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ISSN 0102-0625 Ano XXXVI • N 0 366 Brasília-DF • Junho/Julho 2014 – R$ 5,00 O genocídio dos povos indígenas é devido ao direito às suas terras? Página 3 Malocas de povo livre (AC) – Foto: Gleison Miranda/Funai No Paralelo 10, Alto Rio Envira, Acre, povos indígenas em situação de isolamento voluntário protagonizam um dos mais singulares conflitos do país. Retornando a territórios de onde foram afugentados no decorrer do século XX pelas frentes de colonização da borracha, estes povos têm cada vez mais feito incursões às aldeias dos povos Ashaninka e Madja. Ao mesmo tempo, o narcotráfico internacional intensifica ações na área. Páginas 8 a 11 Omissão do governo é a maior causa da violência contra indígenas Página 15

Jornal Porantim n° 366, junho/julho 2014

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Em defesa da causa indígenaAno XXXVI • N0 366

Brasília-DF • Junho/Julho 2014 – R$ 5,00

O genocídio dos povos indígenas é devido ao direito às suas terras?

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No Paralelo 10, Alto Rio Envira, Acre, povos indígenas em situação de isolamento voluntário protagonizam um dos mais singulares conflitos do país. Retornando a territórios de onde foram afugentados no decorrer do século XX pelas frentes de colonização da borracha,

estes povos têm cada vez mais feito incursões às aldeias dos povos Ashaninka e Madja. Ao mesmo tempo, o narcotráfico internacional intensifica ações na área.

Páginas 8 a 11

Omissão do governo é a maior causa da violência contra indígenas

Página 15

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Egon HeckEx Secretário Executivo do Cimi

eguidamente ouvimos dos povos indígenas a seguinte avaliação: “Estão nos matando com a lei, a ‘canetaços’. Com leis que eles

mesmos fizeram, dizendo que eram para nos defender. Basta citar todas as Constituições desde 1938 até a de 1988. Em todas elas estão garantidos o direito às nossas terras e a proteção dos nossos territórios”. É óbvio que nesse quesito a Lei Maior do país foi olimpicamente des-respeitada. Os territórios indígenas foram invadidos, os recursos naturais saqueados. E o que é mais grave, esse mesmo processo continua hoje, com grande intensidade.

Vale lembrar o Código Civil, de 1916, tão cioso em defender os índios, que os enquadrou na categoria dos menores de idade, dos relativamente incapazes. Será que temos real dimensão das barbaridades feitas contra os índios por seus tutores, em nome da tutela? Basta dar uma folheada nas mais de sete mil páginas do Relatório Figueiredo, fruto de uma rápida investiga-ção, em 1967, sobre a atuação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Pode se dizer que tudo que é crime e perversidade foi encontrado nesse relato, sendo que, em sua maior parte, as ações e crueldades foram feitas por agentes do Estado, pelos tutores ou, no mínimo, com a conivência e omissão dos mesmos. E que tal folhear as milhares de páginas que registram as violências contra os povos indígenas expostas nas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), de 1953 (no Senado), 1963, a realizada, em consequência desta, em 1968 e a de 1977? Desse modo tería-mos um enorme mosaico de violências e violações dos direitos indígenas cometidas na história recente do país, caracterizando um processo de etnocídio e genocídio.

Até mesmo a Lei 6.001 (Estatuto do Índio), de dezembro de 1973, vigente até hoje, tem sido largamente usada pelos ini-migos dos índios e pelo Estado brasileiro para promover a integração-assimilação dos povos indígenas e utilizar os terri-tórios conforme suas conveniências. Em seu Artigo 20 ela estabelece que a União pode dispor das terras indígenas sempre que entender que seja para a “segurança nacional”, ou para a realização de obras e ações de interesse ao desenvolvimento do país.

Matando com a leiPorantinadas

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Na língua da nação indígena Sateré-Mawé, PORANTIM

significa remo, arma, memória.

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Lúcia Helena Rangel

Opinião

SOfensiva ruralista

Indignados com o descaso do governo federal frente ao agressivo avanço ruralista, representantes dos gerazeiros, vazanteiros, veredeiros, catingueiros, apanhadores de flo-res sempre-vivas, quilombolas e indígenas, dentre outros povos e comunidades tradicionais, ficaram 36 horas em greve de fome e sede no início do mês de junho em frente ao Congresso Nacional. Eles relata-ram a intensificação da violência na última década praticada por fazendeiros e invasores das terras onde moram há dezenas de anos. Violência esta praticada contra o Cerrado, suas águas e seus povos. Tudo em nome de uma República dos Ruralistas...

Postura colonialistaApesar de existir uma Comis-

são Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI), o Ministério da Educação (MEC) insiste na criação de uma universidade indígena feita nos gabinetes e não nas aldeias. Um grupo de trabalho foi criado para consolidar a proposta, no entanto, não há participação das comunidades, organizações indí-genas e nem do órgão de controle social do MEC no processo. “A criação da universidade precisa ter seus marcos definidos pelos povos indígenas. Nós é que vamos dizer que universidade queremos. Ela precisa ser um espaço plural, livre e descolonial”, defende a liderança Edilene Bezerra Pajeú, a Pretinha Truká. Parece tão óbvio, não?

Cara de pauA senadora ruralista Kátia

Abreu, uma das principais defen-soras de propostas contra os povos indígenas, sem qualquer remorso ou escrúpulo, “enfeitou-se” de indígena Apinajé no dia 2 de junho, quando pegou carona em um curso de formação para indígenas naquela comunidade. Inúmeras fotos dela com cocar foram postadas na in-ternet. No entanto, sua atitude foi repudiada em carta pública pelo próprio povo Apinajé que sabe bem quais são seus reais interesses e compromissos.

MARIOSAN

Se tudo isso não bastasse para ao me-nos sacudir um pouco a nossa consciência adormecida e mal informada em relação aos povos indígenas e seus direitos, vemos que, infelizmente, o processo de matar os índios com a lei, apesar da lei ou contra a lei continua. Lembremos o que afirmou Orlando Villas Bôas, na década de 1970: “Em cada século o Brasil matou um milhão de índios”. Provavelmente o número seja ainda maior. Apesar de tudo isso, continua-mos impassíveis, sendo alimentados com bombardeios de informações sobre a Copa do Mundo ou outros temas pontuais. Para a maioria dos povos indígenas é apenas mais um tempo de sofrimento, violências, desrespeito, racismo e assassinatos. Mas estes avisam: “Estamos em campo, nem que seja nas batalhas, enfrentando bombas e balas de borracha. O gol que interessa a nós, povos indígenas, é a demarcação de nossas terras”. Assim declarou Sonia Gua-jajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), após um encontro com os presidentes da Câmara e do Senado.

Ruralistas contra a leiNão satisfeitos com todas as recentes

investidas para retirar os direitos indíge-nas da Constituição, em junho a bancada ruralista do Congresso Nacional abriu um outro flanco para sua artilharia pesada. O novo alvo foi a “iníqua” (segundo eles) Con-venção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante aos povos indígenas e tradicionais o direito aos seus territórios e da qual o Brasil é signatário desde 2004.

O debate sobre a revogação da Con-venção 169 é uma investida dos ruralistas, que estão utilizando a Comissão Especial

da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000 para fazer palanque con-tra os direitos dos povos indígenas e das populações tradicionais. O propositor da investida é o deputado Paulo Cesar Quar-tiero (DEM/RR), conhecido pela truculência contra os povos indígenas em Roraima e réu em ações penais por sequestro e cár-cere privado; por crime contra a liberdade pessoal e formação de quadrilha; crimes contra o patrimônio, contra a segurança nacional, a ordem política e social e contra a administração em geral, desobediência e desacato; além de ser investigado por homicídio qualificado, por crimes contra o patrimônio, crimes de responsabilidade, sonegação de contribuição previdenciária, contra o meio ambiente e o patrimônio ge-nético. Segundo Fernando Prioste, advoga-do popular e coordenador da organização Terra de Direitos, “a iniciativa ruralista é um claro ataque a indígenas, quilombolas e povos tradicionais que lutam pela efeti-vação de seus direitos”.

O mais grave descumprimento das leis foi sem dúvida a não demarcação das terras indígenas. É como se o Estatuto do Índio não tivesse ordenado ao Estado brasileiro a demarcação de todas as terras indíge-nas até dezembro de 1978. E, ainda mais grave, a Constituição de 1988 não tivesse estabelecido um prazo de cinco anos para a demarcação de todas as terras indígenas. Até hoje, portanto, o Estado se recusa a cumprir esta sua obrigação constitucional enquanto o Legislativo, por pressão dos ruralistas e do agronegócio, tenta a qual-quer preço inviabilizar a demarcação das terras indígenas. Desse modo, continua-se matando “com a lei”, tanto os indígenas como os seus direitos, estabelecidos nas leis nacionais e internacionais. n

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“Os povos indígenas têm o direito à vida e o direito à vida precede o direito de propriedade. Os não-índios, ocupantes de terras indígenas, além de receberem pelas benfeitorias construídas sobre essas terras, têm direito à justa indenização dos títulos de propriedade de boa fé”

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Artigo

Cleber César BuzattoSecretário Executivo do Cimi

sub-procurador da República, Dr. Eugênio Aragão, ao partici-par da audiência da Comissão Especial da Câmara dos Depu-

tados que trata da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/00, no dia 11 de junho, questionou o paradigma de-marcatório de terras indígenas, vigente no Brasil, e defendeu a tese segundo a qual “o modelo atual, a toda evidência, está apresentando sinais claros de esgo-tamento”. Defendeu a referida tese com o argumento de que “mesmo quando o Poder Executivo, depois de longuíssi-mas tramitações, consegue promover a demarcação de uma área indígena, a reação imediata é a judicialização do respectivo ato administrativo, o que leva a um impasse em que não se vai nem pra frente nem pra trás”. Um ar-gumento evidentemente falacioso, haja vista a existência de diversos procedi-mentos administrativos de demarcação de terras indígenas paralisados sem que exista qualquer impedimento judicial para tanto. Ou seja, o motivo da parali-sação, no caso, é político e causado pela opção governamental e pela “pressão” de atores políticos e econômicos bem conhecidos de todos, dentre os quais os representantes do latifúndio, a bancada ruralista, para quem Aragão discursava.

Para além da falácia, no entanto, o sub-procurador avançou na argu-mentação, por um caminho, que julga-mos, malicioso, desrespeitoso e ultra ideológico. Segundo ele, o genocídio contemporâneo dos povos indígenas tem sua raiz motivacional no direito fundamental dos povos às suas terras tradicionais, conforme assegurado pelo texto constitucional de 1988. Isso porque, de acordo com ele, fazendo eco aos argumentos ruralistas, “o pro-cesso concebido na Constituição, no artigo 231, é um processo unilateral. É um processo em que a administração pública, ex-ofício, identifica e demarca as áreas, olhando sobretudo apenas em uma direção, a direção do bem estar do indígena. O problema é que ao longo dos anos foi-se percebendo que essa visão unilateral, de só se olhar para a população indígena, esquecendo as circunstâncias, levaram, na verdade, eu posso dizer com a maior tranquilidade, a uma política genocida. Porque na me-

O genocídio dos povos indígenas é devido ao direito às suas terras?

dida em que a gente olha só para um lado do problema, todos os outros que estão excluídos da atenção do poder público produzem ressentimento. E o ressentimento acaba levando à estigma-tização, e a estigmatização, por sua vez, acaba levando ao genocídio”.

Ora, além de incompatível com o arcabouço jurídico que envolve o procedimento de demarcação, uma vez que o elemento do contraditório é am-plamente respeitado, tanto no campo administrativo, quanto no campo do Poder Judiciário, o argumento defendi-do pelo Dr. Eugênio, ideológica e ma-liciosamente, esconde os verdadeiros sujeitos político-econômicos respon-sáveis pelo atual quadro de genocídio dos povos indígenas no país. Como fica evidente no argumento, Aragão admite a existência de genocídio de povos indí-genas no país mas, além de esconder os sujeitos responsáveis pelo genocídio, o mesmo, desrespeitosamente, o legitima uma vez que seria, como que natural, que o “ressentimento” produzido pelo arguido unilateralismo produzisse a “estigmatização” e que, consequente-mente, levasse ao genocídio.

O argumento em questão causa-nos, como não poderia deixar de ser, profun-da indignação, e se enquadra na típica estratégia da culpabilização da vítima. Segundo ele, os povos indígenas seriam vítimas do genocídio porque ousaram

lutar e conseguiram assegurar o reco-nhecimento do direito às suas terras tradicionais no texto Constitucional do Estado brasileiro.

O que defendemos é exatamente o contrário da opinião do sub-procurador. É a efetivação do direito fundamental às suas terras tradicionais que suplantará o quadro de genocídio de povos indí-genas no Brasil. O genocídio de povos indígenas no Brasil precede o texto Constitucional vigente em nosso país. O genocídio de povos indígenas não se justifica e não se legitima sob qualquer hipótese. O genocídio de povos indíge-nas no Brasil é efetivado por sujeitos político-econômicos bem conhecidos, tais como, dentre outros, latifundiários, usineiros, empreiteiras, mineradoras. Em cada região e período histórico de nosso país, atuaram e atuam com avareza na perspectiva de se apossar

e explorar as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos.

Os povos indígenas têm o direito à vida e o direito à vida precede o direito de propriedade. Os não-índios, ocupantes de terras indígenas, além de receberem pelas benfeitorias cons-truídas sobre essas terras, têm direito à justa indenização dos títulos de pro-priedade de boa fé, por parte dos entes federados responsáveis pela sua emis-são. Além disso, a legislação vigente no Brasil estabelece ainda o direito ao devido reassentamento aos ocupantes. O reassentamento, por sua vez, deve ser feito com a desapropriação dos latifúndios, que, infelizmente, se perpe-tuam em favor de poucos e devido aos genocídios provocados, aos privilégios históricos e à super-representação do setor no Congresso Nacional e noutros espaços de poder do Estado brasileiro.

