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Ana Cristina de Abreu Oliveira Justiça e Ética no pensamento de Jacques Derrida Tese de doutorado apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Puc-Rio Orientador: Paulo Cesar Duque-Estrada Co-orientadora: Maria do Carmo Bettencourt de Faria

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Ana Cristina de Abreu Oliveira Justiça e Ética no pensamento de Jacques Derrida Tese de doutorado apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Puc-Rio Orientador: Paulo Cesar Duque-Estrada Co-orientadora: Maria do Carmo Bettencourt de Faria

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2 RESUMO O objetivo desta tese é estabelecer uma reflexão sobre justiça e ética em Jacques Derrida, um

autor que elege o tema da justiça para falar da alteridade, e para demonstrar o que ela traz de

abertura para pensar o problema da exclusão, face ao pensamento do homem e do ser como

presença. Para dar conta deste objetivo, examinei a relação entre ética e humanismo em

articulação com o questionamento de Derrida sobre a delimitação do homem proposta por

Heidegger. A partir daí entrei na problemática que informa esta discussão, a da violência que se

atualiza no jogo da linguagem em sua relação com a alteridade e, posteriormente, através da

linguagem do direito. Esta discussão é acompanhada da expectativa da vinda do outro (da

justiça), o que implica assumir, face aos infinitos problemas aí envolvidos, uma

responsabilidade sem limite, ou ainda, implica assumir um compromisso ético com a justiça.

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3 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÂO 5 2. ÉTICA, HUMANISMO E O FIM DO HOMEM 11 2.1 Introduzindo a questão 11 2.2 A crítica do humanismo e a questão da ética 15 2.3 O fim do homem 30 3. UMA LEITURA SOBRE O PENSAMENTO DE JACQUES DERRIDA 48 3.1 Escritura e Rastro: o questionamento derridiano sobre o conceito de linguagem 49 3.2 Différance e alteridade 56 3.3 Tempo e alteridade 64 4. A QUESTÃO DO DIREITO À JUSTIÇA 86 4.1 Derrida e Agamben: duas leituras sobre A crítica da violência (Zur Kritik der Gewalt) de Walter Benjamin 90 4.2 A justiça em sua dupla face, ou em seu duplo movimento 105 4.3 Decisão, justiça e indecidível: o questionamento derridiano sobre a idéia de justiça presente 113

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4 4.4 A justiça presente e a justiça por vir 121 4.5 O por vir e as políticas da diferença 124 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 137 6. BIBLIOGRAFIA 149

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5 1 Introdução

O objetivo desta tese é estabelecer uma reflexão sobre justiça e ética em sua relação com

a problemática sobre a possibilidade da justiça a partir de Jacques Derrida, um autor que elege o

tema da justiça para falar da alteridade, e para demonstrar o que ela traz de abertura para pensar

o problema da exclusão em geral – então tratado como uma exigência infinita (ou incalculável)

de se fazer justiça às singularidades, a singularidade do outro.

Esta justiça é informada pela différance, uma referência à alteridade que permite pensar

o problema da exclusão “para além” do discurso familiar, previsível, calculável. E desse ponto

de vista, o “para além” é o que permite questionar (por exemplo) a delimitação focalizada no

télos do homem e no seu desejo de presença (i.e. da permanência do pensamento do ser como

presença). Isso porque uma tal delimitação, que é uma delimitação sobre o “nós” (os homens),

leva em geral à exclusão do “outro”.

Este problema, que foi discutido no primeiro capítulo (Ética, humanismo e o fim do

homem), explica em parte o fato da justiça derridiana, e da idéia de responsabilidade que a

acompanha – responsabilidade sem limite -, ser tratada como uma possibilidade a ser alcançada;

e onde essa idéia de responsabilidade traduz o esforço, por parte do autor, de assegurar a

possibilidade da justiça face à gama incalculável de problemas que se faz necessário enfrentar,

quando se está comprometido em discutir a exclusão em geral – e que para assegurá-la é preciso

assumir um compromisso ético com a justiça.

A indicação deste compromisso é orientada pela problemática da différance como um

indecidível, diferencialidade (primeira) que suporta, contorna e acolhe ao mesmo tempo (no

jogo da escrita), a heterogeneidade, ou as oposições. Daí não se poder falar (no registro desse

diascurso) de uma ética desvinculada da justiça. Mas na medida em que essa différance – que

em um primeiro momento poderia ser traduzida como uma volta ao mesmo, como idêntico –

alude também a um “entre”, ela traz consigo a necessidade de se abrir um espaço para “mediar”

essa ligação, que no nosso caso foi feita através da discussão sobre a possibilidade da justiça.

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O desenvolvimento desta problemática teve como contraponto o pensamento de

Heidegger, cuja escolha foi motivada pela indicação fornecida por Derrida (cf. Os fins do

homem) sobre a importância dos questionamentos heideggerianos acerca dos limites da noção

de homem (e dos valores presentes nos humanismos estabelecidos), tal como efetuados na Carta

sobre o Humanismo.

Em função disto, e procurando compreender melhor as razões dos argumentos

derridianos apresentados na sua discussão sobre os fins do homem, procurei reconstituir (no

capítulo 2) a crítica do humanismo em sua relação com a ética. A articulação dessa

reconstituição com a discussão indicada, deixou entrever que o tema da ligação entre justiça e

ética, já estava sendo anunciada através do esforço de Derrida de repensar o humanismo sem

voltar ao humanismo – ou ainda, sem cair no que geralmente vem orientando as discussões

sobre a ética, o pensamento do homem. Ou seja, ainda que o autor não fale diretamente sobre

essa problemática, ela se deixa mostrar através da sua discussão sobre a relação (em Heidegger)

entre humanismo e verdade do ser. Isso que foi feito a partir da discussão do “nós” no

pensamento metafísico, permitiu demonstrar os limites da crítica heideggeriana do humanismo,

que consistiu em substituir o homem simplesmente metafísico (“nós-os-homens”), por uma

concepção mais própria de homem (“nós-homens”), o Dasein – o ente exemplar que mantém

uma proximidade com o ser. O que seria um indício de que Heidegger continua preso à

delimitação focalizada no télos do homem; uma delimitação que informada por uma verdade

mais própria – a verdade do ser -, e que nesse âmbito parece não reconhecer nenhum outro, leva

em geral à exclusão do “outro”.

Esta exclusão, que pode ser entendida como uma referência à exclusão em geral, está

intrinsicamente ligada à violência que se atualiza na dinâmica do jogo da linguagem, e do

etnocentrismo que vigora no âmbito da linguagem metafísica que, por sua vez, está associada ao

que se recebe na linguagem e também ao que se exclui por meio dela. O que quer dizer ainda

que nessa dinâmica o sentimento de pertencimento está ligado ao sentimento de exclusão – que

se reproduz como uma espécie de paradigma quando estabelecemos qualquer tipo de relação,

por exemplo, a relação com a lei, com a escrita, com a lei do direito ...

Como se verá no capítulo 3 (Uma leitura sobre o pensamento de Jacques Derrida), o

etnocentrismo da metafísica será discutido a partir do questionamento derridiano sobre a

linguagem, em articulação com a différance e a alteridade. Uma discussão que vai colocar o

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7 problema da tradicional definição do conceito de escritura – o da ligação do logos como verdade

com o modelo da escritura fonética, atualizado no âmbito da linguagem -, e da afirmação da

escritura como indecidível, uma das faces da différance.

Esta outra face do pensamento da différance procura indicar (entre outras coisas) que é

preciso romper com o círculo que alimenta e promove a multiplicidade de identidades, e

também com o desejo de conservação da idéia de presença alojada no conceito de signo (de

linguagem), que se conserva enquanto tal graças à estrutura dual que a alimenta – a diferença

entre significante-significado, entre sensível-inteligível, um significante que é remetido a um

significado onde o significante, nesse remetimento, continua diferente do significado.

Esta estrutura de remetimento (estrutura mais geral) é tratada por Derrida no âmbito da

trama da diferencialidade, que enquanto resultante de um sistema de diferenças também não se

deixa apoiar por dicotomias, como por exemplo, as dicotomias ideal e empírico, identidade e

não-identidade, presença e ausência. Na diferencialidade, nada está simplesmente presente ou

ausente. Na diferencialidade só existe “diferença e rastros de rastros”. E é isso que o autor

procura encontrar: o rastro da diferença inscrita nos textos, e que no âmbito deste trabalho foi

focalizada primordialmente através da sua leitura do texto heideggeriano, onde a diferença

aparece como a abertura de um rompimento, ou como uma problemática aberta sobre o

esquecimento do ser, i.e. sobre o esquecimento da diferença entre a presença (o ser) e o presente

(o ente).

O problema do rastro da diferença se mostrou mais compreensível quando interpelamos

o pensamento da différance em sua dimensão espaço-temporal. Ou seja, quando tratamos a

différance, o indecidível, como resultante da ligação entre tempo e espaço, e que, segundo a

nossa interpretação, foi implicitamente acionada pelo autor para afirmar a idéia de escritura

como alteridade.

A partir daí abrimos a discussão sobre o tempo, e com o propósito de demonstrar que a

referida ligação apontava para a possibilidade do estabelecimento de uma coexistência

específica com o jogo das oposições, uma condição assaz importante para balizar a sua

concepção de alteridade. Essa sugestão foi se delineando a partir da leitura de dois textos: La

différance, e principalmente Ousia e Grammé, onde ele mostra que as análises aristotélicas

efetuadas no livro Física IV, leva a duas definições sobre o tempo: a definição tradicionalmente

estabelecida, onde o tempo e o movimento são pensados a partir do ser como presença, e uma

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8 outra, onde a compreensão do tempo e do movimento como presença não são nem presentes

nem ausentes. Essa última forjada no âmbito das análises do tempo como cálculo (i.e. em sua

dimensão matemática), onde Aristóteles teria tomado a decisão conceitual de articular a

“diferença entre tempo e espaço” como “diferença constituída”, e nos termos de uma

cumplicidade: a “do mesmo e do outro no interior do conjuntamente ... no qual o ser-

conjuntamente não é uma determinação do ser, mas a sua produção mesma”.

Isso levou a indicar que a différance como um indecidível, não exclui a possibilidade de

se estabelecer uma coexistência específica com o jogo das oposições. O que quer dizer que a

ligação requerida pela différance traz também consigo a necessidade de se estabelecer uma

coexistência específica, a saber, a que promove uma mediação (possibilitada pelo movimento de

espaçamento dado pela différance, como “devir-tempo” do espaço, “devir-espaço” do tempo e)

entre a justiça como diferencialidade primeira (como indecidível, como incalculável) com a

possibilidade da justiça.

Um outro aspecto desta discussão foi tratado no capítulo 4 (A questão do direito à

justiça) a partir da linguagem atualizada no âmbito do direito - i.e. no âmbito do cálculo, ou do

calculável -, onde procuramos enfocar o modo como Derrida lida com a possibilidade de se

fazer justiça nesse âmbito; e cujo ponto problemático reside na pretensão do direito exercer-se

em nome da justiça que, não obstante, exige instalar-se num direito que deve exercer-se pela

força.

A longa atenção dada a um dos estudos de Giorgio Agamben (Estado de Exceção) neste

capítulo se justifica pelo fato dele desnudar, a partir de uma situação limite (o estado de

exceção), a complexa estratégia acionada pelo direito, por meio do conceito “força de lei”, para

garantir a ordem jurídica em uma tal situação.

Este estudo que tem como referência principal o ensaio A crítica da violência de Walter

Benjamin, é também contemplado por Derrida para compor o texto Prenome de Benjamin, e a

partir deste o Do direito à justiça.

O que mais chama a atenção nas duas leituras sobre este ensaio é o modo como ambas

traduzem o temo aplicabilidade no âmbito do direito, e que ganha uma certa gravidade na

medida em que ele está diretamente ligado à discussão sobre a distinção meio-fim no tratamento

da relação entre violência e direito (por conseguinte, também da relação entre justo e injusto),

ou seja, está diretamente ligado ao conceito “força de lei”. Para Derrida, a palavra força está

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9 essencialmente implicada no conceito de “justiça enquanto ela se torna direito, da lei enquanto

direito”, ou seja, está essencialmente ligada ao termo aplicabilidade, ou com a sua

aplicabilidade como força de lei. O que contraria a interpretação de Agamben, para quem a

força de lei definiria uma separação entre a “aplicabilidade da norma e sua essência formal,

pela qual decretos, disposições e medidas, que não são formalmente leis adquirem, entretanto,

sua força”.

As duas interpretações, que a seu modo questionam a idéia de que o direito possa estar

ligada à de justiça, alertam para os discursos que justificam o recurso à violência, e que no

âmbito dos respectivos trabalhos referem-se a duas situações: a que aciona esse recurso em

nome das situações revolucionárias – onde se tenta promover, numa situação limite, a ligação

entre direito e violência; e a que a aciona em nome do ideal de se fazer justiça no tratamento

das leis, onde o elemento da violência está diretamente associado ao problema da língua (ou da

linguagem).

O seguimento do capítulo (capítulo 4), que é motivado por estas indicações, procurou

destacar a experiência da coexistência da justiça em articulação com a questão da

responsabilidade, onde fica evidenciada a preocupação de Derrida em forjar uma negociação da

justiça incalculável com a justiça postulada pelo direito – que nas modernas sociedades

ocidentais é tido pelo autor como o lugar próprio “da emergência e da autoridade do sujeito, do

conceito de sujeito”.

E é por conta deste dado que não se pode desconsiderar de todo a questão “ético-

político-jurídica da justiça”, ou a oposição que está na base dessa questão, o justo e o injusto.

Essa negociação, por sua vez, deve estar calcada em uma dupla concepção de responsabilidade:

a responsabilidade sem limite, que aposta na memória histórica como meio de recuperação dos

limites contidos nas concepções de lei, de direito e de justiça; e a que procura indicar que é

preciso suspeitar da concepção de responsabilidade que nos é familiar, posto0 que alimentando

um sentimento de pertencimento obscurece o fato de que há aí uma dinâmica que “regula a

justiça e a justeza dos nossos comportamentos, das nossas decisões teóricas, práticas, ético-

políticas”.

Levando em conta estes e outros dados, enfatizados no tópico 4.4 (A justiça presente e a

justiça por vir) através da discussão sobre a urgência de se fazer justiça no direito, face ao

horizonte do saber (que requer uma espera que o direito não pode esperar), procurei reconstituir

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10 uma pequena fatia do debate contemporâneo sobre a diferença, a partir de alguns dos

posicionamentos de Derrida sobre as políticas da diferença.

Isto que foi feito no final do capítulo 4 (tópico 4.5)) permitiu destacar que uma das

chaves para compreender o pensamento do autor, e o que ele traz de abertura, tem a ver com a

sua concepção de evento, onde noções como a de decisão, de responsabilidade, de liberdade são

questionados e aparecem a serviço da heteronomia, uma concepção que funciona como uma

espécie de contraponto (mas não somente) para questionar os limites de uma lei que é

hegemônica no Ocidente, a lei do ser.

No texto Políticas da diferença, onde Derrida também discute estas políticas em relação

ao que os chamados comunitaristas defendem – por exemplo, a busca de reconhecimento e

respeito no horizonte do saber -, ele argumenta que há situações em que essa busca não exclui a

possibilidade de se apoiar uma discriminação momentânea – como a “das mulheres, dos

homossexuais e outros grupos” -, e igualmente não exclui a possibilidade de se perceber o que

há de potencialmente perverso, ou perigoso, na lógica que rege os “que lutam contra esta ou

aquela discriminação”.

Esta concepção de responsabilidade política, ou o que para Derrida constitui uma das

suas faces – a tomada de decisão por solidariedade -, é indissociável da concepção de evento, “o

que vem, o que virá, sob os nomes de uma outra ética, de uma re-politização à medida de um

outro conceito político ...”, e onde seria possível desatrelar a concepção de decisão de qualquer

responsabilidade (responsabilidade na heteronomia); mas que no âmbito onde o autor

efetivamente se movimenta, não pode prescindir de alguns questionamentos aí efetuados, como

o de Heidegger, que na sua discussão sobre a ditadura do impessoal nos lembra que há uma

idéia de responsabilidade que deve ser acionada, a responsabilidade de ser, face à expansão cada

vez maior da objetivação - onde o outro, que passa a servir de medida para a minha existência,

desaparece “ainda mais em sua possibilidade de diferença e expressão”.

A esta responsabilidade de ser, que alerta para as conseqüências da objetivação na lida

com o outro, Derrida nos fala de uma responsabilidade sem limite, visando assegurar a

possibilidade da justiça face a gama de questões envolvidas na problemática sobre a exclusão

em geral – o que leva à necessidade de se assumir um compromisso ético com a justiça.

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11 2 Ética, humanismo e o fim do homem. 2.1 Introduzindo a questão O texto que apresento para abrir este capítulo tem por objetivo levantar algumas

questões que servirão de subsídios para problematizar o tema da justiça e da ética, no âmbito

das discussões contemporâneas comprometidas com o estabelecimento de um pensamento

aberto à alteridade. Refiro-me em especial às contribuições oferecidas por Jacques Derrida, que

em um dos seus diálogos com Martin Heidegger vai reconhecer a importância dos

questionamentos heideggerianos sobre os limites da noção de homem e dos valores presentes

nos humanismos estabelecidos, ou seja, determinados metafisicamente. Para Derrida, trata-se de

uma discussão que não pode ser ignorada pelo pensamento contemporâneo. Em Os fins do

homem ele diz:

Qualquer questionamento do humanismo que não se una antes de mais [nada] à radicalidade arqueológica das questões esboçadas por Heidegger e que não desenvolva as indicações que ele fornece sobre a gênese do conceito e do valor de “homem” (retomada da Paidéia grega na cultura romana, cristianização da humanitas latina, renascimento do helenismo nos séculos XIV e XVIII, etc.), toda a posição meta-humanista que não se mantenha na abertura destas questões permanece historicamente regional, periódica e periférica, juridicamente secundária e dependente, por muito interesse e necessidade que ela possa aliás possuir enquanto tal.1 Derrida está se referindo a um conhecido texto de Heidegger, Carta sobre o Humanismo

(1947)2, que constitui a reelaboração de uma carta de 1946, em que o filósofo alemão responde

a uma das perguntas feitas por Jean Beaufret. Das questões propostas por Beaufret, como indica

Carneiro Leão, Heidegger elege o tema do humanismo como o mais fundamental para a sua

1 Derrida, Jacques. Os fins do homem, in: Margens da Filosofia, pp. 168-169. Trad. Joaquim Torres Costa e Antonio Magalhães. Campinas: Papirus, 1972. 2 Heidegger, Martin. Carta sobre o Humanismo. Tradução, introdução e notas de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro, 1967.

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12 resposta à Carta: “De que maneira se pode restituir um sentido à palavra humanismo?” Cito

Carneiro Leão.

A discussão de seus pressupostos abre toda uma outra dimensão do pensamento: a dimensão do Pensamento Essencial, que, reconduzindo a vigência Histórica do humanismo às suas raízes na metafísica, redimensiona a própria questão. Impõe a necessidade de questioná-la em seus fundamentos. O humanismo deixa de ser um valor indiscutível, e, portanto, um trauma para o pensamento. Transforma-se na maior provocação para pensar na medida em que força o esforço pelo homem na direção das vicissitudes Históricas da Verdade do Ser.3

Esta fala me faz retornar a um período (1917-1923) anterior ao de Ser e tempo (1927), e

portanto, muito anterior ao da Carta (1947), onde Heidegger já entretém uma questão que aí (na

Carta) vai se destacar – o tema da articulação necessária entre metafísica e humanismo.

Segundo a avaliação de Ernildo Stein, no período de 1917-1923, Heidegger teria

realizado uma operação completa para retirar seus conceitos fundamentais das éticas e filosofias

práticas de alguns autores da tradição, com o intuito de introduzir uma matriz distinta da

ontologia da tradição metafísica.

Aristóteles foi o autor mais investigado para constituir o quadro categorial da analítica existencial ... de um lado, o filósofo ontologiza os conceitos éticos que, assim radicalizados, se traduzem na ontologia fundamental, de outro lado, mostra como os textos ontológicos não atingem com seus conceitos uma proximidade com o mundo prático. É isto que acontece com a Metafísica e sobretudo com a Física de Aristóteles.4

Isto que aí é dito parece poder lançar alguma luz acerca do posicionamento de Heidegger

sobre a problemática da ética. Para ilustrar esse ponto recorro a um dos depoimentos fornecidos

por Gadamer – aluno de Heidegger no inverno de 1921-22 -, sobre o programa das lições

proferidas em Freiburg, i.e. a interpretação do livro VI da Ética a Nicômaco – dedicado ao

3 Carneiro Leão. Introdução (pp. 9-10) in: Heidegger. Carta sobre o Humanismo, op.cit. 4 Stein, Ernildo. A Estratégia na Formação dos Conceitos da Ontologia Fundamental. Heidegger e a Filosofia prática de Aristtóteles e Kant, pp. 118-19, in; Racionalidade e Ação; Antecedentes e Evolução Atual da Filosofia Prática Alemã. Ed. da Universidade/UFRGS. Instituto Goethe/ICBA. Org. Valério Rohden, 1992. É oportuno registrar que no texto Interpretações Fenomenológicas de Aristóteles, esta operação de construção do universo conceitual heideggeriano, está acompanhado da orientação de que o verdadeiro objeto da investigação filosófica é o ser-aí humano encarado no seu caráter de ser. O que vai exigir, por sua vez, uma determinada apropriação da historicidade do ser-aí. “O ser-aí de fato existente (das faktische Dasein) é o que ele é, sempre somente enquanto próprio, e nunca enquanto ser-aí em geral de uma qualquer humanidade universal” Heidegger. Interprétations Phénoménologiques d’Aristote (Tableau de la situation hermeneutique) (1992), Editions Trans-Europe-Repress. Trad. Jean- François-Courtine, pp.18-19.

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13 estudo das virtudes dianoéticas (virtudes intelectuais). Na passagem que recortamos ele se

mostra claramente surpreso com tal interpretação.

Na minha leitura do programa reencontrado, o que me surpreende é que no manuscrito de Heidegger não é tanto a phronesis que vem em primeiro plano, mas antes a virtude da vida teorética, a Sophia. Isto significa que o que ocupava o jovem Heidegger naquela época era, mais que a atualidade da filosofia prática, seu significado para a ontologia aristotélica, para a Metafísica.5

Isto que Gadamer coloca pode ser atestado pelo próprio Heidegger, que justifica a

escolha do referido livro nos seguintes termos:

A interpretação desse tratado permite compreender que as “virtudes dianoéticas”, se se faz, provisoriamente, abstração da problemática propriamente ética, são as diferentes modalidades segundo às quais se pode chegar a uma autêntica guarda do ser.6

A Carta traz em seu bojo a problematização da necessidade de uma ética somente

enquanto instigada por uma das questões propostas por Jean Beaufret: “O que procuro fazer, já

há muito tempo, é tornar mais precisa a relação da ontologia com uma ética possível” (“Ce que

je cherche à faire, depuis longtemps déjà, c’est preciser le rapport de l’ontologie avec une éthique

possible”). Tal questão não deixa de ser abordada por Heidegger, que aparece embutida no que

ele considera como fundamental para a sua resposta à Carta, a questão do humanismo: “De que

maneira se pode restituir um sentido à palavra humanismo?” (“Comment redonner um sens au

mot ‘Humanisme? ’”). Trata-se de uma questão “cuja colocação lançará uma luz, talvez,

também sobre as outras”.7

“Saindo” da Carta, ou seja, cotejando outros escritos de Heidegger, e outras

interpretações, percebe-se que a discussão sobre a problemática da ética no pensamento do

filósofo não foi esgotada. Isso será tratado após o levantamento de algumas questões que

5Gadamer, Hans-George. Um escrito “teológico” de juventude de Heidegger (Prefácio), p.12, in: Heidegger, M. Interpretações Fenomenológicas de Aristóteles, op. cit. 6 Heidegger, M. Idem, p. 37. Na interpretação que Heidegger empreende sobre as virtudes dianoéticas, em Aristóteles, as “virtudes” (aspas do autor) são as “modalidades que a alma descobre no exercício”, segundo aos quais – em conformidade com a nous -, a alma, “o mais freqüentemente”, põe aos cuidados originariamente o ente enquanto desocultado. Para a compreensão das operações que intervêm na efetuação do cuidado do ser, bem como de sua caracterização, é de suma importância realizar uma interpretação correta do sentido de “verdadeiro-verdade” (uma das significações do ente para Aristóteles), bem como da nous, visto que é ela que torna inteligíveis os fenômenos entre si. Foi, no entanto, a partir da interpretação do ser verdadeiro que Heidegger pôde empreender a reconstrução da filosofia prática de Aristóteles nesse período. 7 Heidegger. Carta, op.cit, p. 68.

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14 recortei na Carta, com o propósito de também subsidiar tal discussão. Esta procura focalizar a

problemática ética através da discussão sobre a crítica heideggeriana do pensamento

representativo; e está apoiada em um trabalho de Duque-Estrada, Ciência e Pós-Representação,

onde o autor levanta a hipótese, a partir das razões do argumento de Heideggger, de que “a

possibilidade de uma ética depende da ultrapassagem, que possa vir a ocorrer, do pensamento

representativo”.8

Esta hipótese levantada por Duque-Estrada, ainda que profícua, não é contemplada em

um dos textos de Derrida, Os fins do homem, que trataremos no tópico 2.3 O fim do homem.

Nesse tópico procurarei inicialmente enfocar a discussão proposta por Derrida sobre a idéia do

“nós” – “nós-os-homens” - no pensamento metafísico e, mais precisamente, o lugar da

humanidade do homem. N’Os fins do homem, como veremos, o autor procura mostrar que após

Hegel e Husserl teria havido um deslocamento, ou uma substituição, acerca do télos do homem.

Em outras palavras, a idéia do “nós” que se encontrava assentada no télos do homem, é

substituída, em Heidegger, por um certo humanismo e pela verdade do ser.

A partir dos dados fornecidos pela discussão implementada por Derrida, veremos ainda

que o deslocamento efetuado por Heidegger com respeito ao humanismo metafísico não abala

os alicerces que sustentam o edifício da metafísica. Na esteira desse questionamento, e tendo

como contraponto a hipótese levantada por Duque-Estrada no Ciência e Pós-Representação,

vou mais uma vez pôr em foco a discussão sobre a idéia de ultrapassagem da metafísica, na

crítica efetuada por Heidegger sobre o humanismo.

Tendo em vista essas considerações iniciais, adianto que o meu interesse neste capítulo é

introduzir o que em termos indicativos constitui uma das principais hipóteses deste estudo, e

que diz respeito ao fato da justiça e da ética, na perspectiva derridiana, aparecerem ligadas.

Dito de outro modo, ela procura indicar que esse elo de ligação encontra-se embutida na

problemática sobre a possibilidade da justiça, que por sua vez envolve a discussão em torno dos

questionamentos (no autor) sobre o conceito de linguagem, sobre o conceito de sujeito (e da

autoridade desse conceito no direito), bem como sobre as categorias de decisão e

responsabilidade (entre outras).

8 Duque-Estrada, Paulo Cesar. Ciência e Pós-representação: Notas sobre Heidegger (p. 70). in: Política e Trabalho. Revista de Ciências Sociais, ano 22, n. 24 (2006) – João Pessoa: PPGS-UFPB, 2006.

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Um aspecto da problemática aludida, a da possibilidade da justiça – que também será

desenvolvida a partir da questão da justiça no âmbito do direito (capítulo 4)9 - começa a

anunciar-se n’Os fins do homem (cf. tópico 2.3), onde Derrida recorre muitas vezes ao texto da

Carta sobre o Humanismo, sem no entanto tocar na problemática da ética. Isso porque, ao tocar

nessa problemática ele teria que entrar na discussão sobre o “intrincado” posicionamento que a

ontologia heideggeriana dá a sugerir com relação a problemática da ética; o que implicaria

“abrir mão” da investigação sobre o fim do homem, e daquilo que para o autor merece ser

questionado no contexto da Carta: o problema da relação entre humanismo e verdade do ser.

Em função disto, e seguindo a indicação fornecida por Derrida registrada na abertura

deste capítulo, inicio o debate sobre os questionamentos heideggerianos acerca dos limites da

noção de homem (e dos valores presentes nos humanismos estabelecidos), tal como efetuados

na Carta.

2.2 A crítica do humanismo e a questão da ética

Heidegger abre a Carta sobre o Humanismo questionando o modo usual de interpretar a

ação humana: “De há muito que ainda não se pensa, com bastante decisão, a essência do agir”.

Isso significa, para Heidegger, que nunca se pensou com suficiente radicalidade o agir. Na

tradição ocidental – no contexto da metafísica, sob o signo do esquecimento do ser -, ao invés

da ação fundamentar-se em seu próprio ser, ela sempre foi justificada no plano ôntico.10 A ação

foi legitimada como produção de um efeito, que era avaliado pela sua utilidade. “Só se conhece

o agir como a produção de um efeito, cuja efetividade se avalia por sua utilidade”.11 Contra

essa concepção que Heidegger considera reducionista, ele assevera que a ação é uma

consumação, no sentido de um desdobramento pleno da sua essência. O agir deve ser pensado

9 Neste capítulo (A questão do direito à justiça) a referida questão será tratada (mas não somente) através de dois textos de Derrida, que constituem o Força de Lei. O “fundamento místico da autoridade”. Do direito à justiça e Prenome de Benjamin (este último inspirado no ensaio de Walter Benjamin, Zur Kritik der Gewal). 10 Ou seja, na medida em que a metafísica sempre pensou o ser como se este fosse um ente (i.e. na medida em que entificou o ser de alguma forma) ela aparece marcada, no pensamento heideggeriano, por um esquecimento do ser e uma adesão ao ente. 11 Heidegger, M. Carta sobre o humanismo, op.cit. p. 23.

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16 em analogia ao pensar (o engajamento pelo ser para o ser). “A essência do agir, no entanto, está

em con-sumar. Con-sumar quer dizer: conduzir uma coisa ao sumo, à plenitude da sua

Essência. Levá-la a essa plenitude, producere.”12

O que está aqui em questão é a recusa, por parte de Heidegger, do subjetivismo próprio à

concepção tradicional da verdade, onde o homem passa a ser a medida da ação. Nisto encontra-

se implicada uma noção de verdade como adaequatio (adequação entre o intelecto e a coisa)

fundada na dicotomia sujeito-objeto, resultando que o objeto e a verdade terminam por ser o

dominável pelo homem. A ação, contudo, (de acordo com Heidegger) é uma consumação que

antecede a referida dicotomia, e por isso não pode ser explicada pela subjetividade do sujeito,

como se este fosse causa do produzido.

Por isso, em sentido próprio, só pode ser consumado o que já é. Ora, o que é, antes de tudo, é o Ser. O pensamento con-suma a referência do Ser à Essência do homem. Não a produz nem a efetua. O pensamento apenas a restitui ao ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser. Essa restituição consiste em que, no pensamento, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias ... O pensamento não se transforma em ação por dele emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. O pensamento age enquanto pensa. Seu agir é de certo o que há de mais simples e elevado, por afetar a re-ferência do Ser ao homem.13

“O pensamento é ‘l’engagement’ pela e para a verdade do ser” (i.e. pensar não é

exercer uma faculdade da consciência, entendida como sujeito). Recusando-se a aceitar a

interpretação técnica do pensar – o processo de reflexão a serviço do fazer e do operar -,

Heidegger postula que a teoria e a praxis só se realizam a partir de um pensar que encontra o

seu lugar na verdade do ser. Isso leva o filósofo a afirmar que a história do ser – que sempre está

na iminência de vir -, “carrega e determina toda ‘condition et situation humaine’ ”. Fica claro,

então, por que a acepção de teoria e de práxis como realidades produzidas pelo homem – e

determinadas, por sua vez, pela subjetividade do sujeito -, não pode ser admitida pelo filósofo. E

se o homem está aqui implicado, é preciso pensá-lo através de e em favor da história (verdade)

do ser.

Isto explica, no decorrer da resposta relativa ao humanismo, uma pergunta feita por

Heidegger: “A partir de que e como se determina a essência do homem?”.14 Em seguida discorre

12 Idem, p. 24 13 Heidegger. Carta sobre o Humanismo, op.cit. pp. 24-25. 14 Idem, p. 34.

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17 sobre as diversas modalidades de humanismos, i.e. das filosofias centradas em torno do homem,

então fundadas na interpretação metafísica. Desde o primeiro humanismo, o romano, e todo o

humanismo que tem surgido – o cristão e o renascentista, o socialista e o existencialista15 –

pressupõem-se como óbvia a essência mais universal do homem, a saber, este último é tomado

como animal racional/animal rationale,16 i.e. “como a unidade de corpo-alma-espírito”.17

Heidegger recusa tal determinação. Ou ainda, ele se recusa a aceitar a interpretação filosófica do

homem que explica e avalia a totalidade dos entes a partir e na direção do homem. Ou seja,

como uma interpretação do homem que já sabe o que é o homem, e que, assim, não pode jamais

se perguntar o que o homem é, tendo apenas por missão exclusiva consolidar a certeza do

sujeito.

