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ano: 2012 . nr 23 . mês: Junho . director: António Serzedelo . preço: 0,01 € http://jornalosul.hostzi.com 06 . 12 NR 23 Ilustração Dinis Carrilho As cuidadoras dos acampamentos Vários foram os autores e organizações que, em diversas ocasiões, ao longo de mais de três décadas, sublinharam a importância do papel desempenhado pelas mulheres saharauís quer na construção dos acampamentos de refugiados em Tindouf, como na luta pela independência. O conflito existente originou a divisão da população saharauí, de um lado do muro construído por Marrocos, ficaram os que permaneceram no Sahara Ocidental ocupado, do outro, os que fugiram para o sudeste ar- gelino. Em ambos os casos, a mulher tem um papel preponderante na luta pela libertação. Temendo a invasão de Marrocos e Mauritâ- nia, em 1975, a população civil iniciou um processo de fuga rumo a leste, ao deserto. Enquanto os homens lutavam no Exército de Libertação do Povo Saharauí (EPLS), mulheres, crianças e idosos insta- laram-se no maior deserto quente do mundo, onde a extremidade das temperaturas origina difíceis condições de vida, “não havia nada (…) as mulheres, através das suas melfas (traje típico) ação e construção dos acam- pamentos, muitas vezes, sem qualquer apoio masculino, criaram os seus filhos sozinhas e, cedo, os viram partir para países como Líbia, Argélia ou Cuba, para concluírem os seus estudos. Adaptaram-se, sentiram a morte de cada mártir, readaptaram-se ao regresso dos homens, aos tem- pos de “paz”. Do ponto de vista público e político, a União Nacional de Mulheres Saharauís tem uma visibilidade internacional notória e, dando a conhecer o conflito existente e o papel desempenhado pelas mulheres na sociedade saharauí. Relativamente à ocupação de cargos políticos, existem actualmente cinco ministras em vinte e um ministérios, sendo que no que se refere à administra- ção dos acampamentos, as responsáveis por cada bairro são geralmente mulheres. Do ponto de vista profissional, representam uma maioria esmagadora nas escolas, jardins-de-infância e cargos administrativos. Do ponto de vista da formação, existem diversos centros onde as mulheres acedem a vários tipos de formação. A mulher mantém bem saliente o seu “papel de cuidadora” (Caratini 2006, 8), apresentando-se como um elemento- chave dentro de casa. É frequente existirem casas em que, por diversas razões, o homem está total ou parcial- mente ausente, tal como os delegados da Polisário noutros países, militares ou porque simplesmente houve um divórcio, “o meu pai só está cá [nos acampamentos] um mês por ano (…) a minha mãe [para mim] é tudo, mãe e pai”, comentou um jovem. Autores como Sophie Caratini, entre muitos outros, defenderam que a revolução Saharauí permitiu a ascensão social das mulheres, que adquiriram “um status praticamente sem igual no mundo árabe” (2006, 9). Rita Marcelino dos Reis Antropóloga

Jornal o Sul Junho

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Jornal cultural e de debates

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ano: 2012 . nr 23 . mês: Junho . director: António Serzedelo . preço: 0,01 €

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As cuidadoras dos acampamentos

Vários foram os autores e organizações que, em diversas ocasiões, ao longo de mais de três décadas, sublinharam a importância do papel desempenhado pelas mulheres saharauís quer na construção dos acampamentos de refugiados em Tindouf, como na luta pela independência.O conflito existente originou a divisão da população saharauí, de um lado do muro construído por Marrocos, ficaram os que permaneceram no Sahara Ocidental ocupado, do outro, os que fugiram para o sudeste ar-gelino. Em ambos os casos, a mulher tem um papel preponderante na luta pela libertação. Temendo a invasão de Marrocos e Mauritâ-nia, em 1975, a população civil iniciou um processo de fuga rumo a leste, ao deserto. Enquanto os homens lutavam no Exército de Libertação do Povo Saharauí (EPLS), mulheres, crianças e idosos insta-laram-se no maior deserto quente do mundo, onde a extremidade das temperaturas origina difíceis condições de vida, “não havia nada (…) as mulheres, através das suas melfas (traje típico) ação e construção dos acam-pamentos, muitas vezes, sem qualquer apoio masculino, criaram os seus filhos sozinhas e, cedo, os viram partir para países como Líbia, Argélia ou Cuba, para concluírem os seus estudos. Adaptaram-se, sentiram a morte de cada mártir, readaptaram-se ao regresso dos homens, aos tem-pos de “paz”. Do ponto de vista público e político, a União Nacional de Mulheres Saharauís tem uma visibilidade internacional notória e, dando a conhecer o conflito existente e o papel desempenhado pelas mulheres na sociedade saharauí. Relativamente à ocupação de cargos políticos, existem actualmente cinco ministras em vinte e um ministérios, sendo que no que se refere à administra-

ção dos acampamentos, as responsáveis por cada bairro são geralmente mulheres. Do ponto de vista profissional, representam uma maioria esmagadora nas escolas, jardins-de-infância e cargos administrativos. Do ponto de vista da formação, existem diversos centros onde as mulheres acedem a vários tipos de formação. A mulher mantém bem saliente o seu “papel de cuidadora” (Caratini 2006, 8), apresentando-se como um elemento-chave dentro de casa. É frequente existirem casas em que, por diversas razões, o homem está total ou parcial-mente ausente, tal como os delegados da Polisário noutros países, militares ou porque simplesmente houve um

divórcio, “o meu pai só está cá [nos acampamentos] um mês por ano (…) a minha mãe [para mim] é tudo, mãe e pai”, comentou um jovem.Autores como Sophie Caratini, entre muitos outros, defenderam

que a revolução Saharauí permitiu a ascensão social das mulheres, que

adquiriram “um status praticamente sem igual no mundo árabe” (2006, 9).

Rita Marcelino dos ReisAntropóloga

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A corrupção alimenta a crise

O Teatro é uma arma!

“A corrupção alimenta a crise”, diz-nos a ONG alemã “Transparency”, no seu recente relatório “Dinheiro, política, e poder, perigos de corrupção na Europa”. Nele se diz que Espanha, Grécia, Itália, e Portu-gal são casos claros de como a ineficácia, falta de transparência, leis pouco claras, abusos e corrupção não estão bem controlados, ou se-quer convenientemente sancionados. Tudo paí-ses a braços com sérias questões financeiras, e da dívida so-berana. O relatório acrescenta que o financiamento dos partidos políticos não está bem regulado nestes países e por isso, é fonte de uma enorme corrupção, que prejudica a econo-mia. Nem sequer os códigos de boas condutas servem, porque estão cheios de buracos, convenientemente feitos, para permitir escapadelas.