Ao atacar o direito fundamental dos povos indígenas às suas terras tradicionais com os argumentos acima destacados, ataca-se também o direito dos não-indígenas ao devido reassen-tamento. Dessa maneira, faz-se a dupla defesa do latifúndio e da concentração fundiária cada vez maior em nosso país, objetivo central da estratégia ruralista ao defender a aprovação da PEC 215/00. Talvez seja este o motivo pelo qual Aragão, em momento algum de sua explanação, tenha feito referência à nota técnica produzida pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, órgão setorial da Pro-curadoria Geral da República que trata de temáticas indígenas. Esta nota expli-cita a inconstitucionalidade da referida Proposta de Emenda Constitucional. n

“O que defendemos é a efetivação do direito fundamental às terras tradicionais que suplantará o quadro de genocídio de povos indígenas no Brasil.

O genocídio de povos indígenas no Brasil precede o texto Constitucional vigente em nosso país”

“Ao atacar o direito fundamental dos povos indígenas às suas terras

tradicionais, ataca-se também o direito dos não-indígenas ao devido reassentamento.

Dessa maneira, faz-se a dupla defesa do latifúndio e da

concentração fundiária cada vez maior em nosso país”

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e mineração sempre

andaram juntas: todo

projeto hidrelétrico

abre a porta, favorece

e alimenta os grandes projetos de

mineração para exportação

que rondam a Amazônia. Os grandes

projetos não são pensados

para as comunidades e regiões locais.

Respondem a interesses

maiores, de grandes

empresas nacionais e

transnacionais”

Modelo de “desenvolvimento”

Roque Paloschi Bispo da Diocese de Roraima

nosso país intensificou, nos últimos anos, uma política de crescimento econômico que passa pela exploração dos re-

cursos naturais para a exportação. Este modelo econômico não é novo e já nos legou marcas de desigualdade social e de injustiça ambiental: os benefícios ficam na mão de poucos, enquanto os impactos e prejuízos, muitos deles irreversíveis, pesam sobre as costas de comunidades indígenas, camponesas, ribeirinhas e quilombolas; repercutem ainda no inchaço de muitas de nossas cidades. Mesmo não sendo um modelo novo, estamos assistindo à sua inten-sificação, fazendo lembrar as políticas do mal chamado “desenvolvimento”, que o Regime Militar impulsionou na década de 1970.

Tal realidade é mais gritante na região amazônica. Dezenas de projetos de médias e grandes hidrelétricas estão barrando o curso dos rios que formam a bacia amazônica. Do Teles Pires ao Rio Branco, do Madeira ao Tapajós e o Xingu, passando por outras barragens projetadas sobre rios amazônicos de países vizinhos, como Peru e Bolívia. Os impactos ambientais desses grandes projetos são incalculáveis e irreversíveis, já suficientemente demonstrados por es-tudos científicos e pela própria experiên-cia de projetos passados. E os impactos sobre os territórios e a vida de tantas comunidades ribeirinhas e indígenas, considerando particularmente os povos indígenas isolados, serão gravíssimos.

Os grandes projetos hidrelétricos não são pensados para as comunidades e regiões locais. Respondem a inte-resses maiores, de grandes empresas nacionais e transnacionais e ao ídolo do crescimento macroeconômico que a miopia política insiste em perseguir. Hidrelétricas e mineração sempre an-daram juntas: todo projeto hidrelétrico abre a porta, favorece e alimenta os grandes projetos de mineração para exportação que rondam a Amazônia.

O governo federal propõe-se a mul-tiplicar por quatro a exploração mineral em nosso país até 2030. No decorrer dos próximos anos, incrementará gran-des projetos extrativos, razão pela qual

Mineração e hidrelétricas são lesivas à humanidade e ao planeta

se empenha, junto com o Congresso Nacional, pela aprovação do Novo Código de Mineração. Circula ainda na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 1610/99. Este PL visa regulamentar a mineração em terras indígenas, sem garantir salvaguardas sobre lugares sagrados nem medidas para proteger a vida das comunidades.

A Amazônia, como se sabe, é região cobiçada pelos interesses minerários que reúnem grandes empresas transna-cionais a setores políticos e econômicos de nosso país. Recordamos os 30 anos da exploração no Carajás como prova de que a mineração em grande escala traz consequências funestas: é um tipo de economia que absorve a maior parte dos empreendimentos econômicos sem conseguir diversificá-los nem construir uma perspectiva de sustentabilidade na região. Provoca a chegada de milhares de trabalhadores, a criação espontâ-nea de vilas e cidades e o acúmulo de toneladas de rejeitos. Não existem

experiências bem sucedidas de políticas preventivas ao fim do minério. Quando a exploração mineira se esgota (muitas vezes antes do previsto), os impactos deixados se tornam irreversíveis e a recuperação social, econômica e am-biental fica comprometida.

A quem pode interessar um cres-cimento econômico assim? É este o desenvolvimento em que acreditamos, aquele que gera vida para todos e vida em abundância?

No mês de maio, povos indígenas de Roraima, Guiana e Venezuela, junto com o Cimi, o ISA e outras organizações, reuniram-se na comunidade de Taba-lascada no I Seminário sobre Mineração e Hidrelétricas em Terras Indígenas. Nesse encontro, os povos indígenas levantaram sua voz firme e clara contra esses grandes projetos em seus territó-rios. “Para nós, o que tem importância é a terra, a vida, as florestas, os animais, a cultura, a tranquilidade e essa forma de vida garantida para nossas futuras

gerações”, afirma o documento final do encontro. Do território guianense, 68% podem ser afetados por projetos de mineração e hidrelétricas. Na Vene-zuela, avançam as concessões de vastas áreas amazônicas do país para empresas chinesas, enquanto 90% das terras indí-genas ainda não foram demarcadas. O Brasil, além de encaminhar propostas legislativas visando permitir e facilitar esses empreendimentos nos territórios indígenas, já vem comprometendo re-cursos públicos (de todos nós) no finan-ciamento de grandes projetos em países vizinhos, como Peru, Bolívia e Guiana.

Os povos indígenas têm o direito de serem consultados e definirem livre-mente o caminho que querem seguir. Em uma nota da Hutukara Associação Yanomami (HAY), Davi Kopenawa Ya-nomami afirma sabiamente: “Nós não somos contra o desenvolvimento: nós somos contra apenas o desenvolvi-mento que vocês, brancos, querem empurrar para cima de nós [...]. Nós, Yanomami, temos outras riquezas dei-xadas pelos nossos antigos que vocês, brancos, não conseguem enxergar: a terra que nos dá vida, a água limpa que tomamos, nossas crianças satisfeitas”. Os Estados, por sua vez, têm o dever legal e moral de consultar os povos indígenas sobre quaisquer empreendi-mentos ou iniciativas legislativas que os afetem, e, em decorrência, respeitar assuas decisões.

Os povos amazônicos são portado-res de uma enorme contribuição para a vida e o nosso futuro. Sua profunda espiritualidade; sua relação com a Mãe-Terra, com as florestas, os rios e todas as formas de vida com que convivem; e seu impressionante acervo de conheci-mentos apontam caminhos diferentes e humanizadores para todos nós.

Mineração e hidrelétricas são faces de um projeto econômico que é lesivo não apenas para os povos indígenas, mas para toda a sociedade e o planeta. Agride a Vida e compromete as gerações que virão depois de nós. Como diz o Do-cumento de Aparecida, conclusivo da V Conferência Episcopal da América Latina e do Caribe: “Nossa irmã, a Mãe Terra, é nossa casa comum e o lugar da aliança de Deus com os seres humanos e com toda a criação. Desatender as mútuas relações e o equilíbrio que o próprio Deus estabe-leceu entre as realidades criadas é uma ofensa ao Criador, um atentado contra a biodiversidade e, definitivamente, contra a Vida”. (DAp.125). n

“A Igreja está na Amazônia não como aqueles que têm as malas na mão, para partir depois de terem explorado tudo o que puderam”.

Papa Francisco aos bispos do Brasil, Rio de Janeiro, 27 de julho de 2013

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5 Jun/Jul–2014

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“Por meio da caneta querem nos matar como nos mataram no passado com suas armas de fogo. Têm o espírito dos bandeirantes aqueles que usam de seu poder para enriquecer e concentrar terras, enquanto nós, povos originários, continuamos nas beiras de estrada”

Luta pela Terra

Carolina Fasolo, De Brasília

o final de junho grupos madei-reiros ameaçaram invadir duas aldeias do povo Ka’apor, na Terra Indígena Alto Turiaçu, no Mara-

nhão. A agressão seria uma represália à ação dos indígenas que em atividades de etnomapeamento do território tradicio-nal, realizadas naquele mês, apreenderam tratores de esteira, armas, motosserras, caminhões e motocicletas. Os Ka’apor detiveram ainda um grupo de homens que manuseavam os equipamentos de retirada ilegal de madeira. Segundo informaram, eles não tiveram nenhum apoio das forças federais.

Desde o ano passado, diante do au-mento das invasões e do desmatamento dentro da área indígena e da inoperância do Estado em defender esta área, eles decidiram formar uma frente de proteção por conta própria. Retiveram invasores e apreenderam motosserras e maquinários

usados na exploração ilegal de madeira da terra indígena. O trabalho conseguiu pro-teger 70% da área, porém o restante segue invadido por madeireiras e serrarias ins-taladas, principalmente, no centro-oeste maranhense e em Paragominas, no Pará.

Em represália, um grupo de 50 madeireiros armados invadiu a aldeia Gurupiuna em agosto de 2013. Na oca-sião, os invasores amarraram e bateram em indígenas, saquearam plantações e levaram animais. Esse tipo de agressão contra os indígenas tem sido freqüente. Em janeiro deste ano, um grupo de 10 Ka’apor foi atacado enquanto realizava a abertura de trilhas nos limites do ter-ritório Alto Turiaçu, para a autovigilância e proteção. Tiros atingiram as costas e pernas de dois jovens Ka’apor e a cabeça do cacique da aldeia.

Na manhã do dia 3 de julho, diante da ameaça de invasão dos madeireiros, um grupo com cerca de 250 Ka’apor bloqueou a rodovia BR-316, no trecho que liga os municípios de Araguanã e Nova Olinda.

Para liberar a via, eles exigiram a presença de representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai), Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e Secretaria de Estado de Educação do Maranhão (Seduc).

Os Ka’apor denunciam a ausência de políticas públicas voltadas à educação e saúde para os povos indígenas no es-tado. No entanto, a principal exigência do grupo é que a Funai providencie a retirada imediata dos invasores de suas terras. “Nosso território está invadindo, explorado. Não dá mais pra vivermos assim”, disse Irakadju Ka’apor, liderança da comunidade.

Os indígenas alertam sobre estas inva-sões e solicitam auxílio do governo desde o término da Operação Hiléia Pátria, no final de maio de 2013, que fechou várias madeireiras e apreendeu caminhões na região. Depois da saída das equipes do Exército, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Funai e da recente desin-trusão da Terra Indígena Awá Guajá, as

ações criminosas têm se intensificado em Alto Turiaçu.

“Infelizmente existe conivência por parte dos poderes municipais. Esses madeireiros possuem fazendas e são os mesmos que devastaram a Terra Indígena Awá”, diz um apoiador dos indígenas não identificado por motivos de segurança. Ele explica que as equipes da Funai são intimidadas na região e não recebem apoio do governo federal para criar Pos-tos de Apoio e Vigilância dentro da terra indígena. Os que existem estão sem pro-teção policial e comumente são atacados, sobretudo na terra indígena dos Awá.

No final de junho venceu o prazo estabelecido pela Justiça Federal para a criação de mais postos, mas nada foi feito. Os indígenas afirmam que seguirão protegendo suas terras em rondas de fis-calização e contra a invasão madeireira. Nas aldeias o clima é de vigília e aten-ção, enquanto um grupo de guerreiros segue na floresta espreitando possíveis invasores. n

a tarde de 6 de junho cerca de 300 indígenas Guarani realiza-ram um ato contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC)

215 em frente à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). O protesto aconteceu um dia depois que a Articula-ção dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) divulgou um posicionamento público explicando porque nenhum dos povos indígenas do país se dispôs a participar e legitimar as referidas audiências, or-ganizadas por integrantes da chamada bancada ruralista, para debater esta PEC. A manifestação teve apoio do Movimen-to dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento Passe Livre (MPL) e do Comitê Popular da Copa de São Paulo.

No manifesto público divulgado pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), organização indígena que convocou a manifestação, os indígenas conclamaram os movimentos sociais do campo e da cidade para se unirem na formação de uma Frente Antirruralista, como forma de reagir aos ataques promovidos pelos políticos ligados ao agronegócio contra diversos movimentos sociais.

A contínua violência contra o povo Ka’apor

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Devido aos ouvidos surdos da Funai e do Ministério Público às constantes denúncias de invasão e exploração ilegal de madeira, os Ka’apor são ameaçados e sofrem recorrentes violências por fazerem a legítima proteção de seu território

Os indígenas e demais manifestan-tes fecharam a Avenida Pedro Alvares Cabral, carregando bonecos e cartazes com o rosto de políticos ligados ao agro-negócio, dentre eles a senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), então presidente da Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária (CNA), e o deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS), que além de presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, foi eleito “Racista do Ano” pela ONG britânica Survival International. A escolha

de Heinze para o “prêmio” se deu pelas suas declarações contra índios, negros e homossexuais registradas em audiência pública em dezembro de 2013, quando afirmou que esses segmentos da socie-dade brasileira representam “tudo o que não presta”.