Esta oposição ao humanismo metafísico, este pensamento que se declara, a si mesmo,

como fora de toda questão da subjetividade, vai delinear-se, portanto em outra perspectiva: o

homem passa a ser denominado, na Carta, “pastor do ser. É somente nessa direção [enfatiza

Heidegger] que pensa Ser e Tempo”, ao fazer “’no cuidado’ a experiência da ec-sistência”.18

Assim, supondo que ainda importasse repensar e reabilitar a expressão humanismo, o

essencial não seria o homem em sua racionalidade, mas sempre, e somente, o ser.

É por isso que, no que tange ao humanismo concebido por Sartre, como existencialismo,

Heidegger se mostra radicalmente refratário. Por exemplo, quando Sartre afirma: “nós estamos 15 Neste ponto Heidegger faz uma importante clivagem. Se o primeiro humanismo, e os que seguem, o cristão e o renascentista, necessitam de uma volta à Antigüidade – onde “o homo humanus se opõe ao homo barbarus” (p.35) -, o humanismo de Marx e de Sartre não necessitam deste retorno. “Se, no entanto, por humanismo em sentido geral, se entende o esforço tendente a tornar o homem livre para a sua humanidade e a levá-lo a encontrar nessa liberdade sua dignidade, então o humanismo se diferenciará segundo a concepção de ‘liberdade’ e de ‘natureza’ do homem. Do mesmo modo, serão diferentes as vias de sua realização. O humanismo de Marx não necessita de uma volta à Antigüidade nem tampouco o humanismo concebido por Sartre, como existencialismo” (p.36). 16Em O princípio da identidade, Heidegger nos fala ainda, referindo-se a uma famosa proposição de Parmênides, “O mesmo, pois, tanto é apreender (pensar) como também ser”, que ainda não penetramos no comum-pertencer (onde a interpretamos como mesmidade) de homem e ser. Mas (pergunta o autor) como acontece “uma tal entrada? Pelo fato de distanciarmos da atitude do pensamento que representa”. E este distanciamento “se verifica como um salto. Ele salta, afastando-se da comum representação do homem como animal rationale, que na modernidade tornou-se sujeito para seus objetos”. E mais adiante Heidegger complementa o seu argumento articulando-o com o universo da técnica: “Pela representação da totalidade do universo técnico reduz-se tudo ao homem e chega-se, quando muito, a reivindicar uma ética para o universo da técnica. Cativos desta representação, confirmamo-nos na convicção de que a técnica é apenas um negócio do homem. Passa-se por alto o apelo do ser, que fala na essência da técnica”. Heidegger. Os Pensadores. Abril Cultural pp. 381-382. Trad. Ernido Stein. 17 A interpretação metafísica do homem [o humanismo], “articulado no binômio de essência e existência, determina o ser do homem como a realização (existência) das possibilidades (essência) de animalidade e racionalidade, quer confira o primado a essência, quer faça prevalecer a existência em suas várias dimensões”. Carneiro Leão, E. Introdução, p.12, in: Carta sobre o humanismo, op.cit. 18 Heidegger. Ser e Tempo, parágrafo 44, Presença, abertura e verdade. Parte I. Petrópolis. Ed. Vozes. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti, 1990.

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18 precisamente num plano onde há apenas homem” (“précisement nous sommes sur um plan ou il

y a seulement des hommes”), Heidegger replica: “nós estamos precisamente num plano onde há

principalmente o Ser” (“précisement nous sommes sur um plan ou il y a principalement

L’Etre”). “Mas, donde provém, e o que é le plan? L’Etre et le plan, são o mesmo [finitude

radical do ser].”19 Neste sentido, teoria e praxis também só acontecem no plano (horizonte) da

finitude, nesse horizonte da história do ser. A essência do homem consiste em ser ele “mais” do

que simples homem, i.e. ele transcende a sua própria particularidade em direção ao ser. Sobre

esse “mais”, vejamos como o próprio Heidegger o define:

“Mais” significa: mais originário e, por isso, em sua Essência, mais Essencial. E é aqui que se mostra o enigma: o homem é no ser-lançado (Geworfenheit). Como a réplica (Gegenwul) ec-sistente do Ser, o homem é mais do que o animal rationale na medida em que ele é menos do que o homem que se apreende e concebe pela subjetividade. O homem não é o amo e senhor do ente. O homem é o pastor do Ser ...20 O pensar deve ser justificado a partir desse incomensurável (desse “mais”), de um

sentido que transcende qualquer aspiração particular – de algo que não pode encontrar a sua

medida na própria realidade humana.

Como vimos acima, o homem, para Heidegger, é o pastor do ser e, enquanto tal, deve ir

em direção ao ser, ou ainda, deve vigiar e proteger a verdade do ser. A “essência” desse ente,

que somos nós mesmos, está em ter de ser (zu Sein).21 Ou seja, a essência do homem, ser-aí, está

em assumir o seu próprio ser, como o que há de mais originário e por isso mais radical em sua

essência. É o ser que instiga o homem para ação. Agir é pensar o ser.

Isto posto, voltemos à motivação de Beaufret na questão discutida na Carta: qual seria o

lugar da ética em relação à ontologia? “O que procuro fazer já há muito tempo, é tornar mais

precisa a relação da ontologia com uma ética possível” (“Ce que je cherche à faire, depuis

longtemps déjà, c’est preciser le rapport de l’ontologie avec une éthique possible”).22

Este problema, como indicado nas partes iniciais deste capítulo, aparece embutido

naquilo que Heidegger considera como fundamental para a sua resposta (a Beaufret) na Carta, a

questão do humanismo, “cuja colocação lançará uma luz, talvez, também sobre as outras”23. O

19Heidegger. Carta sobre o Humanismo, p. 56. 20 Heidegger. Carta sobre o Humanismo, op.cit. p. 68. 21 Idem. Ser e Tempo, op.cit. parágrafo 9, O tema da analítica da pre-sença. 22 Idem. Carta, p. 83. 23 Idem. p. 27.

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19 que pode explicar o fato de Heidegger não se mostrar refratário à questão proposta por Beaufret.

Afinal, quem poderia deixar de pensar, nos dias de hoje, que o homem encontra-se

desorientado? “Quem teria o direito de desconhecer a indigência dessa situação (Notlage) ?”24

Antes de se posicionar diretamente sobre o problema Heidegger diz: “Pensar a Verdade

do Ser significa, igualmente: pensar a humanitas do homo humanus. Importa a humanitas a

serviço da verdade do ser, mas sem o humanismo no sentido metafísico”.25

Logo em seguida, ele parece querer pôr sob suspeição o vínculo entre a humanitas e o

pensamento do ser, e como que não se mostrar indiferente para com a questão proposta por

Beaufret.

Se, porém, a humanitas está tão Essencialmente no campo de visão do pensamento do Ser, não terá então a “ontologia” de ser completada pela “ética”? Não será, então, inteiramente Essencial o esforço que o Senhor exprime na frase: “Ce que je cherche à faire, depuis longtemps déjà, c’est preciser le rapport de l’ontologie avec une éthique possible”.

No entanto, dirá ainda Heidegger, a necessidade de se indicar preceitos e regras que

digam como o homem deve viver, só se mostra pertinente na era do homem da técnica:

A exigência de uma ética tanto mais se impõe quanto mais cresce desmedidamente a desorientação (Ratlosigkeit) do homem tanto a oculta como a manifesta. Uma vez que só se pode confiar numa estabilidade do homem da técnica, entregue à massificação (Massenwesen), planejando e organizando em conjunto seus planos e suas atividades, por isso se devem dedicar todos os cuidados e esforços à obrigatoriedade ética. Quem teria o direito de desconhecer a indigência dessa situação (Notlage)?

Apesar desta indicação, Heidegger esquiva-se diante do tema. Porém, isso ocorre em

nome do que para ele parece ser mais fundamental, pensar o ser. “Será que o pensamento pode

continuar esquivando-se a pensar o Ser?”. Poderíamos supor, então, que a construção e/ou

desenvolvimento de uma nova ética, em Heidegger, depende do pensamento do ser. Isso

explicaria, por sua vez, o por que do filósofo apresentar uma solução não definitiva, no que se

refere ao problema ético. “Não deveríamos, então, manter (shonen) e garantir as obrigações

vigentes, mesmo que elas só conservem reunida em si a essencialização do homem de modo

precário e apenas limitado às condições atuais?”26

24 Idem. p. 84. 25 Heidegger. Carta sobre o Humanismo, op.cit., p.83. 26 Idem, pp. 83-84.

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20

De acordo com os seus argumentos, a ética estabelecida e fundada metafisicamente não

pode mais ser admitida. Mas, para Heidegger, será que se trata de construir uma nova ética?

Segundo as suas palavras, “mais Essencial para o homem do que todo e qualquer

estabelecimento de regras é encontrar um caminho para a Morada na Verdade do ser”.27

O que importa, então, é alcançar a compreensão do que seja a ação do pensar – o que

importa é a humanitas a serviço da verdade do ser, mas sem o humanismo no sentido

metafísico. Em outras palavras, o que importa é alcançar a ação do pensar que não habite a

determinação metafísica. Isso explicaria o surgimento de uma pergunta feita por Heidegger: “em

que relação, porém, se acha o pensamento do Ser com o comportamento teórico e prático?”

Ele ultrapassa qualquer consideração, por se ocupar da luz na qual se pode mover e manter a visão da theoria. O pensamento se atém à clareira do ser, inserindo seu dizer do ser na linguagem, como a habitação da ec-sistência. Assim, o pensamento é um atuar. Mas um atuar que, ao mesmo tempo, ultrapassa toda prática. O pensamento não supera o operar e o produzir pela magnitude de sua eficiência nem pelas conseqüências de sua eficácia (Wirken) mas pela pouca monta (das Geringe) de seu consumar, desprovido de efeito e sucesso.28 Aqui cabe um esclarecimento. Para melhor compreendermos o posicionamento de

Heidegger sobre a problemática ética, é preciso atentar para o fato de que o seu pensamento se

nutre da idéia de que estamos numa fase de transição. “O pensamento por vir já não é Filosofia,

porque ele pensará mais originariamente do que a metafísica, que é a mesma coisa (de

filosofia)”. É preciso, portanto, superar a vigência da metafísica, e essa superação instaura

aquilo que é desconhecido e se procura saber. “O Ser é como o destino do pensamento”.29 E

nesse ponto já entramos na discussão da problemática ética através da crítica heideggeriana do

pensamento representativo

O pensamento por vir não pode estar mais assentado numa experiência representacional

do ente (fundado na dicotomia sujeito-objeto); experiência que aparece, no limiar da

modernidade, como imperativo para o estabelecimento da ciência moderna, e que sofre

posteriormente uma drástica transformação. Essa transformação é discutida no texto de Duque-

Estrada, Ciência e Pós-representação, que busca tematizar a ciência e a ética sob o viés da

crítica heidegeriana da representação. Cito o elucidativo resumo (abstract) apresentado por

Duque-Estrada: 27 Idem. p. 95. 28 Heidegger. Carta sobre o humanismo, op.cit. pp. 95-96. 29 Idem, pp. 98-100.

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21

O presente texto pretende situar as razões do argumento filosófico de Heidegger segundo o qual a possibilidade de uma ética depende da ultrapassagem, que possa vir a ocorrer, do pensamento representativo. Isto implica uma reflexão sobre as bases científicas não apenas da ciência moderna, na qual se consolida o domínio da representação, mas também de seu desdobramento mais recente naquilo que se costumou chamar de tecnociência.30 A transformação da ciência em tecnociência, que é o desdobramento do domínio da

representação, aponta por sua vez, para uma possível emancipação desse domínio. Deve-se

levar em conta, por outro lado, que o pensamento da representação também é fruto de uma

transformação que ocorre no limiar da modernidade. Tratarei primeiramente dessa questão.

Começo destacando um aspecto importante acerca desta transformação. É quando

Heidegger assevera que o aparecimento moderno do representar já teria sido preparado pela

experiência grega, em especial através da concepção de Platão do ser como “idéia”,31 ainda que

uma tal concepção não estivesse assentada em uma experiência representacional do ente.32

No pensamento do ser do ente como algo que é contemplado (contemplação do ser como

“idéia”), “o ente encontra-se relacionado ao ser humano, a um alguém como um egô”. Mas esta

relação só acontece (Duque-Estrada cita então Heidegger) porque “o egô permanece no âmbito

de um desvelamento que lhe é dado sempre como este desvelamento particular”. É somente

porque se encontra aí inserido, que “o ser humano apreende todas as coisas que se encontram

neste âmbito de desvelamento como coisas que são [como entes]. A apreensão do que se

presentifica funda-se no interior do âmbito de desvelamento”.

Em O princípio da identidade, Heidegger refere-se a uma proposição de Parmênides (já

aqui citada em nota) – “O mesmo, pois, tanto é apreender (pensar) como também ser” – que

exprime a experiência grega mais originária de desvelamento, o comum-pertencer de homem e

ser, que na modernidade é interpretada como mesmidade, como o mesmo.33 Na experiência

grega, “o ente é o que se ergue e o que se abre e, como aquilo que se presentifica, vem ao

encontro do ser humano como aquele que se presentifica”; ou seja, “vem ao encontro daquele

que em si mesmo se abre ao que se presentifica na medida em que o apreende”. Nessa abertura,

30 Duque-Estrada. Ciência e Pós-representação, op.cit. p.70. 31 Citando Heidegger: “que o ser do ente é determinado por Platão como eidos é a pressuposição determinada muito anteriormente, e há muito tempo dominante de um modo mediado e oculto, para que o mundo devesse se tornar imagem”. Heidegger apud Duque-Estrada (p.63). The Age of the World Picture. 32 Conforme enfatiza Duque-Estrada (de acordo com Heidegger), isto se aplicaria tanto ao pensamento atualizado na experiência da Antigüidade grega, quanto ao da época medieval (p.63). 33 Heidegger. Os Pensadore (p.381) Trad. Ernildo Stein. São Paulo. Nova Cultural, 1991.

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22 e através dela, o ser humano, ou o homem grego, para realizar a sua essência, “deve reunir e

proteger, apreender e preservar o que se abre em sua abertura, e permanecer exposto a toda a

sua fragmentária confusão”. Ou seja, “o homem grego é como aquele que apreende o que é, e

esta é a razão pela qual, na época dos gregos, o mundo não pode se tornar uma imagem”.34

Daí não se poder falar, no contexto da experiência grega, em uma apreensão da

totalidade das coisas nos termos da moderna dicotomia sujeito-objeto. No contexto dessa

experiência, “o ser humano só pode se perceber como medida das coisas enquanto ele já tiver

aceitado a sua limitação ao âmbito de desvelamento em que ele mesmo se encontra, e que ele

deve preservar”.35

Assim, se o desvelamento do ser dos entes (como presença), na experiência grega,

ocorria como uma apreensão (vernehmen), na modernidade vai ocorrer como representação

vorstellen). O ente antes apreendido passa a ser representado (a totalidade das coisas sofre uma

redução à condição de objeto da representação).

Com o desdobramento da ciência moderna em tecnociência, a correlação sujeito-objeto

desaparece, e com isto tanto sujeito, como objeto, passam a serem concebidos como estoque ou

fundo de reserva (Bestand). Essa nova situação, por sua vez, obedece a uma ordem, a ordem do

arrazoamento (Gestell): que já não mais se estabelece “em função da autonomia de um sujeito

da representação”, nem tampouco, “correlativamente, por meio da redução de todas as coisas

à condição de objeto”. Ambos são reduzidos “à condição de estoque ou fundo de reserva

sempre e já disponível ao cálculo de estratégias e práticas sucessivas e sempre renovadas de

apropriação, manipulação e ordenamento de tudo”.36

Isto posto, me volto para o que doravante se aproxima mais diretamente da sugestão em

torno da discussão acerca da possibilidade de uma ética em Heidgger, e que tem a ver com a

posição tomada por ele sobre a afirmação/domínio da técnica moderna; ainda que, como lembra

oportunamente Duque-Estrada, Heidegger nunca tenha se mostrado inclinado a recolocar o ideal

da boa deliberação face aos desafios apresentados pela nova ordem. Ainda que, portanto ele

nunca tenha se preocupado “com qualquer projeto de construção de uma ética que viesse a

34Heidegger apud Duque-Estrada (pp. 61-62). The Age of the World Picture. In: Lowitt, W. (ed): The Question Concerning Technology and Other Essays. 35 Duque-Estrada. Ciência e Pós-representação,op.cit. p. 63. 36 Heidegger apud Duque-Estrada. Idem, p. 65.

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23 recolocar o ideal da boa deliberação à luz dos novos e inusitados desafios resultantes da

irresistível expansão técnica da ciência, em sua interferência sobre tudo.”37

Dando seguimento à discussão (efetuada por Duque-Estrada), vemos que a nova ordem –

afirmação da tecnociência -, aponta (segundo Heidegger) para o perigo, como também para algo

positivo em relação ao pensamento; por uma lado, há o perigo de que o pensamento baseado no

cálculo possa vir a ser hegemônico, ser aceito e atualizado como a única forma legítima de

pensar; por outro, Heidegger também postula a idéia de que o que foi pensado na antigüidade

grega não desapareceu. O que aí foi pensado ainda atua em nossa época, e “de um tal modo que

sua essência, ainda oculta para ela mesma, vem por toda parte ao nosso encontro, e nos

alcança ali onde menos esperamos, a saber, no domínio da técnica moderna, que é

completamente estranha à antigüidade mas que, não obstante, tem nesta última a origem [ou a

proveniência] de sua essência”.38 O que aparece, aqui, como algo positivo para o pensamento,

tem a ver com o desaparecimento da relação sujeito-objeto; doravante é a relação, “como

relação pura e simples, que passa a ter um primado sobre ambos – sujeito e objeto –

disponibilizando-os como fundo de reserva”.39 Há aqui, portanto, um deslocamento no âmbito

do campo relacional, que, já não mais regido pela lógica da representação, se abre como

possibilidade de abrigo para o estabelecimento de uma nova maneira de relacionamento com as

coisas em geral. Dito de outro modo, com essa redução ao essencial, abre-se, mais uma vez, a

possibilidade de efetuarmos a “nossa condição originária de estar, sempre e já, relacionada ao

ente à luz do seu modo próprio de vir-à-presença”.40

Esta condição, para Heidegger, é precisamente digna de ser questionada porquanto

entendida como uma ocorrência (que se dá no nosso tempo, com a afirmação da tecnociência),

como solicitação, ou apelo do ser e resposta ao ser (ao pensamento).

( ...) Encaminhar na direção do que é digno de ser questionado [“apelo que fala e diz respeito à nossa essência”] não é aventura, mas retorno ao lar. Seguir uma direção que é o rumo que uma coisa já tomou por si mesma, chama-se, em nossa língua, sinnan, sinnen. Entregar-se ao sentido é a essência do pensamento que pensa o sentido. Isto significa mais do que o mero fazer consciente de algo. Ainda não pensamos o sentido

37 Duque-Estrada. Idem. p. 59. 38 Heidegger apud Duque-Estrada (p.66). Wissenschaft und Besinnung, in: Vorträge und Aufsätze. Tübingen. Günter Neske Pfullingen. 1954. 39 Duque-Estrada. Ciência e Pós-Represntação, op.cit. p. 66. 40 Idem.

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quando somos apenas consciência. Pensar o sentido é mais do que isto. É a serenidade em direção ao que é digno de ser questionado.41

Mas se esta redução ao essencial, ou seja, se esta ocorrência como solicitação ao

pensamento, traz em seu bojo uma outra exigência, uma resposta à referida solicitação, é preciso

também ter em conta o modo como Heidegger vai pensar essa relação. Como indica Duque-

Estrada, “esta relação tem uma história; ela se envia, desde a Antigüidade grega até a moderna

tecnociência, como a história unificada – no sentido de essencial ou de história da

essencialização – do Ocidente”.42 E portanto (agora citando Heidegger) “para experimentar a

presença desta história, precisamos nos desvencilhar da representação historiográfica da

história que ainda domina”.43

É preciso, pois, superar a vigência da história que ainda se apresenta como objeto. Ou

ainda, é preciso pensar a vigência da história dos envios do ser que se tornou dominante em uma

época desta história, a época da representação.

Com isto posso traduzir melhor o que antes serviu para introduzir os argumentos da

crítica heideggeriana da representação; onde a partir da expressão ali destacada, “O Ser é como

o destino do pensamento”, enfoquei o problema da superação da metafísica como uma

superação que instaura o que ainda não é conhecido mas se procura saber. Trata-se de uma

aventura?

A expressão surge na Carta sobre o Humanismo como a última resposta dada por

Heidegger, acerca da terceira pergunta feita por Beaufret: “comment sauver l’élément

41 Heidegger apud Duque-Estarda (pp. 66-67). Wissenschaft und Besinnung. 42 Isto me reporta ao enunciado-matriz postulado por Heidegger, que é posto à prova por Derrida em Do Espírito, sobre a questão da técnica: a essência da técnica não é técnica. Esse enunciado constitui o segundo fio condutor pelo qual ele vai apresentar inicialmente a resistência de Heidegger quanto ao uso do termo Geist. Isso porque “ ... quando se referem ao espírito, os enunciados heideggerianos raramente [i.e. excepcionalmente] têm a forma de uma definição da essência” (p.23). Seguir o traço espiritual heideggeriano implica pôr em cena as exceções, que no decorrer de uma verificação se mostra tão paradoxal quanto fatal: “ocorre aí a verdade da verdade para Heidegger” que “pertence ao além e à possibilidade de toda questão, ao inquestionável de toda questão”. Para Derrida, o Espírito (Geist) “só pode reunir esse entrelaçamento visto que é, para Heidegger ... um outro nome do Um e da Versammlung, um dos nomes da compilação e da reunião” (p.17). A grande questão da técnica, que corresponde ao enunciado de que a essência da técnica não é técnica, corrobora essa afirmação quando Derrida postula que o enunciado permanece, ainda que apenas em uma de suas faces, enclausurado na tradição do pensamento filosófico. Em uma de suas faces, esse enunciado “mantém a possibilidade do pensamento questionante, que é sempre pensamento a respeito da essência, ao abrigo de toda contaminação originária e essencial, pela técnica ... Contaminação, pois, do pensamento sobre a essência, pela técnica; logo, da essência pensável da técnica, pela técnica – e mesmo de uma questão da técnica, pela técnica, tendo o privilégio da questão qualquer coisa que vê, com essa irredutibilidade da técnica” (p.19). Derrida, J. Do Espírito. (Título original: De l’esprit: Heidegger et la question). Trad. de Constança Marcondes Cesar. Campinas, SP: Papirus, 1990. 43 Duque-Estrada. Ciência e Pós-Representação, op.cit. p. 68.

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25 d’aventure que comporte toute recherche sans faire de la philosophie une simples

aventurière?”44

Na resposta Heidegger traz para o seu texto, inicialmente, um dizer da Poética de

Aristóteles que, segundo ele, não teria sido suficientemente pensado: “poetizar é mais

verdadeiro do que investigar o ser”.

Por outro lado (continua Heidegger), não é somente por procurar e perguntar pelo

desconhecido, pelo “não pensado”, que o pensamento pode ser tido como une aventure.45

O Ser é como o destino do pensamento e, como tal, ou seja, como destino, é em si

mesmo Histórico. E enquanto História chega à linguagem.

Neste ponto Heidegger cita o poeta Höelderlin, para quem a linguagem seria “o mais

perigoso dos bens”. Essa alusão tem um propósito específico: questionar as regras da lógica,

especificamente no que respeita a sua pretensão em estabelecer-se como a primeira lei do

pensamento. Ora, dirá Heidegger na Carta,

A primeira lei do pensamento não são as regras da lógica. A primeira lei do pensamento é destinar o dizer do Ser, como o destino da Verdade. Pois é pela lei do Ser que as regras da lógica chegam a ser regras. Prezar o que está destinado no dizer do pensamento, não inclui apenas, que reflitamos cada vez sobre o que é para se dizer do Ser. Igualmente essencial é pensar-se, se e até que ponto o que há para pensar deve ser dito; em que instante da História do Ser; em que diálogo com essa e a partir de qual apelo deve ser dito. É, portanto, contra esta pretensão que Heidegger, nos parágrafos finais da Carta, faz um

apelo: “Na atual indigência do mundo, o que se faz necessário é menos filosofia e mais cuidado

em pensar”.

O pensamento por vir, como dirá logo em seguida,

já não é Filosofia, porque ele pensará mais originariamente do que a metafísica, que é a mesma coisa (de Filosofia). Mas também o pensamento vindouro já não poderá, como queria Hegel, depor o nome de “amor à sabedoria” e se tornar a própria sabedoria na forma do saber absoluto.46 Isto posto, retorno ao texto de Duque-Estrada, que após colocar os argumentos da crítica

heideggeriana da representação, vai apresentar algumas indicações sobre a possibilidade de se

pensar uma ética em Heidegger; que seria dependente de uma ultrapassagem, que possa vir a

ocorrer, do pensamento representativo. 44 Heidegger. Carta sobre o Humanismo, op.cit. p. 97. 45 Heidegger. Carta, op.cit. p. 97. 46 Idem. pp. 99-100.

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26

Vimos que o desdobramento mais recente da ciência moderna (onde se consolida o

domínio da representação) como tecnociência – época em que nos encontramos -, traz em germe

um perigo, mas também a possibilidade de encontrarmos um caminho, para além da

representação, em direção ao que salva.

Daí ser necessário pensar a presença da história47 na condição atual em que nos

encontramos. Isso torna mais claro um dos aspectos que recortei, na discussão da Carta, acerca

de uma sugestão fornecida por Heidegger quando interpelado por uma das questões propostas

por Beaufret. Refiro-me à tomada de posição, por parte de Heidegger, sobre a necessidade de

uma ética, na era do homem da técnica. Cito mais uma vez o que ele disse: “Não deveríamos

então manter (shonen) e garantir as obrigações vigentes, mesmo que elas só conservem reunida

em si a essencialização do homem de modo precário e apenas limitado às condições atuais?”.

Essa fala foi interpretada como algo que poderia apontar para a idéia de uma solução não

definitiva sobre a necessidade de uma ética, então sustentada a partir de uma outra que se

mostrava efetivamente prioritária no contexto da Carta: “mais Essencial para o homem do que

todo e qualquer estabelecimento de regras é encontrar um caminho para a Morada na Verdade

do ser”.

Através da leitura da Carta, se poderia pensar que Heidegger estaria postulando uma tal

solução. No entanto, se não se leva em consideração o questionamento heideggeriano sobre o

pensamento representacional, restringe-se de modo considerável outros argumentos fornecidos

pelo filósofo quanto ao problema em questão. E aqui já entramos na discussão da experiência do

pensamento para além da representação.

É assim que, (segundo Duque-Estrada) mais “urgente e anterior a qualquer construção

ou reconstrução de uma ética”, é pensar a presença da história como o destino do pensamento

(do Ser). E “uma ética, digna deste nome, só seria possível após a consolidação de um

pensamento não representacional”. Isso porque, no âmbito do pensamento representacional, o

campo da ação deve se mostrar afeito aos critérios de rigor da teoria, ou do controle da

subjetividade, do cálculo, do ideal de certeza, em suma, da representação. A tarefa de Heidegger

aponta, portanto, para uma exigência: a de que é preciso fazer uma experiência do pensar para

47 O destino ou a história é o “envio que reúne”, que põe em um caminho, o caminho do desvelamento.

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27 além da representação. E isso implica saber “onde nos encontramos”, para então “resgatar

alguma orientação no pensamento”. 48

A experiência do pensamento para além da representação se dá no salto, no penetrar sem

mediações (fora da representação). O salto salta “para lá onde já fomos admitidos: o pertencer

ao ser”.49 Esse comum-pertencer de homem e ser, “ou essa condição originária de ser

solicitado e responder à solicitação do ser” não deve ser confundida como uma mera

transferência do individual para o comunitário, que no fim das contas não abala a estrutura da

representação, pois “A presença a si do sujeito da representação apenas se deslocou para um

plano coletivo”. O sentido de pertencimento continua a ser pensado, portanto, a partir da

unidade entre homem e ser.50

Assim, para se pensar de modo apropriado o comum-pertencer de homem e ser, é preciso

enfatizar o pertencer, “experimentar esta comunidade a partir do pertencer”. Essa experiência

só “se torna possível pelo salto do pensamento para fora da representação”. O salto salta para o

pertencimento de homem e ser (onde sempre estivemos), ou ainda, o salto constitui “uma

entrada não mediada no pertencer”. A missão desse pertencer

é dispensar uma reciprocidade de homem e ser e instaurar a constelação de ambos. O salto é a súbita penetração no âmbito a partir do qual o homem e ser desde sempre atingiram juntos a sua essência, porque ambos foram reciprocamente entregues como propriedade a partir de um gesto que dá.51

De acordo com o exposto, a possibilidade de uma ética em Heidgger, depende da

ultrapassagem do pensamento representativo (pensamento que se mantém atrelado aos valores

presentes nos humanismos estabelecidos), motivo pelo qual Duque-Estrada pôde afirmar, com

base nas razões do argumento do filósofo alemão, que a possibilidade de uma ética “digna deste

nome, só seria possível após a consolidação de um pensamento não representacional”.

Não se pode desconsiderar, por outro lado, que as referidas razões trazem embutida uma

exigência da tarefa hideggeriana que é decisiva: a de que para fazer a experiência do

48 Duque-Estrada. Ciência e Pós-Representação, op.cit. p. 68. 49 Heidegger apud Duque-Estrada (p. 68). Identidade e Diferença, in: Os Pensadores, op.cit. 50 “O homem como ser racional da época do Iluminismo não é menos um sujeito do que o homem que se auto percebe como nação, que deseja a si mesmo como povo, que se autopromove como raça e, finalmente, que se autoriza como senhor da terra”. Heidegger apud Duque-Estrada (p. 69). A época das imagens do mundo. Apêndice 9, 1977 51 Heidegger apud Duque-Estrada (p.69). A época das imagens do mundo.

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28 pensamento para além da representação, seria preciso antes saber onde nos encontramos; o que

possibilitaria então, e só então, resgatar alguma orientação do pensamento.

Para “finalizar” esta discussão, cito uma passagem que “fecha” o escrito de Duque-

Estrada.

A experiência do pensamento se dá no penetrar (imediato, não representacional) desse âmbito; neste “aí” onde nos encontramos e que ainda não nos demos conta, ou não nos demoramos o bastante, nem na época em que Heidegger escreveu este texto52 na década de cinqüenta, mas certamente não diria, muito menos hoje. Onde, afinal, nos encontramos? “Em que constelação de homem e ser” nos encontramos hoje? Nos encontramos, ao mesmo tempo, no perigo extremo da tecnociência, em que domina a radical disponibilização/pulverização de tudo; mas também no insinuar de um possível caminho para além da representação, em direção ao que salva.53

* * *

O que se verá a seguir é uma apreciação de Derrida sobre o lugar do “nós” (“nós-os-

homens”) no pensamento metafísico, e mais precisamente, o lugar da humanidade do homem na

crítica heideggeriana do humanismo. Essa apreciação é motivada por uma determinada

preocupação: pôr em cena (através dessa discussão sobre o “nós”) a idéia de que o pensamento

da verdade do ser acaba reafirmando, de uma forma mais “profunda” e “potente”, o pensamento

do homem. Isso é feito quase que integralmente (n’Os fins do homem) através do Ser e Tempo, e

da Carta sobre o humanismo.

Na linguagem usualmente acionada pelo autor, esta discussão sobre o “nós” é parte

integrante do questionamento desconstrutivo.