Assim, se por um lado, há resgates financeiros e económicos em curso, por outro, todos já temos a noção clara, é preciso resgatar a Democra-cia, face à partidocracia, que tomou

hoje conta do Estado. Mas ninguém o faz… É o grande esquecimento. Sabemos, claramente, que muitas instituições representativas do Esta-do foram tomadas por interesses privados, cor-porativos, ou por secto-res económicos, muito

afastados dos interesses dos cidadãos e do Bem Comum. Sectores como o sistema financeiro (bancos), Banco de Portugal (reguladores), Parlamento (partidos),poder judicial (tribunais), Tribunal Constitucional (eleição dos juízes), Autonomias (Madeira), Governos (com pouca ou nenhuma legitimidade), Partidos (envolvidos no jogo da alternância), todos são palcos

de luta intestinas ou interesses que põem em causa a Democracia, ao serviço do Bem Comum. E o pior é que, embora se saiba tudo isto muito bem, as mudanças necessárias não estão ainda na agenda política, uma vez que os que precisam de ser refor-mados, seriam as principais vítimas dessas mudanças. Daí que ponham todos os entraves possíveis a quais-quer alterações, para que não sejam levadas a cabo, com muitos argu-mentos jurídicos, éticos, políticos, etc, para se justificarem.

Assim, o Estado de Direito está cada vez mais transformado num Estado de Partidos, cujo único ob-jectivo é a alternância partidária para conquista do Poder, para depois dis-tribuírem prebendas e benefícios às suas clientelas. A “Transparency” diz: “o financiamento dos partidos políti-cos está mal regulada, ou então, tem tantos buracos, feitos propositada-mente…”. Agora, que estamos a assis-

tir a tentativas de redefinir o Estado Social, devido a uma Europa que se calculou mal, pelo menos a partir da criação do Euro, também devíamos definir, em nome dos interesses da Cidadania, os limites da Partidocracia que envenena, duramente, a nossa economia. É o momento de nos in-dignarmos!...

Não é necessária uma nova Cons-tituição, basta identificá-los, um a um, os buracos democráticos, isolá-los e libertá-los da Partidocracia, para se progredir muito mais rapidamente, em termos de igualdade e distribuição da riqueza pela Cidadania. “A corrup-ção alimenta a crise”, diz-nos a ONG alemã “Transparency”, no seu recente relatório “Dinheiro, política e poder, perigos de corrupção na Europa”.

António SerzedeloEditor do programa de

radio Vidas Alternativas [email protected])

“A cultura, sob todas as formas de arte, de amor e de pensamento, através dos séculos, capacitou o homem a ser menos escravizado”. André Malraux

O Teatro Estúdio Fontenova levou à cena no passado mês de Maio, o texto do consagrado autor catalão José Sanchis Sinisterra “O Cerco de Leninegrado”. O espectáculo contou com a encenação de José Maria Dias e as interpretações de Graziela Dias e Sara Costa.

Esta criação é baseada nas me-mórias de duas mulheres que vivem entrincheiradas num velho teatro em que o peso do tempo se abate sobre as suas fundações, lutando e nunca se rendendo, combatem a demolição anunciada do espaço que encarnou muitas das alegrias, lutas e tristezas que foram a sua existência.

Para o encenador, este “Teatro” «é uma metáfora para tudo o que se desmorona e que tem o fim anun-ciado por imposições tecnocratas e economicistas.»

Em contraponto à “espuma dos dias”, José Maria Dias afirma a intenção da «envolvência da parti-lha e da aproximação de todos nós aos tempos perigosos e difíceis que atravessamos, em que se desmorona o estado social e tentam apagar as memórias e desfazer os sonhos e as utopias.» Para tal, «o Teatro Estúdio Fontenova apelou à comunidade em

geral a participar no processo criativo de um espectáculo. Participação que consistiu na angariação e cedência de um objecto (ele mesmo memória ou símbolo de uma memória), que foi o ponto de partida para o ambiente cénico do espectáculo.»

O texto de Sinisterra escrito em 1994, infelizmente não carece de ac-tualidade, principalmente pela forma como as Artes e a Cultura têm vindo a ser tratadas nestes últimos tempos pelos governantes deste cantinho à beira-mar plantado. Poderia muito bem ter sido um grito de rebeldia em forma de palavras de um autor por-tuguês no meio da política de terra queimada a que assistimos, tal a sua contemporaneidade.

O espectáculo oferece-nos um toque humanidade profundo, princi-palmente pelas excelentes actuações de Graziela Dias e Sara Costa. As suas personagens poderiam facilmente cair na co-média fácil e na cari-catura, estereótipos em que muitas vezes se retratam os mais velhos de nós. Tal não sucede. As duas mulheres, ape-sar das vicissitudes que lhes trouxe o envelhecer, têm memória mesmo quando esta às vezes falha, seja a sua ou a co-lectiva, têm consciência daquilo que tentaram construir e ousaram sonhar, têm a dignidade dos passos trilhados em tempos adversos no caminho que é a Utopia.

São personagens que têm a ca-pacidade de rir de si próprias não dos mais fracos e que afrontam os poderosos apesar de todas as suas lacunas. Pelo meio a magia na perso-nagem de Sara Costa, que vai ficando mais jovem com o passar do tempo, e, rejuvenesce à medida que aumenta a sua percepção de que é preciso voltar a cerrar fileiras, com os “nossos” os mais pobres e esquecidos pela socie-dade, porque alguns dos que foram dos “nossos” aparecem-nos vestidos de igual e a comungar o mesmo dis-

curso e ideias que os “outros” que nos exploram. Então, o Teatro tem de ser uma arma para ser partilhada, entre os mais velhos e os mais novos, e até

nas ruas se preciso for. Não há idade para lutar por uma causa justa.

O espectáculo re-lembra-nos que o que conquistámos sejam direitos laborais ou acesso à cultura não nos foram oferecidos de mão beijada. É um “pauzinho na engre-nagem” deste sistema que nos oprime e nos diz sermos apenas números na conta-

bilidade que nos fazem crer que é a Vida.

Os “Fontenova” conseguem des-ta forma relembrar-nos a acção das palavras de Zeca Afonso «para se ser cidadão é necessário muito mais que meter um voto numa urna».