No Manifesto Antirruralista da Comis-são Guarani Yvyrupa (CGY), o movimento associa os ruralistas aos bandeirantes, personagens históricos ainda celebrados no Brasil apesar de terem promovido o

assassinato e a escravização em massa de vários povos indígenas, especialmente dos Guarani. “Os ruralistas de hoje são os bandeirantes de ontem, e por meio da caneta querem nos matar como nos mataram no passado com suas armas de fogo. Têm o espírito dos bandeirantes aqueles que usam de seu poder para enri-quecer e concentrar terras, enquanto nós, povos originários, continuamos nas beiras de estrada, espoliados de nossos tekoa, e grandes massas de excluídos seguem sem ter onde dormir, sem ter onde morar, sem ter onde plantar”.

Além da luta contra a PEC 215 e “todas as medidas que visam paralisar as demarcações de terra no país”, os manifestantes também reivindicam do ministro da Justiça, José Eduardo Cardo-zo, a emissão das portarias declaratórias das Terras Indígenas Tenondé Porã e Jaraguá e protestam contra uma decisão de reintegração de posse concedida em primeira instância em desfavor dos Gua-rani que habitam hoje o Pico do Jaraguá. Também anunciam apoio contra medidas de criminalização e de enfraquecimento da reforma agrária. n

NGuarani de SP protestam contra bancada ruralista e PEC 215

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Page 6: Jornal Porantim n° 366, junho/julho 2014

6Jun/Jul–2014

A partir dos depoimentos dos

indígenas e do “esquecimento” dos agentes da

PF presentes na operação

criminosa, Ministério

Público pediu a exumação do corpo de

Adenilson, que confirmou a

versão do povo Munduruku de que ele havia

sido executado pelo delegado,

mesmo depois de atingido por três tiros nas pernas

Luana Luizy,de Brasília

manuelle Limenza Barros tem 28 anos e é de Londrina, Paraná, mas mora no estado do Pará há quatro anos, onde leciona histó-

ria para os indígenas Munduruku da al-deia Missão São Francisco do Rio Cururu, próximo ao município de Jacareacanga, no sudoeste do Pará.

Acusada de organizar protestos e de aliciar os Munduruku, Emanuelle atual-mente sofre intimidações e ameaças por ensinar a Constituição Federal e a Conven-ção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o território e prevê consulta aos povos indígenas e comunidades tradicionais sobre o impac-to de grandes empreendimentos, além de assegurar aos indígenas o ensino da língua materna.

No entanto, a prefeitura de Jacarea-canga menosprezou justamente a deter-minação da Convenção 169 e o artigo 210 da Constituição Federal ao demitir em massa 70 professores indígenas sob o argumento de que não tinham formação adequada para lecionar. Após meses de impasse, a Justiça Federal acatou a deter-minação do Ministério Público Federal e ordenou que a prefeitura restabelecesse a quantidade necessária de professores nas escolas indígenas do povo Munduruku.

A região é conhecida por ter grupos econômicos ligados ao garimpo e que são aliados da prefeitura local. Intimidações

haviam terminado o “Ibourebu”, o magis-tério indígena realizado pela Funai. Todos os alunos da aldeia ficaram sem aula e a prefeitura contratou professores que ainda estavam cursando ensino médio, alguns “pariwat”, não-indígena na língua Munduruku, e outros indígenas. Se você demite professores alegando que não possuem experiência suficiente e contrata outros que cursam o ensino médio e que não falam a língua Munduruku, existe uma coisa errada aí. Me acusaram de es-tar fazendo parte do movimento “Ipereg Ayu”, que na língua Munduruku significa “uma coisa que não se ultrapassa”, mas nunca cheguei a falar para os indígenas que eles precisavam se manifestar. Só disse o que existia dentro da Constituição para os professores indígenas tentarem reconquistar a vaga deles e falei dos artigos 210 e 213 que asseguram aos indígenas poderem estudar enquanto lecionam. Como posso aliciar indígenas se estava ensinando a Constituição?

Qual foi a verdadeira razão para a demissão em massa?

A demissão pra mim foi para frag-mentar os indígenas e acentuar o modus operandi dos reais interesses políticos existentes na região. O secretário de Assuntos Indígenas de Jacareacanga afirmava que eu era uma ativista branca. E me recomendou fugir da casa dos professores, pois ela ia ser queimada. Curiosamente, após uma hora eu ter ido embora a casa foi queimada. n

MPF denuncia delegado da PF pelo assassinato de Adenilson Munduruku

Povo Munduruku

Professora sofre ameaças por ensinar Constituição aos Munduruku

aos indígenas são frequentes. No dia 13 de maio uma manifestação promovida por garimpeiros, comerciantes e membros do poder público contra a presença dos in-dígenas no município terminou com dois Munduruku feridos nas pernas, atingidos por rojões e bombas de gás lançados pe-los manifestantes anti-indígenas. Durante o ato, o secretário de Assuntos Indígenas, Ivânio Alencar proferia palavras de ódio contra os Munduruku.

Porém o caso não é isolado, ele procede de ataques orquestrados e programados. O poder público na região promove constantemente ódio contra os indígenas e também é responsável por coordenar um golpe na antiga associa-ção representativa indígena, a Pusuru, a fim de fragmentar e desmobilizar os Munduruku. Desse modo, o movimento Ipereg Ayu, em assembleia geral dos Mun-duruku, decretou a extinção da Pusuru

por considerarem uma série de desvios de conduta. Leia abaixo uma breve entrevista com Emanuelle:

Qual o trabalho que você desenvolve com os Munduruku?

Embora a prefeitura da região alerte aos funcionários para não se comunicarem na língua dos indígenas e não estabeleçam um contato mais assíduo e próximo, eu fiz o contrário, aprendi a língua deles e acabei criando um certo vínculo. No momento, estou produzindo um projeto que visa alertar o modus operandi do governo para conseguir estabelecer seus mega projetos, sendo que o principal deles é a divisão de etnias e culturas tradicionais para que percam o poder de luta.

Qual foi o motivo alegado para a demissão em massa?

A explicação da prefeitura foi a de que os indígenas não tinham nível suficiente para dar aula, que os indígenas ainda não

Ministério Público Federal

o início de julho, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou à Justiça Federal em Itaituba o delegado da Polícia Federal (PF)

Antonio Carlos Moriel Sanches pelo crime de homicídio qualificado contra Adenil-son Kirixi Munduruku, morto durante a Operação Eldorado, no dia 7 de novembro de 2012, na aldeia Teles Pires, na divisa do Pará com o Mato Grosso. A exumação do corpo do indígena comprovou os depoi-mentos das testemunhas e demonstrou que ele foi executado com um tiro na nuca, depois de ter sido derrubado por três tiros nas pernas.

Pelo crime, o delegado pode ser condenado a até 30 anos de prisão. Se a denúncia for aceita pela Justiça, ele será submetido a julgamento pelo tribunal do júri. A Operação Eldorado deveria destruir balsas de garimpo que atuavam ilegal-mente nas Terras Indígenas Munduruku e Kayabi. O coordenador da operação era o delegado Moriel Sanches.

No dia 6 de novembro, em uma reu-nião com os indígenas, teria sido feito um

acordo para assegurar a destruição das balsas no Rio Teles Pires. Não há evidência de que os índios da aldeia Teles Pires tenham partici-pado de tal reunião. Mesmo assim, foi para lá que a equipe da Polícia Federal se dirigiu no dia seguinte, 7 de novembro, quando Adenilson foi assassinado.

“Ao perceberem que a Opera-ção Eldorado iria ocorrer na Aldeia Teles Pires, alguns índios tentaram retirar os bens que achavam necessário para suas subsistências, sendo que um dos caciques chegou perto do delegado tentando conversar com este para que não desse continuidade na destruição da balsa. O denunciado afirmou que a operação teria que ser realizada, e ainda empurrou a referida liderança indígena. Em reação, um dos indígenas que estava no local empurrou o braço do delegado Moriel, e como estavam próximos ao rio, em uma área de declive o denunciado veio a cair na água. Após tal situação, policiais fede-rais passaram a atirar contra os indígenas e em direção ao rio. Atrás do cacique Camaleão estava um outro indígena,

a vítima Adenilson Kirixi Munduruku”, narra a denúncia do MPF.

Um dos indígenas relatou os fatos que se seguiram, em depoimento ao MPF: “depois que o delegado empurrou essa liderança na qual ele iria atirar, o segurança do cacique empurrou o braço do delegado e ele escorregou e caiu na água, pois a área tem declive e o chão é liso, de barro. Foi a partir daí que come-çou o tiroteio. Nenhum indígena estava com arma de fogo. Os dois primeiros tiros contra a vítima foram dados pelo delegado, que ainda estava dentro da água, que estava pela cintura. Vários policiais começaram a atirar contra os in-dígenas que estavam no local. Três tiros acertaram as pernas da vítima Adenilson

Kirixi, que perdeu o equilíbrio, caindo na água. Nesse momento o delegado, que ainda estava dentro da água, deu um tiro na cabeça da vítima, que já caiu morta e afundou no rio”.

O corpo de Adenilson só foi recuperado no dia seguinte. Todos os agentes da PF presentes na aldeia no momento do ataque

disseram não se recordar dos fatos por estarem ocupados tentando controlar os indígenas. Em vista disso, e com base nos depoimentos dos indígenas, o MPF requisitou a exumação do corpo da víti-ma. O exame comprovou a execução. O tiro fatal atingiu Adenilson na parte de trás da cabeça, depois que três tiros nas pernas o tinham derrubado. A bala saiu pela parte da frente da cabeça da vítima, destroçando vários ossos do crânio. Outros dois indígenas sofreram lesões corporais graves no dia 7 de novembro de 2012, mas não foi possível localizar provas que relacionassem os ferimentos diretamente aos agentes envolvidos na operação, por isso apenas o delegado Moriel foi denunciado. n

N

Indígenas Munduruku

mobilizaram-se para

reverter a demissão em

massa dos professores.

A ação explicita o modus operandi

do governo: dividir e

enfraquecer o povo para viabilizar os

mega projetos

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Criminalização

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Page 7: Jornal Porantim n° 366, junho/julho 2014

7 Jun/Jul–2014

Cimi Regional Norte I

s indígenas do povo Maraguá das comunidades Pilão e Terra Preta, no Rio Abacaxis, município de Nova Olinda do Norte, a 225

quilômetros de Manaus (AM), encaminha-ram uma denúncia à Fundação Nacional do Índio (Funai) e à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República so-bre as ameaças de morte que as lideranças têm sofrido de pessoas supostamente envolvidas com o tráfico de drogas em áreas próximas à terra indígena.

De acordo com o relato de moradores das comunidades, as ameaças ocorrem por causa de ações de repressão desenvol-vidas pela Polícia Federal e pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Eles afirmam que as ameaças se intensificaram a partir do dia 11 de maio passado, depois de operação na área feita por estes dois órgãos em que duas pessoas foram presas e outra conseguiu fugir. Passados alguns dias, os dois foram liberados e retornaram para suas residências, também nas imediações do Rio Abacaxis.

Nos últimos anos, os Maraguá tem enfrentado dificuldades decorrentes da incursão de empresas de turismo em suas

MO agente de saúde e liderança Carlinhos, do povo Xukuru Kariri, é mais um indígena criminalizado pelo processo de luta para a demarcação de sua terra tradicional, paralisada pela pressão política feita por parlamentares como Fernando Collor

Criminalização

Renato Santana,de Recife (PE)

otivados pela denúncia de que um homem “numa moto preta e com capacete preto” havia realizado assaltos no centro de

Palmeira dos Índios (AL) e fugido em dire-ção ao Bairro da Cafurna, ladeado por área retomada da Terra Indígena Xukuru-Kariri contígua ao núcleo urbano sede do mu-nicípio, policiais militares prenderam na noite de 11 de julho o agente de saúde indígena e liderança do povo José Carlos Araújo Ferreira, o Carlinhos. As informa-ções constam no boletim de ocorrência lavrado no ato da prisão preventiva.

Ao contrário do que afirmam os poli-cias, Carlinhos diz ter sido detido na área da retomada que está dentro dos limites identificados como terra indígena e ao lado da aldeia Cafurna de Baixo. A defesa da liderança impetrou no dia 14, na Co-marca de Palmeira dos Índios, um pedido de revogação da preventiva e relaxamento da prisão. “A liderança foi presa dentro da terra indígena e a Polícia Militar não tem competência para tal, pois se trata de área federal”, defende o advogado Isloany Nogueira Brotas.

O agente de saúde, desde o ano passado, é protegido juntamente com

Xukuru-Kariri protegido por programa federal é preso pela PM dentro da terra indígena

outras duas lideranças Xu-kuru-Kariri, pelo Programa de Defensores de Direitos Humanos da Secretaria Es-pecial de Direitos Humanos da Presidência da República. As ameaças contra o indíge-na se intensificaram com a retomada de área que fica ao lado da aldeia Cafurna de Baixo, que há pouco mais de um ano se encon-trava nas mãos de invasores. Carlinhos, além de agente de saúde, é integrante da Comissão de Luta pela Terra do povo Xukuru-Kariri.

A proteção do Estado tampouco fez recuar as ameaças de fazendeiros e policiais que sucessivamente o per-seguiam na área retomada e na cidade. A liderança precisava fazer a própria segurança. Por conta disso, o indígena mantinha uma arma para se proteger em situações de mais vulnerabilidade. Nesse contexto, quando os policiais o revista-ram encontraram uma arma calibre 38 de uso permitido. Autuado por porte ilegal de arma, o indígena foi detido.

Nas demais aldeias Xukuru-Kariri os indígenas entraram em alerta. Em con-

versas e reuniões, a comunidade chegou ao consenso de que a paralisação da de-marcação dos pouco mais 7 mil hectares é a causa da criminalização de Carlinhos. A Fundação Nacional do Índio (Funai) estava na fase do levantamento fundiário para a indenização de benfeitorias das 463 ocupações dentro da terra indígena.