Um questionamento desconstrutivo que começa ... por desestabilizar, ou complicar a oposição entre nomos e physis, entre thesis e physis – quer dizer, a oposição entre a lei, a convenção, a convenção, a instituição, por um lado, e a natureza, por outro, com todas as [oposições] que elas condicionam, por exemplo, e não é senão um exemplo, a do direito positivo e do direito natural différance é o deslocamento desta lógica oposicional ... um questionamento desconstrutivo que começa ... por desestabilizar, complicar ou lembrar aos seus paradoxos valores como os do próprio e da propriedade em todos os seus registros, o de sujeito, e portanto do sujeito responsável, do sujeito do direito e do sujeito da moral, da pessoa jurídica ou moral, um tal questionamento desconstrutivo é, de parte a parte, um questionamento sobre o direito e sobre a justiça. Um questionamento sobre os fundamentos do direito, da moral e da política.54

52 Duque-Estrada está se referindo ao texto A época das imagens do mundo, especificamente a uma passagem, anteriormente citada, aqui, sobre a experiência do pensamento como comum-pertencer de homem e ser. 53 Duque-Estrada. Ciência e Pós-Representação, op.cit. p. 69. 54 Derrida, Jacques. Do direito à justiça (p. 16) in: Força de Lei. O “fundamento mítico da autoridade”. Trad. de Fernanda Bernardo. Campo das Letras – Editores, S.A. (coleção: Campo da Filosofia – 17), Porto, 2003. Do direito à justiça, que constitui a primeira parte deste livro, foi lida em outubro de 1989, no Cardozo School of Law (NY),

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29

Este questionamento é importante, tal como indicado, na medida em que fornece

subsídios para discutir (mas não somente) a questão da justiça no direito, que nas sociedades

ocidentais (segundo o autor) seria “o lugar próprio, um lugar privilegiado em todo caso, da

emergência e da autoridade do sujeito, do conceito de sujeito. Se ele está mantido no direito,

está por toda a parte”.55

Este questionamento é informado, por sua vez, pela idéia de différance, que no registro

do discurso derridiano, está próxima da associação que geralmente se faz do universal. Essa

idéia (como indica Duque-Estrada) não se refere a uma diferença particular, nem tampouco a

um tipo privilegiado de diferença, mas a “uma diferencialidade primeira em função da qual

tudo o que se dá só se dá, necessariamente, em um regime de diferenças (e, portanto da relação

com a alteridade)”. O que se constata (continua o autor) a partir da différance, “é que as

relações de diferença não ocorrem como simples oposições [por exemplo, ideal e empírico,

natureza e cultura, sujeito e objeto, centro e periferia, etc] entre coisas supostamente já dadas e

distintas entre si. Ao contrário, todas essas coisas só são o que são em função de relações de

diferença.”56

Com isto podemos começar a entender melhor a indicação levantada nos escritos iniciais

deste capítulo sobre a questão da ligação entre justiça e ética. Essa questão é indissociável

destas articulações, e igualmente indissociável da alteridade como uma “instância” que procura

pensar o problema da exclusão em geral; ou seja, não somente como uma exclusão previamente

constituída – e portanto, previsível, calculável -, tal como a já existente no regime de diferenças

como identidade. O que talvez possa explicar o fato da referida ligação encontrar-se embutida

na problemática sobre a possibilidade da Justiça. E que no âmbito da discussão do pensamento

desconstrucionista, não pode prescindir do questionamento sobre os alicerces que sustentam o

edifício da metafísica.

na abertura de uma conferência, organizada por Drucilla Cornell, com o título Desconstruction and the Possibility of Justice. A parte dois (2), Prenome de Benjamin, foi lida na segunda parte da abertura da mesma conferência, organizada por Saul Friedlander, na Universidade da Califórnia (Los Angeles), em 26 de abril de 1990, com o título Nazism and the “Final Solution”: Probing the limits of Representation. 55Derrida. Imprevisível liberdade (p. 74) in: De que amanhã ... Tradução de André Telles. Jorge Zahar Editor, RJ, 2004. 56 Duque-Estrada. Alteridade, Violência e Justiça: Trilhas da Desconstrução (pp. 51-52), in: Desconstrução e Ética – ecos de Jacques Derrida, org: Paulo Cesar Duque-Estrada. RJ: Ed. PUC-Rio; SP: Loyola, 2004.

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30 Tal é o caso do questionamento efetuado por Derrida no texto Os fins do homem, que

não convencido dos argumentos apresentados por Heidegger na sua crítica do humanismo,

propõe mostrar em que sentido o pensamento heideggeriano, como pensamento da verdade do

ser, acaba por reafirmar o pensamento do homem; reafirmação sintetizada através de uma

pergunta que pode ser tida não como uma singularidade, mas como um paradigma dessa

desconfiança.

2.3 O fim do homem

“O que é a superação [do homem] nos pensamentos de Hegel, de Husserl e de

Heidegger?” “Qu’est-ce que la relève de l’homme dans les pensées de Hegel, de Husserl et de

Heidegger?”57

Esta interrogação é levantada por Derrida, no último parágrafo que antecede o tópico

intitulado O fim próximo do homem, onde ele apresenta muito suscintamente a discussão em

torno do “nós” em Hegel, e em Husserl. A partir daí surge o que propriamente constitui o

propósito d’Os fins do homem – que aparece com o sub-título Lendo-nos -, onde essa

problemática será discutida a partir do pensamento de Heidegger, e no contexto da recepção

francesa.

A discussão proposta por Derrida sobre este “nós”, aponta para a idéia de que no

pensamento heideggeriano teria havido uma substituição (ou deslocamento) em relação ao télos

do homem. Esse teria sido substituído “pela humanidade do homem e pelo pensamento do ser,

por um certo humanismo e pela verdade do ser”. Trata-se de uma discussão sobre o “nós”, e

sobre “qual é pois o lugar desse nós no texto de Heidegger”.58

Começando por Hegel, o autor já alerta para o equívoco que ainda vigora, na linguagem

da nossa época, em torno da ordem do discurso hegeliano. E aqui ele está se referindo em

particular ao texto Fenomenologia do Espírito, onde a ênfase da leitura tem incidido

simplesmente sobre o viés antropológico. Derrida vai refutar a leitura de que em Hegel, “as

57 A nosso ver, Derrida joga com a ambigüidade do termo rélève, empregando-o ora no sentido de superação e de ultrapassagem, ora no sentido de relevo (relief), e de relevância (relevance). Em vista disso decidimos cotejar a tradução com o texto original. 58 Derrida. Os fins do homem, op.cit. pp. 163-164.

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31 relações entre antropologia e fenomenologia” seriam de “simples exterioridade”;59 o que por

sua vez pode ser atestado através dos conceitos de verdade, de negatividade e de Aufhebung.

Reconstituo o argumento proposto por Derrida. A primeira seção da terceira parte da

Enciclopédia (que trata da filosofia do espírito) inscreve a fenomenologia do espírito entre A

antropologia e A psicologia. A antropologia trata do espírito (“verdade da natureza”) como

alma (“espírito-natureza”), obedecendo um desenvolvimento que se constitui e se abre sobre a

consciência: “passa pela alma natural, pela alma sensível, pela alma real ou efetiva”; onde a

partir daí será definida a forma geral da consciência.60 A consciência (o fenomenológico, que

constitui o objeto da antropologia) aparecerá como a verdade da alma, ou a do homem, e a

fenomenologia como a verdade da antropologia. “A consciência é a verdade do homem

enquanto o homem não aparece a ele mesmo no seu ser-passado, no seu ter-sido, no seu

passado ultrapassado e conservado, retido, interiorizado e superado”. Aufheben deve ser

entendido como um movimento que simultaneamente desloca e eleva, promove e substitui. Cito

Derrida:

A consciência é a Aufhebung da alma ou do homem, a fenomenologia é a “superação”61 da antropologia. Ela já não é mas é ainda uma ciência do homem. Neste sentido, todas as estruturas descritas pela fenomenologia do espírito ... são as estruturas daquilo que assumiu a superação do homem. O homem permanece aí na sua superação. A sua essência repousa na Fenomenologia. Esta relação equívoca de superação marca sem dúvida o fim do homem, o homem passado, mas também, de imediato, o cumprimento [a completude] do homem, a apropriação da sua essência. É o fim do homem finito. O fim da finitude do homem, a unidade do finito e do infinito, o finito como superação de si ...62 La conscience est l’Aufhebung de l’âme ou de l’homme, la phénoménologie est la «relève» de l’anthropologie. Elle n’est plus mais elle est encore une science de l’homme. En ce sens, toutes les structures décrites par la phénoménologie de l’esprit ... sont les structures de ce qui a pris la relève de l’homme. L’homme y reste en son relief. Son essence repose dans la Phénoménologie. Ce rapport ´équivoque de relevance marque sans doute la fin de l’homme, l’homme passé, mais du même coup l’accomplissement de l’homme, l’appropriation de son essence. C’est la fin de l’homme fini. La fin de la finitude de l’homme, l’unité du fini et de l’infini, le fini comme dépassement de soi ... 63

59 Idem, p. 159. 60 Derrida. Os fins do homem, op.cit. pp. 159-160. 61 Cf. nota 57. 62 Derrida. Os fins do homem, p. 160 63 Idem. Les fins de l’homme, in: Marges de la philosoppie (pp. 143-144). Paris : Ed. Minuit., 1972.

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32

Isto que aí é dito está apoiado na definição que aparece no final d’A antropologia: é

quando a consciência é definida como “relação infinita a si”. “A superação ou ultrapassagem do

homem é o seu télos ou o seu eskaton” (“La relève ou la relevance de l’homme est son télos ou

son eskaton”). A unidade desses dois fins (da morte, do acabamento e da completude do

homem) se encontra ainda amarrada ao pensamento grego do télos. Em outras palavras, esse

pensamento do fim do homem organizado pela dialética da verdade e da negatividade, é um fim

do homem ainda atrelado a um discurso sobre o eidos, sobre a ousia e sobre a aletheia. Um

discurso que coordena, em Hegel, e em toda a metafísica, a “teleologia com uma escatologia,

com uma teologia e com uma ontologia”. O que leva Derrida a afirmar que o pensamento do fim

do homem, já estaria sempre presente no pensamento da verdade do homem.

O nós que na Fenomenologia do Espírito articula entre elas a consciência natural e a consciência filosófica assegura a proximidade a si do ente fixo e central para o qual se produz essa reapropriação circular. O nós é a unidade do saber e da antropologia, de Deus e do homem, da onto-teo-teologia e do humanismo.64

O pensamento do fim do homem, ainda comandado pela determinação metafísica mais

clássica, o pensamento da verdade do homem (o homem como animal racional) “designa o

lugar do desdobramento da razão teleológica, isto é, da história”.65

Esta teleologia, ou esta razão (que é história) também comanda a fenomenologia de

Husserl, como fenomenologia transcendental. Em Hussserl e em Hegel a razão é história, por

conseguinte, a história é sempre uma história da razão. Nesse movimento a fenomenologia de

Husserl se apresentaria como o acabamento último da “teleologia da razão que atravessa a

humanidade”.

Em nota Derrida coloca a distinção feita por Husserl sobre a historicidade. Ela obedece

três níveis/etapas: “cultura e tradição como socialidade humana em geral; cultura européia e

projeto teorético (ciência e filosofia), conversão da filosofia em fenomenologia”.66

Assim, com este pensamento assentado em etapas, e em conivência com os conceitos

(restaurados) que fundam a metafísica, Husserl afirma “a crítica do antropologismo empírico”,

64 Derrida. Os fins do homem, op.cit. p. 161. Neste ponto Derrida pergunta: como pensar um fim do homem que não seja organizado por uma dialética da verdade e da negatividade?; como pensar uma fim do homem que não seja uma teleologia assentada no nós? 65 Derrida. Os fins do homem, p. 162. 66 Idem, nota 13, p. 163.

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33 que nada mais é que o humanismo transcendental. Entre esses conceitos, o que se mostra

decisivo, ou o que desempenha um papel decisivo na fenomenologia transcendental, é o

conceito de télos.

O fim do homem (como limite antropológico fatual) anuncia-se ao pensamento depois (sic) do fim do homem [desde o fim do homem] como abertura determinada ou infinidade de um télos. O homem é o que tem relação com o seu fim, no sentido fundamentalmente equívoco desta palavra. Desde sempre. O fim transcendental só pode aparecer e desdobrar-se sob a condição da mortalidade, de uma relação com a finitude como origem da idealidade. O nome do homem sempre se inscreveu na metafísica entre estes dois fins. Só tem sentido nessa situação escato-teológica.67

A partir daí, ou a partir desta situação em que assistimos a discussão em torno do “nós”,

Derrida se pergunta: Qual o lugar desse nós no texto que “nos deu a ler a cumplicidade

essencial, historial, da metafísica e do humanismo sob todas as suas formas?”

Antes de entrarmos no que efetivamente constitui o propósito de Derrida, o diálogo com

Heidegger, é oportuno salientar que esse diálogo vai aparecer em outros dos seus escritos.

Através deles é possível perceber mais claramente alguns pontos que o autor considera como

problemáticos no pensamento de Heidegger. Cito inicialmente como exemplo Posições,68 onde

a questão sobre o valor do próprio (autêntico) aparece como complementar ao que para Derrida

constitui o ponto mais decisivo da problemática heideggeriana: a do sentido, do presente e da

presença. Ainda em Posições, e por conta dessa questão sobre o valor do próprio, encontramos

uma referência sobre um outro escrito de Derrida, Ousia e Grammé,69 onde ele chega a

estabelecer uma certa identificação entre o par conceitual autenticidde-inautenticidade, e a ética.

É quando ele se pergunta: “por que qualificar a temporalidade de autêntica – ou própria (eigentlich)

– e de inautêntica – ou imprópria – desde o momento em que toda a preocupação ética foi suspensa?”

67 Derrida. Os fins do homem, op.cit. p. 163. 68 Derrida. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva, 2001. 69A questão sobre o valor do próprio, que seria complementar ao ponto mais decisivo da problemática heideggeriana (a do sentido, do presente e da presença) é tematizado no Ousia e Grammé. Entre tantos aspectos aí discutidos destaco o que segue: para destrinchar o que foi indicado como o ponto mais decisivo, Derrida procura aproximar duas determinações no pensamento de Heidegger: a da diferença entre o ser e o ente e a da diferença entre a presença e o presente. Em La différance, essa aproximação parece se efetivar na demonstração oferecida pelo próprio Heidegger: quando ele se pergunta (em A fala de Anaximandro) sobre a essência (presença) do presente. Ou seja, ao se perguntar sobre o que é a presença do presente, Heidegger estaria tentando demonstrar que no esquecimento do ser operado pela ontologia clássica o que é esquecido é a diferença entre o ser e o ente, entre a presença e o presente. O propósito de Derrida consiste então em mostrar que o pensamento da presença (um dos principais aspectos questionados por ele nos seus trabalhos) encontra-se embutido na problemática heideggeriana.

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Vejamos melhor o que motiva Derrida a levantar a pergunta. Começo apresentando o

objetivo mais geral do escrito. Ousia e Grammé vai analisar uma nota do Ser e Tempo, que

aparece no fim do subparágrafo O conceito hegeliano de tempo (p.242, ed. brasileira) e antes do

subparágrafo sobre A interpretação hegeliana do nexo entre tempo e espírito (p. 246, ed.

brasileira).70 E é aqui que a estratégia heideggeriana se mostra com todo o vigor, posto que a

nota corta (como indica Derrida) o encadeamento que visa não criticar Hegel, mas antes

restaurar “a radicalidade de uma formulação à qual não se prestou atenção, mostrando-a em

ação e no centro do pensamento mais profundo, mais crítico e mais a-barcante da metafísica”,

e com isso “aguçar a diferença entre a ontologia fundamental e a ontologia clássica ou

vulgar”.71

O que aí é tido como estratégico tem a ver com o fato de Heidegger apresentar apenas

uma nota, ainda que a mais extensa do Ser e Tempo, sobre os traços que consignam no conceito

hegeliano de tempo uma origem aristotélica. Instigado por isso Ousia e Grammé vai analisar

esse conceito comparativamente ao Física IV de Aristóteles, e sem perder de vista o que para

Derrida constitui o eixo fundamental que ordena o pensamento heideggeriano: “aquele que

separa o autêntico do inautêntico e, em ultimíssima instância, a temporalidade da

temporalidade decaída”

O valor do próprio ou do impróprio (inautêntico) é posto em cena a propósito da

discussão sobre noções (em Heidegger) como as de “origem” e de “queda”, com relação ao

problema do tempo e da temporalidade. E será a partir do par conceitual origem-queda que

Heidegger (segundo Derrida), para delimitar a sua diferença com relação à ontologia clássica ou

vulgar, atribui “simplesmente a Hegel a proposição de uma ‘queda do espírito no tempo’”.

Derrida recorta então uma passagem do parágrafo 82 (Ser e Tempo), onde Heidegger discute o

Fallen e o Verfall.

O espírito não cai no tempo, mas: a existência fatual “cai” como decaída (“fallt” als verfallende), a partir da temporalidade originária, da temporalidade autêntica (aus der ursprunglichen eigentlichen Zeitlichkeit). Essa queda (Fallen) tem sempre a sua possibilidade existencial num modo da sua temporalização, modo que pertence à temporalidade ...72

70 Heidegger. Ser e Tempo. Parte II, op.cit. 71 Heidegger. Ser e Tempo, op.cit. p. 70. 72 Derrida. Ousia e Grammé, in: Margens da filosofia, op.cit. pp. 100-101.

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35

Derrida propõe deslocar a proposição com a seguinte indicação: a de que o “limite

metafísico” consistiria “menos em pensar uma queda no tempo (a partir de um não-tempo ou de

uma eternidade intratemporal que não tem, em Hegel, nenhum sentido), mas em pensar uma

queda em geral”, determinando-a como a passagem de um tempo originário a outro, um tempo

derivado. Uma passagem que constitui uma oposição. Neste sentido, o limite metafísico

consistiria em pensar a queda como uma oposição entre o tempo originário e o tempo derivado.

A ruptura, pretendida pela ontologia fundamental, em relação à ontologia vulgar, ou clássica, é

interrogada por Derrida:

Ora, a oposição do originário e do derivado não é ainda metafísica? A reclamação da arquia em geral ... não é a operação “essencial” da metafísica? Supondo-se que possamos subtraí-lo [o conceito de arquia] ... não há pelo menos algum platonismo no Verfallen? Por que determinar como queda a passagem de uma temporalidade para outra? E por que qualificar a temporalidade de autêntica – ou própria (eigentlich) – e de inautêntica – ou imprópria – desde o momento em que toda a preocupação ética foi suspensa? Os fins do homem não será tratado a partir desta interrogação. O escrito de Derrida

encontra-se motivado por uma outra preocupação: pôr em cena um privilégio mais sutil que

reconduz à posição do nós no discurso (como em Hegel e em Husserl). Ou seja, ainda que

Heidegger tenha se recusado a colocar o nós na “dimensão metafísica do ‘nós-os-homens’”, e

isso pode ser atestado pela analítica existencial – o Dasein é o homem, mas não simplesmente o

homem metafísico; na Carta e nos escritos posteriores, será o próprio do homem (nós-homens)

que guiará “todos os caminhos do pensamento”. Por conta disso Derrida vai poder levantar a

idéia de que haveria uma proximidade, no pensamento heideggeriano, entre o próprio e a

verdade do ser: “ ... o próprio do homem -, o pensamento do próprio do homem é inseparável da

questão ou da verdade [sentido] do ser”.73

É por recurso ao conceito de proximidade, proximidade a si e proximidade ao ser, que

Derrida vai conseguir afirmar que a crítica heideggeriana do humanismo não deixa de reafirmar

aquilo mesmo que é alvo de sua reserva e/ou objeção, o pensamento do homem. “É no jogo de

uma certa proximidade ... que iremos ver constituir-se contra o humanismo e contra o

antroplogismo metafísico, uma outra insistência do homem”.74

73 Derrida. Os fins do homem, op.cit. p.164. 74 Idem.

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36

O intuito de Derrida é pois mostrar que o pensamento da verdade do ser não deixa de

insistir no homem (no primado de uma referência a si, referência a si como proximidade ao ser),

por conseguinte, não deixa de reafirmar o pensamento do homem, ainda que isto ocorra no

registro de uma outra linguagem.

Para examinar então esse jogo, que ocorre como o jogo de uma certa proximidade, ele

recorre primeiramente a Ser e Tempo, em especial ao parágrafo 2, onde Heidegger expõe A

estrutura formal da questão do ser.

Lembremos que em Heidegger, estas questões se põem no âmbito da estrutura da

compreensão (Verstehen), que mantém o ser-aí referido ao ser. O ser-aí compreende o ser das

coisas, compreende-se em seu ser e nele já antecipa, ainda que implicitamente, i.e. não

tematicamente, uma compreensão do ser em geral. O que o caracteriza, portanto, é a sua

referência íntima ao ser.75

Na estrutura formal da questão, Derrida acentua um aspecto assinalado por Heidegger: o

reconhecimento de que a nossa compreensão “vaga e corrente” quanto ao “sentido da palavra

‘ser’ ou ‘é’, é um fato (Faktum)”. Para corroborar a sua fala cita o próprio Heidegger.

Enquanto procura (Suchen), o ato de questionar necessita ser previamente conduzido por aquilo que é procurado. O sentido do ser deve, pois, de uma certa maneira ser-nos já disponível. Como foi indicado, nós já nos movemos sempre numa compreensão do ser. É a partir dela que surge a questão expressa do sentido do ser e a tendência para o conceito de ser. Nós não sabemos o que o “ser” quer dizer. Mas desde que nos perguntamos “o que é o ser?”, mantemo-nos numa compreensão do “é”, sem poder fixar conceitualmente o que o “é” quer dizer. Não conhecemos mesmo o horizonte a partir do qual deveríamos apreender e fixar esse sentido. Essa compreensão corrente e vaga é um factum.76 Comentando esta passagem Derrida acentua que este nós pode ser entendido sob duas

perspectivas complementares: o nós é o que se abre para a compreensão de “ser” ou de “é”. “O

‘nós’ é pelo menos ... o que é sempre já acessível e aquilo por intermédio de que um tal factum

pode ser reconhecido como tal”. Isso leva o autor a indicar que esse nós “comanda” de alguma

maneira a estrutura formal estabelecida por Heidegger – “a estrutura formal da questão do ser

no horizonte da metafísica”; “e mais amplamente no meio lingüístico indo-europeu à cuja

possibilidade está essencialmente ligada a origem da metafísica”.77

75 Heidegger. Ser e Tempo, op.cit. parágrafo 4, O primado ôntico da questão do ser 76 Heidegger apud Derrida. Os fins do homem, op.cit. pp. 165-166. 77 Derrida. Idem, p. 165.

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37

O que Derrida parece efetivamente querer dizer é que quando se postula a idéia de um

nós, ou melhor, quando se efetua uma delimitação do nós, estamos excluindo o outro. É por esse

motivo que essa delimitação que não reconhece nenhum outro – um dos motivos da

interrogação de Derrida em relação ao pensamento heideggeriano -, aparece como limite, ou

limites, para a realização do nós. “É nesses limites que o factum pode ser entendido e

autorizado; é nesses limites ... que ele pode sustentar a dita formalidade da questão”. No

entanto, “permanece verdade que o sentido desses ‘limites’ não nos é dado senão depois da

questão do sentido do ser”.78

Após se posicionar sobre a estrutura formal da questão, estabelecida por Heidegger,

Derrida põe em cena o problema da escolha e/ou do reconhecimento do ente exemplar, o

interrogado (o Befragte), que poderá efetuar a abertura do sentido do ser, em suma, “o ente que

se interrogará, ao qual se levantará a questão do sentido do ser”. Ao lado disto, lança mão do

parágrafo 7 do Ser e Tempo (O método fenomenológico de investigação), onde Heidegger

apresenta o conceito preliminar e/ou provisório da fenomenologia (O conceito preliminar de

fenomenologia) visando à elaboração da questão do ser; visando a elaboração “desse ente

exemplar interrogado em vista do sentido do ser”. O que conduz Derrida a enfatizar que a

determinação desse ente seria comandada, ainda que provisoriamente, pelo princípio último da

fenomenologia,79 “o princípio da presença e da presença na presença a si, tal como se

manifesta ao ente e no ente que nós somos”. E seria essa presença a si, entendida como

“proximidade absoluta do ente (questionante) a si mesmo ... que motiva a escolha do ente

exemplar”.80

Nós que estamos próximos de nós mesmos, nós nos interrogamos sobre o sentido do ser. O

valor de presença em geral (de proximidade) decidirá, portanto, a orientação da analítica do

Dasein.81

78 Idem. 79 Derrida está se referindo ao pensamento de Husserl, e ao “princípio dos princípios” da fenomenologia evocada pelo filósofo alemão. O debate com Husserl encontra-se no texto (entre outros) La voix et le phénomène, onde a discussão acerca do princípio último da fenomenologia é também abordada sob o ângulo do querer-dizer como representação. Cf. Derrida. Le vouloir-dire et la représentation (pp. 53-66), in: La voix et le phénomène: introduction au probleme du signe dans la phenomenologie de Husserl. Paris Presses Universitaires de France, 1993 80 Derrida. Os fins do homem, op.cit. pp. 165-166. 81 “Elaboração da questão do ser quer portanto dizer: elucidação de um ente – do questionante – no seu ser. O questionar dessa questão (Das Fragen dieser Frage) é determinado essencialmente, como modo de ser de um ente, por aquilo que nele é interrogado (gefragt) – pelo ser. Esse ente que nós próprios somos e que, no seu ser, tem,

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Seguindo Derrida é preciso fazer uma observação: ainda que a presença a si do ente que

nós próprios somos (do questionante e do interrogado) (ou dessa identidade), não possa ser

concebida nos termos de uma consciência subjetiva, essa presença e/ou proximidade chama

continuamente para a tomada de consciência. E isso na medida em que a questão do ser, como

uma questão do sentido do ser, é definida como desvelamento, como hermenêutica explicitante.

Ou seja, a partir da oposição “implícito/explícito” (oposição fenomenológica), Derrida procura

mostrar que a hermenêutica explicitante praticada por Heidegger, ainda se mantém enclausurada

em um círculo que “liga a analítica do Dasein à totalidade do discurso tradicional da

metafísica”. O círculo “consistiria em determinar em primeiro lugar um ente no seu ser e depois

em colocar a questão do ser a partir dessa predeterminação ontológica”.82 No entanto, essa

interpretação explicitante, segundo Derrida, seria uma interpretação que pratica continuamente

uma “tomada de consciência, sem ruptura, sem deslocamento, sem mudança de terreno”. E

assim, da mesma maneira que o ente que nós próprios somos, o Dasein, se mostra como o ente

exemplar para a explicitação e/ou desvelamento do sentido do ser, “também o nome do homem

se mantém como liame ou fio condutor paleonômico que liga a analítica do Dasein à totalidade

do discurso tradicional da metafísica”.83

Isto posto, Derrida vai colocar mais claramente o que antes foi apresentado como a

principal motivação do seu escrito: a recondução ao nós no discurso heideggeriano. Sua

hipótese, ali apresentada, é a de que haveria uma proximidade entre o próprio – o próprio do

homem (nós-mesmos) – e a verdade do ser. É por conta disso que ele chega a afirmar que o

valor de proximidade (de presença em geral) decidirá a orientação da analítica do Dasein.

Derrida recorre agora ao parágrafo 5,84 do Ser e Tempo, onde afinal se pode apreciar

outros aspectos do argumento derridiano sobre esta orientação essencial. Tal orientação é regida entre outras possibilidades, a de questionar, aplicamos-lhe o termo Dasein (fassen wir terminologisch als Dasein). A posição expressa e lúcida da questão do sentido do ser requer uma explicitação prévia e apropriada de um ente (o Dasein) na perspectiva do seu ser”. Heidegger (Ser e Tempo) apud Derrida. Os fins do homem, p. 160. 82 Cf. Heidegger. Ser e Tempo, op.cit. parágrafo 7, O método fenomenológico da investigação. 83 Para corroborar este último argumento, Derrida cita o que ele chama estranho estatuto de algumas frases que ele encontra no texto heideggeriano (Ser e Tempo). Eu recorto a que segue: “Como a de toda a ontologia, a problemática da ontologia grega deve tomar o seu fio condutor no próprio ser-aí. O ser-aí, isto é, o ser do homem (Das Dasein, d.h., das sein des Menschen) é compreendido (umgrenzt) tanto na “definição” vulgar como na “definição” filosófica como zôon logon ekon, o ser vivo cujo ser é essencialmente determinado pelo poder da palavra (do discurso: Redenkönen)”. Da mesma forma (continua Drrida citando Heidegger), “uma ontologia completa do Dasein” é estabelecida como condição prévia de uma “antropologia filosófica”. Heidegger apud Derrida. Os fins do homem, op.cit p. 167. 84 Heidegger. Ser e Tempo, parágrafo 5. A analítica ontológica da pre-sença como liberação do horizonte para uma interpretação do sentido do ser em geral.

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39 pela oposição proximidade/distância, ou ainda, pela relação estabelecida por Heidegger entre o

ôntico e o ontológico. Ou seja, haveria uma proximidade que ocorre no plano ôntico e no plano

ontológico. No plano ôntico a proximidade aparece desprendida de qualquer contradição: o

Dasein que nós somos constitui “o ente exemplar para a hermenêutica do sentido do ser em

virtude de sua proximidade a si, da nossa proximidade a nós mesmos, a esse ente que nós

somos”. No entanto, no plano ontológico, i.e. quanto ao ser desse ente que nós somos a

distância é considerável. Derrida cita então Heidegger: “O Dasein, em verdade, não é apenas o

que nos é onticamente próximo ou o mais próximo – nós próprios o somos. Todavia, apesar

disso ou por isso mesmo, ele é ontologicamente (ontologish) o mais longínquo”.85

O Da do Dasein e o Da do Sein significarão igualmente o próximo e o longínquo”.86

Como se pode notar até o momento, Derrida não interpela o pensamento de Heidegger na

perspectiva do ente que nós não somos, mas na do ente que nós somos. E talvez não seja sem

razão que a sua insistência venha incidir sobre a segunda perspectiva. Parece que é somente no

âmbito da pergunta sobre o ente que nós somos que o autor pode e/ou poderá mostrar que o

Dasein é “uma repetição da essência do homem que permite recuar aquém dos conceitos

metafísicos da humanitas”. É nesse sentido ainda que ele poderá afirmar, com mais firmeza, que

o pensamento de Heidegger é guiado por duas motivações, a do ser como presença, “entendido

num sentido mais originário do que nas determinações metafísicas e ônticas da presença ou da

presença do presente”, e a “da proximidade do ser à essência do homem”. Tudo se passa então,

continua o autor, “como se fosse necessário reduzir a distância ontológica reconhecida em Sein

und Zeit e dizer a proximidade do ser à essência do homem”.87

É neste contexto, e para sustentar esta última proposição, que Derrida chega a admitir,

como assinalamos na abertura deste capítulo, que a crítica heideggeriana sobre os limites da

noção de homem, e dos valores presentes nos humanismos estabelecidos, i.e. determinados

metafisicamente, não pode ser ignorada pelo pensamento contemporâneo. Isso posto, dirá ele,

não cabe insistir “sobre o tema maior e bem conhecido deste texto: a unidade da metafísica e do

humanismo”.88

85Heidegger apud Derrida. Os fins do homem,p. 167. 86 Derrida. Os fins do homem,op.cit. p.168. 87 Idem, pp. 167-168. 88 Idem, p. 168.

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40

E com isto entramos na leitura derridiana em torno da Carta sobre o humanismo,

motivada então pela questão da redução da distância ontológica. Se na leitura do Ser e Tempo a

distância se dava primeiramente como proximidade ôntica, ela agora deverá ser reduzida pelo

pensamento da verdade do ser.

A reserva de Derrida sobre a crítica heideggeriana do humanismo incide, como já

indicado, sobre o pensamento da verdade do ser,89 que acaba reafirmando, de uma forma mais

“potente” e “profunda”, o pensamento do homem.

A verdade, porém, é que o pensamento da verdade do ser em nome do qual Heidegger delimita o humanismo e a metafísica, permanece um pensamento do homem. Na questão do ser, tal como ela se põe à metafísica, o homem e o nome do homem não são deslocados. E muito menos desaparecem. Trata-se, pelo contrário, de uma espécie de reavaliação ou de revalorização da essência e da dignidade do homem. O que é ameaçado na extensão da metafísica e da técnica ( ... ) é a essência do homem, que aqui deveria ser pensada antes e para além das suas determinações metafísicas.90

Isto que Derrida coloca pode ser atestado pelo próprio Heidegger, que na Carta justifica

a sua oposição ao humanismo nos seguintes termos:

(... ) o único pensamento a se exprimir é que as determinações humanistas da Essência do homem, ainda mesmo as mais elevadas, não chegaram a fazer a experiência do que é propriamente a dignidade do homem ... Essa oposição, todavia, não significa que um tal pensamento bandeie para o lado oposto do humano e preconize o inumano, defenda a desumanidade e degrade a dignidade do homem. Pensa-se contra o humanismo porque o humanismo não coloca bastante alto a humanitas do homem.91

Voltemos ao texto de Derrida. Após a sua apreciação sobre o pensamento da verdade do

ser, ele cita diversas passagens da Carta que corroboram tal apreciação. E com isto ele já está

introduzindo a questão da redução da distância pelo pensamento do ser, i.e. da “proximidade do

ser à essência do homem”.

89Como indica Duque-Estrada, ao romper com as filosofias do sujeito e/ou centradas nos humanismos estabelecidos, Heidegger passará a pensar “não mais o homem ... em seu modo de ser humano já determinado, mas sim a referência ao ser ... como proveniência de toda e qualquer forma de essencialização ... Pensar essa proveniência é, para Heidegger, a tarefa de um pensamento mais originário, que já não se aplicaria ao homem mas sim à verdade do ser (ou à referência ao ser).” Vale informar que esse aspecto da crítica heideggeriana, entre outros, que aparece no texto de Duque-Estrada, visa marcar o afastamento de Derrida por relação ao pensamento heideggeriano, e igualmente mostrar que um tal afastamento não quer dizer que não haja por parte do autor uma certa sensibilidade com respeito a alguns dos elementos que encerram a crítica do filósofo alemão quanto ao conceito e valor de homem. Duque-Estrada, Paulo Cesar. Derrida e a crítica heideggeriana do humanismo, p. 250, in: Jacques Derrida: pensar a desconstrução . Ed. Estação Liberdade, SP, 2005. 90 Derrida. Os fins do homem, op.cit. p. 169. 91 Heidegger. Carta sobre o humanismo, op.cit. p. 50.