Para terminar, uma nota aos programadores culturais, o Teatro Estúdio Fontenova está a tentar fa-zer estrada com “O Cerco de Lenine-grado”, aproveitem e partilhem este espectáculo com as populações que servem.

Vão ao Teatro pela vossa Saúde!

Leonardo SilvaSub-director Jornal O Sul

“ (..) é preciso resgatar a Democracia, face à partidocracia, que tomou hoje conta do Estado.

“ Os “Fontenova” conseguem desta forma relembrar-nos a acção das palavras de Zeca Afonso «para se ser cidadão é necessário muito mais que meter um voto numa urna».

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Portugueses no HolocaustoEm anos recentes, a biblio-

grafia sobre a questão do Ho-locausto e os judeus em Por-tugal veio a enriquecer-se com investigações de inegável inte-resse: José Freire Antunes em “Judeus em Portugal” recolheu o testemunho de 50 homens e mulheres (Edeline, 2002); Irene Pimentel escreveu o importante “Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial” (Esfera dos Livros, 2006); um investi-gador com pergami-nhos, Avraham Mil-gram deu à estampa outro livro de grande qualidade “Portugal, Salazar e os Judeus” (Gradiva, 2010). Isto a par de memórias de alguns dos refu-giados, como será o caso do impressivo relato de Fritz Teppi-ch “Um refugiado na Ericeira” (Mar das Letras, 1999). Esther Mucznik, uma estudiosa das questões judaicas, acaba de publicar “Portugueses no Ho-locausto” (Esfera dos Livros, 2012) que veio trazer luz sobre histórias ainda mal conhecidas do grande público. A autora de-dica este seu trabalho a todos os portugueses que morreram no Holocausto, vítimas dos crimes nazis e, entre todos eles, aos des-cendentes de portugueses expul-sos devido à sanha inquisitorial que avassalou o país no início do século XVI e que se refugia-ram em Amesterdão, Istambul ou Salónica.

Em jeito de enquadramento, a autora descreve a ideologia ra-cial do nazismo e como foi pra-ticada desde que a Adolf Hitler ascendeu ao poder. Se a escalada antissemita se tornou uma re-alidade na fase ascendente do nazismo, é a partir do momento em que se ocupou a Polónia, e mais tarde a Bielorrússia, Ucrâ-nia e uma parte da Rússia que levou a uma mudança drástica no conceito da Solução Final, o extermínio do povo judeu. A autora compendia os dados mais salientes da execução desse plano que levou à matança de cerca de 6 milhões de judeus, número horrível que só será su-perado pelo de 14 milhões que

terá sido o número de vítimas da matança perpetrada pelas paranoias de Hitler e Estaline nas chamadas terras sangrentas onde se incluem a Polónia, os países Bálticos, a Bielorrússia, a Ucrânia e a parte da Rússia que esteve sob a bota nazi.

É facto que a partir de junho de 1940 um conjun-to de personalidades de renome mundial passou por Portugal a caminho de outras paragens, reis, po-líticos, escritores, cientistas, músicos. Mas os judeus de origem portuguesa muito cedo enca-minharam-se para Portugal. A autora regista os casos da família Cassuto, a fa-mília de Ruth Arons e Nella Maissa, recor-da as instituições judaicas que procu-

ravam mitigar o sofrimento dos refugiados bem como a ação de vigilância da polícia política. E com esta moldura que ajuda a compreender melhor o drama dos judeus refugiados em Por-tugal, a autora oferece-nos um estudo sobre os portugueses em Amesterdão, ficamos a conhecer a comunidade portuguesa e como quase todos eles, mesmo invo-cando a sua origem portuguesa, foram assassinados nos campos de concentração. Como escreve a autora, a quase totalidade da comunidade dos judeus de ori-gem portuguesa na Holanda (4 mil homens, mulheres e crianças) pereceram no Holocausto e eram descendentes dos antigos judeus que se refugiaram em Amester-dão em finais do século XVI. Tratava-se de uma comunida-de que gozava de uma vitalidade excecional que vivia arreigada aos valores tradicionais judaicos. Basta recordar que em 1675 foi inaugurada a famosa sinagoga que se tornou no símbolo da ida-de de ouro do judaísmo sefardita na Holanda, como se escreve: “Si-tuada em pleno coração do bairro judaico, a iniciativa da sua edifi-cação coube ao rabino Aboab da Fonseca, nascido em Castro Daire de uma família de cristãos-novos e batizado com o nome de Simão da Fonseca. O rabino Aboab jun-

tou a si um comité de fundadores cujos nomes indicam claramente a sua origem portuguesa: Isaac de Pinto, Samuel Vaz, David Salom de Azevedo, Abraham de Veiga, Jacob Aboab Osório, Jacob Is-rael Pereyra e Isaac Henriques Coutinho”. Durante a guerra a si-nagoga foi saqueada. Durante a ocupação nazi, as autoridades judaicas procuraram adiar a deportação de judeus de origem portuguesa, em vão. Paralelamente à destruição da vida, também os ocupantes fize-ram tudo para aniquilar as insti-tuições da comunidade religiosa. Devido a um legalismo inflexível, Salazar não deu ouvidos aos ro-gos das autoridades judaicas.

Passando para outro pon-

to geográfico, a autora recorda a importância da comunidade judaica de Salónica, um dos centros judaicos mais impor-tantes do mundo: “Os fugitivos de Espanha e Portugal trouxe-

ram consigo uma br i lhante cul tura intelectual, o espí-rito de iniciativa, o gosto do risco, um sólido conhecimento técnico e a sua rede de relações ligando países e continen-t e s . P o r t u g u e s e s

ilustres como Amato Lusitano, Joseph Caro, Gracia e Joseph Nasi, deixaram a sua marca em Salónica, contribuindo para a sua prosperidade, nas ciências, na literatura, na tipografia, no comércio e na indústria. No iní-cio do século XX, cerca de 80

mil judeus povoam a cidade”. No início da I República, autori-dades diplomáticas portuguesas em Istambul e Salónica emiti-ram certificados provisórios de inscrição consular portuguesa a cerca de 400 famílias judaicas. O regime de Salazar não aco-lheu bem e sempre suspeitou da legalidade desta nacionalidade. Com a ocupação da Grécia, os nazis iniciaram a deportação em massa, os judeus clamaram pelos seus direitos mas Salazar proibiu a revalidação dos passaportes e certificados de nacionalidade portuguesa. São acontecimentos sombrios em que detentores de nacionalidade portuguesa irão ser assassinados em campos de concentração.