No entanto, a pressão política feita por parlamentares, como o ex-presi-dente e atual senador Fernando Collor, fez o ministro da Justiça, José Eduardo

Cardozo, paralisar os trabalhos e montar uma “mesa de diálogo”. As discussões não caminharam, pois o governo e seus aliados ocupantes da terra indígena queriam a diminuição da demarcação, que há 30 anos teve início com 36 mil hectares até cair para os atuais sete. Os Xukuru-Kariri se negam a reduzir sequer um palmo do território tradicional que lhes sobrou.

“Estava tudo bem encaminhado aqui (Alagoas), mas os servidores da Funai foram obrigados a parar o trabalho com apenas 18 laudos fundiários de indeniza-ção prontos. Se olharmos outros exem-plos, como no caso dos Pataxó Hã-hã-hãe (BA), só a demarcação garantiu o fim da violência contra os indígenas”, opina uma liderança indígena, não identificado por motivo de segurança.

Com o impasse, as intimidações dos ocupantes contra os indígenas aumenta-ram de forma substancial. “Estava para acontecer isso com Carlinhos. A polícia entrava direto na aldeia retomada atrás dele. Desde 2011, o povo Xukuru-Kariri vem sofrendo todo tipo de ameaça. A polícia aqui sempre ajudou a nos ameaçar. Por outro lado, o Estado não cumpre o papel devido, que é de proteger lideran-ças e demarcar as nossas terras”, afirma o indígena. n

Indígenas são ameaçados por supostos traficantes

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Arquivo Cimi

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O povo Maraguá tem tido o seu modo tradicional de vida impactado pelo turismo, por assentamentos e, mais recentemente, por supostos traficantes de drogas

terras, da tentativa de ocupação de parte do território por assentados dos projetos governamentais de reforma agrária e, agora, também por estas ameaças de supostos traficantes na região. O Cimi Regional Norte I apóia a iniciativa dos indígenas de buscarem segurança junto aos órgãos governamentais e espera que as ações de proteção às comunidades sejam efetivadas o mais breve possível.

No Médio Rio Negro, perseguições e ameaças

ma campanha de difamação e persegui-ção contra os povos indígenas do Médio Rio Negro vem sendo realizada por organizações sediadas no município de Barcelos (AM) com o objetivo de rechaçar os processos de demarcação das terras

desses povos. Dentre as organizações contrárias aos indígenas está uma en-tidade representativa de um segmento recentemente arrolado pelo Ministério Público Federal por prática de crime análogo à escravidão.

O reconhecimento oficial dos terri-tórios indígenas nesta região ainda não aconteceu devido à omissão e descaso do próprio governo federal. A Fundação Nacional do Índio (Funai) realizou há sete anos os estudos antropológicos, mas o processo demarcatório está paralisado.

Em uma nota, amplamente divulgada nas redes sociais, as organizações contrá-rias à demarcação das terras indígenas disseminaram mentiras e preconceitos, jogando a população local contra os po-vos indígenas. Elas reproduzem o mesmo

discurso racista e mentiroso usado contra os indígenas da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR) e contra os Mura (AM), dentre outros povos afetados por grupos anti-indígenas.

Esta situação se agrava pelas ameaças à integridade física de lideranças indígenas e familiares. No início de julho, pelo menos dois líderes do movimento indígena local receberam ameaças, um dos quais por meio de bilhete sorrateiramente deixado na porta de sua casa, tendo a casa foto-grafada e invadida por desconhecidos e uma filha seguida enquanto se dirigia para a escola. Estes fatos estão sendo de-nunciados pelo Cimi e por organizações indígenas ao Ministério Público Federal e à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. n

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8Jun/Jul–2014

m amcorem iril utpat non

vulputem quamcon

sequat. Lummodi

psuscidunt luptat vendre

magnissed magnim

volorer ciduis del ut in ullan

henisi etue ming ese tat irit atummy

nim vendipis at. Ut volore dunt lam ver

ilit alit

ORenato Santana,enviado a Feijó (AC)

barulho do batelão reverbera do interior da floresta. Sobre o teto do barco, no horizonte de pálpe-bras cerradas pelo sol do meio dia, a zuada mais parece uma revoada de pássaros com asas

de ferro invisíveis. A estridência metálica, dentro da mata, espanta araras, macacos e demais bichos no sincopado tu-tu-tu-tu do motor, som reconhecido pelos indígenas em situação voluntária de isolamento da Ama-zônia como sinal aliterado da sociedade que os envolve. É inverno nesta porção extrema do país. As águas correm abundantes e a embarcação singra, sem muitos percalços, as entrelinhas da lâmina d’água, lidas atenta-mente pelo barqueiro que desvia de troncos, na maioria das vezes submersos, e evita trechos mais rasos ou de intenso rebojo. No verão o rio seca e apenas cascos pequenos conseguem passagem entre as praias natu-rais, cujas areias oferecem aos isolados ovos de tracajá. O calor e a umidade perpassam as estações, assim como os piuns e carapanãs. O batelão navega contra a corrente vazante e sete dias depois da saída do porto move-diço de Feijó (AC) chega-se à Terra Indígena Kampa/Isolados, demarcada no Paralelo 10, Alto Rio Envira, já na fronteira do Brasil com o Peru, onde as águas tingidas pelos sedimentos e pelo barro passam a dar vida ao Rio Xinane. Este vasto mundo se reduz, a cada dia, para os isolados. Ainda que tenha o mesmo tamanho.

A região é uma das últimas no mundo a ter grupos de povos livres. Com a Consti-tuição de 1988 e mais protegidos pelas de-marcações, todavia vulneráveis às invasões dos territórios, conseguiram resistir aos massacres e dobraram suas populações nas últimas décadas. Exercem o pleno direito de resistência às vontades integracionistas da “civilização” e preservam suas próprias instituições sob a memória de uma vida de correrias. Chamadas na região de bravos, estas populações se negam ao contato com as sociedades que as envolvem. Sejam as indígenas ou mesmo as ribeirinhas, cujas origens naquelas matas estão em famílias de seringueiros instaladas por ali, desde o final do século XIX e decorrer do XX, pelas frentes de colonização. Os Ashaninka, tal como eles se autodenominam, dividem a Terra Indígena Kampa/Isolados com os bra-vos e os chamam de maxiriantsé, os valen-tes. A semântica oferece outro significado para o aparente tom pejorativo da palavra bravo, mas que delimita a complexa noção de alteridade presente entre estas nações e

seus convívios autodeterminados. Porém, em terras onde grupos indígenas insistem contra a capitulação de suas formas livres de vida e outros lutam diariamente pela sobrevivência em interface à sociedade branca, ser bravo, no sentido dado pela língua Ashaninka, se tornou um traço marcante entre estes povos. As relações culturais críticas dessas experiências, no reforço das alteridades tanto dos isolados quanto dos demais povos, gera um dos contextos mais complexos entre isolados e índios contatados do Brasil.

Entre o final de junho e durante todo o mês de julho essa história ganhou mais um episódio. Um grupo de indígenas livres causou alvoroço ao entrar na aldeia Sim-patia, onde vivem os últimos Ashaninka antes da fronteira com o Peru. Durante o primeiro semestre deste ano, os Ashaninka relataram acontecimentos similares, todos encaminhados ao Ministério Público Federal (MPF) e à Fundação Nacional do Índio (Funai) pelos indígenas por intermédio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Não se trata, portanto, de um contato inédito. Porém, desta vez a Funai decidiu agir e na aldeia montou a Operação Simpatia, em parce-ria com o governo do Acre. Os indígenas ficaram impedidos de sair da comunidade. No dia 26 de junho, servidores do órgão indigenista e os Ashaninka estabeleceram novo contato com alguns destes livres que, conforme a equipe de sertanistas, estavam com gripe. A Funai divulgou foto com três deles. Durante o tratamento realizado por profissionais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), os indigenistas identifica-ram que estes livres falam um idioma do tronco linguístico Pano, o mesmo de outros povos do Acre e Peru. Os isolados então puderam ser entendidos, de forma precária, sobre os ataques que vêm sofrendo, possi-velmente de madeireiros e narcotraficantes peruanos. Em seguida voltaram para o in-terior da floresta no caminho das malocas de seu povo. Desativada há pouco mais de três anos, a Base do Xinane da Frente de Proteção Etnoambiental do Rio Envira terá seus trabalhos retomados.

Frente da borracha... Frente Etnoambiental

Esta base está instalada na Terra Indí-gena Kampa/Isolados, a três horas de barco da aldeia Simpatia, no rumo da fronteira com o Peru. A estrutura foi abandonada depois de um ataque de narcotraficantes, em junho de 20111. Antes, porém, dessa história - que impactou a vida tanto dos Ashaninka quanto dos bravos nos últimos

anos, além do povo Madja, que naquelas terras também estão - voltamos pouco mais de cem anos. No início do século XX, sobretudo depois da Primeira Guerra Mundial, as mobilizações voltadas à ocupa-ção territorial da região Norte do Brasil se acentuaram. Nas décadas de 1930 e 1940, com ênfase no governo de Getúlio Vargas e nos acordos firmados com os Estados Unidos ante os esforços da guerra travada na Europa, frentes de colonização foram organizadas e seguiram rumo aos confins da Amazônia. Se por um lado a exploração das seringas entraria em seus ciclos eco-nômicos, por outro o Norte passaria a ser parcialmente povoado e o “espaço vazio” brasileiro, assim considerado pelo governo central, preenchido. Todavia, aquelas flo-restas tinham donos. Não estavam vazias. Nelas viviam povos indígenas ainda sem contato, que também fugiam. Entrecor-tado por rios com nascentes nos Andes e correntes às águas do Amazonas, a grande serpente, o Acre foi um dos estados que

teve suas seringas e nações indígenas ras-gadas por inúmeras frentes de colonização da borracha.

As varações e igarapés entre os prin-cipais rios do estado foram as principais rotas de fuga dos povos indígenas. Os mais velhos chamam este período de “tempo das correrias”. As mortes eram hediondas aos indígenas que resistissem à escravidão e às vontades dos senhores que estabeleciam poder. Caçadores de índios em nada per-diam aos seus antepassados que ilustraram em tintas de terror a história da invasão europeia à Ameríndia. No Rio Envira, onde viviam os Huni Kui, no Médio, e os Madja, no Alto, os grupos isolados, para fugir da violência das frentes de colonização, seguiram para mais perto da fronteira com o Peru e para além dela, numa área de circu-lação que lhes possibilitava resistir. Ao En-vira, no entanto, as frentes de colonização não levaram apenas a própria sanha, mas também outros indígenas que entre outros trabalhos atuavam como mateiros, além de

POVOS ISOLADOS

Bravos Índios Livres

Renato Santana

Gleilson Miranda/Funai

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9 Jun/Jul–2014

intermediários no contato agressivo com os povos livres. Afinal, se naquelas terras não viviam ao menos circulavam. Os isola-dos, desde estão, associam os Ashaninka ao tempo dos massacres, contatos violentos, mortes e fugas. Com o fim dos ciclos da borracha, tais frentes de colonização se desfizeram. Aos Ashaninka e povos livres restou a herança do trauma coletivo, que segue pautando as relações entre essas sociedades. Nos últimos anos, com o retor-no cada vez mais acentuado dos isolados a antigos territórios hoje ocupados pelos Ashaninka, as excursões de povos livres às aldeias têm sido constantes. Levam terça-dos, roupas, redes, utensílios domésticos, tudo o que se pode colher nas roças, e até mesmo crianças. Os Ashaninka aprenderam a lidar com tais “delitos” sem violência, mas temem que em algum momento algo de mais grave aconteça - como antigamente. Caciques e demais lideranças tramam os fios tênues dessa história, elásticos como uma linha de borracha.

“No Rio Envira, os Ashaninka sempre andaram, mas nascer aqui só os mais novos. Os mais velhos foram trazidos de outros lugares pelo kairu (branco), de

aldeias do Peru. Acontece que estamos aqui e enterramos nossos mortos, fazemos nosso ritual. Nossos filhos nasceram aqui. Nossas aldeias cresceram. Ashaninka não quer brigar com bravo, mas quem aguenta ter suas coisas levadas? Se eles matarem um Ashaninka, como faremos?”, indaga Txate Ashaninka, que não sabe ao certo a idade, mas aparenta ter por volta de 75 anos. Os olhos vão de um lado a outro em movimentos curtos num rosto magro, queimado de sol. O cuzmã, espécie de batina e vestimenta tradicional do povo, cobre do pescoço aos pés a baixa estatura do corpo de pássaro. As mãos ossudas de Txate alternam entre segurar o próprio queixo, numa postura de reflexão, e apon-tar a mata, enquanto a cabeça mergulha nas memórias encravadas nas árvores que ladeiam o Envira. “Naquela ali eu subia com as outras crianças. Alta, né? Os macacos vinham para perto”, aponta da janela do barco. “Era aldeia antiga nossa. Mais para trás está kamarambi (ayahuasca) e onde era a roça do meu tio. Saímos daqui por causa dos bravos, mas nunca ninguém morreu. Teve flechado, mas sem mortes”, recorda Txate.

Tal como as árvores carregadas pelo Envira, cujas sementes germinam novas plantas em outras margens, as aldeias Ashaninka desfeitas por conta da relação conflituosa com os povos livres refloresta-ram o povo em outros pontos do rio, mais longe dos locais de aparição dos “bravos”. Na década de 1980, a aldeia Xinane foi um desses casos. Bem próxima da fronteira com o Peru, era constantemente alvo dos isolados. Os Ashaninka que nela viviam a desativaram e se espalharam em outras aldeias ou fundaram novas. Nelas, os iso-lados também chegavam e, assim, outras aldeias foram descendo o rio até quase o Médio. Com o aumento das tensões, e já sob uma nova política com relação aos povos em situação de isolamento voluntá-rio, que previa o direito destes grupos de terem uma vida preservada da indesejada companhia das demais sociedades, a Funai construiu no local da antiga aldeia Xinane uma base. O objetivo era identificar quem eram esses livres, demarcar o território e impedir conflitos entre eles e os Ashaninka. Mais tarde a estrutura passou a integrar a Frente de Proteção Etnoambiental do Xinane.