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41

2Apresento inicialmente uma passagem da Carta citada por Derrida, que permite o

desenvolvimento desta proposição no tocante ao problema da essência, ou da sua restauração

como restauração da dignidade e da proximidade: “ ... a humanitas permanece no coração deste

pensamento porque o humanismo consiste nisto: refletir e velar (Sinnen und Sorgen) para que o

homem seja humano e não inumano (unmenschlisch), isto é, fora da sua essência. Ora, em que

é que consiste a humanidade do homem? Ela repousa na sua essência”. E desde que a

humanidade do homem repousa na sua essência, a proposição que diz “o homem ek-siste ... é

uma resposta à questão respeitante à ‘essência’ (Wesen) do homem”. Essa restauração (da

essência) é tida por Derrida como a restauração da “dignidade correspondente do ser e do

homem”, bem como da “proximidade do ser e do homem”.92

A questão do pensamento da proximidade ontológica como um pensamento do próximo

e do longínquo (da distância) se mostra aparentemente ligada à questão do esquecimento da

diferença entre o ente e o ser do ente. Essa questão tematizada no Ousia e Grammé aparece aqui

como um motivo para falar das metáforas utilizadas por Heidegger, como por exemplo, a

metáfora da casa, enquanto “casa da Verdade do Ser”, âmbito de acolhida e permanência da

diferença ontológica entre ser e ente.

Aqui cabe um breve comentário sobre o impessoal, que na Carta sobre o humanismo

aparece nos termos de um esclarecimento do que foi dito acerca do mesmo, no Ser e Tempo; o

que para Heidegger quer dizer também que o propósito do Ser e Tempo – guiado pela questão

da verdade (sentido) do ser – não teria sido suficientemente compreendido .

( ...) o que se diz em Ser e Tempo, parágrafos 27 e 35, sobre o impessoal [das man] não pretende ser, de forma alguma, uma simples contribuição incidental para a sociologia. Igualmente, o “impessoal” não significa apenas a oposição ético-existentiva [ôntica] ao ser próprio da pessoa. O que aí se diz, contém, antes uma indicação pensada a partir da questão da Verdade do Ser.93

92 Heidegger apud Derrida. Os fins do homem, pp. 169-170. 93 Heidegger. Carta sobre o humanismo, op.cit. pp. 31-32. Vale lembrar que no âmbito desta discussão sobre o impessoal, Heidegger levanta uma problemática que a meu ver não pode deixar de ser mencionada neste contexto, a saber, a questão da responsabilidade. Esta é tratada no parágrafo 26, A co-presença dos outros e o ser-com cotidiano, do Ser e Tempo, que antecede justamente o parágrafo 27, O ser-próprio cotidiano e o impessoal. No parágrafo 26 o impessoal nos é apresentada como um fenômeno que vem regendo e ditando, de forma acentuada, o comportamento das sociedades contemporâneas ocidentais. A questão da responsabilidade se mostra decisiva na medida em que, diante desse fenômeno, a responsabilidade de ser é subtraída. Na convivência cotidiana, ditada pelo modo de ser do impessoal, o sentimento de responsabilidade sobre a nossa existência nos é retirado. Nessa esfera, onde todos são responsáveis, ninguém o é; os outros aos quais o Dasein (o ser-aí) confia a sua responsabilidade de ser, qualquer outro pode representá-lo, visto que esse qualquer outro não é ninguém determinado.

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Heidegger refere-se implicitamente ao problema da expansão ilimitada da objetivação,

“como o acesso uniforme de tudo para todos”, o que ele chama de ditadura da publicidade. É

quando a linguagem decai de sua essência originária, a casa da Verdade do Ser, entregando-se

“simplesmente como um instrumento para o domínio do ente, a nosso querer e às nossas

atividades”. Nesse sentido, “o próprio ente se dá, como efetivo, no sistema de causa e efeito”. E

o ente, “entendido assim como o efetivo, é encontrado através de cálculos e manipulações, bem

como, na ciência e na filosofia, através de explicações e fundamentações”.94

Trata-se de um outro aspecto da discussão sobre a época da técnica e da ciência, ou

ainda, sobre o pensamento representativo, que se fixa na objetividade do ente e na subjetividade

do homem enquanto sujeito da objetividade. Essa objetividade, que é precisamente objetividade

porque o homem permanece na qualidade de sujeito – o que controla e estabelece a objetividade

-, deve se mostrar afeita aos critérios de rigor do pensamento, ou do controle da subjetividade.

Esse esquecimento moderno da diferença entre o ente e o ser do ente, onde vemos prevalecer a

vigência da relação entre sujeito e objeto, não aparece enquanto tal, ou ainda, essa prevalência

da subjetividade, “que aparece como publicidade”, permanece oculta.

Mas voltemos ao texto de Derrida. Após a sua apreciação sobre o pensamento da

verdade do ser, que segundo ele (e baseado na Carta), reafirma o pensamento do homem, o

autor segue a sua leitura pontuando outros trechos da Carta com o intuito de precisar melhor em

que sentido, e como se dá esta reafirmação, ou restauração da humanidade do homem (da sua

essência). A restauração da sua essência (da dignidade do homem) será tratada como

restauração da dignidade (do ser e do homem) e da proximidade (do ser e do homem).

A partir da colocação desta proposição Derrida vai desenvolver a questão da

proximidade ontológica em articulação com o uso das metáforas utilizadas por Heidegger para

Para melhor explicar o que estou querendo acentuar, retorno muito rapidamente aos argumentos fornecidos por Heidegger sobre o mundo circundante (Umwelt) que, como se sabe, é dotado de uma visão, a circunvisão, com o qual o ser-aí comercia com os outros entes; uma visão que segundo o autor nos mantém restritos à nossa existência imediata e próxima, que é a nossa existência cotidiana. Essa é ditada, particularmente, pela convivência no trabalho, que nem sempre aparece como uma relação constitutiva da nossa existência. Ao contrário, o que se constata é que a atividade do trabalho exacerba a competição, e também estimula um comportamento peculiar, corolário do primeiro, face à relação com outros, a indiferença. Na terminologia heideggeriana, tal comportamento representaria os modos deficientes da preocupação: “O ser por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado um do outro, o não sentir-se tocado pelo outro” . Ou seja, para o homem cotidiano, o outro é basicamente aquele que serve de medida para a sua existência e, nessa convivência, “os outros desaparecem ainda mais em sua possibilidade de diferença e expressão”. Heidegger. Ser e Tempo, I, op.cit.p. 173 e p. 179. 94Heidegger. Carta sobre o Humanismo, op.cit. pp. 31-33.

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43 dizer o ser, ou ainda, para dizer o que não pode ser dito. Tal é o caso da metáfora da casa,

enquanto casa da Verdade do Ser.

Para sustentar o que aí foi indicado, Derrida recorta algumas passagens da Carta. Eu cito

as que me pareceram mais exemplares.

É porque o homem, como ek-sistente, chega a manter-se nessa relação no qual o ser se destina (schickt) a si próprio, sustentando-o estaticamente, ou seja, assumindo-o no cuidado, que ele desconhece o mais próximo (das Nächste) e se liga ao que está para além do próximo (das Übernächste). Acredita mesmo que isso é o mais próximo. Mas mais próxima do que o mais próximo e ao mesmo tempo mais longínqua para o pensamento habitual é a própria proximidade: a verdade do ser ... O único (das Einzige) que queria atingir o pensamento que pela primeira vez procura exprimir-se em Sein und Zeit é qualquer coisa de simples (etwas Einfaches). Enquanto é esse simples, o ser permanece misterioso, a proximidade simples (schlicht) de uma potência não constringente. Essa proximidade desdobra a sua essência (west) como a própria linguagem ... Mas o homem não é apenas um ser vivo que, para além de outras capacidades, possuiria a linguagem. A casa é, bem mais do que isso, a casa na qual o homem habita e dessa forma ek-siste, pertencendo à verdade do ser do qual ele assume a guarda (huntend gehort).95 Esta proximidade, que não é ôntica, repete mais uma vez a idéia de proximidade

ontológica, i.e. do próximo e do longínquo. É por esse motivo que o ser, não sendo um ente, só

poderá ser dito na “metáfora ôntica” (que é “necessariamente significante”), como é o caso da

metáfora da casa, enquanto “casa da Verdade do Ser” (âmbito de acolhida e permanência da

diferença ontológica entre ser e ente). “É na insistência metafórica que se produz então a

questão do sentido do ser”. Ou seja, o que Derrida está querendo acentuar é que o

questionamento efetuado por Heidegger acerca “da autoridade do presente e da metafísica”

tinha um motivo: “nos conduzir a pensar a presença do presente”. No entanto, continua ele, “o

pensamento dessa presença nada mais faz do que metaforizar ... a linguagem que ele

desconstrói”.96

É portanto por recurso ao conceito de proximidade - proximidade a si e proximidade ao

ser - que Derrida pôde chegar a uma tal conclusão. Pôde mostrar, em suma, que no pensamento

heideggeriano contra o humanismo, havia uma outra insistência no homem. 95 Derrida. Os fins do homem, op.cit. pp. 171-172. 96 No final desta fala encontra-se uma nota que visa fortalecer ainda mais o que aí é dito: “Destruir o privilégio do presente-agora (Gegenwart) reconduz sempre, no caminho heideggeriano, a uma presença (Anwesen, Anwesenheit) que nenhum dos três modos do presentte (presente- presente, presente-passado, presente-futuro) pode esgotar, limitar, mas que,pelo contrário, lhes assegura o espaço de jogo, segundo uma quaternidade cujo pensamento forma todo o alcance da nossa questão. A quaternidade pode ser guardada ou perdida. Arriscada ou reapropriada, alternativa sempre suspensa acima do seu ‘próprio’ abismo não ganhando nunca senão perdendo-se. É o texto da disseminação”. Os fins do homem, nota 19, p. 173.

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44

Para corroborar os seus argumentos, Derrida traz para a discussão o conceito

heideggeriano do próprio, que junto com o de proximidade, resultaria na seguinte equação: o

próprio do homem (nós-homens) é estar próximo do ser, e estar próximo do ser é próprio do

homem.

Isto não quer dizer que o próprio, ou a proposição do próprio – “que dá o aí da verdade

do ser e da verdade do homem” – deva ser pensado no sentido metafísico, ou seja, como um

atributo essencial. O próprio do homem (em Heidegger), como lembra Derrida,

não é um atributo essencial, o predicado de uma substância, um caráter entre outros ... de um ente, objeto ou sujeito, chamado homem. Não é também nesse sentido que se pode falar do homem como próprio do ser. A propriedade, a co-propriedade do homem e do ser, é a proximidade como inseparabilidade.97

No entanto (continua Derrida) foi também como inseparabilidade, “que seguidamente,

na metafísica, pensou-se as relações do ente (substância ou res) com o seu predicado

essencial”.98

Ou seja, ainda que a idéia de co-propriedade, no discurso heideggeriano, não seja

pensada como algo que relaciona homem e ser onticamente (não relaciona um com o outro dois

“entes”), no âmbito da linguagem o que prevalece é a relação sentido do ser- sentido do

homem, então guiada pela idéia de autenticidade.

O próprio do homem, o seu ‘eigenheit’, a sua ‘autenticidade’, é o de se relacionar com o sentido do ser, de o escutar e de o interrogar (fragen) na ek-sistência, de manter-se de pé na proximidade da sua luz.99

Destaco as últimas palavras do texto heideggeriano, citadas por Derrida, sobre esta

questão: “Manter-se de pé na clareira do ser é o que eu chamo ek-sistência do homem. Só o

homem tem como própria essa maneira de ser”.100

Por conta disto Derrida fará a seguinte pergunta: não será talvez a segurança dessa

proximidade entre homem e ser – tal como ela habita e se habita a si mesma na língua do

Ocidente – que nos dias de hoje é abalada? Com um acréscimo: esse abalo, que vem de um

97 Idem, p 174. 98 Derrida. Os fins do homem, op.cit. p.174 99 Idem. 100 Heidegger apud Derrida, idem.

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45 certo fora, não pode ignorar o fato de que ele já “estava requerido na própria estrutura que ele

solicita”.101

Isto leva o autor a estabelecer um encadeamento focalizado no télos, abrindo espaço para

duas interpretações. A primeira foi anunciada: a de que a ruptura efetuada por Heidegger contra

o humanismo metafísico seria relativa, visto que não deixa de acentuar alguns dos traços que

caracterizam esse humanismo. A outra aponta para a sugestão de que é preciso por um fim, ou

romper efetivamente com esse círculo, que se completa no âmbito do pensamento do ser, do

pensamento que ainda estabelece uma relação entre homem e ser. Cito o encadeamento proposto

por Derrida:

o fim do homem é pensamento do ser, o homem é o fim do pensamento do ser, o fim do homem é o fim do pensamento do ser. O homem é desde sempre o seu próprio fim, isto é, o fim do seu próprio. O ser, é desde sempre, o seu próprio fim, isto é, o fim do seu próprio.102

Para fechar este capítulo retomo inicialmente o que foi apresentado como a idéia

condutora, ou a idéia-guia da relação sentido do ser-sentido do homem – a idéia acerca do

próprio, ou da autenticidade. Essa questão que atravessa todo o texto de Derrida vai permitir ao

autor estabelecer o encadeamento citado.

Nesta discussão efetuada pelo autor, ele não faz referência ao conceito de

inautenticidade. No entanto, é sabido que o par-conceitual autenticidade-inautenticidade se

mostra como um dos mais importantes no pensamento heideggeriano.

Por outro lado, no contexto do Ousia e Grammé, Derrida chega a estabelecer uma certa

identificação entre autenticidade-inautenticidade, e ética. É quando ele se pergnta: “por que

qualificar a temporalidade de autêntica – ou própria (eigentlich) – e de inautêntica – ou imprópria –

desde o momento em que toda a preocupação ética foi suspensa?”

É certo que Os fins do homem não é tratado a partir desta interrogação. Mas será que em

Heidegger toda a preocupação ética foi efetivamente suspensa?

Ora, pelo que foi fortuitamente dito no Ousia e Grammé, Derrida não desconhece a

importância do par-conceitual autenticidade-inautenticidade na composição do escrito do Ser e

Tempo; onde já a partir daí é possível problematizar a possibilidade de uma ética.103

101 Derrida. Os fins do homem, p. 175 102 Derrida. Os fins do homem, op.cit. p. 175. 103 Desenvolvi esta problemática na dissertação, defendida em 1995. Lá eu procurei mostrar, a partir de um dos escritos (entre outros) de Heidegger já aqui citado – Interpretações Fenomenológicas de Aristóteles – que a

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46 Mas esta possibilidade se torna mais tangível quando se coteja outros escritos de

Heidegger. Isso foi mostrado no tópico 2.2 deste capítulo, através da discussão empreendida por

Duque-Estrada sobre a crítica heideggeriana do pensamento representativo. No Ciência e Pós-

Representação ele levanta a hipótese, a partir das razões do argumento de Heidegger, de que “a

possibilidade de uma ética depende da ultrapassagem, que possa vir a ocorrer, do pensamento

representativo”.

Em Os fins do homem, Derrida compõe o seu texto a partir da problemática sobre o

“nós” no pensamento metafísico, visando operar um deslocamento acerca da discussão sobre a

questão da ética no pensamento heideggeriano; o que “permitiu” ao autor colocar o problema da

relação (em Heidegger) entre humanismo e verdade do ser, mais precisamente, permitiu mostrar

que a crítica heideggeriana do humanismo constituía uma reafirmação mais refinada da

metafísica no que tange ao pensamento do homem. E aqui estamos nos referindo ao ponto

central da crítica do autor: a afirmação do próprio do homem (do Dasein), do “nós-homens”, em

relação ao homem simplesmente metafísico, “nós-os-homens”. É por esse motivo (mas não

somente) que Derrida vai dizer que um tal deslocamento não abala os alicerces que sustentam o

edifício da metafísica.

Este questionamento derridiano sobre a crítica do humanismo (em Heidegger), que

incide sobre a delimitação do “nós”, e que parece não reconhecer nenhum outro – posto que,

quando se efetua uma tal delimitação estamos excluindo o outro -, é informado pelo pensamento

da différance, uma referência à alteridade, ou a uma certa concepção de alteridade, que permite

pensar o problema da exclusão “para além” do que, em certa medida, nos é familiar, previsível,

calculável.

interpretação efetuada pelo autor sobre a noção aristotélica de práxis aparece como paradigma para a sua construção ontológica em Ser e Tempo. Ou seja, procurei investigar como esse problema se colocava face ao sentido ético que essa noção encerra, o do agir moral voltado para o bem comum, no pensamento aristotélico, em contraste com o pensamento heideggeriano, onde o espaço público, o espaço da convivência cotidiana, não constitui a vida autêntica do Dasein. Isso porque, na convivência cotidiana, que é ditada pelo modo de ser do impessoal, o sentimento de responsabilidade sobre a nossa existência nos é retirado. Levando em consideração o modo como Heidegger descreveu o âmbito da convivência pública ditada pelo modo de ser do impessoal, fenômeno que oblitera a nossa decisão em favor da responsabilidade de ser, finalizei o trabalho defendendo a hipótese de que através dessa descrição ele estaria fornecendo subsídios para ampliar o espaço de reflexão sobre a ética. E desde que o decisivo nessa problemática era a questão da responsabilidade, eu me perguntava se não existiria implicitamente, no projeto da ontologia fundamental, um apelo a um retorno à vida prático-política de forma responsável nos moldes da filosofia antiga. Cf. Abreu, Ana Cristina. O Problema da Possibilidade de uma Ética em Heidegger, dissertação. PUC-Rio, 1995.

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47 A différance, neste sentido, pode ser tida como uma “instância” que se liga a uma

exigência incalculável, ou infinita, de se fazer justiça “à singularidade do outro, as

singularidades”.104 Trata-se portanto de enfrentar problemas que, por serem incalculáveis, exige

o recurso à experiência da aporia,105 uma experiência que traz consigo a exigência incalculável

de se fazer justiça em relação a um certo tipo de violência, i.e. a que se atualiza no âmbito do

jogo da linguagem; que está associada (mas não somente) ao que se recebe na linguagem e o

que se exclui por meio dela – e que ocorre quando estabelecemos qualquer tipo de relação, por

exemplo, a relação com a lei, com o evento (que excede os cálculos, as regras, as antecipações),

com o direito (ou com a lei do direito), com o texto (a escrita). E aqui já estamos introduzindo a

discussão, que será travada no capítulo seguinte, sobre différance, linguagem, alteridade, no

pensamento de Jacques Derrida.

3 Uma leitura sobre o pensamento de Jacques Derrida: linguagem, différance, alteridade

A discussão que proponho desenvolver neste capítulo incide sobre a différance, a

alteridade e a linguagem, visando situar melhor o que vimos falando no capítulo dois (2), e o

que será desenvolvido no capítulo quatro (4).

O capítulo anterior procurou inicialmente se deter na problemática da ética, em

Heidegger, motivada pela indicação fornecida por Derrida, em Os fins do homem, sobre a

importância dos questionamentos abertos pelo filósofo alemão sobre o humanismo. No decorrer

desta discussão chegamos a levantar outras questões pertinentes à referida problemática através

da crítica heideggeriana do pensamento representativo. Uma discussão que se mostrava avêssa

ao que o autor propunha n’Os fins do homem e, em certa medida, no Ousia e Grammé, posto 104 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 33. 105 “Aporia é um não-caminho. A justiça seria, deste ponto de vista, a experiência daquilo de que não podemos fazer a experiência ... eu creio que não existe justiça sem esta experiência, tão impossível como ela é, da aporia. A justiça é uma experiência do impossível. Uma vontade, um desejo, uma exigência de justiça, cuja estrutura, não fosse uma experiência da aporia não teria qualquer chance de ser o que é, a saber, um justo apelo da justiça”. Do direito à justiça, p. 27.

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48 que mesmo não se detendo na referida problemática lança a suspeita de que toda a preocupação

ética (em Heidegger) teria sido efetivamente suspensa. É quando ele se pergunta: “por que

qualificar a temporalidade de autêntica – ou própria (eigentlich) – e de inautêntica – ou

imprópria – desde o momento em que toda a preocupação ética foi suspensa?” O levantamento

desta suspeita, ainda que fortuita, levou a confirmação de que Os fins do homem procurava

inscrever um debate que pudesse vir a se “destacar” daquilo que em termos gerais vêm

orientando as discussões sobre a ética, o conceito de homem e o conceito de sujeito.

Cabe lembrar, por sua vez, que a inscrição deste debate já estava informada pela idéia de

différance, que pensa a diferencialidade “para além” das oposições estabelecidas (como, por

exemplo, a oposição sujeito-objeto). Em outras palavras, o que o pensamento da différance

procura fazer (mas não somente) é operar uma ligação entre coisas “já dadas” e distintas entre

si, que também se aplicaria à justiça e a ética. Essa operação, entendida igualmente (por parte de

Derrida) como um gesto de acolhimento para com o regime de relações de diferença, permite

que se possa falar da ética como uma “instância” ligada à justiça, ligação que traz embutida a

problemática sobre a possibilidade da justiça (ou sobre a possibilidade de se fazer justiça em

relação às singularidades). Para entender melhor essa ligação (entre tantas outras), torna-se

imprescindível reconstituir alguns dos diálogos (que ocorrem por meio de uma suspeita

permanente) que permitiram ao autor forjar a idéia de différance, e que passa necessariamente

pelo questionamento derridiano sobre o conceito de linguagem.

No texto Políticas da diferença, esse elo é abordado a propósito da discussão sobre a

universalidade da différance, ou sobre o que há de universalizável na différance (com “a”)

diante das diferenças (com “e”). Cito Derrida:

O que o motivo da différance tem de universalizável em vista das diferenças é que ele permite pensar o processo de diferenciação para além de qualquer espécie de limites: quer se trate de limites culturais, nacionais lingüísticos ou mesmo humanos. Existe a différance desde que exista um rastro vivo, uma relação vida/morte ou presença/ausência ... Há portanto aí claramente uma potência de universalização. Depois a différance não é uma distinção, uma essência ou uma oposição, mas um movimento de espaçamento, um devir-espaço” do tempo, um “devir-tempo” do espaço, uma referência à alteridade, uma heterogeneidade que não é primeiramente oposicional. Daí uma certa inscrição do mesmo, que não é o idêntico, como différance.106

106 Derrida. Políticas da diferença (p. 33) in: De que amanhã ... Tradução de André Telles. Jorge Zahar Editor, RJ, 2004.

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Estas proposições, como acrescenta Derrida, são indissociáveis da “meditação sobre a

questão da relação do significado com o significante”,107 ou seja, do próprio conceito de

linguagem, que se atualiza na estrutura dual significante/significado do conceito de signo (de

linguagem).

Esta meditação, por sua vez, está ligada à discussão (segundo Derrida) sobre o

etnocentrismo que vigora no âmbito da metafísica, enunciado no livro Gramatologia, como

“abalo da ontologia e da metafísica da presença [do ser como presença]”;108 um enunciado que,

como já se pode entrever, está calcado naquilo que para o autor constitui uma dimensão

especialmente importante neste debate, a dimensão espaço-temporal.

Seguindo inicialmente o fio dos argumentos fornecidos no referido livro, só se poderia

efetuar este abalo com a ajuda do conceito de signo, que se conserva como diferença entre

significante e significado graças a uma outra, a diferença entre o sensível e o inteligível – o

significante (sensível) é remetido a um significado (inteligível), mas nesse remetimento o

significante continua diferente do significado.109

3.1 Escritura e Rastro: o questionamento derridiano sobre o conceito

de linguagem.

A discussão que será travada neste tópico - o questionamento sobre o conceito de

linguagem (uma outra maneira de se falar da violência que ocorre no âmbito do jogo da

linguagem) –, busca apresentar alguns dos elementos que contribuíram para a configuração da

idéia de différance. Daí se mostrar necessário reconstituir (em largos traços) o debate sobre a

idéia de escritura, que nesse âmbito traz consigo o problema da afirmação da escritura no

sentido derridiano – a escritura como um indecidível (uma das faces da différance) -, por relação

ao paradigma da linguagem.

Para tanto, é preciso atentar primeiramente para um aspecto que define o conceito

tradicional de escritura pensado no âmbito do conceito de linguagem. Um dos aspectos que 107 Idem, p. 34. 108 Derrida, Jacques. Gramatologia (p. 61). Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janine. São Paulo, Perspectiva. Ed. da Universidade de São Paulo, 1973; 109 Idem, p. 16.

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50 define esse conceito tem a ver diretamente com o fato da escritura se apresentar de maneira

derivada (de maneira representativa), i.e. se apresentar como um elemento estranho à unidade

entre phoné e logos, voz e sentido, unidade que constitui a essência da linguagem. No livro

Gramatologia ele nos diz.

A ciência lingüística determina a linguagem ... como a unidade de phoné, glossa e logos ... E mesmo que queiramos confinar a sonoridade do lado do significante sensível e contingente ... será necessário admitir que a unidade imediata e privilegiada que fundamenta a significância e o ato da linguagem é a unidade articulada do som e do sentido na fonia. Em relação a esta unidade, a escritura seria sempre derivada, inesperada, particular, exterior, duplicando o significante: fonética. “Signo de signo”, diziam Aristóteles, Rousseau e Hegel.110 Com isto nos deparamos com um dos traços da caracterização proposta por Derrida para

a metafísica, o fonologocentrismo; que rebaixando a escritura traz como conseqüência a

subordinação da escritura como “representação fonética exterior à voz e ao sentido”.111 Essa

caracterização está ligada a uma outra, o falocentrismo, que desconstrói de outra maneira a

unidade entre voz e sentido, então expresso no dizer que segue: “(...) a voz da verdade é sempre

a voz da lei, de Deus, do pai. Virilidade essencial do logos metafísico”.112

A outra caracterização que Derrida propõe para a metafísica, o etnocentrismo, refere-se à

história da filosofia, que apesar de todas as diferenças, apresenta um gesto comum: “a escritura

é rebaixada à função própria de apagar-se diante da presença ideal do sentido que,

primeiramente, é expresso pela voz”.113

De acordo com tal lógica, a boa escritura, i.e. “a escritura do espírito: seu apagamento

diante da voz” deve respeitar “a interioridade ideal dos significantes fônicos”, 114 deve respeitar

o conteúdo discursivo interior à voz (phoné, palavra viva) que o expressa. Deve respeitar, em

suma, o que a voz, a palavra viva, quer dizer. No entanto, isso só pode ocorrer no âmbito em

que vigoram as escrituras alfabéticas. Com isso ficam excluídas as línguas não fonéticas, ou

110 Derrida. J. Gramatologia. op. cit. p.36. 111 Duque-Estrada, Paulo Cesar. Derrida e a Escritura, op.cit. p. 17. 112 Violence et Métaphysique, p.228; Cit. Sarah Kofman. Une Philosophie “Unheimlich”, in: Lectures de Derrida. Paris: Éditions Galilée, 1984. “Dir-se-ia, por anacronia, que o ‘sujeito falante’ é o pai de sua fala ( ... ). O logos é um filho, então, e um filho que se destruiria sem a presença, sem a assistência presente de seu pai ( ... ) que responde por ele e dele. Sem seu pai ele é apenas, precisamente, uma escritura”. La Pharmacie de Platon, p.86, in: La dissémination. Éditions du Seuil, 1972. 113 Duque-Estrada. Derrida e a Escritura, op.cit. pp. 23-24. 114 Derrida, J. Gramatologia, op.cit. p. 31.

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51 ainda, como registra Derrida no Gramatologia, fica excluída, por exemplo, a escritura

hieroglífica chinesa.115

Vale mencionar que este gesto etnocêntrico remonta à definição grega de escritura.

Remonta à Platão e Aristóteles, onde a significação do logos como verdade, “já se estreitava ao

redor do modelo da escritura fonética e da linguagem de palavras”. Derrida cita especialmente

uma passagem do texto de Aistóteles, Da Interpretação (I 16 a 3), onde ele diz: “Os sons

emitidos pela voz são os símbolos dos estados da alma, e as palavras escritas, os símbolos das

palavras emitidos pela voz”.116

Esta definição aristotélica que aparece no segundo capítulo do Gramatologia,

Lingüística e Gramatologia, retoma de um outro modo o que Derrida já havia dito no capítulo

anterior, O fim do livro e o começo da escritura.

Todas as determinações metafísicas da verdade, e até mesmo a que nos recorda Heidegger para além da onto-teologia metafísica, são mais ou menos inseparáveis da instância do logos ... Ora, dentro deste logos, nunca foi rompido o liame originário e essencial com a phoné .117

É assim que, no segundo capítulo (Lingüística e Gramatologia) dedicado em sua maior

parte ao debate com Ferdinand Saussure, Derrida assevera que o lingüísta francês não teria

rompido o liame desse logos com a phoné. Para tanto, cita uma passagem do Curso de

lingüística geral,118 onde Saussure afirma: “Língua e escritura são dois sistemas distintos de

signos; a única razão de ser do segundo é representar o primeiro”.119

Isto quer dizer que da definição tradicional de escritura, apresentada através da figura de

Aristóteles, até a definição de Saussure, que teria retomado a definição tradicional, “tudo aquilo

que – há pelo menos uns vinte séculos – manifestava tendência e conseguia finalmente reunir-se

sob o nome de linguagem”,120 começa a delinear-se como um tipo de escritura determinada. O

que se reflete através da definição de Saussure. Diz Derrida:

Esta determinação representativa ... não trai um pressuposto psicológico ou metafísico de Saussure .... reflete a estrutura de um certo tipo de escritura: a escritura fonética, aquela de que

115 Para mais detalhes sobre a abordagem derridiana a respeito do tipo de linguagem fonética (o único que é levado em conta pela tradição metafísica), ver A Voz e o Fenômeno. Trad. de Lucy Magalhães. RJ. Jorge Zahar Ed., 1994. 116 Aristóeles apud Derrida, in: Gramatologia, op.cit. p. 37. 117 Derrida. Idem, p. 13. 118 Idem, p. 34. 119 Saussure apud Derrida, Gramatologia, op.cit. p. 37. 120 Derrida, idem, p. 8.

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nos servimos e em cujo elemento a episteme em geral (ciência e filosofia), a lingüística em particular, puderam instaurar-se. Seria necessário, aliás, dizer modelo, mais que estrutura: não se trata de um sistema construído e funcionando perfeitamente, mas sim de um ideal dirigindo explicitamente um funcionamento que de fato nunca é totalmente fonético. 121 À escritura fonética, ainda que esta se mostre hegemônica na cultura e na ciência do

Ocidente, não responde, no entanto, “nenhuma Necessidade de essência absoluta e universal”.

Isto talvez queira dizer que a condição logocêntrica, característica do pensamento (da

metafísica) ocidental, é passível de um questionamento que leva ao rompimento com a

hegemonia dessa condição, o que não implica que venha a ser efetivamente extinguida.

E nesta perspectiva, ou melhor, na perspectiva do registro do discurso derridiano, já não

se trata mais de deslocar o registro de um discurso conceitual para um outro, alimentando e

promovendo a polissemia,122 multiplicando portanto identidades. Trata-se, antes, de por em cena

a idéia de disseminação,123 que no sentido derridiano não comporta uma definição conceitual. A

idéia de disseminação está ligada, por sua vez, ao sentido que Derrida atribui à escritura como

um indecidível. Segundo ele os indecidíveis são

( ... ) unidades de simulacro, “falsas” propriedades verbais; nominais ou semânticas, que não se deixam mais compreender na oposição filosófica (binária) e que entretanto, habitam-na, opõe-lhe resistência, desorganizam-na, mas, sem nunca constituir um terceiro termo, sem nunca dar lugar a uma solução na forma da dialética especulativa ... 124

A escritura em Derrida, um indecidível, não pode ser mais pensada, ou concebida, na

base de uma oposição binária presença/ausência, identidade/não-identidade, ou ainda, não pode

121 Idem, p. 37. 122 Sobre este problema Derrida nos diz: “A atenção dada à polissemia ou ao politematismo constitui, possivelmente, um progresso relativamente à linearidade de uma escrita ou de uma leitura monossêmica, ansiosa por se amarrar ao sentido tutelador, ao significado principal do texto, até mesmo ao seu referente primordial.” No entanto, continua Derrida, “a polissemia enquanto tal organiza-se no horizonte implícito de uma retomada unitária do sentido, até mesmo de uma dialética ... de uma dialética teleológica e totalizante que deve permitir a um momento dado, por mais distanciado que ele seja, de voltar a reunir no texto a totalidade de seu sentido, constituindo o texto em expressão, em ilustração, e anulando o deslocamento aberto e produtivo da cadeia textual”. Derrida, J. Posições, pp. 51-2. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. BH: Autêntica, 2001. 123 A distinção entre polissemia e disseminação é apresentada por Duque-Estrada nos seguintes termos: a primeira “comporta a idéia de uma saída de si - na proliferação de níveis semânticos – e de um retorno a si – em direção à plenitude da palavra integral -, numa espécie de movimento re-preenchedor da linguagem e, portanto, numa dialética regulada pelo horizonte do mesmo. Na disseminação ... o que se dissemina, cada momento da disseminação, não se encontra ... como um momento intermediário, uma variação que, ao se afastar da matriz, prepara o seu caminho de volta. A ‘lógica ‘ da disseminação ... não somente rompe com o caminho de volta, mas com a própria idéia de matriz, introduzindo a diferença no interior do mesmo”. Duque-Estrada. Derrida e a Escritura, op.cit p.14. 124 Derrida apud Duque-Estrada. Idem, p. 49.