A investigação transfere-se depois para os judeus registados nos consulados portugueses, em França, destaca-se o comporta-mento de José Brito Mendes pela sua coragem a salvar vidas e re-gistam-se os nomes de militantes de esquerda portugueses que irão ser executados pelos seus ideais. Impressionante é voltarmos a ler o que se passou na tragédia hún-gara, nomeadamente em 1944. A autora refere o comportamento nobre de diplomatas como Sam-paio Garrido que correndo todos os riscos protegeram judeus e não judeus das perseguições políticas e raciais. Ao contrário de Aristi-des Sousa Mendes nem Teixeira Branquinho nem Sampaio Garrido foram vítimas de Salazar pela sua generosidade em querer defender a vida de vítimas inocentes.

Trata-se de um levantamento meritório, a autora reuniu dados importantes sobre descendentes de portugueses que acabaram nas câmaras de gás, temos aqui um bom inventário de coragem e humanismo envolvendo diplo-matas e mesmo a infanta Ma-ria Adelaide de Bragança. Mais uma obra que contribui para a clarificação do acolhimento dos refugiados, da diplomacia portuguesa e de embaixadores e cônsules que não hesitaram no heroísmo anónimo, ficamos com uma ideia mais nítida de como a espiral devoradora do nazismo atingiu ancestrais e portugueses que eram judeus.

Beja SantosDocente Universitário

“ Com a ocupação da Grécia, os nazis iniciaram a deportação em massa, os judeus clamaram pelos seus direitos mas Salazar proibiu a revalidação dos passaportes e certificados de nacionalidade portuguesa.

“ (...) os judeus de origem portuguesa muito cedo encaminharam-se para Portugal.

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Tinduf ficou para trás e os qua-tro jeeps progridem através da es-trada pedregosa, deserto adentro. Desembarcámos há pouco em terra argelina, contudo, embora sem ter-mos passado uma fronteira propria-mente dita, avançamos agora em território administrado pela RASD, República Árabe Democrática Saha-raui. Um singelo posto de controlo marca uma invisível linha divisória. A enorme extensão de solo árido que se estende à nossa frente leva o nome de Hamada, o Deserto da Morte. O mesmo que, 35 anos atrás, várias dezenas de milhar de homens, mulheres e crianças atravessaram, a pé, de burro, de camelo, em viaturas precárias, improvisadas, fugindo do invasor marroquino. O mesmo que a Argélia cedeu a cerca de 180 mil refugiados que actualmente se re-partem por quatro acampamentos, Smara, El Ayun, Awserd e Dahjla, os mesmos nomes das quatro princi-pais cidades do Sahara Ocidental ocupado. Da nossa caravana, um dos veículos vai em breve cortar à esquerda para Smara, o mais po-voado de todos os acampamentos. Os outros três seguirão viagem por mais três a quatro horas até ao últi-mo reduto, a mil milhas de qualquer lugar habitado: Dahjla. Ali, 30 mil pessoas lutam pela sobrevivência, assegurada em mais de 90% por bens alimentares e água potável trazidos pela ajuda humanitária internacional.

“Dá-me uma gotinha de água/Dessa que eu oiço correr/Entre pedras e pedrinhas…”. Quase in-conscientemente, os trinta e muitos graus de temperatura e a secura do ar trazem às gargantas lusas o ‘cante’ alentejano. A paisagem, essa, não ostenta azinheiras nem sobreiros. As raras acácias espinhosas que víamos há pouco, aqui e ali foram desaparecendo à medida que ru-mamos a leste.

Ainda nem bem percorremos uma vintena de quilómetros e so-mos obrigados a parar: um dos caixotes repletos de medicamen-tos que transportamos acaba de se despenhar da pick up onde segue a carga, espalhando o seu conteú-do na estrada. Um pequeno inci-dente depressa solucionado e no qual felizmente apenas se perdem algumas lamelas de comprimidos. O essencial do que trazemos vai intacto: uma grande dose de entu-siasmo, muita curiosidade e energia q.b. , para além de material escolar e desportivo e um de conjunto de painéis solares que se destina ao hospital do acampamento. Montado este equipamento, será possível à incubadora ali existente passar a

funcionar 24 horas por dia salvando assim a vida a muitos prematuros. Em Dahjla, 75% da população tem menos de 35 anos, o que significa que já nasceram ali, longe do seu país de origem, que não conhecem.

O sol está prestes a diluir-se atrás de nós quando alcançamos o posto de vigia que marca a entra-da de Dahjla. Dois ou três militares trocam umas palavras com o motorista - uma interacção rápida e muito pouco burocrá-tica, sobretudo se le-varmos em conta o que nos será dito daqui a pouco pelo governador da willaya (município): não podemos esquecer que, apesar do cessar-fogo que vigora desde Setembro de 1991, “o país está em guerra”.

Nos próximos dias, porém, não nos voltaremos a lembrar disto, a não ser daqui a quase uma se-mana, quando nos deslocarmos, juntamente com algumas cente-nas de activistas pela paz e pelos direitos humanos ao denominado “Muro da Vergonha”, que separa os territórios ocupados do Sahara livre. Para já, no meio da areia, das tendas e das construções de adobe, o que impera é a alegria das crian-ças que nos recebem com acenos e sorrisos. Cedo percebemos que não somos os únicos forasteiros por ali. Mas nem por isso a nossa presença passa despercebida… Os grupos de jovens que dão colorido ao omnipresente tom de terra do acampamento interrompem as suas animadas conversas e jogos de bola para nos ver chegar.

É o próprio governador, Salem

Lebsir, que nos dá as boas-vindas a Dahjla, acolhendo-nos com água fresca e o tradicional chá na sua sala de reuniões. Só o tempo de acertar agulhas. Fica marcada a reunião de trabalho para amanhã, domingo, às 9 da manhã. Estamos todos estoira-dos das quase 24 horas de viagem mas não há tempo a perder. Todos temos muito que fazer e sabemos

que a semana passa num instante. Ama-nhã seguiremos para as ‘haimas’, as enormes tendas onde vivem as ‘nossas’ famílias, mas como estas não fo-ram atempadamente alertadas da nossa chegada, a primeira noite será passada no chamado Proto-colo, uma construção destinada a receber

convidados importantes. É ali que ‘moram’ as equipas dos Médicos Sem Fronteiras e outras organiza-ções que regularmente se deslocam aos acampamentos para efectuar campanhas sanitárias. É ali também que iremos ser recebidos na próxi-ma quinta-feira para um almoço comemorativo da inauguração da Escola 10 de Maio. Para já, a grande sala forrada a tapetes apenas con-tém alguns sofás quadrangulares coloridos. Há vários quartos com colchões, uma cozinha, uma copa, e instalações sanitárias com dois chuveiros, lavatório e sanitas turcas. Um ‘hotel de cinco estrelas’ tendo em conta o nosso cansaço e aquilo para que vínhamos mentalmente preparados.