“Sou o passado falando”

O sertanista José Carlos Meirelles fun-dou esta base e nela viveu durante 22 anos, entre 1988 e 2010. Criou filhos, que com o tempo passaram a trabalhar em frentes de proteção, manteve uma família e a ela agregou os peões que sobre os pisos de madeira da pequena vila também moravam. As histórias de Meirelles são despudora-das quanto a finais felizes e tampouco o transformam em herói defensor dos povos indígenas. “Sou o passado falando”, diz. Prefere a prosa ao discurso e não se priva de relatar, com seu sotaque de homem do interior, episódios de que não se orgulha, como quando se viu diante de isolados e para defender parentes precisou atirar. O indígena atingido acabou morto2. Ou quan-do foi atacado pelos isolados num igarapé próximo da base, enquanto pescava. Uma flecha atravessou seu rosto e ele precisou ser levado de helicóptero para um hospital da capital Rio Branco. “Andávamos na mata, coisa hoje esquecida. Parece que hoje se monitora índio isolado e protege-se o

Chamadas na região de bravos, estas populações se negam ao contato com as sociedades que as envolvem. Sejam as indígenas ou mesmo as ribeirinhas, cujas origens naquelas matas estão em famílias de seringueiros instaladas por ali, desde o final do século XIX e decorrer do XX, pelas frentes de colonização. Os Ashaninka, tal como eles se

autodenominam, dividem a Terra Indígena Kampa/Isolados com os bravos e os chamam de maxiriantsé, os valentes.

Fotos: Renato Santana

O contato dos povos livres (à esquerda, acima) com as populações Ashaninka e Madja (outras fotos) tem se tornado cada vez mais comum. Eles voltam a territórios que ocuparam antes das frentes de colonização da borracha chegarem à região. Por outro lado, os povos contatados sofreram massacres e tentativas de escravidão. Resistência é traço marcante de todos os povos indígenas

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10Jun/Jul–2014

A Base do Xinane da Frente de Proteção

Etnoambiental do Rio Envira

(acima) foi alvo de

ações do narcotráfico organizado

internacional, atrelado às

madeireiras, e ficou

desativada por três

anos (meio). Fundada pelo

sertanista Meirelles

(abaixo), que morou ali

por 22 anos, ela terá seus

trabalhos retomados,

mas a pergunta que fica é: “como

impedir que o território

não seja acossado pelo narcotráfico?”

território via notebook”, afirma. Não há indigenista atuante na temática dos iso-lados que não tenha ouvido as histórias de Meirelles. Seja para criticá-lo ou para tê-lo como referência. Porém, entender as problemáticas dos isolados do Envira e a política para os isolados da Funai passa necessariamente por um pouco de prosa com Meirelles.

Quando chegou ao Xinane, o serta-nista trabalhava com a informação de que apenas um povo isolado vivia na região. “Localizamos. Depois descobrimos que havia outro nas cabeceiras do Riozinho. Localizamos. Depois descobrimos mais um em 2008. Além dos Mascho Piro, que andam pelo Envira sazonalmente e com mais frequência de 2006 para cá. E muito provavelmente um quinto grupo que anda nas cabeceiras do Rio Jordão, oriundo da reserva Murunaua, no Peru”, explica Meirelles. O tempo e a perseverança, conta o sertanista, fiaram a metodologia de trabalho. As informações inicialmente eram de outros indígenas do Envira ou de ribeirinhos, mateiros. Com a consolidação da Frente do Xinane aperfeiçoou-se a captação de informações, com longas estadias no meio da floresta e monito-ramentos por sobrevoos. Descobriu-se, então, que alguns destes povos são caçadores e coletores, caso dos Mascho, que circulam na fronteira do Brasil com o Peru, nômades, e outros agricultores, com possível associação ao tronco linguístico Pano. “Quando chegamos, ocorriam mui-tos conflitos entre os Ashaninka e Huni Kui com os isolados. Em 1989 sobrevoa-mos suas pequenas malocas, que hoje já devem ser o dobro”, lembra Meirelles. O sertanista lembra que estes povos tiveram um aumento populacional nos últimos anos e isso também provoca mudanças no comportamento. No Brasil existem cerca de 90 povos em isolamento voluntário.

Narcotraficantes atacam

Se por um lado, desde os anos 1980 registram-se conflitos entre os isolados e os demais povos das margens do Envira, por outro, a partir de 2005, data Meirel-les, as cabeceiras do Envira no Peru, até então desabitadas pelo homem branco, foram invadidas por madeireiras e depois pelas plantações de coca e por todo o processo que envolve a sua produção. Os empreendimentos, no geral, são do mesmo dono e a madeira é usada para “lavar” os lucros obtidos com a coca. O avanço das fronteiras do crime organiza-do internacional para cima do território gerou o mencionado episódio de junho de 2011, quando a Base do Xinane foi cercada por narcotraficantes e a equipe de servidores da Funai retirada do local por helicópteros da Polícia Federal. Meses antes, em março, o traficante português Joaquim Antônio Custódio Fadista, conde-nado por tráfico de drogas no Brasil, em

Luxemburgo e no Peru, foi detido na Base do Xinane depois de aparecer no local sozinho, portando uma mala com drogas e dólares e pedindo passagem. Levado para Rio Branco, ele foi extraditado para o Peru. Logo conseguiu liberdade e em junho regressou ao Xinane com capangas para se vingar de quem o havia detido e supostamente localizar a mochila re-cheada com drogas e dinheiro. Meses depois, em agosto, Fadista foi mais uma vez detido. Informados pelos Ashaninka, a Polícia Federal e servidores da Funai chegaram ao Xinane para averiguar a circulação de supostos narcotraficantes. Durante a operação, a equipe localizou Fadista no meio da mata, nos arredores da Base do Xinane. O governo federal tem informações que o narcotráfico, sediado do outro lado da fronteira, estuda a região com o intuito de utilizá-la.

As madeireiras, portanto, estariam atreladas ao narcotráfico e a intensidade da ação delas na região está submetida ao avanço do negócio da droga no território compartilhado pelos Ashaninka e isola-dos. Sobrevoos realizados pela equipe do Xinane, do final dos anos 1980 até a sua desativação em 2011 sob fogo cerrado dos traficantes, comprovam a ação de madeireiros. No entanto, tais investidas diminuíram depois da demarcação e da consequente proteção do território. No lado brasileiro registra-se a incidência de pequenos madeireiros, além da utilização da área dos isolados “como supermercado de carne, peixe e madeira por parte dos brancos. Os Ashaninka e Madja também pescam nestas áreas para vender em Feijó”, diz Meirelles. Mesmo com a Funai retomando os trabalhos da Base do Xina-ne, como impedir que o território deixe de ser acossado pelo narcotráfico? No último dia 24 de março, a presidente do órgão indigenista, Maria Augusta Assirati, se reuniu em Lima, Peru, com represen-tantes do Ministério da Cultura peruano para a formalização interinstitucional de protocolos para a proteção e promoção dos direitos dos povos isolados e de re-cente contato, que vivem nas regiões de fronteira entre os países. Aos indígenas, porém, fica a relação com os isolados.

“Sofreram muitas violências”

O cacique Ominá Madja tem uma pequena coleção de objetos dos isolados recolhidos na mata. Um de seus filhos aprendeu a tocar uma pequena flauta tingida de urucum e musgo. As janelas da casa do cacique miram a floresta chuvosa. Naquele mesmo dia pela ma-nhã um isolado foi avistado espreitando, dependurado numa árvore. Por trás do manto d´água que cai nada se esconde. “Eles sofreram muitas violências. Como a gente também. Toda vida que índio morre por um pedacinho de terra, seja querendo ou defendendo ela. Só que os

bravos não sabem tudo o que a gente sabe de vocês (brancos)”, analisa. Cacique da aldeia Igarapé do Anjo, homônimo de um dos igarapés onde os isolados mantêm aldeias, o indígena afirma que a relação dos Madja com os livres não é pauta-da pela violência, mas que alimentam desconfianças mútuas. “Tentamos falar com eles, apesar da língua ser diferente. Como a gente não ataca, chegam perto cada vez mais. Achamos cerâmica deles, panelas, flechas e flautas. Estão perto da gente”, diz Ominá. O cacique aponta para a ação de madeireiros na região, o que justificaria a aproximação cada vez mais constante destes povos às aldeias Madja. Como no decorrer do processo histórico os Madja e Ashaninka passaram a casar entre si, algumas aldeias são compar-tilhadas. “Aqui a gente é madjaninka”, riem. Se por um lado as fronteiras im-postas pelos Estados nacionais não exis-tem para as populações em isolamento voluntário, que circulam entre alguns

países num grande território ancestral, aos Ashaninka e Madja a demarcação da Terra Indígena Kampa/Isolados é apenas uma formalidade importante. A comuni-dade Igarapé do Anjo está dentro dessa terra indígena, assim como a aldeia Terra Nova, onde o cacique Isanami Madja é casado com uma Ashaninka.

Enquanto a esposa prepara caiçuma de mandioca, Isanami mostra a identi-dade puída. Levado junto com roupas e panelas, o documento foi encontrado tempos depois, num buraco, junto a outros objetos saqueados pelos isolados. Silenciosos e sem violência, os livres chegaram a levar o mosquiteiro de Isa-nami enquanto ele e a mulher dormiam. O episódio é lembrado com risos, mas nem sempre as histórias são irreveren-tes. Certa vez uma mulher Madja estava na roça quando foi abordada por dois isolados. Primeiro tomaram o terçado das mãos da indígena e depois insistiram para que ela fosse embora com eles. Os

POVOS ISOLADOS Bravos Índios Livres

Gleilson Miranda/Funai

Rose Padilha

Gleilson Miranda/Funai

Renato Santana

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11 Jun/Jul–2014

“As excursões de povos livres às aldeias têm sido constantes. Levam terçados, roupas, redes, utensílios, tudo o que se pode colher nas roças, e até mesmo crianças. Os Ashaninka aprenderam a lidar com tais “delitos” sem violência, mas temem que em algum momento algo de mais grave aconteça. Caciques e demais lideranças tramam os fios tênues dessa história, elásticos como uma linha de borracha”

homens da aldeia, tão logo ouviram os gritos da mulher, correram para a roça e, lá chegando, precisaram afugentar os livres. Tanto a Funai quanto os Madja sabem que poucos quilômetros separam as aldeias das malocas dos isolados. Conforme Isanami, tal aproximação tem se intensificado nos últimos cinco anos, mas de uns três para cá deixou de ser sa-zonal e ocorre durante todas as semanas do ano. “Já os vi muitas vezes. Perto da aldeia e no meio da mata. São cabeludos e têm os corpos pintados de urucum e jenipapo. Já vi caçando macaco. Olham a gente e correm. Não ficam não”, conta Isanami. Para o cacique, o mais difícil é ter sempre roupas e utensílios levados pelos isolados. “Olha, vou te dizer meu pensamento: não que tem de amansar ou fazer violência contra eles, madeireiro é quem faz assim. Mas imagina ter suas rou-pas levadas toda hora por outras pessoas ou a sua roça? Perder tudo. Isso deixa a gente triste”, conclui Isanami.

Proposta diplomática

Enquanto esteve na Base do Xinane, Meirelles realizou algumas oficinas com os Ashaninka e Madja para tratar da relação com os isolados. “Creio que os isolados, pela nossa atitude de respeito, durante anos, com aquele território só para eles, consideram sua área de ocu-pação aquele pedaço. E é. Os Ashaninka chegaram ao Envira na década de 1940, os isolados já estavam lá. Então, quem invadiu terra de quem?”, questiona o sertanista. A principal reclamação dos Ashaninka é de que Meirelles não os dei-xava participar das ações da frente e agora reivindicam mais protagonismo. Querem entender quem tem se movimentado pelo território além dos isolados. Pretendem desenvolver uma nova diplomacia. “Para a

gente tem peruano no meio e até outros indígenas do Peru juntos. Como vai dizer diferente? A gente quer ir ver mesmo por-que tem Ashaninka no Peru que diz que tem madeireiros e traficantes andando por aqui. Tanto os parentes bravos quan-to nossas aldeias estão sem proteção”, conclui Txate Ashaninka. Na Base do Xinane, Txate e os Ashaninka encontram razão para o argumento: pegadas de pés descalços e botas se misturam riscando o limo que cobre a madeira quebradiça das pontes que ligam as casas da estrutura. Antigo funcionário da base, Francisco das Chagas recorda que Meirelles temia a presença dos Ashaninka na base por conta do histórico de conflitos entre eles e os isolados. “Seu Meirelles queria os bravos perto da base”, diz Chagas. O experiente mateiro lembra que muitos funcionários da frente foram alvos de flechadas, inclusive o próprio Meirelles, e que “só não morreram porque Deus foi camarada”. Os isolados costumavam andar perto das casas da base arremedan-do animais. E confirma: “Não sei bem a razão, mas os bravos estão cada vez mais em cima dos Ashaninka. É de uns três anos pra cá, daqui acolá (gesticula com os braços) a gente vê eles atravessando o rio. Na aldeia Simpatia (última aldeia Ashaninka antes da base) não faltam”. Chagas também não confirma a presença de peruanos não indígenas, mas salienta movimentações diferentes de isolados na região. O mateiro está há quase duas décadas no Envira, onde casou com uma Ashaninka e hoje já cuida dos netos.