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53 ser mais pensada a partir da auto–identidade do sujeito. “Constituindo-o e deslocando-o ao

mesmo tempo, a escritura é outra que o sujeito, em qualquer sentido em que seja entendida. Ela

não poderá jamais ser pensada sob sua categoria”.125

Isto nos remete mais uma vez para a idéia de disseminação. Como vimos em nota (nota

18), a propósito da distinção entre polissemia e disseminação apresentada por Duque-Estrada, a

idéia de disseminção em Derrida, ao romper com o caminho de volta e com a idéia de matriz,

introduz a diferença no interior do mesmo. E aqui Duque-Estrada está se referindo a um outro

texto do autor, Le monologuisme de l’autre,126 onde ele discute o problema da formação da

identidade, mais precisamente, onde ele discute o caráter paradoxal, na lógica da disseminação,

entre a formação do sentido (a formação “do ‘auto’ da auto identidade do sentido) e o

deslocamento desse ’auto’ da auto identidade do sentido. E isto quer dizer que o que se chama,

por força do hábito, identidade, se constitui enquanto tal a partir de um abalo da identidade

(“trouble de l’identité”).

Tal paradoxo, que é inseparável do sentido de escritura derridiana como um indecidível,

pode ser sintetizado

como sendo aquele da alteridade irredutível da linguagem em que se forma ou se constitui – não obstante tal alteridade - ... o “próprio” de toda identidade própria ... Neste sentido, aquilo que vem a formar uma identidade é, ao mesmo tempo, aquilo que já a desloca, já a abala, já afrouxa os laços de sua própria coesão e, deste modo, não se pode pensar aqui nem em identidade ... nem em não-identidade, mas sim em um processo contínuo de “ex-apropriação”, de “alienação sem alienação”, de uma “propriedade” (“auto”) que jamais se perde e se reapropria”, processo este que se repete “interminável, indefinidamente, fantasmático”, e que Derida chama de identificação.127 Talvez seja por este motivo que Derrida siga com reservas o questionamento aberto por

Saussure, acerca do caráter originário do significante.128 Ele vai afirmar, a propósito disso, que

além de não haver significado em si, também não há significante em si, já que esse depende de

um sistema de diferenças, ou de uma diferencialidade, para ser o que é.

125 Derrida, Gramatologia, op.cit. p. 84. 126 Derrida. Le monologuisme de l’autre. Paris. Editions Galilée, 1996. 127 Duque-Estrada. Derrida e a Escritura, op.cit pp.14-15. 128 Segundo Derrida, a semiologia do tipo saussuriana, ao mesmo tempo que tem um papel crítico decisivo quando enfatiza, contra a tradição, “que o significado e o significante são as duas faces de uma única e mesma produção”, acaba por contribuir, também “de maneira decisiva, para fazer voltar contra a tradição metafísica o conceito de signo que ele lhe havia tomado de empréstimo” . Derrida, J. Posições, op.cit. p.24.

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Com a afirmação da diferencialidade, ou trama diferencial (que possibilita toda e

qualquer estrutura de significação da linguagem), Derrida parece conseguir dar um outro

estatuto para a idéia de escritura, i.e. não mais pensado no âmbito do conceito de linguagem. E

isso porque a trama diferencial já não comporta o pensar nos termos da estrutura dual

significante/significado do conceito de signo.

Para tratar da estrutura da significação no âmbito da trama da diferencialidade, Derrida

vai lançar mão da idéia de rastro (trace). A razão do uso desse termo prende-se ao fato dele não

se deixar capturar por um discurso comprometido com a noção de essência.

Seja na ordem do discurso falado, seja na ordem do discurso escrito, nenhum elemento pode funcionar como signo sem remeter a um outro elemento, o qual ele próprio, não está simplesmente presente. Esse encadeamento faz com que cada “elemento” – fonema ou grafema 129– constitua-se a partir do rastro, que existe nele, dos outros elementos da cadeia ou do sistema.130 Em um tal encadeamento não há espaço, portanto, para se pensar em uma essência do

rastro. Rastro é “o que não se deixa resumir na simplicidade de um presente”.131 O jogo das

diferenças envolve uma cadeia de sínteses e remetimentos que impedem, em um certo

momento, que “um elemento simples esteja presente em si mesmo e remeta apenas a si mesmo”.

Assim, o que quer que se possa reconhecer como sendo o seu ‘em si mesmo’, não é mais que a

resultante de um sistema de diferenças. Como diz Derrida, ainda em Posições, a propósito da

diferencialidade, “Nada, nem nos elementos nem no sistema, está jamais, em qualquer lugar,

simplesmente presente ou simplesmente ausente. Não existe, em toda parte, a não ser diferenças

e rastros de rastros”.132

Esta diferencialidade, por não comportar um pensar nos termos de uma estrutura dual

(significante/significado), ou dicotômica, como o plano ideal e o plano empírico, não se

encontra nem no primeiro nem no segundo, uma vez que ambos “carregam um o rastro do

outro no interior de um sistema referencial em que ... um não pode ser pensado sem que o outro

já não esteja pressuposto”.133

129 Na escritura fonética, o fonema refere-se ao significante-significado, e o grafema ao puro significante. Derrida, J. Gramatologia, op.cit. 130 Idem, Posições, op.cit p.32. 131 Idem, Gramatologia, p. 81. 132 Derrida. Posições, op.cit. p.32. 133 Duque-Estrada. Derrida e a Escritura, op.cit. p.25.

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No texto A escritura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas, Derrida toca

neste ponto, seguindo o texto de Lévi-Strauss a propósito da oposição natureza-cultura.

Apesar de todos os seu rejuvenescimentos e maquilagens, esta oposição é congênita à filosofia. É mesmo mais velha que Platão. Tem pelo menos a idade da Sofística. Desde a oposição physis/nomos, physis/techné, chega até nós graças a uma cadeia histórica que opõe a “natureza” à lei, à instituição, à arte, à técnica, mas também à liberdade, ao arbitrário, à história, à sociedade, ao espírito, etc.134 Seguindo o movimento das questões propostas por Derrida, constata-se que também não

há mais espaço para se pensar uma unidade original do conteúdo de um rastro puro, de um

“querer-dizer” (ter um sentido) descolado (autônomo) das vicissitudes e/ou constrangimentos

empíricos, e que se expressaria imediatamente na voz.135

Talvez seja por isto que Derrida nos diz, em Posições, após se remeter a uma frase que

escreveu no Gramatologia – “De uma certa maneira, o ‘pensamento’ nada quer dizer”, que

“o pensamento” (aspas: as palavras “o pensamento” e aquilo que se chama “o pensamento”) ... é o vazio substantivado de uma idealidade altamente derivada, o efeito de uma différance de forças, a autonomia ilusória de um discurso ou de uma consciência cuja hipótese deve ser desconstruída, cuja “causalidade” deve ser analisada, etc. Primeiramente. Em segundo lugar a frase se lê assim: se existe o pensamento ... aquilo que se continuará chamando pensamento e que designará, por exemplo, a desconstrução do logocentrismo, nada quer dizer, não procede mais, em última instância, do “querer-dizer”. Em todo lugar em que ele opera, “o pensamento” nada quer dizer.136

Assim, o querer-dizer e a expressão de sentido, já se entretecem no sistema diferencial

de rastros que apaga o domínio da presença: do “enquanto tal” ou do “em si” e, igualmente, o

domínio das oposições binárias.

Com o termo rastro, que não é “nem um fundamento, nem uma origem”,137 Derrida busca

evitar cair na “dupla possibilidade metafísica da presença e ausência”, sendo a ausência tão 134 Derrida. A escritura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas (pp.235-236), in: A Escritura e a Diferença. Tradução de Maria Beatriz Nizza da Silva. Ed. Perspectiva, SP, 1975. 135 “A subordinação do rastro à presença plena resumida no logos, o rebaixamento da escritura abaixo de uma fala sonhando sua plenitude, tais são os gestos requeridos por uma onto-teologia determinando o sentido arqueológico e escatológico do ser como presença, como parousia, como vida sem différance.” Derrida. Gramatologia, op.cit. p. 87. No texto La voix et le phénomène, Derrida refere-se ao problema da autoridade da instância da voz no âmbito do pensamento husserliano; que é tido como uma estranha autoridade na medida em que postulado a partir de um silêncio (o “silêncio” fenomenológico), que por sua vez só poderia se reconstituir por meio de duas exclusões (ou de uma dupla redução): a da relação entre o outro e o eu, formulado na comunicação indicativa, e a da expressão como abertura posterior, superior e exterior quanto ao sentido. Cf La voix qui garde le silence (p. 78), in: La voix et le phénomène: introduction au probleme du signe dans la phenomenologie de Husserl. Paris: Presses Universitaires de France, 1993. 136 Derrida, J. Posições, op.cit. p. 56. 137 Idem, p.59.

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56 somente a modificação da presença. E nessa perspectiva, não cabe mais falar em “um jogo de

presença e ausência”, mas de um conflito ou de um jogo de rastros. “O jogo das diferenças

supõe, de fato, sínteses e remessas”138 que impedem tratar esse jogo como uma estrutura

funcionando em algum outro lugar (“fora” do jogo), impedem portanto que se pretenda realizar

um conhecimento do jogo.

Para “finalizar” esta discussão da escritura em Derrida, tomo um exemplo apresentado

por Duque-Estrada, sobre o par natureza-cultura, onde fica expresso, de modo mais tangível, a

importância da idéia de remetimento (implicado no jogo de rastros) no autor. Diz Duque-

Estrada:

É somente por comportar uma estrutura de remetimento – e, portanto, funcionar como um significante – em relação ao termo “cultura” ou “história”, etc. que o termo “natureza” pode funcionar como um significado. Isto impede que se pretenda realizar uma “teoria “ do jogo, deste jogo aqui em questão, já que o que quer que se entenda, numa tal teoria, por jogo, já se inscreve, inevitavelmente, no prévio jogo de rastros.139

3.2 Différance e alteridade

Abro este tópico introduzindo um aspecto abordado no Gramatologia, sobre a

experiência do apagamento do significante na voz. É quando nesse livro, no tópico O fim do

livro e o começo da escritura, Derrida apresenta esta experiência como a condição da idéia de

verdade no sentido heideggeriano; o que não deixa de revelar uma face ambígua da posição de

Heidegger com respeito à concepção do ser como presença (metafísica da presença) e ao

logocentrismo. Por um lado, ainda que o sentido do ser não se refira à palavra no sentido literal,

ou a um conceito, trata-se de um sentido que permanece dentro da linguagem, ou ainda, trata-se

de um sentido que permanece dentro da linguagem de palavras, e, enquanto tal, se liga “pelo

menos à possibilidade da palavra em geral”.140

Por outro lado, Derrida reconhece que através da meditação sobre a questão do sentido

do ser, que é endereçado à metafísica, Heidegger estaria também pondo sob suspeição a opinião

geralmente aceita sobre a questão do ser e sobre a questão da verdade, e com isto “abalando as

138 Idem, p. 32. 139 Duque-Estrada. Derrida e a Escritura, op.cit. p. 26. 140 Derrida. Gramatologia, op.cit. pp. 24-25.

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57 seguranças da onto-teologia”, e contribuindo, portanto, “para deslocar a unidade do sentido do

ser, isto é, em última instância, a unidade da palavra”.141

Neste ponto Derrida refere-se a um deslocamento, que teria redundado em uma ruptura

entre phoné e logos. E isso ocorre (segundo Derrida) após Heidegger evocar a ‘ voz do ser’,

onde

Heidegger lembra que ela é silenciosa, muda, insonora, sem palavra, originariamente á-fona (die Gewärh der lautlosen Stimme verborgner Quellen ...) [“A garantia da voz silenciosa das fontes ocultas”, cf. N. dos T.]. Não se ouve a voz das fontes. Ruptura entre o sentido originário do ser e a palavra, entre o sentido e a voz, entre a “voz do ser” e a phoné, entre o “apelo do ser” e o som articulado; uma tal ruptura, que ao mesmo tempo confirma uma metáfora fundamental e lança a suspeição sobre ela ao acusar a defasagem metafórica, traduz bem a ambigüidade da situação heideggeriana com respeito à metafísica da presença e ao logocentrismo.142

Cito agora o Derrida do La différance, que se abre nos termos que seguem:

Falarei, pois, de uma letra. ( ... ) Falarei, pois, da letra a, desta letra primeira que pode parecer necessário introduzir, aqui ou além, na escrita da palavra diferença.143 Je parlerai, donc, d’une lettre ( ... ) Je parlerai donc de la lettre a, de cette lettre première qu’il a pu paraître nécessaire d’introduire, ici ou là, dans l’écriture du mot différence.144 Essa intervenção, o a no lugar do e, não é puramente gráfica, mas antes a chamada para a

idéia de uma alteridade que pretende escapar do mesmo e do idêntico.

Isto porque a diferença marcada “na ‘difer( )nça’ entre o e e o a, se furta ao olhar e a

escuta” (“dans la ‘diffé( )’ entre le e et le a se dérobe au regard et à l’écoute”) – o que quer

dizer ainda: o a da diferença não pode ser exposta -, sugerindo a necessidade de se remeter à

uma instância que possa resistir à oposição fundadora da filosofia, a oposição entre o sensível e

o inteligível. Essa instância que resiste a dita oposição só pode resisti-la porque a sustenta,

141 Idem, pp. 26-27. 142 Idem, p. 27. 143 Derrida. A diferença, in: Margens da filosofia, p. 33. Trad. Joaquim Torres Costa e Antonio Magalhães. Campins: Papirus, 1972. Estamos adotando o título do texto original, La différance, ainda que as referências sejam efetuadas a partir da tradução. 144 Derrida. La différance (p. 3), in; Marge de La Philosophie. Les Editions de Minuit, 1972. O motivo que me leva a cotejar estas passagens da tradução com o texto original, é para não deixar dúvidas quanto ao propósito requerido pelo autor nesta discussão.

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anuncia-se num movimento de différance (com um a) entre duas diferenças ou entre duas letras, différance que não pertence nem à voz nem à escrita no sentido corrente e que se mantém ... entre palavra e escrita, mais além também da familiaridade tranqüila que nos liga a uma e outra e nos apazigua às vezes na ilusão de que elas são coisas diferentes.145 Permanece então como questão o a da diferença como algo que não pode se expor, ou

ainda, só pode intervir como uma marca muda: “O a da diferença não se ouve, permanece

silencioso, secreto e discreto como um túmulo: oikesis”.146 (Le a de la différence, donc, ne

s’entend pas, il demeure silencieux, secret et discret comme um tombeaux: oikesis).147

Por meio deste “discurso muito indireto”, que atravessa a ordem do entendimento,

Derrida está querendo reforçar, sobre um outro ângulo, o que constitui um dos principais

aspectos questionados por ele nos seus escritos, o pensamento do ser como presença.

Acompanhemos o argumento do autor: não se pode falar do a da diferença porque essa

letra não pode ser exposta; e não pode ser exposta porque a différance não é um ente-presente,

ou seja, ela é desprovida de existência e de essência; e não sendo (a différance) nem palavra

nem conceito não depende de qualquer categoria do ente, presente ou ausente. Posta assim, de

uma forma negativa, o autor pretende acentuar o caráter não teológico da différance.

E é exatamente porque a différance não é (ou seja, não é um ente-presente), que ela não

pode ser exposta: “só se pode expor aquilo que em certo momento pode tornar-se presente,

manifesto, um ente presente na sua verdade, verdade de um presente ou presença do

presente”.148 A différance, continua o autor, “é não apenas irredutível a toda a reapropriação

ontológica ou teológica (onto-teologia)” como “abrindo inclusivamente o espaço no qual a onto-

teologia (filosofia) produz o seu sistema e a sua história, a compreende, a inscreve e a excede sem

retorno”.149

A partir daí a différance será estrategicamente discutida como o “mais próprio a ser

pensado”. E com isso a figura de Heidegger comparece mais uma vez, e de modo contundente.

É quando Derrida refere-se implicitamente a um dos textos tratados no capítulo anterior, Os fins

145 Derrida. La différance, op.cit. p. 36 (texto original, p. 5). 146Derrida está se referindo a um dos textos de Hegel, O poço e a pirâmide, “onde o corpo do signo é comparado à Pirâmide egípcia. Dirá ainda ele: “este silêncio piramidal da diferença gráfica entre o e o a só pode funcionar no interior do sistema de escrita fonética, e no interior de uma língua ou de uma gramática historialmente associada à escrita fonética bem como a toda a cultura de que lhe é inseparável” (La différance, pp. 35-36). 147 Derrida, La différance, p. 4 (citação do texto original). 148Derrida. La différance, op.cit p.36. 149 Idem, p.37

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59 do homem, onde ele põe em cena a discussão sobre o “nós”, e sobre o lugar desse nós no texto

heideggeriano.

Parto, pois, estrategicamente, do lugar e do tempo em que “nós” estamos, ainda que a minha abertura não seja justificável e seja sempre a partir da différance e da sua “história” que nós podemos pretender saber quem “nós” somos e onde estamos e o que poderiam ser os limites de uma “época”.150 Tendo em mente esta “história” Derrida dá início a uma discussão sobre o tempo, que a

meu ver vai fornecer elementos importantes para a configuração da questão da alteridade no

autor. Nessa discussão ele procura mostrar que tempo e espaço não são “noções” distintas. A

defesa em torno dessa idéia sobre o tempo, como se verá posteriormente, fica mais evidente

quando ele introduz as figuras de Nietzsche e de Freud como pensadores que, antes de

Heidegger, teriam também colocado em questão a consciência na sua certeza segura de si. Nesse

contexto, e lançando mão do conceito freudiano de inconsciente – uma certa alteridade (ou uma

alteridade radical) – nosso autor vai encontrar um dos argumentos para reforçar a referida idéia.

Esta idéia de que tempo e espaço não seriam noções distintas está calcada, por sua vez,

na discussão sobre os dois sentidos de diferir, tal como conceitualizados classicamente, o diferir

como temporização e como espaçamento. E já a partir daí Derrida nos dá alguma pista sobre o

posicionamento que virá afirmar posteriormente. É quando ele nos diz que temporalização é

igualmente temporização, “devir-tempo” do espaço e espaçamento, “devir-espaço” do tempo151

(que a fenomenologia transcendental teria interpretado como “constituição originária” do tempo

e do espaço).

Na conceitualidade clássica, um dos sentidos de diferir é temporizar, é “recorrer,

consciente ou inconscientemente, à mediação temporal e temporalizada de um desvio que

suspende a consumação e a satisfação do ‘desejo’ ou da ‘vontade’, realizando-o de um modo

que lhe anula ou modera o efeito”. O outro sentido, diferir como espaçamento, é o mais

conhecido – não ser idêntico, ser outro, discernível, etc., sendo também nomeado como

diferendo (como polemos). Trata-se pois de diferen(te)(do)s - palavra que se pode escrever “com

um t ou com um d” - , e “quer esteja em questão a alteridade da dissemelhança” ou a alteridade

150 Idem, p.38. 151 Lembremos que o pensamento da différance, tal como já indicado no início deste capítulo, nos é apresentado como um “movimento de espaçamento, um devir-espaço” do tempo, um “devir-tempo” do espaço, uma referência à alteridade, uma heterogeneidade que não é primeiramente oposicional. Daí uma certa inscrição do mesmo, que não é o idêntico, como différance”. (Cf. p. 34, Políticas da diferença)

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60 de polêmica é “necessário que entre os elementos outros se produzam, ativamente,

dinamicamente, e com uma certa perseverança na repetição, intervalo, espaçamento”. E nesse

ponto Derrida se refere a uma perda de sentido que a palavra différance deve compensar; que

teria a ver com o fato da palavra diferença nunca ter podido se remeter para o primeiro sentido

de diferir, nem tampouco para o segundo, “para o diferendo, como polemos”. A compensação

dessa perda de sentido seria possível na medida em que a palavra différance permite “remeter

simultaneamente para toda a configuração das suas significações”. E ainda que nesse percurso

ela apresente todos os aspectos de um discurso polissêmico, ou seja, remeta imediatamente para

a dita configuração – onde a significação é “sustentada por um discurso ou por um contexto

interpretativo” – paralelamente ela remete

por si mesma, ou pelo menos mais facilmente por si mesma do que qualquer outra palavra, uma vez que o a provém imediatamente [em francês] do particípio presente, diferindo (différant), e nos reenvia para o decurso da ação do diferir antes mesmo que esta tenha produzido um efeito constituído como diferente ou como diferença (com e)”.152 ***

Isto posto, me volto para a discussão efetuada por Derrida sobre Nietzsche e Freud, onde

a partir principalmente do conceito freudiano de inconsciente, o autor vai encontrar o argumento

necessário para reforçar a idéia de que o diferir como espaçamento, e como temporização,

aparecem ajustados, ou enlaçados. E aqui o seu propósito é acentuar (a partir do que ele chama

sistema da différance) o que constitui o principal alvo de sua objeção – a de que no pensamento

heideggeriano encontra-se embutida uma reafirmação do pensamento do ser como presença. E

não é por acaso que ele vai operar novamente uma clivagem entre Heidegger, e Nietszche e

Freud.153 É quando ele afirma que antes de Heidegger, também esses autores colocaram em

questão a consciência na sua certeza segura de si.

152 Derrida. La différance, op.cit. p. 39. 153 Me refiro a um outro escrito de Derrida, onde esta clivagem aparece no contexto da discussão sobre o questionamento contemporâneo acerca do conceito de centro, que teria começado a anunciar-se e a ser formulado através destes três autores; e onde o aparecimento dessa produção (que não deixou de operar como os conceitos herdados da metafísica) é tratada no âmbito do que ele chama sistema de diferenças (ou de oposições bináridas, como presença/ausência), que busca diluir ou apagar a idéia de signo. “Se quiséssemos ... escolher alguns “nomes próprios” e evocar os autores dos discursos nos quais esta produção se manteve mais próxima da sua formulação radical, seria sem dúvida necessário citar a crítica nietzschiana da metafísica, dos conceitos de ser e de verdade, substituídos pelos conceitos de jogo, de interpretação e de signo (de signo sem verdade presente); a crítica freudiana da presença a si, isto é, da consciência, do sujeito, da identidade a si, da proximidade ou da propriedade a

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61

Sobre Nietszche e Freud dirá Derrida: não é assinalável que eles tenham posto em

questão a consciência na sua certeza segura de si, e por vezes de modo semelhante, a partir do

motivo da différance? Essa semelhança se mostra a partir de dois valores aparentemente

diferentes da différance – o diferir como espaçamento e como temporização, que na teoria

freudiana aparecem enlaçados. Ou seja, a partir da leitura freudiana ele procura estabelecer um

elo entre Nietszche e Freud. O que aparece em Nietszche como discórdia “ativa”, i.e. como

discórdia de forças diferentes e de diferenças de forças, que ele “opõe a todo o sistema da

gramática metafísica por toda a parte onde ele comanda a cultura, a filosofia e a ciência”; esse

movimento (que Derrida chama différance) também encontra-se em Freud, onde essa discórdia,

ou diaforística, “enquanto energética ou economia de forças”, “se conjuga com o

questionamento do primado da presença como consciência” – conjuntamente teoria da cifra (ou

do rastro) e energética. Para chegar a afirmar essa ligação entre rastro e economia de forças

(energética) o autor recorda que para Nietszche “a grande atividade principal é inconsciente”; a

consciência seria um efeito de forças onde a força propriamente dita nunca está presente. A

força seria tão somente um jogo de diferenças e de quantidades, onde a diferença de quantidade

tem um peso maior em relação ao seu conteúdo (a grandeza absoluta em si mesma). Essa crítica

nietszchiana da filosofia como “indiferença ativa à diferença” não implica, ou não exclui o fato

de que a filosofia “viva na e da différance”, ignorando assim “o mesmo que não é o idêntico”,

No entanto, o mesmo seria a différance “como passagem desviada e equívoca de um diferente

para outro, de um termo da oposição para o outro”. Essas questões,que remetem para o tema

nietzschiano do “eterno retorno” - onde a partir do desdobramento do mesmo como différance,

anuncia-se a mesmidade da diferença e da repetição – podem ser relacionadas a uma

característica que aponta para o “desvio ou o ardil de uma instância dissimulada da différance”. si; e, mais radicalmente, a destruição heideggeriana da metafísica, da onto-teologia, da determinação do ser como presença “. Mais adiante o autor se refere a uma certa modalidade de discussão, que passa a vigorar na contemporaneidade por conta das acentuadas diferenças que se proliferam em torno do questionamento sobre o conceito de centro; modalidade que, de uma certa perspectiva, não deixa de reproduzir o modo como os precursores dos discursos questionadores (sobre os conceitos da ontologia e da metafísica), se tratavam em suas interlocuções. “São essas diferenças que explicam a multiplicidade dos discursos destruidores e o desacordo entre aqueles que os proferem. É com os conceitos herdados da metafísica que, por exemplo, Nietzsche, Freud e Heidegger operaram. Ora, como esses conceitos não são elementos, átomos, como são tirados de uma sintaxe e de um sistema, cada empréstimo determinado faz vir a si toda a metafísica. É o que permite a esses destruidores destruírem-se reciprocamente, por exemplo, a Heidegger considerar Nietzsche, por um lado com lucidez e rigor e por outro com má fé e desconhecimento, como o último metafísico, o último “platônico”. Poderíamos entregar-nos a este exercício a propósito do próprio Heidegger, de Freud e de alguns outros. E nenhum outro exercício está hoje mais divulgado”. Derrida. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas, op.cit. pp. 232 e 234.

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62 Isso se aplicaria também a outras levantadas por Nietszche, como o da “interpretação ativa que

substitui pela decifração incessante o desvelamento da verdade como apresentação da coisa

mesma na sua presença, etc”. Rastro “sem verdade ou, pelo menos, sistema de cifras [rastros]

não-dominado pelo valor de verdade, o qual se torna desse sistema uma função simplesmente

compreendida, inscrita, circunscrita”.154

Essa diaforística (ou discórdia “ativa”), que se conjuga com o questionamento da

autoridade da consciência – questionamento que é sempre diferencial – teria igualmente

motivado o pensamento de Freud; com o adendo de que na teoria freudiana o diferir como

discernibilidade, distinção, afastamento, diastema (espaçamento), e o diferir como desvio,

demora, reserva (temporização) aparecem ajustados, ou enlaçados. Isso é discutido por Derrida

a propósito de uma certa alteridade (alteridade radical), a que Freud dá-lhe o nome metafísico de

inconsciente. Essa certa alteridade, que excede a alternativa da presença e da ausência, é radical

por relação a toda a forma possível de presença. Derrida discute esse ponto a partir da

interpretação dialética (“hegeliana”), que “enclausurada no círculo da Aufhebung”, pensa o

movimento econômico da différance como uma presença diferida que pode ser reencontrada –

um investimento que no fim das contas apenas retardaria, “provisoriamente e sem perda da

apresentação da presença a percepção do benefício ou o benefício da apresentação”. Contra

essa interpretação metafísica Derrida argumenta: o fato da apresentação, como apresentação

desviada permanecer recusada, não implica “que um certo presente permaneça escondido ou

ausente”. Isso porque a différance nos mantém em relação com “aquilo que desconhecemos

necessariamente exceder a alternativa da presença e da ausência”.155 É precisamente nesse

ponto que a alteridade do inconsciente comparece, e sob uma face que busca dar um estatuto ao

inconsciente desatrelado dos investimentos metafísicos. E isso significa admitir, em primeiro

lugar, que o inconsciente se tece de diferenças (ou seja, ele difere-se), e que também envia,

delega representantes, mandatários. No entanto, recorda Derrida, não há nenhum indício, ou

nenhuma hipótese de que o “delegante ‘exista’, seja presente, seja ‘ele-mesmo’ em qualquer

parte e menos ainda que ele se torne consciente”. E aqui já estamos falando da estrutura do

retardamento, que na teoria freudiana do inconsciente quer dizer que a alteridade “marca-se em

154 Derrida. La différance, op.cit. pp. 49-50. 155 Derrida. La différance, op.cit. p. 53.

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63 efeitos irredutíveis fora-de-tempo, de retardamento”.156 Mas o que parece ser mais importante

para Derrida nessa discussão, é o fato dele poder mostrar que a temporalização, ou

temporização, não deve ser simplesmente concebida nos termos de uma interpretação dialética

(hegeliana); ou ainda, não pode ser concebida “como uma simples complicação dialética do

presente vivo como síntese originária e incessante, constantemente reconduzida a si, reunida

sobre si, reunidora de rastros retencionais e de aberturas protencionais”. E a partir daí (no

texto derridiano) o inconsciente vem entre aspas: com a alteridade do “inconsciente” entramos

em relação com um passado que não foi nunca presente; e cujo “’por vir’ futuro não será nunca

a produção ou a reprodução na forma da presença. O conceito de rastro é pois,

incomensurável com o de retenção, de vir-a-ser-passado daquilo que foi presente”.157 O que

quer dizer que não se poderia pensar o rastro (ou a différance), “a partir do presente ou da

presença”.

3.3 Tempo e alteridade

Um passado que não foi nunca presente é também a fórmula segundo a qual Levinas

(seguindo um caminho inverso ao da psicanálise) teria qualificado o outrem,158 ou seja, teria

qualificado o “rastro e o enigma da alteridade absoluta”. E “nestes limites e pelo menos neste

ponto de vista, o pensamento da différance implica toda a crítica da ontologia clássica

empreendida por Levinas”.159

156 Idem, p. 54. 157 Idem, pp. 54-55. 158 No texto de Derrida sobre Levinas, Violence et Métaphysique, a experiência do outro, i.e. a experiência do infinito, “é irredutível, é portanto a ‘experiência por excelência’”. Derrida. Violence et Métaphysique. Essai sur la pensée d’Emanuel Levinas (p. 225), in: L’écriture et la différence. Editions du Seuil, 1967. 159 Derrida. La différance, op. cit. p. 55.

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64

Esta menção ao autor, ainda que breve, é significativa: ela procura reforçar não somente

a clivagem operada por Derrida entre Heidegger, e Nietzsche e Freud, mas sobretudo acentuar

que através de Nietzsche, Freud e Levinas, encontram-se indícios de “uma rede que reúne e

atravessa a nossa ‘época’ como delimitação da ontologia (da presença)”.160

E aqui vai entrar mais uma vez em cena o diálogo Derrida-Heidegger, posto que a

referida delimitação – que é uma delimitação em relação à “determinação do ser em presença

ou em ente(i)dade” – só pôde surgir e deixar-se compreender, a partir da problemática aberta

por Heidegger sobre o esquecimento do ser. Daí ser necessário abrir a discussão sobre a

diferença ontológica (a diferença entre ser e ente) postulada pelo pensamento heideggeriano.

Esta proposta feita por Derrida será tratada, no contexto deste tópico, em articulação

com algumas das questões levantadas no Ousia e Grammé, onde o questionamento derridiano

sobre a idéia, em Heidegger, de autenticidade, de próprio, se mostra inseparável da idéia de

ultrapassagem. Heidegger pretende ultrapassar a metafísica com o fito de alcançar um

pensamento mais próprio sobre o ser. E aqui se mostra oportuno citar uma passagem do

Tímpano, onde Derrida diz:

A filosofia atêve-se sempre a isso: pensar o seu outro: o que a limita e aquilo que ela ultrapassa na sua essência, na sua definição, na sua produção: isso não reconduz apenas a ultrapassar aquilo de que ela dimana, a não abrir a marcha do seu método senão passando o limite? Ou então o limite, obliquamente, de surpresa, reserva, ainda um golpe a mais ao saber filosófico?161 Este questionamento endereçado à filosofia em geral e, em particular, à filosofia

heideggeriana, se mostra problemático (para Derrida) não somente pelo fato de Heidegger

retomar a questão da diferença ontológica, mas principalmente por achar que através dessa

retomada ele poderia ultrapassar a metafísica; ou seja, ele poderia erigir um pensamento capaz

de ultrapassar o nosso logos, ou ainda, na terminologia derridiana, capaz de ir além do nosso

logos, ir além, portanto, “da razão como epocalidade do ser e diferença ontológica”.162

Para corroborar o que aí é dito, Derrida recorda que na maioria das vezes que Heidegger

empreende uma análise questionadora sobre determinados textos, o questionamento é

estabelecido como impossibilidade do outro modo de pensar. ”Trata-se de pensar o que não

160 Idem. 161 Derrida, Tímpano, in: Margens da Filosofia, op.cit. p.10 162 Derrida. La différance, op.cit. p.60

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65 pôde ser, nem ser pensado de outro modo”.163 Mas pensar de outro modo, dirá ainda Derrida,

não significa operar um deslocamento efetivo por relação ao modo de pensar. Pensar de um

outro modo pode implicar que o pensamento está apenas impondo um outro centro, um outro

agora.

