de 1910 esta banda se nomeou como Sociedade Mu-sical São Sebastião.

Atualmente a banda conta com 42 músicos e 18 apren-dizes. Muitas pessoas que co-meçaram na SMSS, hoje ga-nharam o mundo e fazem sucesso. João Cavalcante é um dos que tiveram maior desta-que. Ele foi maestro da banda por muito tempo e, anos de-pois, fundou a Orquestra Sin-fônica de Minas Gerais.

O aniversário da banda é comemorado no dia 10 de ja-neiro, dia do padroeiro secun-dário de Passagem de Maria-na, São Sebastião. Sempre no primeiro domingo após esta data, é realizada uma alvorada. Enquanto a banda passa pelas ruas do distrito de manhã, al-gumas pessoas se juntam a ela, outras  ficam  observando  nas janelas de suas casas. E juntos formam um grande cortejo a São Sebastião. Algumas resi-dências fazem um farto café da manhã e convidam a banda para entrar e se servir. Após o toque, é um oferecido um al-moço na sede da Sociedade.

veJA mAis Fotos dA BAndA sÃo seBAstiÃo em: www.jornalismo.ufop.br/lampiao

CULTURA

kAtiuscA demetino

kAtiuscA demetino

Fotos do evento luZ em sol mAior em: www.jornalismo.ufop.br/lampiao

Page 12: Jornal Lampião - 15ª Edição

12 Arte: Anna Antoun

Julho de 2014

COM ORGULHO E MUITO AMOR

Mãos dadas, sorrisos abertos, bandeiras nas costas. O céu azul dá

margem ao verde e amarelo que enla-çam os torcedores pelas ruas históricas da

cidade de Ouro Preto. É alegria que trans-borda! Das sacadas, torcedores avisam aos

que passam pela rua: “é Brasil, vamos lá!”. No embalo dos passes dos jogadores, vão os

olhares do público que não perde nenhum lan-ce no telão. É gol! Olhares se cruzam e os sorrisos

conversam, é brasilidade.

Vestindo a camisa canarinha, to-dos se tornam uma única massa. Nesse instante, os abraços valem até mesmo em desconhecidos. É assim que se vê a paixão por um esporte e um país: re-fletida em gestos e gritos de incentivo. E a heroína daquela tarde de Copa do Mundo no Brasil foi a emoção da torcida brasileira, que entre chutes na trave e pênaltis, mãos na cabeça e gritos de alívio embalou sua paixão com a frase: “Eu acredito!”.

Marília Ferreira

(texto e Fotos)