Toda a estadia será pontuada por esta sensação de expectativas ultrapassadas. Mas as aparências

iludem! Por detrás da generosa hospitalidade com que somos re-cebidos, existe um enorme espírito de sacrifício. Nos próximos dias ire-mos compreender o quanto a co-munidade se sente grata pela nossa presença e a forma discreta como nos dão o melhor de si próprios e como se privam para nos propor-cionar todo o conforto de que são capazes. Em troca, pedem apenas que falemos ao mundo sobre o seu povo e a sua luta.

Meia-noite e já quase todos adormeceram debaixo da lua. O calor convenceu a maior parte dos viajantes a optar por levar os colchões lá para fora. Mas o jantar tardio e a excitação da viagem im-pedem ainda os últimos resisten-tes de pregar olho. Distinguem-se vozes na escuridão. Umas falam espanhol, outras hassania, a va-riação local do árabe. De tempos a outros o som de um motor de-nuncia a passagem próxima de um carro. Alguns param. Duas mulheres vêm andando na nossa direcção. Envergam as tradicionais melfas, longos panos coloridos que as saharauis usam para se cobrir da cabeça aos pés. A mais nova não hesita: “Buenas noches. Hablas español?”. Apresenta-se: “Soy Lemira y esta es mi madre”. Rapidamente percebemos que vêm precisamente à nossa procura. Demasiado entusiasmadas com o anúncio da chegada dos por-tugueses, vêm ver se da comitiva faz parte algum dos viajantes que hospedaram no ano passado. Mas o João adormeceu exausto e nem a animada conversa que decorre mesmo a seu lado o faz despertar. “Quereis vir já?”, oferece a jovem. “É só pegarem nas vossas coisas, está ali o meu pai, no jeep”… Fica para amanhã, agradecemos.

Já passa das dez horas quando nos reunimos com o governador. Em Dahjla ficamos rapidamente a saber que os planos e os horários são ‘flexíveis’. Há que ter em conta um sem-número de imponderá-veis. Destacar-se-á porém uma evidência: um elevado sentido de organização comunitária que se manifesta em variadíssimos as-pectos do quotidiano, da resolução de necessidades básicas à imensa consciência política que se sente omnipresente, desde a mais tenra idade. Não é fácil coordenar pro-jectos individuais e colectivos do grupo. Há pessoas que vieram com missões específicas para cumprir, acções de formação previstas, da-dos que têm de ser recolhidos. É preciso fazer render o tempo, sem esquecer que entre o meio-dia e a cinco da tarde o calor intenso não permite trabalhar. Horas que apro-veitamos para conviver com as nos-sas famílias. Observar os gestos do quotidiano, a repartição das tarefas.

Provar algumas iguarias, como a carne de camelo, o cuscus integral feito à mão e os saborosos legumes crescidos numa estufa comunitária. E beber litradas de água e de chá. Os viajantes bem sentem – ou dizem sentir – a falta de umas imperiais ‘estupidamente geladas’ mas ali não há bebidas alcoólicas. É em torno do chá que as línguas se desatam e se recebem as visitas. Um ritual mil vezes repetido, mas que não cansa a vista dos viajantes fascinados. É feito – quase sempre pelo homem da casa – num tabuleiro redondo de metal onde são pousados a chaleira e os pequeninos copos de vidro. A água é aquecida num fogareiro a carvão e o chá é vertido dezenas de vezes de copo para copo, a meio metro de altura, até criar uma es-puma abundante. Cada chá são na realidade três copos. Reza a lenda que o primeiro é amargo como a vida, o segundo doce como o amor, o terceiro suave como a morte.

São três da tarde e os adultos dormem quase todos a sesta. Lá fora, a temperatura deve rondar os 40ºC. Lemira está a pintar os pés e as mãos da Vanessa e da Rita com henna. Sara e Senia, as irmãs mais novas, entretêm-se com o verniz fucsia que lhes demos. Falamos da chuva e do bom tempo. Sara admira-se com Rita: “Como?! Não gostas de chuva?!!” Os olhos arredondam-se-lhe de espanto: “Eu adoro”… É disso que os jovens nascidos nos campos sentem mais falta. De tudo o que é molhado. Da praia e da piscina. Da lama. Muitas delas já tiveram oportunidade de conhecer o mundo para lá da secura arenosa dos acam-pamentos onde moram ao abrigo do programa espanhol denominado “Férias em Paz”. Graças a este pro-jecto, dezenas de crianças saharauis deslocam-se anualmente durante os dois meses mais quentes a várias localidades de Espanha, onde são recebidos por famílias voluntárias. E ali podem conhecer aquilo que lhes corre nas veias mas que os olhos nunca viram: o mar.

Nos campos de refugiados saha-rauis dois terços da população tem menos de 35 anos, o que equivale a dizer que duas em cada três pessoas não conhecem o seu país. Talvez por isso a consciência política desperte tão cedo. As crianças já parecem nascer a saber fazer o ‘V’ de vitória com os dedos. Todas frequentam a escola e um número esmagador de entre elas tirará um curso supe-rior. Mas a grande maioria voltará depois para os confins do deserto onde não resta grande coisa para fazer se não esperar. Pelo dia em que da gigantesca praia onde moram se possa ver o oceano perdido há mais de 35 anos.

Myriam ZaluarJornalista

Recordações de areiaNaquela praia onde o

mar não chega

“ Nos campos de refugiados saharauis dois terços da população tem menos de 35 anos, o que equivale a dizer que duas em cada três pessoas não conhecem o seu país.