Crianças levadas pelos bravos

Outras histórias envolvendo os iso-lados dão conta de crianças levadas por eles. José Poshe e Bibiana Ashaninka nunca esqueceram de uma festa ocorrida

na aldeia há 18 anos quando a pequena Sawatxo foi carregada. Na época com 5 anos, a jovem dormia com os irmãos. Ao ouvir choros e gritos das crianças, José Poshe correu para casa e ao chegar os mais velhos relataram que um bravo entrou na casa e levou Sawatxo. Foram muitos dias procurando pela menina na floresta. Em vão. “Deve estar grande. Já deve ter tido filhos. Ela deve ter se acostumado sem a gente. Todo mundo se acostuma a tudo”, diz José Poshe olhando para o rio. Dezenas de outras tentativas foram relatadas pelos Ashaninka. Do lado peruano uma das histórias terminou em massacre. Entre os Ashaninka do Envira, o ocorrido na comunidade Doce Glória, Departamento de Ucayali, Peru, em 2003, próximo a cabeceira do Rio Juruá, mesmo que não tenha tido a participação de indígenas do Brasil, é um fantasma que assombra as florestas do território que compartilham com os isolados. Enquan-to preparava a comida para o marido e outros Ashaninka que estavam pescando, uma mulher foi morta por um grupo de livres do povo Masko Piro. Imediatamente os Ashaninka arregimentaram um grupo e, na mata, deram o mesmo fim da mulher para cerca de 300 isolados. O relato vem dos Ashaninka do Envira, que possuem parentes entre os Ashaninka do Peru. “Então, eu não sei se um parente bravo matar um Ashaninka não pode acontecer isso no Envira. Eu, como mais velho, digo aos mais novos para não fazer nada. Para não ir na mata quando se sabe que eles estão lá, mas a gente não controla tudo”, afirma Txate Ashaninka.

O fantasma dessa história, porém, tem razão de assombrar um povo tomado pelo mágico. Os indígenas afirmam que a movimentação dos Masko foi provocada pela ação de madeireiros ilegais vindos do Departamento de Madre de Dios, chegando às cabeceiras do Rio Juruá,

perpassando territórios dos isolados, na Zona Reservada do Alto Rio Purus, uma unidade de conservação na Amazônia peruana criada ainda no governo Alberto Fujimori (1990-2000). “Eu penso que se não for retomado um trabalho aqui no Envira pode acontecer algo como lá no Peru. Isso dá mais medo em mim que as flechas dos parentes bravos. Mas a gente não quer que a Funai volte como era antes. Ashaninka e Madja precisam estar juntos. Precisamos ser parte”, diz Txate.

No mês de junho, lideranças Asha-ninka relataram que na aldeia Simpatia um indígena caiu em uma armadilha dos livres, no interior da floresta, mas não se feriu. No Igarapé do Anjo, aldeia do povo Madja, a inserção dos livres acontece toda semana. A Base do Xinane, devorada pela fome úmida da Floresta Amazônica no Pa-ralelo 10, segue como símbolo do desafio da política indigenista aos isolados. Num paradoxo, como assegurar e garantir a liberdade destes povos? Enquanto isso, os livres exercem o direito de resistência e demonstram diplomaticamente que não irão aceitar as mortes de antigamente. As histórias circulam e eles seguem o cami-nho de volta entrecortado por trilhas de outros povos. Por essas picadas os livres também seguem, onde muitos deles tive-ram a carne morta devorada pela terra. Um jardim de ossos na paisagem da me-mória. Num mundo brevemente grande, que já teve seu apocalipse de fogo para estes povos, tais encontros ocorrem entre as ruínas de raízes que insistem em tecer novos convívios e relações. n

1 A Funai divulgou o episódio no dia 7 de agosto de 2011, que teve ampla cobertura da imprensa:http://g1.globo.com/natureza/noticia/2011/08/grupo-armado-peruano-invade-terra-de-indios-isolados-no-ac-diz-funai.html

2 Depoimento do sertanista José Carlos Meirelles ao cineasta Silvio Da-Rin para o documentário Paralelo 10 (2012)

No mês de junho, lideranças Ashaninka relataram que na aldeia Simpatia um indígena caiu em uma armadilha dos livres, no interior da floresta, mas não se feriu. No Igarapé do Anjo, aldeia do povo Madja, a inserção dos livres acontece toda semana. A Base do Xinane, devorada pela fome úmida da Floresta Amazônica no Paralelo 10, segue como símbolo do

desafio da política indigenista aos isolados. Num paradoxo, como assegurar e garantir a liberdade destes povos?

Renato SantanaRenato Santana

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12Jun/Jul–2014

Ministro X Constituição

Carolina Fasolo,De Brasília (DF)

urante reunião na manhã de 4 de junho com a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abasteci-mento e Desenvolvimento Rural,

na Câmara dos Deputados, o ministro José Eduardo Cardozo disse à bancada ruralista que a postura do Ministério da Justiça (MJ) em relação à questão indígena no Brasil continuará sendo a de “mediar conflitos” por meio das mesas de diálogo. “Costumam dizer que direi-tos não se negociam. A mediação não é para abrir mão de direitos, mas para fazer ajustes dos limites desses direitos”, explicou o ministro.

Um dos caminhos para o “ajuste de direitos” pretendido pelo ministério seria a efetivação da Minuta de Portaria proposta por Cardozo para ‘regulamentar’ o Decreto nº 1775/96, o que inviabilizará a demarcação de terras indígenas. Apresen-tada pelo ministro em dezembro de 2013, a Minuta foi repudiada por organizações indígenas e indigenistas, que entregaram um parecer jurídico a Cardozo, enfatizan-do os equívocos da proposta.

Desde então a Minuta está parada no MJ, mas a bancada ruralista continua pressionando o ministro. O deputado Luis Carlos Heinze (PP/RS) ordenou a Cardozo que acabe com o processo de demarcação no município de Faxi-nalzinho (RS). “Diga para esses índios, ministro, tenha o peito de dizer: ‘pessoal vai embora, aqui não é área indígena!”. Sobre a demarcação de Mato Preto, outra terra indígena do RS, Heinze atacou: “Se vocês tivessem a decência necessária teriam eliminado aquele processo”.

Em resposta, Cardozo inicialmente fez um apelo para que os parlamenta-

No Junho Indígena povos rechaçam projetos de “desenvolvimento”

Cimi Regional Rondônia

movimento indígena de Ron-dônia, do noroeste do Mato Grosso e do sul do Amazonas

realizou o encontro “Junho Indígena”, entre os dias 3 e 6 daquele mês com o tema “Movimento indígena: luta, resistência e fortalecimento”. O even-to contou com a presença dos povos Aikanã, Arara, Cassupá, Chiquitano, Gavião, Guarasugwe, Jabuti, Jiahui, Kwazá, Karitiana, Kujubim, Latun-de, Makurap, Mamaindê, Massacá, Migueleno, Ororam Xijem, Cao Oro Waje, Oro Mon, Oro Nao, Oro Waram, Puruborá, Sabanê, Sakirabiar, Suruí, Tawandê, Tenharim, Terena, Tupari, Wajoro e Zoró, e aliados como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Instituto Madeira Vivo (IMV), o Ministério Público Federal (MPF) e a Universidade de Rondônia (Unir).

Após a constatação de que a con-juntura indigenista se encontra em um momento desfavorável às conquistas dos povos indígenas e das demais comunidades tradicionais, os debates priorizaram os projetos governa-mentais e privados que esbulham os territórios indígenas, bem como as falhas na execução das políticas públi-cas (saúde, educação, terra) que têm prejudicado a vida das comunidades.

Segundo a Carta Final do en-contro, os direitos garantidos na Constituição Federal de 1988 são descaracterizados devido ao avanço de empreendimentos, como rodovias, hidrovias, hidrelétricas, projetos de sequestro de carbono, agrope-cuária, agronegócio e outros, que violam os direitos indígenas. “Tudo isso para defender os interesses do capital econômico que destrói e mata”. O documento pode ser lido na íntegra em: www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=rea-d&id=7586 n

Na cueca – Mesmo boicotado pela transmissão televisiva oficial da cerimônia de abertura da Copa do Mundo, no dia 12 de junho, realizada

no Itaquerão, o protesto do indígena Wera Jeguaka Mirim, de 13 anos, foi divulgado nos jornais, blogs e redes sociais do mundo todo. Após participar de um ato que simbolizava a paz e a união de povos e culturas, ainda no gramado, ele abriu uma faixa ver-melha com os dizeres “Demarcação Já!”. Morador da aldeia Guarani de Krutuku, em Parelheiros, na capital paulista, ele demandava a demarcação das terras in-dígenas no Brasil. “Eu queria que a presidente Dilma lesse. E que mais gente lesse e lutasse com a gente porque a gente mora aqui faz mais de mil anos. A gente quer a nossa terra demarcada”, afirmou Wera.

res com presença em áreas de conflito adotem postura de pacificação. “Seria muito importante, deputado Heinze, que pessoas com a envergadura de Vossa Excelência, com a representatividade de Vossa Excelência e outros deputados ajudassem a pacificar essas regiões”. E depois acrescentou: “Uma coisa eu quero dizer deputado Heinze, com toda a fran-queza e lealdade, o Ministério da Justiça não tolera violência, venha de onde vier. Contra a transgressão, contra a incitação à prática de crimes nós seremos duros. Porque há pessoas incitando a prática de crimes. E quem incitar vai responder nos termos da lei”, reforçou o ministro.

Uma queixa-crime contra os depu-tados Heinze e Alceu Moreira (PMDB/RS) tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). Os parlamentares foram denun-ciados por racismo e incitação ao crime por terem declarado, publicamente, que índios, quilombolas, gays e lésbicas são “tudo o que não presta” e incentivado produtores rurais a contratar segurança privada para expulsar índios das terras “do jeito que for necessário”.

Em resposta ao pedido dos ruralistas para que o MJ elimine os procedimentos demarcatórios, Cardozo declarou que “o Poder Executivo não pode suspender os processos de demarcação sem causa ju-rídica”, e explicou à bancada a manobra que se pretende com a publicação da Mi-nuta: “Nós (MJ) concordamos que temos que instruir melhor os processos e por isso elaboramos a Minuta de Portaria”. Caso seja efetivada, grupos contrários à demarcação passarão a interferir desde os primeiros momentos no procedimen-to de identificação e delimitação das ter-ras indígenas, inviabilizando até mesmo o trabalho de campo dos profissionais e estudiosos”.

Ainda não convencido, Heinze in-vestiu contra os ministros: “Os senhores não querem resolver esse assunto. Se quisessem, nós dessa Casa já tínhamos regulamentado o artigo 231. Nós já tínha-mos feito a PEC 215, que não anda porque o governo não quer. O que queremos é resolver, e resolver tem solução legislativa e do próprio Executivo”. Também convo-cado para a reunião, Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, ponderou: “Te-mos tido muitos problemas. Há pressões de todos os lados, vocês viram a semana passada”, referindo-se às manifestações da Mobilização Nacional Indígena.

Gilberto Carvalho ainda demonstrou aos deputados que as porções de terra reivindicadas pelas populações indígenas são mínimas e não comprometerão o agronegócio. “Não se trata de grandes porções de terras que venham a preju-dicar a agricultura nacional. Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, até hoje foram demarcadas 2,28% das terras do estado, e o máximo que se poderá chegar é mais 1%. No Rio Grande do Sul, apenas 0,39% das terras, chegando a até 1,5% ou 2% no máximo, se todas as terras forem demarcadas. O estado de Santa Catarina tem 0,87% do território destinado aos indígenas, podendo chegar ao máximo de 2%. Então, não há nenhuma ameaça de tomada de grandes terras da agri-cultura nacional”. No entanto, Carvalho sinalizou que o governo não vai retirar os proprietários das terras indígenas, e que os processos continuarão paralisados. n

Cardozo diz que MJ vai “ajustar limites” dos direitos indígenas

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13 Jun/Jul–2014

Luta pela terra

PREÇOS: Ass. anual: R$ 60,00 Ass. dois anos: R$ 100,00 *Ass. de apoio: R$ 80,00 América Latina: US$ 50,00 Outros países: US$ 70,00

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FORMA DE PAGAMENTO – DEPÓSITO BANCÁRIO:

Renato Santana, de Recife (PE)

comportamento pessoal do Co-mandante Prado, ao ser autuado em flagrante, demonstra o que de mais vil, reprovável e atrasado

existe no Brasil. Ligou para deputados, po-líticos e ameaçou de represálias policiais, mentiu em seu interrogatório alegando que sofrera maus tratos pelos policiais federais, enfim, arrotou a arrogância típica dos coronéis de antigamente, na crença da impossibilidade de ser atingido pelas leis penais do país, e na utilização descarada da técnica da intimidação e constrangimento das autoridades legal-mente constituídas”.

A narrativa é parte do Relatório Circunstanciado Cocos (BA), enviado à inspetoria da Polícia Federal (PF) em 3 de fevereiro de 2011, sob análise e redação do delegado Victor Emmanuel Brito Menezes, atendendo expediente da Ouvidoria Agrá-ria Nacional. O órgão solicitou averiguação à PF sobre a existência de “vigilantes” ar-mados em fazendas nas imediações do mu-nicípio baiano. As “propriedades” incidem sobre territórios tradicionais reivindicados e ocupados pelo povo Xakriabá de Cocos.

Na condução do relatório, o delega-do afirma que não há dúvidas “sobre a existência de empregados armados na Fazenda Portela, tanto que foram au-tuados em flagrante por porte ilegal um funcionário (...) e o suposto proprietário de fato da fazenda, conhecido na região como Comandante Prado”. Com base no trabalho realizado pelos agentes federais, Menezes recomendou “ação policial mais numerosa e efetiva, com vistas a descobrir todas as armas existentes na fazenda do Comandante Prado” e os demais crimes que Prado vem cometendo.

Mesmo com a conclusão das investi-gações pelas autoridades policiais há três anos, nada ou pouco foi feito para a efetiva proteção das comunidades indígenas. Em 2012 e 2013 novos ataques e ameaças foram registrados contra as lideranças Xakriabá e seus aliados. Este ano, a aldeia do Povoado de Porcos, tomada por uma fazenda de mesmo nome, ficou completa-

mente ilhada por pistoleiros e até o trans-porte de doentes está impedido. Médicos também estão proibidos de entrar e até servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) foram atacados a tiros. Há quatro anos lideranças indígenas são vítimas de emboscadas e toda sorte de privações impostas por fazendeiros.