Um outro centro seria um outro agora; este deslocamento não visaria, ao contrário, uma ausência, ou seja, uma outra presença, não recolocaria nada. Portanto, é necessário, e dizendo isto já estamos a caminho do nosso problema, talvez tenhamos mesmo nos estabelecido nele – pensar a nossa relação com (todo o passado da) história da filosofia de outro modo que não o estilo da negatividade dialética; a qual – tributária do conceito vulgar de tempo – estabelece um outro presente como negação do presente passado-repetido-superado (no original, relevé) na Aufhebung, libertando aí a sua verdade. Trata-se precisamente de uma coisa totalmente diferente: é o liame entre a verdade e a presença que deve ser pensado, num pensamento que, desde então, não tem mais que ser verdadeiro e presente, para o qual o sentido e o valor da verdade do presente são postos em questão como jamais nenhum momento intra-filosófico o pôde fazer, como não o pôde sobretudo o ceticismo e tudo o que com ele faz sistema.164 Retenho desta citação o que segue: é necessário pensar a nossa relação com todo o

passado da história da filosofia de outro modo que não o estilo da negatividade dialética. Isso é

importante porque aí Derrida está fazendo alusão ao problema do tempo, que como se sabe é o

ponto de partida das análises empreendidas por Heidegger, no Ser e tempo, para questionar a

ontologia clássica (ou ontologia vulgar). Eis então o liame que Derrida estabelece, também

como ponto de partida, para pôr em cena a questão da diferença ontológica entre ser e ente. Essa

questão que é tratada a partir de uma nota do Ser e Tempo procura inicialmente mostrar, a partir

dos argumentos de Heidegger, que a tradição metafísica ocidental, ao “suprimir” a aporia sobre

o tempo tal qual aparece no Física IV de Aristóteles, privilegiou apenas uma dimensão das

colocações aristotélicas; ou seja, privilegiou apenas uma concepção do ser, o ser como presença.

Apoiado portanto no pensamento do filósofo alemão, Derrida põe mais uma vez em cena a

problemática erigida por Heidegger sobre o esquecimento do ser.

O Ousia e Grammé se mostra decisivo, especialmente neste tópico, porque aí Derrida

consegue apresentar o que estou considerando ser um dos seus principais propósitos: delimitar a

idéia de alteridade como différance, em sua dimensão espaço-temporal, por relação a questão do

ser. A différance, uma referência à alteridade (uma heterogeneidade que não é primeiramente

oposicional), se mostraria anterior à questão do ser porque já não mais postulada como

163 Idem, Ousia e Grammé, op.cit. p.72. 164 Idem, pp. 72-73.

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66 diferença, entre ser e ente. O que em parte explica o fato do autor procurar acentuar tão

incisivamente (é o que ocorre também no La différance) o problema do enlaçamento, ou do

ajustamento, entre tempo e espaço. Mas parece que nesse percurso efetuado por Derrida (no

Ousia e Grammé), só se poderia “sair” do sistema da diferença cotejando o questionamento

sobre o tempo e a temporalidade, no pensamento heideggeiano do ser como presença, em

articulação com a discussão aristotélica sobre o tempo. Nessa discussão, o autor lança mão do

termo ama para mostrar que já em Aristóteles é possível pôr em foco o problema do

enlaçamento entre tempo e espaço. É possível, portanto, mostrar que o Estagirita teria operado

uma articulação da diferença entre o tempo e o espaço. Isso quer dizer que já no contexto da

Polis a questão da diferença entre tempo e espaço estava posta, como diferença constituída; o

que levou Aristóteles a articular essa diferença nos termos de uma certa cumplicidade –

promover a articulação (cf. Física IV) do “mesmo” e do “outro” no interior do “conjuntamente”

(ama).

Ou seja, com a introdução do termo ama, advérbio temporal-intemporal que se encontra

no Física IV – na aporia sobre o tempo –, esse autor (segundo Derrida) teria tomado uma

decisão conceitual não observado pelos seus inúmeros interlocutores. E poder-se-ia até dizer,

em certo sentido, que essa decisão o motivou a escrever o Ousia e Grammé, através do qual ele

conseguiu estabelecer um liame para conseguir afirmar (no âmbito da discussão espaço-

temporal) a idéia de alteridade como différance.

Mas para melhor entender como o autor chega a consolidar esta afirmação, é preciso

seguir o percurso efetuado por ele no referido texto, que tendo como ponto de partida a supra-

citada nota 165 do Ser e Tempo, procura questionar a delimitação heideggeriana sobre a definição

165 A nota no texto citado não é reproduzida aqui na sua íntegra. Coloquei somente as passagens em que Derrida se refere diretamente aos postulados de Heidegger e de Aristóteles. “O privilégio concedido ao agora nivelado mostra com evidência que a determinação conceitual do tempo por Hegel segue também a linha da compreensão vulgar do tempo e isso significa simultaneamente que ela segue a linha do conceito tradicional do tempo. Pode-se mostrar que o conceito hegeliano de tempo foi diretamente colhido na Física de Aristóteles. Na Lógica de Jena (Edição G. Lasson, 1963), que foi projetada na época da habilitação de Hegel, a análise que encontraremos na Enciclopédia está já elaborada em todas as suas peças fundamentais. A Seção sobre o tempo (p. 202 ss.) revela-se já ao exame mais rudimentar como uma paráfrase do trabalho do tratado aristotélico sobre o tempo. Já na Lógica de Jena, Hegel desenvolve a sua concepção do tempo no quadro da Filosofia da Natureza (p. 186) cuja primeira parte se intitula ‘Sistema Solar’ (p. 195). É em conexão com a determinação do éter e do movimento que Hegel examina o conceito de tempo. Aqui, a análise do espaço é ainda subordinada (nachgeordnet). Se bem que a dialética já transpareça, não tem ainda a forma rígida, esquemática, que terá mais tarde, tornando ainda possível uma compreensão flexível dos fenômenos. No caminho que conduz de Kant ao sistema acabado de Hegel, uma vez mais se produz uma irrupção decisiva da ontologia e da lógica aristotélica. Enquanto fato, isso é bem conhecido há muito tempo. Mas o percurso, o modo e os limites dessa influência não permaneceram até hoje menos obscuros. Uma interpretação comparativa

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67 de tempo aristotélica e, a partir daí, delimitar duas questões que Derrida considera como

problemáticos no pensamento de Heidegger: a determinação da diferença entre o ser e o ente e a

da diferença entre a presença e o presente, duas determinações que ele procura aproximar.166

Vale adiantar que esta outra face da discussão sobre o pensamento de Derrida, que de

uma forma mais incisiva procura pôr em cena a ligação exigida pelo pensamento da différance,

por relação à questão do ser, será de fundamental importância para entendermos alguns dos

argumentos levantados pelo autor no contexto do capítulo 4 - A questão do direito à justiça. E

aqui eu me refiro à indicação apresentada acima, que será desenvolvida a seguir: a de que a

diferença postulada por Heidegger entre ser e ente, entre presença e presente, reafirma a

presença (o ser) do presente (do ente). Isto quer dizer que no pensamento heideggeriano o

presente (ou o ente presente) está intimamente ligado ao ser, ou a presença do ser. E talvez seja

por conta dessa ligação entre presença e presente, ou desse presente que conta com o aval (ou

com a garantia) da presença, que o nosso autor vai questionar a idéia de uma “justiça

presente”,167 tal como atualizada no discurso do direito, que exerce o seu ofício em nome da

justiça; uma justiça que não obstante exige instalar-se no direito como força legitimada (não

violenta), como “força de lei”.

***

Com isto abrimos o debate apresentado no Ousia e Grammé, cuja escrita é movida

inicialmente por uma suspeita: que se refere ao fato de Heidegger apresentar apenas uma nota

concreta, uma interpretação filosófica da Lógica de Jena de Hegel e da Física, como da Metafísica, de Aristóteles, trará ao assunto uma nova luz. Para as considerações que precedem bastarão algumas sugestões sumárias. Aristóteles vê a essência do tempo no num, Hegel no agora (Jetzt). Aristóteles concebe o num como oros, Hegel toma o agora como limite (Grenze). Aristóteles compreende o num como stigmè, Hegel interpreta o agora como ponto. Aristóteles caracteriza o num como tode ti, Hegel chama ao agora o “isto absoluto” (das “absolute Dieses”). Seguindo a tradição, Aristóteles relaciona o Khronos com a sphaira, Hegel insiste no curso circular (Kreislauf) do tempo. A Hegel escapa seguramente a tendência, central na análise aristotélica do tempo, para descobrir uma correspondência (akolouthein) fundamental entre num, oros, stigmè, tode ti. Na tese de Hegel: o espaço ‘é’ o tempo ( ... ) Se as atuais análises do tempo nos fizeram ganhar alguma coisa de essencial para além de Aristóteles e de Kant, é na medida em que tocam principalmente a apreensão do tempo e a “consciência do tempo” ( ... ) Esta indicação sobre uma conexão direta entre o conceito hegeliano do tempo e a análise aristotélica do tempo não surge aqui para imputar uma “dependência” de Hegel, mas para chamar a atenção sobre o alcance ontológico fundamental dessa filiação para a “Lógica hegeliana”. Cf. Ser e Tempo, Parte II, op.cit. 166 A tarefa de Derrida seria então a de tentar mostrar que a problemática erigida por Heidegger sobre o esquecimento do ser – a partir da demonstração de que na ontologia clássica o que é esquecido é a diferença entre o ser e o ente – ainda encontra-se atrelada ao pensamento do ser como presença. 167 Cf. capítulo 4, tópico 4.3 Decisão, justiça e indecidível: o questionamento derridiano sobre a idéia de justiça presente

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68 sobre os traços que consignam no conceito hegeliano de tempo uma origem aristotélica; o que o

leva a analisar o referido conceito, comparativamente ao texto aristotélico, o Física IV.

No entanto, e mais uma vez, isto não quer dizer que Derrida desconsidere o

questionamento efetuado por Heidegger em relação à ontologia clássica, que teria encontrado no

problema do tempo o ponto de partida para levar adiante esse questionamento, implicando com

isto uma análise que visaria abalar o “conceito vulgar” de tempo. O autor admite que o mérito

da análise heideggeriana no tocante a essa questão, consiste em por em cena a clausura

ontológica em torno da “ ... determinação primordial do sentido do ser como presença,

determinação na qual Heidegger soube reconhecer o destino da filosofia”.168

Mas voltemos a Ousia e Grammé. Derrida começa esse escrito registrando que uma

condição da analítica do Dasein para a abertura da questão do sentido do ser exigia,

primeiramente, um questionamento sobre o conceito vulgar de tempo, exigia, portanto um

questionamento preliminar do ser (pré-compreensão do ser). Para levar a cabo essa tarefa,

assinalada no Ser e Tempo, seria, pois, não somente “necessário desembaraçar a explicitação

da temporalidade dos conceitos tradicionais que comandam a linguagem corrente e a história

da ontologia, de Aristóteles a Bergson, mas também dar conta da possibilidade dessa

conceitualidade vulgar, reconhecer-lhe um ‘direito próprio’”.169

Derrida retoma então o parágrafo 6 do Ser e Tempo (A tarefa de uma destruição da

história da ontologia), onde Heidegger anuncia que a compreensão ontológica tradicional do

tempo, que privilegia o presente, comandou, ainda que implicitamente, a determinação do

sentido do ser em toda a filosofia. Nas palavras de Heidegger, citadas por Derrida, é “a

determinação do sentido do ser como parousia ou como ousia, o que, na ordem ontológico-

temporal, quer dizer ‘presença’ (Anwesenheit). O ente é apreendido no seu ser como presença

(Anwesenheit), o que significa que é compreendido em referência a um modo determinado do

tempo, o ‘presente’ (Gegenwart)”.170

Ainda seguindo Heidegger, nestas páginas iniciais do Ousia e Grammé, Derrida recorda

que o Poema de Parmênides já é marcado por esta idéia em torno do privilégio do presente (que

por seu turno constitui a conhecida crítica de Heidegger da Vorhandenheit). Diz Derrida, a

propósito do Poema: 168 Derrida. Posições, op.cit. p. 13. 169 Heidegger apud Derrida. Ousia e Grammé, op.cit. p. 65 170 Derrida. Ousia e Grammé, op.cit. pp. 65- 66.

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o legein e o noein deviam apreender um presente sob a espécie daquilo que permanece e persiste, próximo e disponível, exposto diante do olhar ou ao alcance da mão, um presente na forma da Vorhandenheit. Essa presença apresenta-se, é apreendida no legein ou no noein segundo um processo onde a “estrutura temporal” é de “pura apresentação”, de pura permanência (reinen “Gegenwärtigens”). [E Derrida cita o próprio Heidegger]. “O ente que se mostra nela e para ela, e que é compreendido como o ente no sentido próprio (das eigentliche Seiende), recebe seguidamente a sua explicitação em referência ao presente (Gegen-wart), ou seja, é apreendido como presença (Anwesenheit) (ousia).171

Com estas citações Derrida pretende não somente introduzir a problemática

heideggeriana do sentido, do presente e da presença, mas também deixar indicado (cf. capítulo

2) desde o início a estratégia acionada por Heidegger para marcar a diferença, que se mostrará

aguçada no parágrafo 82 (segunda parte do Ser e Tempo), entre a sua ontologia e a “ontologia

clássica ou vulgar”. Essa estratégia é composta pelo que Derrida considera ser uma das marcas

da leitura heideggeriana: obscurecer o interesse da sua leitura através do “jogo” da dissimulação

Isso explicaria o fato dele registrar, logo após as citações, o que segue: com exceção do conceito

Vorhandenheit (“o ente na forma de objeto substancial e disponível”), outros conceitos a ele

solidários, como ousia, parousia, Anwesenheit, Gegenwart, gegenwärtigen, ficam dissimulados

até o final do Ser e Tempo.

Este dado leva mais uma vez a pôr em foco o que me pareceu ser uma das tarefas de

Derrida: tentar mostrar que a problemática erigida por Heidegger sobre o esquecimento do ser

ainda encontra-se atrelada ao pensamento do ser como presença. E é precisamente a partir desse

ponto que ele coloca explicitamente o que efetivamente o teria motivado a escrever o Ousia e

Grammé. Esse é motivado por dois propósitos que permitiriam ao autor “ir além” de algumas

colocações postuladas por Heidegger.

Os dois propósitos se mostram em certa medida ligados: para “ir além” (primeiro

propósito) seria preciso inicialmente fazer uma leitura da “questão heideggeriana sobre a

presença como determinação ontológica do sentido do ser”. Essa leitura, por sua vez, seria uma

condição para precisar melhor o que é transgredir a metafísica do ponto de vista do

entendimento de Heidegger; e que segundo Derrida consistiria em “desdobrar uma questão

retroativa sobre esse estranho limite” que se esconde “no momento mesmo da sua

apresentação”.172 Isto poderia explicar o fato do privilégio do presente – tratado então como a

171 Idem, pp. 66-67. 172 Derrida. Ousia e Grammé, op.cit. pp. 67-68.

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70 “própria evidência” – nunca ter sido posto em questão até Husserl, ou melhor, de Parmênides

até Husserl. Até aí,

nenhum pensamento parece possível fora do seu elemento. A não-presença é sempre pensada na forma da presença (bastaria dizer na forma apenas) ou como modalização da presença. O passado e o futuro são sempre determinados como presentes passados ou presentes futuros.173 No entanto, dirá ainda Derrida (segundo propósito), é por intermédio de uma passagem

dissimulada – “que faz comunicar o problema da presença e o problema do rastro escrito”

(problemática derridiana) -, “simultaneamente escondida e necessária”, que os dois problemas

“abrem um para o outro”.174 Isso quer dizer que o problema da presença e o do rastro escrito,

que se insinua na problemática heideggeriana, só poderá operar um deslocamento dos limites do

pensamento incluindo o que antes tinha se estabelecido como passagem escondida, dissimulada.

É o que parece e, todavia, subtrai-se nos textos de Aristóteles e de Hegel. Incitando-os a reler estes textos, Heidegger separa do seu tema alguns conceitos que nos parecem exigirem de ora em diante a insistência. A referência ao grama (grammé) conduz simultaneamente a um centro e a uma margem do texto de Aristóteles sobre o tempo (Física IV). 175 No texto La différance Derrida procura afirmar - pautado na diferença postulada por

Heidegger entre ser e ente - que haveria uma diferença anterior à diferença ontológica requerida

pelo filósofo alemão. Afirmação que teria sido possibilitada pelo acolhimento do rastro da

diferença escondida, ou dissimulada, na diferença ontológica.

A différance de uma certa e muito estranha maneira (é) mais velha do que a diferença ontológica ou do que a verdade do ser. É a essa idade que se pode chamar jogo do rastro. De um rastro que não pertence mais ao horizonte do ser, mas cujo jogo suporta e contorna o sentido do ser: jogo do rastro ou différance que não tem sentido nem é. Que não pertence. Nenhum suporte, mas também nenhuma profundidade para esse jogo de xadrez sem fundo onde ser é posto em jogo.176 Para melhor compreender esta idéia de rastro, que permite estabelecer um contato com o

texto derridiano e o texto heideggeriano, é preciso pôr em cena outros elementos que dão feição

a essa idéia; sem o qual não será possível ter a “medida” do que para Derrida significa exceder a

metafísica.

173 Idem, pp. 68-69. 174 Idem, p. 68 175 Idem, p. 69. 176 Derrida. La différance, op.cit. p. 56.

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71

Vimos anteriormente que um dos questionamentos de Derrida endereçados à filosofia

heideggeriana, não incide simplesmente sobre a retomada da questão da diferença ontológica

por parte de Heidegger, ou seja, pelo que ela traz como pressuposto: a de que se poderia

ultrapassar a metafísica, i.e. se poderia “ir além” do nosso logos.

Vimos ainda que a abertura para este questionamento é fornecida pelo próprio

Heidegger, onde a efetuação da análise crítica sobre determinados textos é estabelecida (na

maioria das vezes) como impossibilidade do outro modo de pensar.“Trata-se de pensar o que

não pôde ser, nem ser pensado de outro modo”. No entanto, pensar de outro modo, não significa

operar um deslocamento efetivo por relação ao outro modo de pensar. O deslocamento efetivo

supõe um movimento que não pode estar pautado pela recolocação de um outro centro, posto

que continuaria alimentando o prolongamento de um jogo que no fim das contas não recolocaria

nada. “Um outro centro seria um outro agora; este deslocamento não visaria, ao contrário,

uma ausência, ou seja, uma outra presença; não recolocaria nada”.177 Esse posicionamento

obedece doravante os seguintes passos: para precisar a leitura dos textos de Heidegger,

apresentada na última parte do Ousia e Grammé, é preciso reconstituir e/ou fazer uma re-leitura

da aporia aristotélica sobre o tempo, que a metafísica suprimiu. A leitura é realizada tendo

igualmente em conta as colocações de Hegel sobre o seu conceito de tempo. A tarefa proposta

por Derrida consiste então em fazer uma re-leitura sobre a nota do Ser e Tempo. O que explica o

sub-título do Ousia e Grammé. Nota sobre uma nota do Ser e Tempo.

As discussões efetuadas na minuciosa nota apresentada por Derrida – incluindo-se o

conceito hegeliano de tempo - estão apoiadas primordialmente no Física IV de Aristóteles. O

interesse de Derrida é restabelecer um contato, ou estabelecer uma articulação acerca do que se

pode aferir do “conceito de vulgaridade” expresso através da máxima “conceito vulgar do

tempo”, com o ponto de partida anunciado por Aristóteles (Física IV, 217 b), onde a aporia

apresenta-se sob a forma de uma argumentação exotérica: de um questionamento sobre se o

tempo faz ou não parte dos onta (ou seja, se o tempo faz parte dos entes ou dos não-entes). Um

questionamento que leva o Estagirita a perguntar posteriormente o que é o tempo e qual a sua

physis.178 Na primeira fase da aporia o que se apresenta como hipótese é que o tempo é definido

como agora (num), e o agora como elemento ou parte (forma) elementar do tempo. No entanto,

177 Derrida. Ousia e Grammé, op.cit. pp. 72-73. 178 Derrida. Ousia e Grammé, op.cit. pp. 74 e 82.

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72 e em um certo sentido, o num não é. O agora é afetado “como se ele próprio já não fosse

temporal, por um tempo que o nega, ao determiná-lo como agora passado ou agora futuro”. O

num só seria temporal “deixando de ser, passando à não-ente(i)dade na forma do ente passado

ou do ente futuro. Mesmo ao ser considerado como não-ente ...”179 Sintetizando a hipótese

defendida nessa primeira fase da aporia pode-se dizer o seguinte: o tempo é pensado em sua

divisibilidade, ou seja, como partes, como agoras e, no entanto, “nenhuma das suas partes,

nenhum agora é no presente”. Como se verá posteriormente, a segunda fase da aporia opõe a

hipótese da primeira fase: “o agora não é uma parte, o tempo não é composto de num [de

agoras]”. É quando Derrida vai procurar mostrar porque essa aporia, que segundo ele provocou

uma paralização nos discursos metafísicos, teria contribuído para que esses discursos se

omitissem, ou se calassem, acerca das colocações aristotélicas sobre o tempo.

Mas antes disto ele vai pôr sob suspeição uma afirmação que aparece na nota do Ser e

Tempo: a de que Hegel teria parafraseado Física IV (218 a), precisamente a primeira fase da

aporia aristotélica. Para tanto Derrida cita a definição hegeliana (que aparece na Enciclopédia,

parágrafo 258) considerada por Heidegger como paráfrase de Aristóteles.

O tempo como unidade negativa do ser-fora-de si é de fato um abstrato, um ideal. – Ele é o ser que, enquanto é, não é, e que, enquanto não é, é: o devir intuído (das angeschaute Werden), ou seja as diferenças simplesmente momentâneas suprimindo-se e retendo-se imediatamente (unmittelbar sisch aufhebenden Unterschiede) são determinadas como exteriores, isto é, como exteriores a elas mesmas.180 Como indica o autor, esta definição traz conseqüências diretas no texto de Hegel. Ele

cita três conseqüências: a primeira inicia-se com a afirmação de que o conceito kantiano de

tempo é reproduzido por Hegel. Ao incluir na sua definição a idéia de “devir intuído” nele

mesmo, Hegel teria reproduzido o puro sensível kantiano, conceito cuja descoberta possibilitou

o acontecimento da chamada revolução copernicana. A descoberta desse sensível insensível

teria reproduzido, no entanto, a paráfrase de Aristóteles.181 E ainda que Heidegger, ao fazer

alusão ao sensível insensível não mencione uma possível relação do conceito hegeliano de

tempo com o seu equivalente kantiano, Derrida assevera que Heidegger não ignorava o fato de

que “Hegel teria, em muitos aspectos, encoberto e apagado a audácia kantiana”. O que faz 179 Idem, pp.74-75. 180 Idem, p. 79. 181 Puro sensível, sensível insensível, sensível-não sensível quer dizer: sem nenhum conteúdo exterior/sem nenhum conteúdo empírico.

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73 Derrida fechar essa primeira conseqüência com a seguinte interrogação: “Não se pode pensar

aqui, contra Heidegger, que Kant está no fio reto que, segundo Heidegger, conduz de

Aristóteles a Hegel ?”

Na segunda conseqüência apresentada pelo autor, sublinho um aspecto que a última

parte do Ousia e Grammé irá questionar com todo o vigor. Refiro-me à passagem destacada por

ele (o parágrafo 82 do Ser e Tempo) onde Heidegger, a fim de delimitar a sua diferença com

relação a ontologia clássica ou vulgar, atribui a Hegel a proposição de uma “queda do espírito

no tempo”. No contexto desta segunda conseqüência, a idéia de tempo como devir, que em

algumas “formulações metafóricas ... dizem a ‘queda’ no tempo”, são recusadas por Hegel,

podendo ser atestadas (segundo Derrida) em sua crítica da intratemporalidade. E uma tal crítica

seria não somente “análoga a que desenvolve Sein und Zeit” mas deveria “compor-se, como em

Sein und Zeit, como uma temática da queda e da perda, do Verfallen”.

A terceira conseqüência incide sobre a questão da determinação do tempo em Hegel;

determinação que permite pensar o presente (forma do tempo) como eternidade, que no sistema

hegeliano recebe predicados como a Idéia, o Espírito, o Verdadeiro, e outros. Tais predicados

não podem ser pensados atemporalmente nem temporalmente. Ou seja, a eternidade como

presença não pode ser pensada nem no tempo nem fora do tempo. E desde que a presença é “a

temporalidade no tempo ou o tempo na atemporalidade” torna-se impossível pensar “qualquer

coisa como uma temporalidade originária”. A eternidade é a presença do presente, presença

essa que Hegel distinguia do presente como agora; distinção que seria análoga (mas não

semelhante) da distinção que Heidegger propõe sobre a distinção entre o finito e o infinito; ou

seja, “como diferença entre o agora (Jetzt) e o presente (Gegenwart)”.182

Em seguida Derrida introduz o problema da paralização da metafísica diante da aporia

do discurso exotérico; paralização que teria contribuído para que a metafísica se omitisse, ou se

calasse, acerca das colocações aristotélicas sobre o tempo.

A metafísica acreditou “poder pensar o tempo a partir de um ente já silenciosamente

pré-determinado na sua relação com o tempo”. Ser e Tempo põe em cena uma tal omissão, e o

comprometimento da metafísica com esse pensamento sobre o tempo, graças a repetição da

“questão do ser no horizonte transcendental do tempo”. Essa omissão é posta em cena por

Heidegger (de acordo com Derrida), como uma questão eludida: “A questão era eludida porque 182 Derrida. Ousia e Grammé, op.cit. pp. 80-81. Cf. também nota 13.

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74 posta em termos da pertença ao ente e ao não-ente, estando já o ente determinado como ente-

presente”. Esse eludido é recolocado já na primeira parte do Ser e Tempo, onde o tempo

será, então, aquilo a partir do qual se anuncia o ser do ente e não aquilo cuja possibilidade tentaremos derivar a partir de um ente já constituído (e, em segredo, temporalmente pré-determinado), um ente presente (do indicativo em Vorhandenheit), em substância ou em objeto.183 Derrida cita também Kant como exemplo de pensamento que teria ficado paralisado na

aporia do Física IV, ainda que tenha se beneficiado do texto de Aristóteles na efetuação da sua

ruptura (ruptura kantiana): aquela que “reconhece o tempo como condição de possibilidade do

aparecer dos entes na experiência (finita), ou seja, com aquilo que, de Kant, será repetido por

Heidegger”.

O argumento de Derrida é que a ruptura kantiana estava preparada por Física IV,

principalmente quanto a elaboração do conceito do sensível não-sensível. Isso pode ser

demonstrado em especial quando Aristóteles interroga-se sobre a physis do tempo, ou seja,

sobre o problema da mudança e do movimento, e o que do movimento é tempo. É por recurso

ao conceito de aisthesis, que tempo e movimento encontrarão o seu ponto de união. Cita

Aristóteles: “É conjuntamente [ama] que temos a sensação do movimento e do tempo”.184

Ao antecipar, portanto, o “conceito do sensível não-sensível, Aristóteles instala as

premissas de um pensamento do tempo que já não seria simplesmente dominado pelo presente

(do ente dado sobre a forma da Vorhandenheit e da Gegenwärtigkeit)”. Nesse sentido então, a

originalidade da ruptura kantiana, tal como repetida por Heidegger em seu texto Kant e o

problema da metafísica, só transgride o conceito vulgar de tempo, explicitando uma indicação

do Física IV.185

No entanto, pergunta Derrida, em que sentido a pré-determinação/pré-compreensão a

partir do agora elude a questão? Recorrendo ao Física IV (continua o autor), vê-se que

Aristóteles nada mais faz do que repetir a aporia de Zenão – ainda que reconhecendo que uma

tal aporia não contribuiria para esclarecer o problema. A aporia de Zenão observa que o tempo

183 Derrida, Ousia e Grammé, op.cit., p. 83. 184 Idem, p. 84. Para tornar mais clara esta citação Derrida explica o argumento que leva Aristóteles a fazer a aludida afirmação. “Quando estamos na sombra e não somos afetados por qualquer corpo ... se um movimento se produz na alma ... parece que um certo tempo passou e, no mesmo lance, conjuntamente (ama), parece ter passado um certo movimento”. 185 Derrida. Ousia e Grammé, op.cit., pp. 85-86.

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75 nada é, entre os entes, porque é tempo, ou seja, agora passado ou agora futuro; o ou seja

pressupondo que se “tenha alguma antecipação do que é o tempo”: o não-presente sob a forma

do agora passado ou a vir. Isso significa que foi necessário recorrer a “uma pré-compreensão do

tempo ... para dizer a não-ente(i)dade como não-presente e o ente como presente. Determinou-

se temporalmente o ente como ente-presente para poder determinar o tempo como não-presente

e não-ente.186

Disso resulta, como dirá mais adiante Derrida, que o nada do tempo só será acessível a

partir do ser do tempo. O pensamento do tempo como nada implica necessariamente pensar o

tempo em suas duas modalidades, o passado e o futuro. “O ente é o não-tempo, o tempo é o não-

ente na medida em que se determinou já secretamente o ente como presente, a ente(i)dade

(ousia) como presença”. E na medida em que o ente se apresenta como sinônimo de presente,

dizer o nada ou o tempo é dizer presente.187

De acordo com a leitura derridiana do Física IV, isto significa que antes de Aristóteles se

deparar com as análises do número, do número como numerante ou do número como numerado,

o par conceitual tempo-movimento será pensado “a partir da ousia como presença. A ousia

como energeia por oposição à dynamis (movimento, potência) é presença”. Será ainda pensado

como tendo um sentido: “O sentido do tempo é pensado a partir do presente, como não-tempo”.

Note-se que através desta intervenção Derrida põe mais uma vez em cena uma dimensão

das colocações aristotélicas acerca da sua definição do tempo, o ser como presença; definição

que agora é posta no âmbito da discussão sobre a questão do sentido

O conceito de sentido (como essência, como significação do discurso, etc.) pertence à

história da metafísica; e só pôde ser pensado nessa história a partir da presença e como

presença. Por este motivo a questão do sentido, cada vez que ela se põe, já está enclausurada na

metafísica; não sendo, portanto possível daí arrancá-la, nem tampouco do “sistema de conceitos

ditos ‘vulgares’”. Isto se aplicaria também à questão do ser e a questão do tempo, em

Heidegger. Quanto a questão do ser, ela

seria determinada, como o é na abertura de Sein und Zeit, em questão do sentido do ser ... É já enquanto questão do sentido que ela está ligada, no seu ponto de partida, e Heidegger sem dúvida que o reconheceria, ao discurso (léxico e gramática) da metafísica cuja desconstrução ela enceta.

186 Idem, p. 86. 187 Idem, p. 87.

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Quanto à questão do tempo, ou melhor, quanto ao sentido do tempo, a determinação da

presença é determinante e determinada: “ela nos diz o que é o tempo (não-ente(i)dade como

não-já ou como não-ainda)”, mas só o pode fazer por meio de “um conceito implícito das

relações entre o tempo e o ser”, ou seja, a de que o tempo é um ente, um presente. “Daqui se

segue que é, ou seja, sendo-presente”. Por conseguinte, é porque “o tempo é pensado no seu ser

a partir do presente que ele é estranhamente pensado como não-ente (ou ente impuro,

composto)”. É portanto porque se acredita saber “o que é o tempo, na sua physis”; é ainda

porque se “respondeu implicitamente à questão que só será posta mais tarde”, que se pode

chegar a concluir, na aporia exotérica, a sua não-existência, a sua fraqueza; ou ainda, que se

pode pensar o passado e o futuro “como afecções enfraquecedoras que sobrevêm a essa

presença que sabemos ser o sentido ou a essência do que é (o ente)”.188

Mas o que é o tempo, na sua physis? Ou seja: o que do movimento é tempo? Derrida

retoma com isto a pergunta feita por Aristóteles, após tratar das aporias relativas às propriedades

que respeitam ao tempo.