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ASSOCIATIVISMO

Ahamed Fal, antigo ministro do Ambiente da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), o governo no exílio da POLISARIO, Frente de Libertação de Saguia el Hamra e Río de Oro, é desde o início do ano o represente do movimento em Portugal. Sua principal missão: promover in-formação sobre a situação do seu povo e sensibilizar os quadrantes político e sociais para um pro-cesso de autodeterminação e independência, que se arrasta desde 1975, quando Espanha, então potência colonizadora, se retirou do Sahara Ocidental, entregando-o a Marrocos e à Mauritância, traindo promessas iniciais de salvaguardar a von-tade do povo saharauí, através da realização de um referendo de autodeterminação.

João Falcão-Machado O Sahara Ocidental é um confli-to duradoiro e ao mesmo tempo silenciado. Como explica esta si-tuação da já apelidada “a última colónia africana”?

Ahamed Fal, delegado da Polisario em Portugal - Recen-temente comemorou-se o 39º aniversário da Frente POLISARIO (Movimento de Liber-tação de Saguia el Hamra y Río de Oro). São 39 anos de resis-tência e de luta pelos direitos legítimos do Povo Saharauí pela autodeterminação e a determinação, di-reitos estes que são reconhecidos pela comunidade interna-cional e que lhes foram usurpados por um país vizinho. Marrocos, violando o direito internacional, invadiu militarmente o território em 1975, dando assim lugar a um conflito que se prolonga até aos nossos dias.

A comunidade internacional é responsável pel a tragédia que vive o povo saharauí: Marrocos ocupa ilegalmente um territó-rio, saqueando as suas riquezas, intimidando a sua população, impondo a lei do terror, me-diante as prisões arbitrárias, as deportações forçadas, os tribu-nais militares, o isolamento e a privação da população saharaui, nos territórios ocupados, dos direitos mais elementares, assim como o isolamento do mundo exterior.

Actualmente há uma sus-pensão das negociações que se desenrolavam sob a égide das Na-ções Unidas. Esta nova situação

foi criada por Marrocos, que se nega a continuar com o proces-so. Com esta atitude, Marrocos enquadra-se, uma vez mais, fora da legalidade internacional.

J.M -Gdeim Izik é considerado por muitos como o per-cursos do movimen-to conhecido como “Primavera Árabe”. O que significa isso?

A.F - Gdeim Izik é a expressão máxima do repúdio à ocu-pação marroquina. Efectivamente, cons-

tituiu o começo de um protesto em todos os países árabes, com a diferença que, no Sahara Oci-dental, foi contra uma ocupação exterior.

Este acampamento de protesto marcou uma etapa crucial na luta do povo saharauí, foi um desafio às forças de ocupação, constituiu uma mensagem para o mundo inteiro de que o povo saharauí está disposto a defender os seus legítimos direitos.

Gdeim Izik conseguiu romper o bloqueio informativo e o isola-mento imposto pelas autoridades da ocupação. Pôs a descoberto a verdadeira essência do regi-me marroquino, que respondeu com os métodos mais desumanos, massacrando sem distinção de sexo ou de idade uma população indefesa.

A população saharauí, através deste acontecimento conseguiu unficar ainda mais o seu méto-

do de luta, marcando uma linha divisória entre os saharauís e as forças de ocupação.

J.M - Num Magreb onde so-pram vários ventos de mudança e olhado com preocupação pela comunidade internacional, qual a importância geo-estrategica do Sahara Ocidental?

A. F - O Sahara Ocidental encontra-se numa posição ge-ográfica muito importante, ao abarcar três regiões no plano internacional, quero dizer, Áfri-ca, Médio Oriente e Europa. É um território com imensas riquezas minerais e um banco de pesca dos mais ricos e variados do Mundo.

O conflito do Sahara Ocidental paralisa até ao momento a inte-gração dos países do Magreb, que tem de se edificar obriga-toriamente sobre o respeito da soberania de cada um dos seus membros, incluindo a República Árabe Saharauí Democrática (RASD).

O Sahara Ocidental e a RASD constituem um elemento estabi-lizador em toda a região, e assim tem demonstrado ao longo de to-dos estes anos, na sua contribui-ção na luta contra o terrorismo, o tráfico de droga, a emigração ilegal, elementos que Marrocos utiliza para desestabilizar toda a região e o sul da Europa.

J.M - A repressão marroquina é particularmente violenta nos territórios ocupados do Sahara Ocidental. Ainda que a ONU es-

teja presente no processo de Paz, porque ocorre esta violação sis-temática dos Direitos Humanos?

A. F - Efectivamente, Mar-rocos pratica uma política de extermínio da população saha-rauí nos territórios ocupados do Sahara Ocidental, perante os olhos das Nações Unidas, representada pela MINURSO, que agrupa mais de 15 naciona-lidades. A atitude passiva da MI-NURSO perante este extermínio desacreditou as Nações Unidas: Marrocos mantêm um bloqueio informativo sobre o território, não permite a entrada imprensa estrangeira, impede a presença das organizações internacionais defensoras dos direitos huma-

nos e, desta forma, mantém o território num estado de sítio.

Há alguns países que toleram esta po-lítica de extermínio, sobretudo a França, cuja atitude é contra-

ditória com os princípios sobre os quais se fundamenta a República Francesa, baseados na liberdade, igualdade e o respeito dos Direitos Humanos.

J.M - Um número significativo de saharauís vive nos acampa-mentos de refugiados na zona de Tinduf, Argelia e dependem exclusivamente da ajuda inter-nacional. Com a crise económica que persiste em todo o mundo, como tal se percute na vida dos acampamentos?

A.F - A crise tem um impac-

to negativo em todo o mundo, sobretudo nas sociedades mais vulneráveis. A sociedade saharauí, tanto nos acampamentos de re-fugiados, sofre o duplo impacto de ser refugiada e de ser ocupada.

Os saharauís sempre aceita-ram a ajuda exterior se esta leva consigo a mensagem da solida-riedade e recusaram as ajudas somente de caractr caritativo ou seja, sempre distinguiram entre solidariedade e caridade, porque estamos conscientes de que a ca-ridade humilha, seguindo o refrão africano que diz que “a mão que pede está sempre debaixo da mão que dá”.

A ajuda solidária pode dimi-nuir num determinado momento, mas sempre está presente.

J.M - Como os saharauís vêem a posição portuguesa perante este conflito?

A. F - O conflito do Sahara Ocidental é pouco conhecido em Portugal, devido ao bloqueio qie Marrocos impõe sobre o tema.

Não obstante, a postura de Portugal com Timor é uma re-ferência e um exemplo a seguir pelos outros países na defesa da legalidade internacional e do direito dos povos à autodetermi-nação e à independência. O povo português saberá estar à altura de todos os povos democráticos da Europa na defesa dos direitos de todos os povos, entre os quais o povo saharauí.