Porém, os interesses do agronegócio e da ‘indústria de barragens’ orquestram a sincopada dança da morte numa região, o oeste da Bahia, que conta com privi-legiada bacia hidrográfica e topografia plana, além de ser a região mais rica em recursos hídricos do Nordeste brasileiro. Enquanto o procedimento de demarcação segue emperrado, como parte da política do Ministério da Justiça para os conflitos agrários envolvendo terras indígenas, os Xakriabá permanecem em situação de vulnerabilidade. Famílias são expulsas de aldeias e a cada ano o monocultivo avança sobre as roças e as formas autônomas de vida dos indígenas.

Registros fraudulentosTal avanço, de acordo com as investi-

gações da PF, ocorreu com fraudes no re-gistro de propriedades. Conforme aponta o delegado Menezes no relatório de 2011, “(...) pessoas do lugar, entrevistadas infor-malmente pelos agentes que cumpriram a missão, deram conta de outros crimes cometidos pelo Comandante Prado e seu grupo, referentes a fraudes para registrar propriedades rurais em nome de pessoas ligadas ao grupo, expulsão de posseiros, intimidações para obrigar trabalhadores rurais do local a assinar papéis em branco, entre outras”.

A investigação policial dá conta ainda da participação de servidores estatais nas ações do Comandante Prado. O consórcio adota estratégias vistas em outros pontos de conflito no país, caso das terras indí-genas Marãiwatsédé, do povo Xavante, no Mato Grosso, Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia, e Awá-Guajá, no Maranhão. Meeiros e trabalhadores das fazendas são levados a depoimentos, inclusive incen-tivados ao conflito contra os indígenas, cujo conteúdo envolve a não existência de indígenas na região e a ocupação secular

de outras famílias meeiras nas fazendas instaladas nas áreas.

Foi o que ocorreu em 19 de junho de 2013. Em declaração à promotora de Justiça Stella Athanazio de Oliveira Santos, o auxiliar de serviços gerais e morador da Fazenda Porcos, Joaquim Ribeiro da Costa, afirmou que a liderança Xakriabá Josias Brito de Oliveira, patriarca e fundador do Povoado de Porcos morto há cerca de seis anos, costumava se declarar índio por conta de “delírio” oriundo do consumo de bebidas alcoólicas. Referiu-se à filha do in-dígena, Natalina Nogueira da Costa, como aliciadora, ao lado do padre Albanir da Mata Souza, de “pessoas da comunidade” ao intento de no local “criar uma reserva de área indígena”. Por fim apresentou um abaixo-assinado contra a criação da “reserva” com os nomes “das pessoas enganadas” pela indígena e pelo padre.

Ameaças recentesNo dia 4 de junho deste ano, a se-

cretária de Educação de Cocos, Silvani Alves Gama, se dirigiu ao Distrito Policial da cidade para registrar ocorrência do furto da placa de inauguração da Escola Municipal Bem me Quer Josias Brito de Oliveira, localizada no Povoado de Porcos. Nesse mesmo dia o cacique Divalci José da Costa Xakriabá comunicou que enquanto se encaminhava do povoado para a cidade foi abordado por dois homens que ocupa-vam uma motocicleta. Ambos traziam o “convite” para que ele retornasse à aldeia. Caso ele não atendesse ao pedido, a casa do padre Albanir seria invadida.

Já no povoado, cacique Divalcir foi abordado por outros 30 homens que o avi-saram que não aceitariam a entrada de ma-quinários no povoado para a pavimentação da ‘estrada real’, via de acesso controlada pelos capangas dos fazendeiros, tampouco a abertura de um poço artesiano. Caso a decisão fosse desrespeitada, eles ateariam fogo nos equipamentos. Determinaram ainda que os indígenas só poderiam cir-cular na “área em litígio” com a presença da Funai. Padre Albanir, administrador da Paróquia São Sebastião, também registrou ocorrência neste mesmo dia relatando ameaças. Os fazendeiros o taxam como

mentor da ideia da demarcação de terras indígenas aos Xakriabá. Estas últimas ameaças registradas em boletim de ocor-rência foram levadas ao Ministério Público Federal (MPF) no dia anterior.

Fronteira agrícolaA ligação do Comandante Prado

para políticos e deputados, na frente de policiais federais, não foi à toa. Em 2008, o governo da Bahia lançou o Programa Estadual de Bioenergia – BahiaBio. O pro-jeto estimou em 240 mil hectares a área propícia ao cultivo de cana-de-açúcar no oeste baiano destinada ao etanol. Ou seja, a ocupação das áreas tradicionais do povo Xakriabá de Cocos por fazendas é parte integrante desse esforço. A antropóloga Sheila Brasileiro, perita da Procuradoria da República na Bahia (PR/BA), relatou a situa-ção em 2011 depois de percorrer a região. O avanço acelerado das fronteiras agrícolas, com o aval das autoridades públicas, tem lançado os fazendeiros para cima das terras indígenas, ribeirinhas e camponesas.

No município de Cocos, além do Povoado de Porcos, há ainda outras comu-nidades fundadas por indígenas xakriabá: Cajueiro, Bom Jesus e Canguçu. Estes gru-pos de indígenas que chegaram ao oeste da Bahia a partir do final do século XIX e início do XX são oriundos de São João das Missões (MG), onde o povo Xakriabá foi aldeado no século XVIII. Conforme o relatório da antropóloga da PR/BA, o interesse sobre estas terras, tomadas por registros arqueológicos, arrefeceu no final do século passado com a falência de várias empresas de celulose. A partir da primeira década do século XXI, todavia, as fazendas agropecuárias passaram a pressionar as comunidades com o intuito de ocupar as terras. Em Canguçu, por exemplo, Sheila reproduz relatos de famílias demonstrando as restrições impostas por fazendas que ali se instalaram contra a agricultura de subsistência praticada pelos indígenas. Não restou alternativa há muitos destes Xakria-bá a não ser trabalhar para os fazendeiros que os acossam e violentam. Uma narrativa bastante conhecida país afora, ainda mais quando todos os apontados nas investi-gações policiais estão soltos e agindo. n

Relatório da Polícia Federal apontou ação de fazendeiros contra os Xakriabá de Cocos

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14Jun/Jul–2014

Direitos Indígenas

O povo Kaingang

denunciou nas ruas de

Passo Fundo as práticas

governamentais de perseguição

de suas lideranças e de

desmonte de seus direitos,

além de ter reafirmado a luta pela

demarcação de seus territórios

mediante a justa e plena indenização dos colonos

que foram assentados

indevidamente sobre suas

terras

RIndígenas sofrem ameaças e perseguições na região de Faxinalzinho (RS)

Cimi Regional Sul

ndígenas Kaingang da Terra Indígena Kandóia, município de Faxinalzinho (RS), relatam viver em um

cotidiano de perseguições, amea-ças e manifestações de precon-ceitos desde o conflito ocorrido no último mês de maio, quando agricultores tentaram, à força, desobstruir uma vicinal bloqueada pelos indígenas que protestavam pela demarcação de terras. Na oca-sião, em decorrência do conflito, dois agricultores acabaram mortos.

“Todos os indígenas foram mandados embora [do emprego]. Sem motivo nenhum foram de-mitidos do frigorífico. Todos os indígenas de Kandóia. Não querem mais aceitar os indígenas”, explica Cleicinei Kaingang. O ir e vir dos in-dígenas na região de Faxinalzinho se tornou arriscado ou, no mínimo, um convite a ouvir xingamentos e ataques racistas.

“Os nossos alunos vão para a aula no município de Faxinalzi-nho. A professora impediu minha sobrinha de falar na língua na sala de aula. Essa minha sobrinha não quer ir mais à aula de jeito ne-nhum”, afirma Cleci Kaingang. Os indígenas dizem que não podem mais tirar taquara ou lenha para o fogo, posto que Kandóia está entre propriedades que incidem no território tradicional Kaingang.

Cacique Deoclides reafirma que nunca deixou de querer dis-cutir com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, saídas para a demarcação das terras. “Nosso povo decidiu não sair daqui. Continuamos esperando o governo vir aqui para resolver a questão”, diz. O vídeo com estas denúncias do povo Kaingang foi feito pelo cartunista Carlos Latuff e está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=upGpgG-vrH-4&noredirect=1 n

Presos políticos foram libertados por decisão liminar do STJs cinco lideranças do povo Kain-gang da Terra Indígena Kandóia, município de Faxinalzinho (RS), que estavam presas desde o dia

9 de maio pela Polícia Federal, foram libertadas no dia 22 de junho.

A libertação ocorreu em função de uma decisão liminar concedida pelo ministro Rogério Schietti Cruz do Supe-rior Tribunal de Justiça (STJ) e atendeu um pedido de liminar de habeas corpus impetrado pelos advogados de defesa das lideranças indígenas, que estavam no Presídio Estadual do Jacuí, em Char-queadas (RS). O STJ considerou que não havia provas que incriminassem as lideranças Kaingang acusadas pelo delegado da Polícia Federal de Passo Fundo, Mário Viera, responsável pelo inquérito, pelos assassinatos dos dois agricultores.

As inúmeras falhas no inquérito e o fato de que nenhum dos cinco indíge-nas tenha participado do bloqueio da estrada vicinal, que fica dentro da área reivindicada pelos indígenas, onde o

conflito com agricultores ocorreu no dia 28 de abril, evidenciaram que a prisão foi maus um episódio de criminalização do direito dos indígenas de lutarem pela terra.

Também é interessante observar que os cinco Kaingang que estavam presos ocupam posições importantes em suas comunidades. Deoclides de Paula é caci-que, Nelson Reco de Oliveira é vice-caci-que, Celinho de Oliveira é filho do kujã, líder religioso da comunidade, Daniel Rodrigues Fortes é agente de saúde e Romildo de Paula é uma das lideranças do povo, além de ser primo do cacique. Desse modo, é claro que, ao pren-der estes indígenas, desestruturou-se a organização social da comunidade.

Abusos e falta de provasSem ter nenhuma prova cabal de que

aquelas eram as pessoas que haviam pra-ticado os delitos, já que não há nenhuma testemunha que tenha presenciado as mortes ocorridas, a Polícia Federal invadiu e prendeu os indígenas em uma

reunião promovida por integrantes da prefeitura de Faxinalzinho, do governo do Rio Grande do Sul e do governo fede-ral para dialogar sobre os conflitos entre indígenas e agricultores e o processo de demarcação da terra já reconhecida pelo órgão federal como tradicionalmente indígena. De acordo com os indígenas, as prisões foram realizadas de forma truculenta e irregular, sem que os mandados de prisão temporária fossem apresentados.

Os Kaingang de Kandóia presos esperam que, a partir da conclusão do inquérito e da intervenção do Ministério Público Federal, se consiga no âmbito do Poder Judiciário chegar a uma conclusão justa acerca dos conflitos que envolve-ram agricultores de Faxinalzinho e indí-genas. Além disso, as lideranças avaliam que é urgente a atuação do Ministério da Justiça na região norte do Rio Grande do Sul, no sentido de concluir os proce-dimentos de demarcações das terras e com isso evitar mais tensões e injustiças contra a comunidade de Kandóia. n

Matias RempelCimi Regional Sul - Equipe Porto Alegre

o dia 24 de junho, cerca de 150 indígenas Kaingang, repre-sentando mais de 10 aldeias e acampamentos do Rio Grande

do Sul realizaram uma forte e colorida marcha pelas ruas da cidade de Passo Fundo, localizada na região norte do estado. Foi desta forma, fazendo ecoar pelas ruas canções de luta e de protesto, que o povo Kaingang deu sua resposta à política de desmonte territorial intitulada de “ajuste de direitos” apresentada pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardo-zo, através das igualmente desastrosas “mesas de diálogo”.

A marcha, que começou em frente à sede da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) teve como seus principais destinos o Ministério Público Federal (MPF) e a sede da Fundação Nacional do Índio (Funai), onde foram protocolados documentos que denunciam a política de redução e desmonte das terras indígenas no estado por parte do Ministério da Justiça e a clara política de criminalização das lideranças indígenas pelos governos federal e estadual (leia texto abaixo). O mesmo documento foi entregue também diretamente nas mãos do ministro José Eduardo Cardozo por lideranças Kaingang que estavam em Brasília.

Em frente à sede do MPF o hino nacional foi entoado na língua Kaingang, enquanto as lideranças cobravam do

Em marcha, Kaingang denunciam “ajuste de direitos” e criminalização

órgão que este assumisse uma postura mais firme no que se refere à garantia das demarcações dos territórios indígenas. A postura omissa do MPF tem sido adotada frente a medidas que, explicitamente, ferem os direitos dos povos originários, como a tentativa de compra ou redução de terras ao invés de garantir a demar-cação de seus territórios tradicionais de acordo com os preceitos constitucionais.

Na sede da Funai, na frente do coorde-nador regional, Roberto Perin, os indíge-nas anunciaram, com base no documento entregue, que continuarão o processo de autodemarcação de seus territórios caso o ministro da Justiça não cumpra as me-didas já acordadas com os Kaingang em fevereiro deste ano, referente à continua-

ção dos procedimentos demarcatórios de maneira imediata nas terras de Kandóia, Rio dos índios, Irapuá e Passo Grande do Rio Forquilha. Os Kaingang avançaram na defesa de seus direitos e cobraram da Fu-nai a continuidade dos procedimentos de todas as outras áreas indígenas do estado, sobretudo dos acampamentos indígenas, que se encontram paralisados. Com este ato, o povo Kaingang denuncia as práti-cas de perseguição de suas lideranças e desmonte de seus direitos e reafirma a luta pela demarcação de seus territórios mediante a justa e plena indenização dos colonos que foram assentados indevida-mente sobre suas terras. O povo Kaingang está em marcha. A decisão volta a estar nas mãos do Ministério da Justiça.