O ponto curioso assinalado inicialmente por Derrida é que a postura de Aristóteles, no

tratamento da questão da physis do tempo, que “começa por chamar a atenção que a tradição

nunca respondeu a uma tal questão”, será repetido até Hegel e Heidegger. Isto posto, ele vai

desenvolver a aporia segundo a sua perspectiva, ou seja, “nos seus próprios termos”, ou ainda,

“nos conceitos dos quais Heidegger reconstitui a configuração (nun, oros) – ou peras, - stigmè,

sphaira, aos quais se deveria acrescentar olon, todo, meros, parte, e grammè”.189

A partir daqui poderemos efetivamente acentuar a importância da decisão conceitual

tomada por Aristóteles – na aporia sobre o tempo – no texto de Derrida que ora tratamos. Estou

falando da segunda fase da aporia, onde através da locução ama, o autor poderá demonstrar o

que de fato constitui a aporia em aporia.

Assim, se a primeira fase da aporia afirmava que o tempo era composto de agoras (nun),

ou seja, de partes (meros), a segunda fase vai contestar essa afirmação, disso resultando um

acordo problemático para a efetuação da unidade e da identidade do agora (o agora não é uma

parte, o tempo não é composto de agoras). Derrida cita o Física IV, 218 a.

188 Derrida. Ousia e Grammé, op.cit. p. 88. 189 Idem, p. 90.

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Se, com efeito, o agora é sempre outro, como nenhuma parte não é, no tempo, ao mesmo tempo (ama) que uma outra ..., com o agora não-sendo, tendo sido porém anteriormente, foi necessariamente destruído num dado momento, os agoras não são ao mesmo tempo (ama) uns com os outros e o que foi anteriormente foi necessariamente destruído.190 Diante disto será preciso reordenar, por meio dos conceitos de número e de grama “a

mesma conceitualidade no mesmo sistema”; reordenação que se fará de uma forma dialética –

no sentido aristotélico e também hegeliano. E de uma certa maneira, a dialética vai repetir a

aporia exotérica. Os termos (contraditórios) estabelecidos na aporética – definição do tempo

como “dialética dos contrários e solução das contradições que aparecem em termos de espaço”

– serão retomados e afirmados por Hegel com vistas a uma definição da physis do tempo: “o

tempo é a linha, solução da contradição do ponto (espacialidade não-espacial)”, ainda que o

tempo não seja a linha, etc.191

A representação do tempo através do grama - representação do movimento sob a forma

matemática - é inicialmente recusada por Aristóteles, ainda que a sua argumentação faça apelo à

não-coexistência das partes do tempo. Nessa representação o agora apresenta-se ora como o

mesmo, ora como o não-mesmo, o que implicaria inscrever uma linearidade no espaço.

Mas desde que a não-coexistência, uma vez constituída, “se experimenta como

impossibilidade do impossível” (se contradiz), seu estabelecimento como tal (como não-

coexistência) só poderá ocorrer a partir de uma coexistência específica; ou seja, a partir “de uma

certa simultaneidade do não-simultâneo, na qual a alteridade e a identidade do agora são

conjuntamente [ama] mantidas no elemento diferenciado de um certo mesmo”.192

A locução ama, que aparece apenas cinco vezes no Física IV, 218 a, fornecerá ao texto

de Aristóteles uma gravidade imprevista, além de testemunhar a decisão conceitual do seu

discurso em favor da articulação (ou enlaçamento) da “diferença entre o tempo e o espaço ...

como diferença constituída”; e isto é feito numa “cumplicidade do mesmo e do outro no interior

do com ou do conjuntamente, do simul no qual o ser-conjuntamente não é uma determinação do

ser, mas a sua produção mesma”.193

190 Aristóteles apud Derrida. Ousia e Grammé, op.cit. p. 90. 191 Derrida. Idem, p. 90. 192 Derrida. Ousia e Grammé, op.cit., p. 91. 193 Idem, p. 93.

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Para sustentar estes argumentos Derrida desmembra a primeira hipótese da aporia

aristotélica em três hipóteses, e isto com o fito de mostrar o que de fato parece constituir a

aporia em aporia, i.e. o que a partir das hipóteses tornam “impensável a ousia do tempo”.

Reconstituo o desmembramento proposto por Derrida. Se na hipótese “original” o tempo

não faz parte da ousia pura enquanto tal, é porque o tempo é constituído de partes, ou seja, de

vários agoras, que no entanto não pode (1) “seguir-se destruindo-se imediatamente um ao outro,

porque nesse caso não haveria tempo”. Não pode igualmente (2) “seguir-se destruindo-se de

maneira não imediatamente consecutiva, porque nesse caso os agoras intervalares seriam

simultâneos e, igualmente, não haveria tempo”. Por último (3) não pode “permanecer (no)

mesmo agora, porque nesse caso as coisas que se produzem há dez mil anos de intervalos

seriam conjuntamente, ao mesmo tempo, o que é absurdo”. Ou seja, é exatamente esse absurdo,

que vem à tona através da evidência do ao “mesmo tempo”, que constitui a aporia em aporia.

Essas hipóteses que tornam impensável a ousia do tempo, só poderiam portanto “ser pensadas e

ditas segundo o advérbio temporal-intemporal ama”.194

Assim, ainda que essa reflexão identifique o tempo com o grama, como representante do

movimento sob a forma de uma representação matemática, ela não deixa de excluir a linha

matemática quando a distingue do grama em geral. Pois,

se ser ao mesmo tempo (to ama einai) segundo o tempo e não ser nem anterior nem posterior, é ser no mesmo, no agora, se as coisas anteriores e as coisas posteriores são neste agora, o que se produzira a milhares de anos seria ao mesmo tempo (ama)que aquilo que se produz hoje e nada mais seria posterior ou anterior a nada (218 a).195 Com isto entramos na discussão de Derrida sobre o problema do grama e do número,

que abordarei a partir de alguns aspectos destacados por ele acerca da delimitação proposta

por Heidegger sobre a definição de tempo em Aristóteles.

Derrida não discorda que Física IV confirma a delimitação heideggeriana: o tempo em

Aristóteles é pensado “a partir da ousia como parousia, a partir do agora, do ponto, etc.” No

entanto, é possível fazer uma leitura que contraria essa limitação; e ao se fazer isso é possível

tornar “manifesto que a delimitação é ainda governada pelos mesmos conceitos da limitação”.

Esse movimento foi anunciado diversas vezes no Ousia e Grammé, ainda que o que aqui foi

194 Idem, p. 93. 195 Aristóteles apud Derrida. Idem, p. 94.

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apresentado não tenha destacado todos os passos do referido movimento. Reconstituo a

demonstração apresentada por Derrida.

Se, por um lado, o agora, como limite, requer limites em termos da matematização do

tempo, por outro, e ainda como limite, ele também serve para medir, numerar. O que a

primeira afirmação quer dizer é que como número numerado do movimento, o tempo não é

necessariamente de natureza aritmética. “Como o ponto em relação à linha, o agora, se o

considerarmos como limite (peras), é acidental em relação ao tempo. Ele não é o tempo, mas

o seu acidente (220 a)”. “O agora (Gegenwart), o presente, não define pois a essência do

tempo. O tempo não é pensado a partir do agora”.196 (Derrida continua). E é enquanto a

matematização

requer limites, agoras iguais a pontos, e os limites são sempre acidentais e potencialidades, que o tempo não pode ser perfeitamente matematizado, que a sua matematização tem limites e permanece, em vista da sua essência, acidental. O agora é acidente do tempo enquanto limite.197 Por outro lado, e paradoxalmente, se o tempo for submetido ao matemático, ele perde a

qualidade própria da sua natureza, ser um ser matemático. O tempo é tão estranho “ao número

numerante, como os cavalos e os homens são diferentes dos números que os contam e diferentes

entre si”. É somente como limite que o agora serve para medir, para numerar. Enquanto numera

o agora é número, ainda que o “número não pertença à coisa numerada”. Pois, “se há dez

cavalos, a dezena não é eqüídea, ela está alhures (allothi)”. Da mesma maneira, “o agora não

pertence à essência do tempo, está alhures ... fora do tempo, estranho ao tempo. Mas estranho

como seu acidente”198

Na delimitação heideggeriana esta estranheza é pensada como acidente, virtualidade,

potência, etc., categorias constitutivas do sistema de oposições que configuram a metafísica no

seu nascedouro, ou na sua fundação.

O agora é (1) “uma parte constitutiva do tempo e número estranho ao tempo”; (2) “parte

constitutiva do tempo e parte acidental do tempo”. No sistema das oposições o agora é

controlado pelo par conceitual ato-potência, essência-acidente, e pelas demais oposições

solidárias a essas diferenças. A pluralidade das significações – todo o sistema dos “enquanto” -

que se pode tomar acerca do agora, será reunida pois na diferença entre a potência e o ato. 196 Derrida. Ousia e Grammé, op.cit. p. 98 197 Idem, pp. 98-99. 198 Idem, p. 99.

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80 Derrida cita Aristóteles, Física I: “as mesmas coisas podem ser ditas segundo a potência e o

ato” (191 b). Citando Física III, vê-se que o que organiza a pluralidade das significações (ou

ainda, organiza a distribuição das significações), é a “enteléquia do que está em potência,

enquanto tal” (201 ab).

Derrida considera ainda que esta definição do movimento, ato da potência enquanto

potência, por se mostrar ambígua traz consigo, com relação ao tempo, duas conseqüências; que

por sua vez levariam a uma compreensão do movimento e do tempo “como presença em ato”,

ainda que eles não sejam “nem entes (presentes) nem não-entes (ausentes)”.199 Vejamos o que

Derrida nos diz sobre esta dupla conseqüência.

Por um lado, o tempo, como número do movimento, está do lado do não-ser, da matéria, da potência, do inacabamento. O ser em ato, a energia, não é o tempo, mas a presença eterna [Cita Aristóteles] “É portanto evidente que os seres eternos, enquanto eternos, não são no tempo”, Física IV,. 221 b. Mas, por outro lado, o tempo não é o não-ser, e os não seres não são no tempo. Para ser no tempo, é necessário ter começado a ser e a tender, como toda a potência, para o ato e para a forma “É portanto evidente que o não-ser jamais será no tempo”, 221 b.200 O que é aí colocado confirma então a indicação assinalada por Derrida: a de que o

movimento e o tempo (em Aristóteles) não são nem presentes nem ausentes. E o fato de tais

categorias serem compreendidas a partir do ser como presença em ato demonstra que são

submetidas e subtraídas “tanto à delimitação da metafísica como pensamento do presente

quanto a sua simples inversão”.

E é levando em consideração esse jogo da submissão e da subtração, que os textos da

história da metafísica devem ser lidos. O que implica que também devem ser lidos na abertura

do rompimento heideggeriano, mas sem deixar de observar que é preciso ir além de “certas

proposições ou conclusões nas quais esse rompimento teve de se deter, tomar recuo ou apoio”.

Tal é o caso, por exemplo, da leitura de Aristóteles e de Hegel na época do Ser e Tempo; que

por sua vez deve orientar a totalidade da leitura do texto heideggeriano, e com isto “permitir, em

particular, pôr a questão de inscrição nesse conjunto da época de Sein und Zeit”.

Tendo em conta essa regra formal Derrida sugere três pontos de discussão: no primeiro,

repito mais uma vez, ele vai questionar a proposição de Heidegger sobre o conceito vulgar de

tempo, acrescentando que o conceito de tempo pertence antes à metafísica, dominada pelo

199 Derrida. Ousia e Grammé, op.cit. p.100. 200 Idem, p. 99.

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81 pensamento da presença. Nesse sentido, todo o sistema de conceitos da história da metafísica –

as determinações em cadeia da Anwesenheit – “desenvolve a dita ‘vulgaridade’ deste conceito”,

não podendo, portanto, lhe opor um outro, visto que também o “tempo em geral pertence a

conceitualidade metafísica”. É neste sentido ainda que o abalo da ontologia clássica realizada

por Heidegger, apesar de extraordinário, permanece encerrado no âmbito da “gramática e do

léxico da metafísica”.

No segundo ponto Derrida problematiza o que constitui o fechamento do Ser e Tempo.

Diz ele: “não é fechando, é interrompendo Sein und Zeit que Heidegger se pergunta se a

‘temporalidade originária’ conduz ao sentido do ser”.201 Isso significa que teria havido, após

Ser e Tempo, um certo deslocamento, uma mudança de horizonte quanto ao tema do tempo, e de

outros que dele dependem, principalmente o tema do Dasein, o tema da finitude e o tema da

historicidade. Após Ser e Tempo, pois, estes temas “não constituirão mais o horizonte

transcendental da questão do ser mas serão, de passagem, reconstituídos a partir da

epocalidade do ser”.202

O ponto problemático consiste, a partir daí, em delimitar a delimitação operada por

Heidegger quanto aos movimentos de diferenciação da presença, tal qual são produzidos nos

seus textos. O que já ocorria tanto no Ser e Tempo, como em outro trabalho de Heidegger, Kant

e o problema da metafísica, onde (segundo Derrida) a leitura dos textos heideggerianos da

metafísica não permite distinguir, rigorosamente, em que perspectiva Heidegger estaria

pensando a metafísica, ou melhor, em que sentido ele estaria pensando a determinação do

sentido do ser (inaugurada então pelos gregos como presença, Anwesenheit). A indicação de

Derrida é a de que Heidegger apela, simultaneamente, ora para uma determinação mais estrita

da presença, a “presença no sentido temporal da permanência”. i.e. como Gegenwärtigkeit

(determinação fundamental da ousia), ora ele apela para uma menos estrita, a presença como

Anwesenheit, a presença em geral.

A hipótese de Derrida é que, após Ser e Tempo, a Gegenwärtigkeit em Heidegger se

mostrará cada vez mais como um retraimento da presença em geral, “o que, em A fala de

201 Derrida. Ousia e Grammé, op.cit. pp. 101-102. Para efeito de uma melhor clareza, cito o aludido por Derrida através da edição brasileira do Ser e Tempo, onde Heidegger então se pergunta: “Haverá um caminho que conduza do tempo originário para o sentido do ser? Será que o próprio tempo se revela como o horizonte do ser?” (Ser e tempo, parágrafo 82, p. 252, op.cit). 202 Derrida. Ousia e Grammé, pp. 101-102.

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82 Anaximandro, permitirá evocar um ungegenwärtig Anwesende”. [presente (Anwesende) não-

presente (ungegenwärtig)].203

O último ponto de discussão é “o mais difícil, o mais inaudito, o mais questionante ...

deixa-se apenas esboçar, anuncia-se em certas fissuras calculadas do texto metafísico”.

Ou seja, Derrida está se referindo à problemática sobre as determinações da diferença no

âmbito da metafísica. E aqui ele inclui tanto a determinação entre Anwesen (presença) –

Anwesenden (presente), como a determinação heideggeriana da diferença entre o ser e o ente.

O autor vai recorrer então, mais uma vez, a uma passagem de A fala de Anaximandro,

onde Heidegger diz: “O esquecimento do ser é o esquecimento da diferença entre o ser e o

ente”. Segundo a leitura de Derrida, o que esta fala quer dizer é que o esquecimento dessa

diferença “na determinação do ser em presença e da presença em presente” se dissimulou de tal

maneira, “a ponto de lhe não restar sequer o rastro. O rastro da diferença apagou-se”. A

essência da presença, sendo tomada como o próprio presente, apaga a diferença entre a presença

e o presente. O que é esquecido é a diferença (quem se revela é o diferenciado), que se apaga

sem deixar rastro.204

Reconstituo o argumento lançando mão, simultaneamente, do Ousia e Grammé, e do

texto La différance, onde Derrida nos diz que ao encontrar um ponto de contato entre o seu texto

e o texto heideggeriano, pôde pinçar o rastro inscrito nas análises efetuadas por Heidegger: “não

em direção a uma outra presença ou em direção a uma outra forma de presença, mas em

direção a um texto totalmente outro”. Isso porque “semelhante rastro não pode ser pensado

more metaphysico. Nenhum filosofema está preparado para o controlar. Ele é isso mesmo que

deve furtar-se ao controle. Só a presença se controla”.205

Com esta perspectiva em mente Derrida propõe desenvolver uma questão levantada por

Heidegger, sobre o que seria a presença do presente, i.e. a essência do presente. Essa questão

aparece na demonstração heideggeriana sobre o esquecimento do ser operado pela ontologia

clássica, que ao esquecer a diferença entre o ser e o ente, estaria esquecendo a diferença entre a

presença e o presente.

203 É por este motivo que não se poderia pensar os movimentos de diferenciação da presença, que se produzem nos escritos de Heidegger, a partir da palavra latina Prasenz. Esta conota principalmente, como lembra Derrida, “um outro retraimento sob a espécie da subjetividade e da representação”. 204 Vale observar que se em Heidegger o esquecimento do ser faz parte da estrutura do ser, em Derrida, o apagamento da estrutura do rastro faz parte da estrutura do rastro. 205 Derrida. Ousia e Grammé, op.cit. p. 103.

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Desde a aurora, parece que a presença e o ente-presente sejam, cada um do seu lado, separadamente algo. Imperceptivelmente, a presença vem a ser ela mesma um presente ... A essência da presença (Das wesen des Anwesens) e, deste modo, a diferença entre a presença e o presente é esquecida. O esquecimento do ser é o esquecimento da diferença entre o ser e o ente.206 Posteriormente Derrida recorta mais uma passagem de A fala de Anaximandro, em que

fica expressamente indicado que com este esquecimento, ou apagamento da diferença, o rastro

teria se dissipado. Nesse movimento o que se revela é o diferenciado, ou seja, o presente e a

presença, ainda que essa revelação não seja percebida enquanto diferenciado.

O esquecimento do ser faz parte da própria essência do ser, por ele velada. O esquecimento pertence tão essencialmente ao destino do ser que esse destino começa precisamente como desvelamento do presente na sua presença. Isso quer dizer: a História do ser começa pelo esquecimento do ser naquilo em que o ser recolhe a sua essência, a diferença com o ente. A diferença não comparece. Mantém-se esquecida. Só o diferenciado – o presente e a presença (das Anwesende und das Anwesen) – se revela, mas não enquanto difrenciado. Pelo contrário, o rastro matinal (die fruhe Spur) da diferença apaga-se desde o momento em que a presença surge como um ente-presente (das Anwesen wie ein Anwesendes erscheint) e encontra a sua proveniência num (ente-) presente supremo (in einem hochsten Anwesenden).207 Tendo isto em conta Derrida vai dizer que este apagamento deve ser sulcado no texto

metafísico, onde o autor poderá recuperar o rastro inscrito. Essa recuperação vai ocorrer nos

moldes que informa a escrita derridiana: a de que o apagamento da estrutura do rastro faz parte

da estrutura do rastro. Será, portanto, a partir dessa estrutura que se poderá recuperar o rastro

inscrito. Recorto uma passagem do texto do autor que corrobora o que estou dizendo.

O apagamento do rastro precoce (die Frühe Spur) da diferença é portanto “o mesmo” que o seu sulcamento no texto metafísco. Este deve ter guardado a marca daquilo que perdeu ou reservou; pôs de lado. O paradoxo de uma tal estrutura é, na linguagem da metafísica, esta inversão do conceito metafísico que produz o efeito seguinte: o presente torna-se signo do signo, rastro do rastro. Ele não é mais aquilo para que em última instância reenvia todo reenvio. Torna-se uma função numa estrutura de reenvio generalizado. É rastro e rastro do apagamento do rastro.208 É por isto, dirá ainda Derrida, que o texto heideggeriano não se mostra contraditório, ou

não se apresenta enquanto tal, quando pensa conjuntamente o “apagamento absoluto do ‘rastro

matinal’ da diferença e o que a mantém, como rastro, abrigada e olhada na presença”.209

206 Heidegger (A fala de Anaximandro) apud Derrida, in: La différance, op.cit. p. 57. 207 Idem, in: Ousia e Grammé, p. 104. 208 Derrida. La différance, op.cit. p. 58; 209 Idem. Ousia e Grammé, op.cit. p. 104.

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No texto La différance isto é colocado nos seguintes termos: “Depois de ter dito o

apagamento do rastro matinal, Heidegger pode portanto, na contradição sem contradição,

subscrever a cunhagem do rastro”.210 Dando seguimento a esse argumento o autor lança mão,

nos dois textos que ora tratamos, de uma passagem do texto heideggeriano que viria corroborar

a referida indicação

A diferença entre o ser e o ente não pode, todavia, vir em seguida à experiência como um olvidado a não ser que ela esteja já descoberta com a presença do presente (mit dem Anwesen des Anwesenden) e cunhada deste modo num rastro (so eine Spur gepragt hat) que permanece guardado (gewart bleibt) na língua à qual advém o ser.211 Daí ser necessário reconhecer que os nomes que damos às “determinações de semelhante

rastro ... pertencem enquanto tais ao texto metafísico que abriga o rastro e não o próprio

rastro”. Isto porque não há uma essência do rastro. De igual modo é necessário reconhecer que

“as determinações que nomeiam a diferença são sempre de ordem metafísica”. Tal seria o caso

não somente da determinação entre a presença e o presente, mas também da determinação da

diferença, proposta por Heidegger, entre o ser e o ente.

Lembremos que esta outra face da discussão de Derrida com o pensamento

heideggeriano, procura pôr em foco a idéia de ligação implicada na différance. Daí o esforço de

recuperação do rastro inscrito (i.e. não informado pela oposição presença-ausência) nos textos

do filósofo alemão, com vistas a afirmação de uma “diferença” – a différance - anterior à

questão do ser,212 no caso em questão, anterior à diferença entre ser e ente.

Este tratamento da différance (“rastro do rastro”) em sua dimensão espaço-temporal, não

por acaso contou com o apoio do polêmico debate levantado por Aristóteles no livro Física IV.

Isso porque, a partir daí, Derrida pôde situar de uma outra maneira o que no tópico 3.1

(Escritura e rastro) foi anunciado como uma das faces da différance – a escritura como um

210 Idem. La différance, p. 59. 211 Heidegger apud Derrida: La différance (p. 59), Ousia e Grammé (p. 104). 212 É por este motivo que Derrida, após lançar esta idéia – a de que o rastro seria anterior à questão do ser, vai dizer o que segue: “Aquilo que, portanto, Heidegger quer marcar, é o seguinte: a diferença entre o ser e o ente, o olvidado da metafísica desapareceu sem deixar rastro. O próprio rastro da diferença se dissipou. Se admitirmos que a différance (é) (ela mesma) diversa da ausência, se ela é rastro, seria necessário falar aqui, tratando-se do esquecimento da diferença (entre o ser e o ente), de uma desaparição do rastro do rastro.” La différance, op.cit pp. 57-58.

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85 indecidível,213 ou seja, como algo que permite pensar a alteridade como uma heterogeneidade

que não é primeiramente oposicional. “Daí uma certa inscrição do mesmo, que não é o idêntico,

com différance” (Políticas da diferença, p. 33).214

Isto quer dizer que a différance como um indecidível, diferencialidade (primeira) que

tem como suporte a idéia de ligação entre tempo e espaço, alude a um “entre”, ou melhor, apela

no próprio âmbito dessa ligação, dada pela différance como um movimento de espaçamento –

como “devir-tempo” do espaço, “devir-espaço” do tempo – para o estabelecimento de uma

coexistência específica. E que na concepção derridiana de escritura quer dizer: suportar,

contornar e acolher ao mesmo tempo, a heterogeneidade, ou as oposições, como por exemplo, a

oposição presença-ausência, sujeito-objeto, etc. O que quer dizer ainda que, ao mesmo tempo

que essa diferencialidade primeira suporta, contorna e acolhe tudo o que se recebe na

linguagem, ela também deixa entrever tudo aquilo que se exclui por meio da linguagem.

Um outro aspecto desta problemática sobre a possibilidade da justiça será tratada a seguir, a

partir da linguagem do direito, e que ganha uma certa gravidade na medida em que Derrida terá

que se defrontar, de um modo mais tangível, com a autoridade do conceito de sujeito tal como

atualizada por essa linguagem, que nas modernas sociedades ocidentais é geralmente associada

à idéia de justiça – uma justiça que exige instalar-se no direito como “força de lei”.

4 A questão do direito à justiça

Este capítulo vai procurar mostrar, à luz dos questionamentos apresentados nos capítulo

anteriores, por que a justiça derridiana, anunciada no final do capítulo 2 como um indecidível

(como um incalculável), está intrinsicamente ligada à discussão que vigora no âmbito do

cálculo, ou do calculável, e portanto, intrinsicamente ligada à linguagem atualizada no direito.

Ou ainda, este capítulo vai procurar mostrar que ao se debruçar sobre a questão da justiça no 213 Como vimos no referido tópico, um dos aspectos da escritura como um indecidível liga-se à disseminação, um movimento que ao introduzir a diferença no interior do mesmo, rompe com o círculo (do discurso polissêmico) que alimenta e promove a multiplicação de identidades. 214 Derrida. Políticas da diferença, op.cit. p. 33.

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86 direito, Derrida vai se deparar com um problema: a de como fazer justiça à singularidade do

outro no âmbito da legalidade.

Esta outra face da discussão implementada pelo autor sobre a justiça, ou sobre a

possibilidade da justiça, traz incluída algumas sugestões: uma delas, lançada no contexto da

década de 1960 – e registrada nas Políticas da diferença – aponta para a idéia da necessidade de

“uma ética geral da vigilância ... a respeito de todos os sinais que, aqui ou lá, na linguagem, na

publicidade, na vida política, no ensino, na escrita dos textos, etc. podem encorajar por

exemplo a violência falocêntrica, etnocêntrica ou racista”.215

A outra sugestão, lançada no texto Do direito à justiça, no final da década de 1990,

recorre à idéia de responsabilidade sem limite para acentuar a nossa responsabilidade diante do

conceito de responsabilidade, que “regula a justiça e a justeza de nossos comportamentos, de

nossas decisões teóricas, práticas, ético-políticas.”216

Neste texto, que apresenta com especial clareza a dinâmica do jogo da linguagem,

Derrida também recorre (como procedimento usual) à experiência da aporia (experiência da

suspeita), o que vai permitir ao autor pôr em foco a pretensão do direito exercer-se em nome da

justiça (ou em nome do ideal de se fazer justiça no tratamento das leis), uma justiça que “exige

instalar-se num direito que deve exercer-se (constituído e aplicado) pela força ‘enforced’”.217 E talvez

essa exigência tenha a ver com o fato do direito se mostrar, nas modernas sociedades ocidentais, como a

personificação privilegiada do conceito de sujeito, como “o lugar próprio, um lugar privilegiado em

todo caso, da emergência e da autoridade do sujeito, do conceito de sujeito”.218

A discussão desenvolvida no referido texto – que ao lado do Prenome de Benjamin

(como indicado em nota no capítulo 2) constitui o Força de Lei – é informada por esta

problemática, e que em termos mais amplos se liga ao questionamento sobre o pensamento do

presente (do ser como presença) (cf. capítulos 2 e 3), que comparece para pôr em cheque, por

exemplo, a “presunção” requerida pelo direito com relação a “certeza determinante de uma

justiça presente”.219

Esta discussão que se atualiza no registro de um discurso bastante específico, tem como

“guia” a différance que, nesse registro, atua como elemento desestabilizador (mas não somente)

215 Derrida. Políticas da diferença, op.cit p. 42. 216 Idem. Do direito à justiça, op.cit. pp. 33-34. 217 Idem, p. 37. 218 Derrida. Imprevisível liberdade, op.cit. p. 65 219 Idem.. Do direito à justiça, op.cit. p. 40.

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87 da oposição entre physis e nomos que, como se sabe, tem a ver com a questão da justiça; uma

questão que ocupou o pensamento dos filósofos na antiga Grécia, como o de Platão e o de

Aristóteles. No que tange ao Estagirita, por exemplo, a referida relação repercute diretamente na

sua concepção de justiça.220

No âmbito das discussões atualizadas no campo do direito, esta relação se desdobrou

como uma oposição, formalizada a partir do século XIX, entre direito natural (jusnaturalismo) e

direito positivo (positivismo jurídico);221 que aparece como um dos eixos acionados por Derrida

220 Para entendermos a concepção aristotélica de justiça, e as relações entre natureza e justiça, que ocupa o livro V da Ética a Nicômaco e boa parte da Política, é preciso não esquecer que aí também, como procedimento usual, Aristóteles procura encontrar um meio termo entre aqueles que reduziam a lei à mera expressão da natureza, e aqueles que faziam dela simples convenção. As relações entre lei e natureza, repercute na concepção de justiça. As primeiras análises (Ética a Nicômaco) revelam um duplo sentido para a justiça. No primeiro é a síntese das virtudes e, nesse caso, o justo pode ser tomado como sinônimo de virtuoso. No segundo, que só se revela pelo avesso, graças ao exame daquilo que os homens entendem por injustiça, vai corresponder à visão tradicional que estabelece: dar a cada um o que lhe é devido. Nesse caso, a justiça confirma-se como um “bem alheio” que implicará sempre na relação e inter-relação dos homens, e aproxima-se do conceito de legalidade Essa legalidade por sua vez, apresenta na Política um âmbito muito mais abrangente que a lei convencional – o nomos, pois Aristóteles vai referir-se a uma “legalidade” fundada nos costumes, nas tradições e que, por ser de tal modo integrada à vida da comunidade, dispensa a formalização da convenção – essa lei não escrita, mas que comanda com um poder muito maior a vida dos homens, constitui o ethos de um povo. A lei não é uma simples derivação da natureza. Ao mesmo tempo, não pode contrariá-la. Se a natureza nos revela uma tendência de todas as coisas a realizar-se em plenitude, essa tendência deve traduzir-se em atos concretos, em modos de vida, em formas de relação que permitam a essa tendência natural encontrar seu curso. E é esse o papel da lei, que traduz para o plano das ações dos homens essa tendência da natureza. E é na elaboração destas leis que se exige a prudência. Mesmo conhecendo teoricamente o que é a natureza e para onde ela tende espontaneamente, a distância permanece entre a teoria e a ação, pois trata-se de identificar entre as muitas ações possíveis aquela que nos permite atingir o fim visado. A lei, por mais “justa” e sábia será sempre insuficiente, se não se sustentar sobre a virtude do indivíduo. E neste ponto, uma justiça para além da justiça é requerida. Aristóteles refere-se então ao conceito de epikéia, traduzido na modernidade por eqüidade. O conceito de epikéia remete-nos ao conceito de uma lei natural que, em Aristóteles encontra sua coerência a partir de sua definição de homem como “animal político” – i.e. a cidade, sistema de governo em que a lei prevalece sobre o arbítrio do governante se explica e se justifica “naturalmente”, e responde a tendência para a plena realização das potencialidades humanas. A justiça ocupa o centro desta articulação juntamente com a prudência. Pois se a justiça do ponto de vista da ética aparece como o coroamento de todas as virtudes morais e como sua síntese, do ponto de vista da política – como “bem alheio”, sustenta a cidade enquanto fim em vista do qual ela existe. Só é concebível a partir da relação de troca e interdependência dos membros da comunidade. A justiça exige portanto uma articulação entre o natural e o convencional. A lei é convencional, uma vez que as leis “naturais” são universais e imutáveis. A justiça enquanto legalidade é fruto da convenção que regula o sistema de trocas e mantém o equilíbrio entre os interesses em conflito. Enquanto virtude articula-se à physis uma vez que é concebida como a excelência da natureza. Cf. Bettencourt de Faria, Maria do Carmo e Abreu, Ana Cristina. A eqüidade é uma divindade silenciosa que não pode ser ouvida – Kant, Metafísica dos Costumes. Comunicação apresentada no Congresso Kant, PUC-BH, 2004. 221O jusnaturalismo (segundo Perelman) defende a tese de que o homem encontraria seja na própria natureza, seja numa razão universal e objetiva, seja na crença numa divindade, o fundamento da lei e os critérios de julgamento. Do outro lado, encontramos as posições defendidas notadamente por Kelsen e os positivistas sobre a impossibilidade de se fundar o direito naquilo que consideram pressupostos metafísicos e que pretendem ater-se às

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88 – principalmente por conta do texto Prenome de Benjamin - para levar a cabo o seu

questionamento sobre os fundamentos do direito, da moral e da política.

Talvez não seja por acaso que em uma passagem Do direito à justiça, Derrida, ao tentar

delimitar a concepção de justiça, e a concepção de justiça no direito, mostre em certo momento

a encruzilhada em que se encontra para estabelecer tal delimitação. Diz ele:

Tudo seria ainda simples se esta distinção entre justiça e direito fosse uma verdadeira distinção, uma oposição cujo funcionamento permanecesse logicamente regulado e dominável. Mas acontece que o direito pretende exercer-se em nome da justiça e que a justiça exige instalar-se num direito que deve exercer-se (constituído e aplicado) pela força “enforced”. A desconstrução encontra-se e desloca-se sempre entre os dois.222

Com estes dados iniciais se pode entrever que boa parte da discussão apresentada no

referido texto é permeada pelo propósito de desmontar esta pretensão do direito: exercer-se em

nome da justiça, ou de uma concepção de justiça, que não obstante exige instalar-se num direito

que deve exercer-se pela força.