João Falcão MachadoJornalista

"Marrocos pratica uma política de extermínio da população Saharaui"

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“ (...) “a mão que pede está sempre debaixo da mão que dá”

Propriedade e editor: Prima Folia • Cooperativa Cultural, CRL / Morada: Rua Fran Paxeco nº 178, 2900 Setúbal

/ Telefone: 963 683 791 • 969 791 335 / NIF: 508254418 / Director: António Serzedelo / Subdirector: José Luís Neto • Leonardo da Silva / Consul-tores Especiais: Fernando Dacosta •

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“ A comunidade internacional é responsável pel a tragédia que vive o povo saharauí: Marrocos ocupa ilegalmente um território ...

Page 6: Jornal o Sul Junho

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Custa a crer que esperei um ano. Um ano? Conto men-talmente a minha miséria e acrescento sem hesitação: ou mais, ou mais. Sem dúvida que foi mais. A não ser que tenha sido menos. É provável que tenha sido menos. Não que isso seja particularmente relevante para a questão em causa. Como se sabe, o tempo é relativo. E eu, relativamente falando, sinto que esperei uma eternidade. Senão mesmo um pouco mais.

Volto ao ponto. Eis o ponto: o de que só agora tive a oportu-nidade de me comprazer com a segunda temporada de “Sher-lock”. A primeira temporada, de três episódios de 90 minutos cada, passou na BBC em Julho e Agosto de 2010 e ganhou, sem disputa, o prémio BAFTA de 2011 para melhor série dramática. Facto: até relativamente tarde mantive-me indiferente ao as-sunto. Erro meu. Visto e revisto, percebi do que o mundo falava e porque razão falava. Rendi-me, e esperei pacientemente por

mais. Uma espera que terminou, finalmente, em Janeiro des-te ano com a transmissão da segunda temporada. E já não era sem tempo.

Falo de “Sherlock” e falo bem. Para bom entendedor meia palavra basta. Porque, de facto, não me refiro mera-mente a uma nova adaptação televisiva das aventuras de Sherlock Holmes, o icónico detective fluente na “ciência da dedução” criado por Sir Arthur Co-nan Doyle em finais do século XIX. Na verdade, refiro-me ao Sherlock recriado (é essa a palavra) por Steven Moffat e Mark Gatiss na série britânica que adapta e actualiza o célebre detective, brilhantemente interpretado por um Benedict Cumberbatch, e com um sempre encantador Martin Freeman como Doutor John Watson, seu fiel amigo e companheiro de aventuras, a uma Londres do século XXI.

Pauso. Sherlock Holmes numa Londres do século XXI? Percebo o óbvio cepticismo na face do leitor. Eu sei, eu sei:

eu conheço a argumentação. Corrijo: eu inventei a argu-mentação. Versões modernas de histórias clássicas? Lembro Shakespeare – assassinado já vezes sem conta no ecrã –, e dispenso um tão evidente terror. Mas existem excepções – poucas, pouquíssimas. Confie

em mim, sou insus-peito: “Sherlock” é uma dessas raras e brilhantes.

A razão para tal facto é simples. Simples e curta. Mo-ffat e Gatiss sempre se demonstraram como profundos

conhecedores e admiradores das histórias criadas por Conan Doyle. Um pormenor crucial que faz toda a diferença.

Devo admitir que li ainda pouco das ditas aventuras. Falha minha? Honestamente, prefiro não falar disso. Feliz-mente, Moffat e Gatiss nunca sofreram desse injustificável problema existencial. Quando se encontravam, falavam – e ao que parece falavam mes-mo muito – das aventuras de Holmes e Watson. Daí ao que se seguiria, foi naturalmente

um passo. O potencial, eles sabiam-no, estava lá. Mas era necessário fazer algo de novo e fresco, assombrados que estavam pelas anteriores adaptações televisivas que, na verdade, sempre lhes haviam parecido demasiado reve-renciais e, em certo sentido, estanques. A questão era: seria possível dar vida a uma personagem maior que a vida numa outra vida? A pergunta era astuta, principalmente por-que se respondia a ela mesma. Afinal, uma personagem maior que a vida permite-se a viver qualquer vida.

O resultado foi simples-mente “Sherlock”. Um Sher-lock moderno onde o cenário mudara, mas não, naturalmente, o seu centro gravítico origi-nal. Bem vistas as coisas, uma Londres moderna implica não só tecnologia moderna como igualmente o enfado moderno – esse terrível peso de existência que levou, por exemplo, a que este Sherlock se viesse a provar como um ex-fumador com tendência para a recaída. Muito logicamente, Sherlock não se furta a utilizar essa mesma tecnologia (telemóveis, Inter-

net, etc., etc.) para o auxiliar na resolução dos impossíveis casos que acaba por ter em mãos. Mas, independentemente disso, o facto que permanece é que é o seu poderoso intelecto que lhe permite, no fim, solucionar todos os enigmas impossíveis. Isso e a amizade e parceria que mantém com John Watson, claro. Porque, no fundo, esta sempre foi uma história acerca da amizade; uma estranha e em grande medida improvável amizade.

Moffat e Gatiss pretende-ram ser irreverentes e pouco canónicos na sua proposta de “Sherlock”. Conseguiram-no. Mas sem nunca perder de vista o espírito original do material em que se baseavam. Muitas vezes é necessário que tudo mude para que tudo fique na mesma. E muitas vezes ainda bem que assim é.

Agora só falta mesmo uma coisa: que estreie a terceira temporada agendada lá para princípios de 2013. Uma peque-na eternidade? Por favor, não vamos falar disso.

Tiago Apolinário [email protected]

A Obsessão e o seu DiaSimplesmente,

"Sherlock"

Este país não é para jovens. Pelo menos não para jovens que desejem sentir-me realizados pro-fissionalmente e ter o mínimo de independência, o mínimo de de-safogo. Tal como recentemente noticiado (denunciado?) em vários órgãos da comunicação social, ao abrigo do programa Estímulo 2012, várias empresas estão a (tentar) contratar licenciados em troca do salário mínimo (ou pouco mais que isso, para que não pareça tão mal).

- Olha, finalmente encontrei estágio em Arquitetura!

- A sério? Quando começas, quais são as condições? Conta tudo!