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Page 15: Jornal Porantim n° 366, junho/julho 2014

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“NApesar do orçamento para a assistência em saúde indígena, segundo a Sesai, ter quadruplicado nos últimos quatro anos, ela continouu marcada por uma absoluta omissão na implementação de ações, algumas bastante básicas, que poderiam salvar anualmente milhares de vidas

Relatório de Violência

Renato Santana, De Brasília

ão pedimos que gostem dos índios. Exigimos apenas que nos respeitem. Que respeitem nossos direitos”. E a violação

desses direitos, trazida pela fala de Ivanildo Tenharim diante das agressões sofridas pelo seu povo, é uma das prin-cipais causas dos dados apresentados pelo Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, referente ao ano de 2013, do Conselho Indigenista Missioná-rio (Cimi), lançado no dia 17 de julho, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília (DF).

Parte das análises do Relatório, a omissão do poder público recebeu destaque. Na questão indígena, ela é o principal combustível da violação. No ano passado, um dos mais explícitos indícios da omissão governamental foi a total paralisação das demarcações de terras indígenas, que teve um reflexo direto no acirramento dos conflitos nas aldeias em todo o país. Apesar de uma homologação ter sido assinada, nenhum procedimento demarcatório foi concluí-do em 2013. Desse modo, a média anual de terras demarcadas da presidenta da República Dilma Rousseff diminuiu para 3,6, a pior média desde o fim da ditadura militar, consolidando-a como a chefe de Estado que menos demarcou terras indígenas na história recente do país.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) declarou para a Agência Brasil, neste mesmo dia 17, que por orientação do go-verno federal paralisou os processos de demarcação em áreas de conflito. Com efeito, são nestas terras indígenas que está a maior concentração de violências e agressões contra os povos, conforme atesta o relatório. No lugar de demarcar as terras, assentar os pequenos agricul-tores e pagar as benfeitorias, a decisão do governo é a de não contrariar os aliados ruralistas.

O presidente do Cimi, Dom Erwin Kräutler, acredita que “o governo federal se nega a cumprir suas obrigações cons-titucionais de assegurar as terras indíge-nas. Com o relatório visamos uma ampla e intensa campanha de luta em defesa da vida. Precisamos urgentemente rever as prioridades sociais e direção política de nosso país. Não podemos nos calar diante do que ocorre com estes povos, que querem viver”.

Viver. Como povos indígenas podem viver sem ocupar de forma plena suas ter-ras tradicionais? A paralisação dos proce-dimentos demarcatórios como parte da

política indigenista estatal, deixando 64% das terras indígenas sem regularização, mantém comunidades confinadas ou acampadas às margens de rodovias e vulneráveis às violências de fazendeiros, madeireiros, grandes empreendimentos. Para muitos indígenas a teia de dissocia-ções fiadas não deixa outro caminho fora o suicídio, alcoolismo e a violência entre si. No Mato Grosso do Sul, conforme o Relatório, ocorreram 73 suicídios em 2013, sendo 72 entre os Guarani Kaiowá. O pior resultado em 28 anos.

Racismo e incitação ao ódio “O relatório 2013 traz de forma

muito forte a postura anti-indígena de setores da sociedade brasileira. Os ruralistas promoveram manifestações, leilões e no parlamento tentam aprovar projetos contra estas populações. Isso tem um efeito direto nas formas de violências contra os povos indígenas”, aponta a coordenadora do relatório, a antropóloga Lucia Helena Rangel.

O missionário indigenista Roberto Liebgott, também coordenador do rela-tório, analisa que a postura omissa do governo federal diante da efetivação do direito ao território tradicional desen-cadeou uma onda de violência contra os indígenas em diversos campos da so-ciedade. “A conexão se dá pelo governo federal, que possui uma dependência política dos ruralistas e, então, juntos eles harmoniosamente agem contra os direitos indígenas”, afirma Liebgott.

Num contexto desfavorável, onde a cada 100 indígenas que morrem 40 são crianças, comprometendo até mesmo o futuro destes grupos, os povos seguem

resilientes. Sobretudo com a nova tática de criminalização, que conta com prisões e imputação de crimes sobre os ombros calejados de lideranças, caciques e pajés. E não é mera coincidência que tenham ocorrido prisões e acusações em áreas de conflito, seja motivado pelos interesses do agronegócio, do próprio governo e seus empreendimentos ou pela ação ilegal de madeireiras. Mesmo quando se trata de terras demarcadas. O caso emblemático de 2013 foi o ocorrido com os Tenharim, entre os municípios de Hu-maitá e Manicoré, no Amazonas. Para o relatório de 2014 já existem outras duas situações: os cinco Kaingang presos no Rio Grande do Sul e Babau Tupinambá detido em Brasília. Acusados de crimes que não cometeram, provas inconsisten-tes ou inexistentes. Um padrão.

Caso Tenharim Cinco lideranças Tenharim foram pre-

sas acusadas de assassinar, em dezembro do ano passado, três homens. Mesmo sem nenhuma prova de que tivessem cometido o crime, e negando de forma contundente, elas foram execradas e condenadas pela imprensa e hoje os Te-nharim não podem circular pelas cidades, sob risco de espancamento. As crianças

estão proibidas de frequentar a escola, os professores de lecionar e os indígenas que são servidores públicos não podem mais se dirigir aos postos de trabalho. “A Justiça age contra a gente, mas não contra madeireiros e demais invasores. Nenhuma denúncia que fazemos tem providência. Isso acontece no Brasil in-teiro”, destaca Ivanildo Tenharim.

A liderança explica que com a aber-tura da Rodovia Transamazônica pela ditadura militar, nos anos 1970, chega-ram os fazendeiros e madeireiros. Parte do povo foi escravizado pelas frentes de colonização. Outra parte morreu assas-sinada ou em decorrência da invasão. Assim nasceu o conflito. Dezenas de madeireiras se instalaram e prospera-ram. Neste início de século XXI, a única área da região que mantém a floresta preservada está na terra indígena. Os madeireiros então passaram a invadir e retirar madeira do território tradicional com cerca de um milhão de hectares. Os Tenharim reagiram.

“Montamos os pedágios, a partir de 2006, como forma de compensar. Os recursos financiavam nossa luta contra as madeireiras. Nunca aceitaram e faz tempo que buscavam um motivo para nos atacar. Com a morte dos três ho-mens passaram a nos acusar. Fecharam a estrada, atacaram a aldeia, a Funai, queimaram o barco. Todo mundo ficou contra a gente. Fosse apenas fazendeiro e madeireiro, tudo bem. O problema é que tem o poder público no meio, a Polícia Federal”, conta Ivanildo. O povo segue ameaçado e perseguido. A prisão das cinco lideranças mudou a rotina da aldeia e a liderança Tenharim afirma que estão desamparados.

Ao comentar o relatório, Dom Leo-nardo Steiner, secretário geral da CNBB, se deteve ao poder simbólico da imagem: “É uma capa muito significativa: estamos queimando culturas. Creio que não há dimensões do quanto isso é ruim para o país. Não são números o que este Relatório nos traz. Trata-se de violência contra as pessoas. Não podemos conti-nuar com essa tragédia contra os povos indígenas”. n

Omissão do governo é a maior causa da violência contra os indígenas

“Estamos queimando culturas. Creio que não há dimensões do quanto isso é ruim para o país. Não são números o que este Relatório nos traz. Trata-se de violência contra as pessoas. Não podemos continuar com essa tragédia contra os povos indígenas”, afirma Dom Leonardo Steiner, secretário geral da CNBB

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APOIADORES

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REDUÇÕES DO PARAGUAI: FRATERNIDADE E IGUALDADE

Leda BosiDocumentalista do Cimi

livro Síntese de duas tendências - A propriedade nas reduções do Paraguai apresenta uma análise ino-vadora da organização econômica e social, que foi o sistema de propriedade e o consequente sistema de produção, vigente na experiência das Reduções do Paraguai. Dividida em três

partes, a publicação de autoria de José Odelso Schnei-der, Hilário Henrique Dick, Guido Aloys Johanes Kuhn e Egydio Schwade analisa a forma de administração da propriedade que segue a concepção de um mundo fraterno e igualitário, dentro de um campo de possibi-lidades que se inspirava na utopia igualitária dos dois primeiros séculos do cristianismo e que vigorou durante 160 anos nos territórios das Reduções do Paraguai (de 1609 a 1768). O livro procurou mostrar que o regime de propriedade dos Trinta Povos proporcionou uma maior compreensão de todo o sistema, que conseguiu elevar “todo um povo a uma enorme família” (Montesquieu).

Inicialmente temos o estudo sobre o conceito de pro-priedade dos séculos 16 e 17 - época em que se fundaram as Reduções do Paraguai - nos textos de Platão (A Repú-blica), Thomas Morus (Utopia), Francisco Suárez (Tratado De Legibus) e Francisco de Vitoria (Relectiones teológicas). Na análise sobre esse conceito, procura-se mostrar os pontos de contato entre a filosofia desses autores e as Reduções Guaraníticas e as possíveis influências que os jesuítas sofreram ao organizar o regime dos Trinta Povos, sob o ponto de vista da propriedade individual e propriedade coletiva.

Na segunda parte analisou-se o regime de pro-priedade dos Trinta Povos tanto na sua base e no seu caráter fundamental, como na sua concretização prática e na sua função pessoal e social. Aqui há sempre uma referência sobre a importância das Leis das Índias para a compreensão das Reduções. Concordando com o historiador P. Arnaldo Bruxel, ao lado da experiência dos padres, esta legislação foi a principal fonte de inspiração do sistema que os jesuítas adotaram na organização das Reduções Guaraníticas. Porém, a atitude predomi-nante nas Reduções era bem diferente da atitude europeia e dos conquistadores da época, “... em que, muitas vezes, aplicou-se aos povos indígenas o princípio da ̀ tabula rasa´, isto é, de que eram página em branco, a qual deveria ser escrita de acordo com a cultura da Europa cristã ocidental”. A atitude dos missionários nas Reduções, ao introduzir uma racionalidade no modo de pro-dução dos Guarani, procurava respeitar o modo de ser desse povo, seus traços culturais de solidariedade, reci-procidade, vivência em comunidade, importân-cia que davam à festa e o momento em que interrompiam suas atividades na roça ou na caça.

No que se convencionou chamar de regime de tutelagem dos jesuítas sobre o trabalho desenvolvido pelos índios nas Reduções e a liberdade destes dentro das Reduções, temos uma análise das duas modalidades através das quais se concretizou o direito fundamental do índio à propriedade, o “Amambaé” – Abá = índio; mbaé = posse e o “Tupambaé” – Tupã = Deus; mbaé = possessão, propriedade.

Amambaé era a propriedade particular da terra que, para fins de agricultura, constituía a posse mais impor-tante do índio, e de outros bens móveis ou imóveis de cada chefe de família. Como esse tipo de propriedade era desconhecido nos usos e costumes desses povos, uma função do cacique e de seus auxiliares era zelar para que tal função se cumprisse, exigindo uma tutela especial visando à integração do índio no seu funciona-mento. A produção obtida nesta área era guardada nos depósitos coletivos com a identificação do proprietário que deles retirava o que necessitava. “A cada um, se lhe assinalava uma parte do campo, suficientemente extensa, para que cada pai de família semeasse para si e para os seus” (Peramás).

A modalidade Tupambaé era o cultivo coletivo da terra, onde o fruto do trabalho era utilizado em benefício da comunidade, os rendimentos obtidos eram aplicados, entre outros fins, como auxílio às famílias cuja provisão do Amabaé se esgotara, à assistência social às viúvas e órfãos, a gastos para compras de instrumentos, etc.

Os indígenas trabalhavam alguns dias da semana no cultivo particular da terra e nos outros dias no cultivo comunitário. A implantação dessas modalidades exigia uma tutela econômica e embora às vezes existam crí-ticas em relação ao dirigismo econômico dos jesuítas, os autores esclarecem que havia necessidade de uma direção da produção, de uma superintendência para estimular a produtividade, tanto privada quanto co-munitária. A tutelagem visava motivar o Guarani para

o uso correto de sua liberdade e da propriedade, para uma valorização dos bens de produção, dentro da ótica cristã da época. Os indígenas se realizavam de forma mais positiva quando cultivavam as terras comuns, pois isso os aproximava de sua cultura não individualista, mas comunitária e solidária. Seguindo as ideias de Bartomeu Meliá e Dominique Temple, não é a migração em si, ou suas correlações com o mito da “Terra sem Males” que define os Guarani, mas o seu modo particular de viver a economia de reciprocidade, da troca e do dom. Por isso, a forma privilegiada de trabalho entre os Guarani é de tipo solidário e coletivo. O auxílio que se presta entre as gerações é um importante garantidor da integridade do grupo.

Assim, segundo os autores, pode-se dizer que toda a organização econômica e política sempre foi realizada em benefício do próprio interesse dos indígenas e os resultados da atividade econômica eram reinvestidos nas próprias Reduções. O modelo de organização eco-nômica e social conseguiu funcionar por mais de 160 anos, graças à interação entre princípios evangélicos e regras do senso comum, entre a orientação político administrativa dos jesuítas e a inquestionável capa-cidade dos Guarani de adequar-se a esta realidade, pois, segundo o antropólogo Melià, sem os Guarani as missões seriam outra coisa.

No último capítulo, expôs-se a doutrina da Igreja Católica na questão da propriedade e das relações de solidariedade, visando-se particularmente os pontos que mais se relacionam com as Reduções.

Encerrando a publicação há um estudo sobre a Redu-ção de Juli (July ou Xuli), no Peru, considerada o modelo das Reduções do Paraguai. Os autores esclarecem que não se trata de fazer um paralelo com as Reduções do Pa-

raguai, mas mostrar que experiência já ha-via sido feita, em 1610, nas Reduções

do Rio da Prata. n

Resenha