- Começo para a semana. O horário é flexível, tenho é de fazer umas 10 horas por dia, pelo menos. Pagam o salário mínimo.

- Ah... O. K.- Pois...Muitos defendem que «é me-

lhor pouco que nada», e é essa falta de autoestima laboral que nos trouxe (arrastou?) até onde estamos hoje. Qualquer licenciado que que tenha investido tempo, de-dicação e dinheiro na sua edução não pode senão ferver por dentro quando lhe atiram umas migalhas, enquanto tentam convencê-lo que aquilo é tudo o que merece em troca de tudo quanto sacrificou.

- Então, que tal corre o tra-balho?

- O anúncio dizia “trabalho”, mas é mais estágio. Pagam subsídio de alimentação e transporte.

- Ah... O. K.- Pois...Também há quem critique aque-

les que abraçam a precariedade la-boral. Tais críticos claramente nunca devem ter sentido a pressão de ter

filhos para alimentar e contas para pagar. Ter princípios é bonito, mas não põe comida na mesa. É indecen-te que as empresas se aproveitem da fragilidade económica para explorar aqueles que realmente não podem estar sem receber um salário - por mais baixo que este possa ser. Mais indecente se torna esta realidade quando acontece não só sobre as barbas do nosso governo, como com

a sua concordância, dado que se limita a encolher os ombros e deixar acontecer.

- Então e como estás a fazer com as despesas da casa?

- Não estou. Tive de voltar para casa dos meus pais…

- Então… Mas isso implica duas horas e tal de transportes por dia!

- É verdade… Já levei duas re-primendas, porque houve dois dias

que cheguei atrasada, por causa das greves….

Como é que este governo pre-tende impulsionar o emprego e o empreendedorismo se cada medi-da anunciada parece um prego no caixão onde jaz aquilo que em tem-pos foi a ambição dos seus jovens? Como é que é possível combater o insucesso escolar tendo em conta a galopante taxa de recém-licen-ciados desempregados? E depois ainda nos querem “vender” a preço de saldo. Como se fôramos sobras irrelevantes.

- Acabou o estágio? Pediram-te que ficasses?

- Não, precisam de alguém com carta de condução. Eu ainda não consegui terminar a minha, porque não me pagavam o suficiente. Havia despesas mais prioritárias!

- Ah... O. K.- Pois...Parece que por mais que nos

esforcemos, não chegamos a lado nenhum. Não é lá muito inteligente atiçar uma colmeia, e é isso que o governo tem vindo a fazer. Há de chegar o dia em que as abelhas irão atacar para defender a sua casa. Ou então a colmeia cairá no chão, vazia: sai mais barato comprar um bilhete de avião que pagar a renda.

Vanessa CorreiaEstudante

OLHÓ LICENCIADO FRESQUINHO! É APROVEITAR QUE ‘TÁ BARATINHO!S

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“ A questão era: seria possível dar vida a uma personagem maior que a vida numa outra vida?

Page 7: Jornal o Sul Junho

Gravuras rupestres vandaliza-das por oficiais da missão de Paz das Nações Unidas, edifícios que marcaram a história de um país deitados abaixo, segregação dos estudantes saha-rauís limitando ou im-pedindo o seu acesso a determinados níveis do conhecimento. Tudo isto o destino trágico do patrimó-nio e da cultura de um país ocupado.

O Sahara Ociden-tal tem um importante património cultural, quer material, quer imaterial, com origem deste a pré-história, como as pinturas rupestres em Rekeiz Lemgasm e na Cova do Diabo, em Lajuad, até ao período colonial espanhol, como o forte de Villa Cisneros (hoje Dahjla), passando pela presença portuguesa, expressa na fortaleza de Bojador, entre outras. Não es-

quecendo ainda a sua literatura, tanto a tradicional, baseada na experiência do deserto, como a

contemporânea, per-feitamente desconhe-cida em Portugal.

Se no caso das pinturas rupestres, situadas nos terri-tórios libertados, a vandalização ocorri-da em 2006 e denun-ciada pelos arqueó-logos Joaquim Soler, da Universidade de Gerona, Espanha, e Nick Brooks, da Uni-

versidade de East Anglia, Reino Unido foi feita por oficiais em comissão na MINURSO, já a des-truição do edificado dentro dos territórios ocupados do Sahara Ocidental obedece a uma estraté-gia da força ocupante, Marrocos, de apagar a memória colectiva saharauí relacionado com tudo o que se refira ao período anterior

à invasão de 1975.Os dois investigadores cons-

tataram ainda que no caso de Rekeiz Lemgasm houve pinturas que foram arrancadas da rocha, desconhecendo-se quem praticou tal roubo e, ainda segundo Soler, durante o período colonial espa-nhol (1884 - 1975) também vários foram os roubos de património feitos pelas forças colonizadoras.

Da memória à revoltaÉ preciso ir-se à vizinha Es-

panha para se poder encontrar numa livraria qualquer obra de escritores actuais saharauís, a grande maioria dos quais escrevendo desde o exílio. Em Portugal, esta riqueza literária é desconhecida.

“El largo via je havia Este”, de Bachir Lehdad, recordando a tragédia da fuga à invasão marroquina há qua-se 40 anos, “Tifariti, Mi Tierra”,

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“ O Sahara Ocidental tem um importante património cultural, quer material, quer imaterial, com origem deste a pré-história, (...)

de Abdurrahaman Budda, abor-dando a luta pela independên-cia ou, ainda, “La Maestra que

me enceñó en una tabla de madera” , de Bahia Mahmud Awah, alguns dos li-vros publicados no ultimo ano, são es-critas de destaque que reflectem uma

memória pessoal e colectiva, que no cativam e nos ajudam a entender um conflito silenciado.

A obra mais recente editada

no país vizinho, “La Primavera Saharaui - Escritores Saharauis con Gdeim Izik” , é um conjunto de poemas e relatos que reflec-tem a dura realidade contem-porânea nos territórios ocupa-dos, com especial incidência no acampamento de protesto de Gdeim Izik, nos arredores de El Aaiún, e destruído violentamente pela polícia marroquina em No-vembro de 2010.

João Falcão MachadoJornalista

“ Em Portugal, esta riqueza literária é desconhecida.

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Como o apoio do jornal Cultural e de Debates

Junhodia. 23 • Sábado Grooveland

dia. 29Marcão • MPB

Julhodia. 6Eurico Silva • covers e originais

dia. 14 Quinteto de Jazz de Setúbal

dia. 20Marcão • MPB

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