Uma tal justiça, que não é o direito, é o próprio movimento da desconstrução a operar no direito e na história do direito, na história política e na história tout court, antes mesmo de se apresentar como o discurso que assim se intitula na academia ou na cultura de nosso tempo – o “desconstrucionismo”.223 Neste questionamento trata-se de desestabilizar, complicar (ou deslocar) a oposição entre

nomos e physis, convenção (lei, instituição) e natureza, e a cadeia de oposições que essa

oposição vem condicionando, por exemplo, a oposição entre direito positivo (positivismo

jurídico) e direito natural (jusnaturalismo). Cito uma passagem onde ele indica o motivo pelo

questões positivas da operacionalidade da lei e do direito encarado como sistema de normas. E enquanto para jusnaturalistas o laço que une ética e direito é indissociável, apresentando ambos o mesmo fundamento, - a natureza, Deus ou razão, que estariam acima da lei positiva - (cf. Perelman, Chaim. Ética e Direito, SP, Martins Fontes, 1999), os positivistas negam qualquer articulação entre os dois planos: “O problema do Direito, na condição de problema científico, é um problema de técnica social, não um problema de moral. A afirmação: ‘Certa ordem social tem o caráter de Direito’, é uma ordem jurídica, não implica o julgamento moral de qualificar essa ordem como boa ou justa. Existem certas ordens jurídicas que, a partir de um certo ponto de vista, são injustas. O Direito, considerado como distinto da Justiça, é o Direito Positivo. E é o conceito de Direito Positivo que está em questão aqui; e uma ciência do Direito Positivo deve ser claramente distinguida de uma filosofia da justiça”. Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 8, Martins Fontes, SP, 2000. 222 Esta passagem introduz os três exemplos de aporias para tratar o problema exposto: (1) “a epokhé da regra”, (2) “a asombração [hantise] do indecidível” e (3) “a urgência que barra o horizonte do saber”. Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 37. 223 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 42.

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89 qual um tal questionamento – sobre o direito e sobre a justiça – pode ser tido como um

questionamento sobre os fundamentos do direito, da moral, da política.

Um questionamento desconstrutivo que começa ... por desestabilizar, ou complicar a oposição entre nomos e physis, entre thesis e physis – quer dizer, a oposição entre a lei, a convenção, a instituição, por um lado, e a natureza, por outro, com todas as [oposições] que elas condicionam, por exemplo, e não é senão um exemplo, a do direito positivo e do direito natural, différance é o deslocamento desta lógica oposicional ... um questionamento desconstrutivo que começa ... por desestabilizar, complicar ou lembrar aos seus paradoxos valores como os do próprio e da propriedade em todos os seus registros, o de sujeito, e portanto do sujeito responsável, do sujeito do direito e do sujeito da moral, da pessoa jurídica ou moral, um tal questionamento desconstrutivo é, de parte a parte, um questionamento sobre o direito e sobre a justiça. Um questionamento sobre os fundamentos do direito, da moral e da política.224 Para ampliar este debate sobre o direito, e sobre a justiça, ou sobre a sua relação,

apresento duas leituras sobre o ensaio de Walter Benjamin, Zur Kritik der Gewalt 225, a de

Jacques Derrida - através do Prenome de Benjamin - e a de Giorgio Agamben, que no seu

Estado de Exceção226 problematiza o sintagma “força de lei” a partir principalmente da

reconstituição do debate entre o jurista alemão Carl Schmitt e Walter Benjamin;227 e que vai

224 Idem, p. 16. 225 Zur Kritik der Gewalt pertence em 1921 “à grande vaga antiparlamentar e anti-Aufklärung” que floresceu na Alemanha nos anos 20 e no começo dos anos 30. Ele valeu a Benjamin uma carta de felicitações do jurista conservador católico Carl Schmitt, que Benjamin admirou e com o qual manteve uma correspondência; na época era “ainda constitucionalista, mas se conhece a estranha conversão ao hitlerismo em 1933 e a estranha correspondência que manterá com Benjamin, Leo Strauss e com Heidegger, entre outros”. Cf. Derrida. Prenome de Benjamin, op.cit. p. 56. 226 Agamben, Giorgio. Estado de Exceção, Trad. De Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004 (Estado de sítio). 227 Lembremos que Derrida não deixa de fazer alusão à estranha correspondência que Schmitt manterá com Benjamin e com Heidegger, entre outros; e que na introdução do Prenome de Benjamin aparece embutida na discussão sobre duas questões acerca dos contextos nos quais o autor começou a “ler este ensaio”. O primeiro foi por ocasião da relação de um longo seminário (três anos) sobre “nacionalidade e nacionalismos filosóficos”, onde por um ano tentou-se responder à pergunta: “Was ist deutsch?”, a partir de um sub-título: “Kant, o Judeu, o Alemão”. Do que foi discutido no referido colóquio Derrida destaca que uma analogia ali levantada – “entre os discursos de certos ‘grandes’ pensadores alemães não-judeus e de certos ‘grandes’ pensadores judeus alemães” – não dava conta da teia de afinidades que ligavam alguns pensamentos na época; ao contrário, se mostravam minimizados em função da interferência de “um certo patriotismo, muitas vezes um nacionalismo, por vezes mesmo um militarismo alemão”. É nesse contexto, continua o autor, “que certas afinidades, limitadas, mas determináveis, entre este texto de Benjamin e certos textos de Carl Schmitt, e até mesmo de Heidegger, me pareceram dever ser seriamente interrogados”. Das razões apresentadas muito pontualmente para a efetuação de tais interrogações, registro a que no texto pareceu apresentar uma certa relevância, “a temática da ‘destruição’, muito em voga na altura”. O que leva Derrida a interrogar-se sobre os laços que unem essa temática, com a “Destruktion heideggeriana”; que embora “não se confunda com o conceito da ‘Destruição’, que esteve também no centro do pensamento benjaminiano, pode perguntar-se o que significa, o que prepara ou antecipa entre as duas guerras, uma temática tão obsediante, tanto mais que em todos os casos, uma tal destruição quer também ser a condição de uma tradição e de uma memória autêntica”. É por esse motivo que no outro contexto, por ocasião do colóquio

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90 contribuir para melhor compreender um dos aspectos da discussão de Derrida acerca da relação

entre direito e justiça: a discussão sobre as implicações da interpretação sobre o termo

aplicabilidade, ou sobre a sua aplicabilidade como força de lei, que vai levar o autor a

questionar a separação segundo a qual a referida relação está assentada – a separação entre a

violência como força legitimada (força considerada justa porquanto pautada na lei) e como força

não legitimada, onde nesse caso a violência é sempre tida como injusta.

4.1 Derrida e Agamben: duas leituras sobre A crítica da violência (Zur

Kritik der Gewalt) de Walter Bejamin.

Começo pelo Prenome, que se abre enfatizando um aspecto curioso sobre o ensaio de

Benjamin: este seria pautado pelo tema da aniquilação, e em primeiro lugar pela aniquilação do

direito (com vistas à inauguração de uma “filosofia do direito”)228. Este texto inquieto, diz

Derrida, é marcado pela “aniquilação do direito, senão mesmo da justiça: e dentre esses

direitos, pelos direitos dos homens, pelo menos tais como eles podem ser interpretados numa

tradição jusnaturalista de tipo grego ou de tipo Aufklärung”.229

Uma das principais questões levantadas por Benjamin neste ensaio concerne então,

diretamente, a um conceito de tipo jusnaturalista (de tradição grega) que omitiu, ou excluiu a

crítica da violência graças ao uso da distinção meio-fim (ou da atualização desse recurso).

Ou seja, uma das principais questões que o ensaio benjaminiano levanta diz respeito ao

problema da exclusão do julgamento da violência ela mesma, que o sistema judiciário interdita

ao tomar como critério de julgamento apenas a aplicação da violência. O que quer dizer ainda:

“Desconstruction and the possibility of justice” (cf. Do direito à justiça), Derrida imprime um outro estilo, ou um outro ritmo, à leitura do texto Zur Kritik der Gewalt. Derrida. Prenome de Benjamin, op.cit. pp. 53-55. 228 Na sua crítica da violência Benjamin lança mão de algumas distinções que poderão inclusive servir de subsídios para inaugurar a sua “filosofia do direito”. Derrida cita três distinções fundamentais: (1) “a violência fundadora, a que institui e posiciona o direito” e a “violência conservadora, a que mantém, confirma, assegura a permanência e a aplicabilidade do direito”; (2) a violência “mítica” (grega), que corresponderia a “violência fundadora do direito” e a violência divina (judaica), ou “violência destrutiva”; e (3) a “distinção entre a justiça como princípio de toda e qualquer posição divina de fins” e “o poder como princípio de toda e qualquer posição mítica do direito”. 229 Derrida. Prenome de Benjamin, op.cit p. 49.

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91 no âmbito do direito e da justiça, ainda pautado na tradicional distinção meio-fim, o conceito de

violência ficava circunscrito a uma crítica avaliadora. E seria exatamente contra essa distinção

tradicional, de acordo com Derrida, que incide a crítica de Benjamin.

O conceito de violência pertence à ordem simbólica do direito, da moral – de todas as formas de autoridade ou de autorização, ou pelo menos, de pretensão à autoridade. E só nesta medida um tal conceito pode dar lugar a uma crítica. Até aqui esta crítica inscreveu-se sempre no espaço da distinção entre meio e fim. Ora, objeta Benjamin, perguntar se a violência pode ser um meio em vista de fins (justos ou injustos) é interditar-se a julgar a violência ela mesma.230

Daí ser necessário colocar como questão, o problema da exclusão da avaliação e da

justificação não inscrita na distinção meio e fim, “seja ela um simples meio, seja ela qual for o

seu fim”. O que vai permitir, por sua vez, que se veja o “círculo de proposições dogmáticas” em

que estão encerrados tanto o jusnaturalismo como o positivismo jurídico. Esse último, apesar de

se mostrar mais atento “ao devir histórico do direito”, 231 também permanece “aquém do

questionamento crítico reclamado por Benjamin”.232

Para o jusnaturalismo, ou direito natural, os fins naturais são justos e, neste sentido, o

recurso a meios violentos é “tão natural quanto o ‘direito’ do homem mover seu corpo em

direção ao objetivo a alcançar”. Diante dessa perspectiva (que segundo Benjamin forneceu, por

exemplo, ao terror a base ideológica da Revolução Francesa), a violência seria um produto

natural (Naturprodukt). Além do exemplo da Revolução Francesa, que exprime a naturalização

da violência pelo direito natural, ele fornece outros, como a do Estado tal como enunciado por

Spinoza no Tratado teológico-político, onde “o cidadão, antes do contrato formado pela razão,

exerce de jure uma violência que dispõe de fato”.233

A esta tese do direito natural, se opõe a tese do direito positivo, que apesar de não

considerar todos os meios como bons, partilha com a tradição jusnaturalista da proposição de

que “é possível atingir fins justos através de meios justos”. Derrida cita então Benjamin:

230 Idem, p. 59. 231 Como avalia Derrida, embora Benjamin se mostre refratário em se posicionar favoravelmente com relação as duas tradições, ele “guarda da tradição do direito positivo o sentido da historicidade do direito”. E não é menos verdade que o que ele diz da “justiça divina não é sempre incompatível com o fundo teológico de todos os jusnaturalismos”. Prenome de Benjamin, pp. 60-61. 232 Idem, p. 60. 233 Derrida. Prenome de Benjamin, op.cit. pp. 59-60.

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O direito natural esforça-se por ‘justificar’ (‘rechttfertigen’) os meios através da justiça dos fins (durche die Gerechtigkeit der Zwecke); o direito positivo esforça-se por ‘garantir’ (‘garantieren’) a justiça (Berechtigung) dos fins através da legitimação (Gerechtigkeit) dos meios.234

Passemos agora a um outro aspecto (levantado por Derrida) da crítica benjaminiana da

violência: a questão da monopolização da violência como um interesse constitutivo do direito;

uma questão que traz em seu bojo a “alternativa” para a tomada de decisão, ou os meios para a

tomada de decisão – e aqui se trata de uma decisão individual – entre a violência legal e a ilegal.

Isto porque, consoante com o direito europeu, este tende a interditar e a condenar a

violência individual na medida mesma em que tal violência põe em cheque ou ameaça a ordem

jurídica. Esse interesse do direito “em posicionar-se e conservar-se a si mesmo” ou em

“representar o interesse que justamente ele representa” é constitutivo do próprio direito, que

também pode ser dito de outro modo: “excluir as violências que ameaçam a sua ordem”. E é em

vista do interesse em manter e/ou garantir a sua ordem que o direito monopoliza a violência,

mas (como observa Derrida) no outro sentido que a palavra Gewalt apresenta, i.e. a violência

como autoridade, como força de lei, apresentada através de uma frase de Benjamin que

sintetizaria esse outro sentido: a de que existe um “interesse do direito na monopolização da

violência”,235 monopólio que buscaria proteger o próprio direito, e não “os fins justos e legais

(Rechtszwecke)”. O que para Derrida tem o ar de uma certa tautologia. No entanto (continua

ele),

não será a tautologia a estrutura fenomenal de uma certa violência do direito que se posiciona ele mesmo, decretando ser violento, desta feita no sentido de fora-da-lei, tudo quanto não o reconhece? Tautologia performativa ou síntese a priori, que estrutura toda e qualquer fundação da lei a partir da qual performativamente se produzem as convenções ... que garantem a validade do performativo graças ao qual, desde então, nos damos os meios para decidir entre a violência legal e a violência ilegal.236 Isto explicaria (prossegue o autor) um exemplo dado por Benjamin sobre a figura do

“grande” criminoso, e do fascínio que uma tal figura exerce sobre o “povo”, enquanto “alguém

que, desafiando a lei, põe a nu a violência da própria ordem jurídica”.237

234 Benjamin apud Derrida. Idem, p. 60. 235 Derrida. Idem, p. 61. 236 Derrida. Prenome de Benjamin, op.cit.p. 61. 237 Idem, pp. 61-62.

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Esta questão é resgatada por Derrida, a propósito do que é problematizado no ensaio

benjaminiano sobre a relação entre direito de greve e violência. E trata-se de uma questão

importante porque aí o autor vai poder mostrar que o que na atualidade constitui uma das

maiores ameaças para o Estado – para o direito na sua maior força – é a violência fundadora (a

que institui e posiciona o direito). Daí ele procurar mostrar, apoiado na fala de Benjamin - a de

que existe um interesse do direito na monopolização da violência -, que a “violência não é

exterior à ordem do direito”. Para chegar a isto Derrida comenta a posição do autor sobre o

direito de greve.

Na luta de classes, nota Benjamin, o direito de greve é garantido aos trabalhadores que são portanto, ao lado do Estado, o único sujeito de direito (Rechtssubject) a ver garantido um direito à violência (Recht auf Gewalt) e, portanto, a partilhar o monopólio do Estado a tal respeito. Alguns puderam considerar que não se poderia falar aqui de violência, uma vez que o exercício da greve ... este “nada fazer” (Nicht-Handeln), não constitui uma ação. Assim se justifica a outorga deste direito pelo poder do Estado (Staatsgewalt) quando este não pode fazer de outra maneira. A violência viria do empregador, e a greve consistiria somente numa abstenção, num distanciamento não violento pelo qual o trabalhador, suspendendo as suas relações com o patronato e as suas máquinas, se tornaria para estes simplesmente estrangeira.238

Este argumento da não-violência da greve, como nota ainda Derrida, não é partilhado

por Benjamin, e isso a partir da interpretação de que em tal situação os grevistas são portadores

de direitos (como por exemplo, a imposição de condições para a retomada do trabalho),

garantidos pela ordem estatal, podendo até mesmo “levar o direito de greve ao seu limite”, ou

seja, como greve geral. Essa passagem ao limite, ou esse limite, é julgado pelo Estado como

abusivo, e a partir do argumento de que houve uma interpretação deturpada da intenção original

da lei sobre o direito de greve, podendo então levá-lo a “condenar a greve geral como ilegal”;

que não pode persistir, caso contrário se configuraria como uma situação revolucionária. E é

exatamente em função de uma tal situação que se pode estabelecer um elo de ligação entre

direito e violência, a violência como exercício do direito e o direito como exercício da violência.

E não se trata aqui, essencialmente, de “exercer o poder ou uma força brutal, para obter este ou

aquele resultado, mas em ameaçar ou destruir uma ordem de direito dado”. O que nesse caso

quer dizer: a “ordem do direito estatal que teve que conceder este direito à violência, por

exemplo, o direito de greve”.239 É essa contradição imanente ao direito do direito, que permite a

238 Idem, pp. 62-63. Derrida se refere aí ao que ele considera ser (em Benjamin) uma aparente contradição: a de que o direito de greve como direito à violência seria estrangeira “ao direito do direito”. 239 Derrida. Prenome de Benjamin, op.cit., p. 63.

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94 Derrida voltar-se para a atualidade, com o exemplo do grande tráfico de drogas, motivado então

pelo exemplo apresentado por Benjamin sobre a figura do “grande” criminoso.

No entanto (para Derrida), o desnudamento da violência da ordem jurídica efetuada

através desta figura, não abala o que para o Estado constituiria a principal fonte de sua

preocupação, a violência fundadora, (que no texto de Benjamin corresponde à violência

revolucionária) que traz em germe a capacidade de justificar, legitimar ou de transformar

relações de direito, e portanto se apresentar como tendo um direito ao direito. Nesse sentido, o

que preocupa de fato o Estado são as grandes organizações, como a da máfia ou do tráfico de

drogas em larga escala; com o agravante de que na atualidade, estas “instituições quase-estatais

e internacionais”, têm um “estatuto mais radical que o de banditismo”. Como acrescenta o

autor, tais instituições “representam uma ameaça com a qual muitos Estados não encontram

maneira de lidar senão aliando-se a ela – e sujeitando-lhe, indo, por exemplo, buscar a sua

quota parte no ‘branqueamento do dinheiro’ -, fingindo, embora, combatê-la por todos os

meios”.240

Voltemos ao ponto acerca da questão do direito de greve, em sua relação com a

violência. Essa questão, como indicamos, serve de gancho para Derrida introduzir uma outra,

apoiada na fala de Benjamin sobre o interesse do direito na monopolização da violência, onde

ele afirma que a violência é constitutiva da ordem do direito. E isso na contramão do que

Benjamin acredita: a de que o direito de greve como direito à violência seria estrangeira “ao

direito do direito”. Ampliando o fio condutor fornecido pelo ensaio benjaminiano, o autor tenta

solucionar essa aparente contradição, focando o que está em jogo quando se põe a questão da

violência no âmbito do direito: para que “uma avaliação interpretativa e significante da

violência seja possível, deve-se primeiro reconhecer que não é um acidente advindo do exterior

do direito. O que ameaça o direito pertence já ao direito”. Isto explicaria o fato da greve geral

aparecer (para Derrida) como o fio condutor precioso da violência fundadora, capaz de

transformar as relações de direito: a greve geral aparece então como direito concedido que se

exerce para contestar a sua ordem (existente), bem como “para criar uma situação

revolucionária na qual se tratará de fundar um novo direito ... um novo Estado”.241

240 Idem, p. 64. 241 Derrida. Prenome de Benjamin, op.cit. p. 64

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Acrescentemos (segundo Derrida) que a partir de 1921, as situações fundadoras, ou

revolucionárias, ou os discursos revolucionários, principalmente na Europa, justificam o recurso

à violência, ”alegando a instauração em curso ou por vir de um novo direito, de um novo

Estado. Como este direito por vir legitimará por sua vez, retropectivamente, a violência que

pode ferir o sentimento de justiça, o seu futuro anterior já a justifica”.242

Tais momentos, porque são aterradores, são também em si mesmos, “e na sua própria

violência, ininterpretáveis ou indecidíveis”, o que neste contexto Derrida chama místico. Para

Benjamin, tal violência, não sendo estranha ao direito é “legível, inteligível mesmo”. No entanto,

uma tal violência representa, no direito, o que “suspende o direito”.

Este momento de suspensão, esta epoké, este momento fundador ou revolucionário do direito é, no direito, uma instância de não direito. Mas é também toda a história do direito. Este momento tem sempre lugar e nunca tem lugar numa presença. É o momento em que a fundação do direito permanece suspensa no vazio ou por cima do abismo, suspensa de um ato performativo puro que não teria contas a dar a ninguém e diante de ninguém.243 ***

Este momento de suspensão do direito é discutido por Giorgio Agamben com o fito de

demonstrar, a partir de um caso exemplar – o estado de exceção (através do debate Schmitt-

Benjamin) –, a estratégia acionada pelo direito para salvaguardar (ou garantir) a ordem jurídica.

Para levar a bom termo essa estratégia o direito conta com um recurso: a “força de lei”, que

enquanto termo técnico do direito permite operar uma separação (segundo Agamben) entre a

aplicação da norma e o que é formalizado em “sua essência”, motivo pelo qual “decretos,

disposições e medidas, que não são formalmente leis, adquirem, entretanto, sua ‘força’”.244

Começo pela discussão que procura destacar a inovação operada por Schmitt acerca da

contigüidade essencial entre estado de exceção e soberania.

A contigüidade essencial entre estado de exceção e soberania foi estabelecida por Carl Schmitt em seu livro Politische Theologie (Schmitt, 1922). Embora sua famosa definição do soberano como “aquele que decide sobre o estado de exceção” tenha sido amplamente comentada e discutida, ainda hoje, contudo, falta uma teoria do estado de exceção no direito público, e tanto

242 Idem, pp. 64-65. 243 Idem, pp. 65-66. 244 Agamben. Estado de Exceção, op.cit. p. 60.

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juristas como especialistas em direito público parecem considerar o problema muito mais como uma quaestio facti do que como um genuíno problema jurídico.245 Posteriormente Agamben retoma esta fala, mas com o intuito de problematizar algumas

teses fundamentais sobre o estado de exceção na doutrina do jurista alemão. Agamben cita então

um outro livro do autor, publicado em 1921, Die Diktatur, que ao lado do Politische Theologie

(1922), configuraria uma “complexa estratégia do estado de exceção no direito”. No livro de

1921, o estado de exceção é apresentado como estado de sítio (que representa a figura da

ditadura), uma suspensão do direito que diz respeito a uma “exceção concreta ... até então não

devidamente considerado pela doutrina do direito (Schmitt, p.XVII)”.246

O objetivo dos dois livros seria salvaguardar a suspensão da ordem jurídica (i. e.

inscrever o estado de exceção num contexto jurídico), ou garantir, ainda que “frouxamente”,

uma relação do estado com a ordem jurídica. Pois, desde que o estado de exceção realiza uma

tal suspensão, o que significa “escapar a qualquer consideração do direito (Schmitt, 1921)” -

ainda que esta exceção se mostre como uma exceção concreta, (i.e. “em sua consistência

factual”) -, um tal estado “não pode aceder à forma do direito (Schmitt, 1922)”.

No entanto, como observa Agamben, esta articulação entre estado de exceção e ordem

jurídica é paradoxal, visto que o que “deve ser inscrito no direito” é estrangeiro a ele, i.e. é

exterior à “ suspensão da própria ordem jurídica”. Para confirmar o caráter paradoxal dessa

articulação, cita uma frase de Schmitt: “Em sentido jurídico ... ainda existe uma ordem, mesmo

não sendo uma ordem jurídica”247

O operador da inscrição da distinção do estado de exceção na ordem jurídica, no Die

Diktatur, é a distinção entre ditadura comissária e ditadura soberana. A primeira inscrição (“de

fora do direito”) baseia-se na divisão entre normas de direito e normas de realização do direito;

a segunda baseia-se na divisão entre poder constituinte e poder constituído. Na primeira

inscrição “a constituição pode ser suspensa quanto à sua aplicação” e ainda assim permanecer

vigorando, porque a suspensão é definida apenas como uma exceção concreta. A ditadura

soberana (segunda inscrição), ainda que juridicamente “disforme”, estaria igualmente em

condições de garantir o estado de exceção num contexto jurídico. E isto porque inscrito em um

campo de ação, o campo político, onde a idéia de decisão se adequaria ao caso do poder

245 Idem, p. 11. 246 Idem, p. 53. 247 Agamben. Estado de Exceção, op.cit. p.54.

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97 constituinte não como uma questão de força, mas como “ ... um poder que, embora não

constituído em virtude de uma constituição, mantém com toda constituição vigente uma relação

tal que ele aparece como poder fundador.”248

No Politische Theologie, o operador que possibilita ancorar a distinção do estado de

exceção na ordem jurídica, é a distinção entre norma e decisão, contexto em que a teoria

schmittiana pode ser “confirmada” como ditadura da soberania. Cabe ao soberano, neste caso,

decidir quanto ao estado de exceção, uma decisão que implica anular/suspender a norma. É por

isto que Agamben, se interrogando mais adiante sobre o sintagma “força de lei”, vai poder

afirmar que o estado de exceção é uma força de lei desprovida de lei. O estado de exceção

define um “estado de lei” em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem “força”) e em que, atos que não tem valor de lei adquirem sua “força”. No caso extremo, pois, a “força de lei” flutua como um elemento indeterminado, que pode ser reivindicado tanto pela autoridade estatal (agindo como ditadura comissária) quanto por uma organização revolucionária (agindo como ditadura soberana). O estado de exceção é um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei ... algo como um elemento místico, ou melhor, uma fictio por meio do qual o direito busca se atribuir sua própria anomia.249 O autor chega ainda a tematizar a noção de iustitium do direito romano, com o intuito de

ampliar estas questões, e anunciar a sua concepção do que seja estado de exceção por relação às

doutrinas defendidas por Carl Schmitt. Vou destacar aqui apenas os pontos que irão esclarecer a

perspectiva adotada pelo autor no debate entre Benjamin e Schmitt.

É assim que, servindo-se do modelo do instituto do direito romano, Agamben vai afirmar

inicialmente que o estado de exceção não pode ser interpretado segundo o modelo da

ditadura,250 ou seja, “como uma plenitude de poderes, um estado pleromatico, mas, sim, como

um estado kenomatico, um vazio e uma interrupção do direito”

Desta feita, sendo o estado de exceção “um espaço vazio de direito, uma zona de anomia

em que todas as determinações jurídicas ... estão desativadas”, seriam falaciosas as doutrinas

que tentam inscrever o estado de exceção num contexto jurídico, como por exemplo a de

248 Schmitt apud Agamben, Idem p. 55. 249 Agamben. Idem, p. 61. 250 Embora o termo “ditadura” seja usado (no direito público moderno) para definir os Estados totalitários que surgiram após a Primeira Guerra Mundial, tal uso, como observa Agamben, é inadequado. Diz ele: “O que caracteriza tanto o regime fascista como o regime nazista é, como se sabe, o fato de terem deixado subsistir as constituições vigentes ... a constituição legal de uma segunda estrutura, amiúde não formalizada juridicamente, que podia existir ao lado da outra graças ao estado de exceção. O termo ‘ditadura’ é totalmente inadequado para explicar o ponto de vista de tais regimes, assim como, aliás, a estrita oposição democracia/ditadura é enganosa para uma análise dos paradigmas governamentais hoje dominantes.” Estado de Exceção, op.cit. pp. 75-76.

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98 Schmitt, que tenta inscrevê-la indiretamente ao lançar mão de distinções como normas de

direito/normas de realização do direito, poder constituinte/poder constituído, norma/decisão.

A segunda tese de Agamben é enunciada nos termos que seguem: se, por um lado, o

vazio jurídico se apresenta como um impensável pelo direito, por outro, tal impensável, no

âmbito da ordem jurídica “se reveste de uma relevância estratégica decisiva e que, de modo

algum, se pode deixar escapar”.251

As duas últimas teses referem-se a um problema que parece ser o mais desafiador: a de

como lidar com ações cometidas, durante o vazio jurídico que “não são nem transgressivos,

nem executivos, nem legislativos”, e que escapam, portanto, “a qualquer definição jurídica”.

Essa indefinibilidade diante de tais atos situa-se, no campo do direito, em um não-lugar

absoluto, e que para Agamben responde à idéia de uma força de lei sem lei. “É como se a

suspensão da lei liberasse uma força ou um elemento místico, uma espécie de mana jurídico ...

de que tanto o poder quanto seus adversários, tanto o poder constituído quanto o poder

constituinte tentam apropriar-se”.252

O autor fecha esta discussão aventando uma outra possibilidade: a de que a idéia de uma

força de lei sem lei, separada da lei, possa talvez ser melhor explicada através da definição do

que Schmitt chama de “político”, definição que parece se mostrar indissociável da concepção de

Agamben sobre o estado de exceção. Como diz ele, “A tarefa essencial de uma teoria não é

apenas esclarecer a natureza jurídica ou não do estado de exceção, mas, principalmente,

definir o sentido, o lugar e as suas formas de relação com o direito”.253 Assim, é com essa

perspectiva em mente que Agamben mostrará a sua leitura sobre o debate entre Benjamin e

Schmitt: “Luta de gigantes acerca de um vazio”.

Através desta leitura ele vai procurar demonstrar que a teoria de Carl Schmitt da

soberania seria uma resposta à crítica de Walter Benjamin da violência (Zur Kritik der Gewalt).

Para o nosso estudo, interessa destacar os pontos em que este debate permite ampliar a

compreensão do ensaio de Benjamin.

Uma primeira questão a ser destacada refere-se ao que seria (segundo Agamben) o

objetivo do ensaio: “garantir a possibilidade de uma violência absolutamente ‘fora’

(ausserhalb) e ‘além’ (jenseits) do direito e que, como tal, poderia quebrar a dialética entre a 251 Idem, pp. 78-79. 252 Idem, p. 79. 253 Agamben. Estado de Exceção, op.cit pp. 79-80.

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99 violência que funda o direito e a violência que o conserva (rechtsetzende und rechtserhaltende

Gewalt).”254 Esta última qualificada como violência “pura” ou “divina”, e no âmbito dos

negócios humanos “revolucionária”. O que não minimizaria o que para o direito constitui de

fato uma ameaça: a existência de uma violência “fora” do seu sistema normativo, ou ainda, da

sua existência fora do direito.

O que o direito não pode tolerar de modo algum, o que sente como uma ameaça contra a qual é impossível transigir, é a existência de uma violência fora do direito; não porque os fins de tal violência sejam incompatíveis com o direito, mas “pelo simples fato de sua existência fora do direito” (Benjamin, 1921, p. 183). Isto quer dizer que o propósito de Benjamin seria provar a realidade (enunciada também

como existência) de tal violência.

Se à violência for garantida uma realidade também além do direito, como violência puramente imediata, ficará igualmente demonstrado a possibilidade da violência revolucionária que é o nome a ser dado à suprema manifestação da violência pura por parte do homem (Benjamin, 1921, p. 202).255 Assim, se a estratégia da crítica benjaminiana busca garantir a existência (a realidade) de

uma violência pura e anômica, em Schmitt trata-se de “trazer tal violência para um contexto

jurídico”.

No Politische Theologie, como vimos, tal inscrição é problematizada a partir da

distinção entre norma e decisão, enunciada (de um outro modo) nos termos que seguem: com a

suspensão da norma, o estado de exceção “revela (offenbar) em absoluta pureza um elemento

formal especificamente jurídico: a decisão (Schmitt, 1922, p. 19).”256 Esse termo técnico, por

sua vez, aparece na crítica de Benjamin assim formulada: se o direito “reconhece a decisão

espacial e temporalmente determinada como uma categoria metafísica”, um tal

reconhecimento, no fim das contas, corresponde somente “a peculiar e desmoralizante

experiência da indecibilidade última de todos os problemas jurídicos (Benjamin, 1921, pp. 189

e 196).” E é em resposta à essa idéia que Carl Schmitt afirma a ditadura da soberania, i.e.

“afirma a soberania como lugar da decisão extrema”,257 ainda que a decisão soberana sobre o

254 Idem, p. 84. 255 Idem, p. 85. 256 Agamben. Estado de Exceção, op.cit. p. 56. 257 Idem, p. 86.

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100 estado de exceção não apareça incluída na ordem jurídica. Pelo contrário, o soberano que decide

sobre um tal estado deve ser deixado fora dessa ordem.

E aqui entramos na discussão sobre a problemática da indecisão soberana, ou ainda,

entramos na discussão de Benjamin (segundo a interpretação de Agamben) sobre a problemática

da indecidibilidade, onde na sua obra de 1928, Origem do drama barroco alemão (Ursprung

des deutschen Trauerspiels)258, ao operar a separação entre o poder soberano e o exercício de tal

poder,259 mostra que o soberano barroco está, constitutivamente, na impossibilidade de decidir.

A antítese entre poder soberano [Herrschermacht] e a faculdade de exercê-lo [Herrschvermögen] deu ao drama barroco um caráter peculiar que, entretanto, apenas aparentemente é típica do gênero, e sua explicação não é possível senão com base na teoria da soberania. Trata-se da capacidade de decidir do tirano [Entschlussfähigkeit]. O príncipe, que detém poder de decidir sobre o estado de exceção, mostra, na primeira oportunidade, que a decisão para ele é quase impossível (Benjamin, 1928, p. 250).260 Com isto Benjamin quer também afirmar que entre o poder e o exercício do poder, há

uma distância que nenhuma decisão é capaz de preencher E assim, se no Politische Theologie o

estado de exceção aparecia como uma espécie de milagre, por meio do deslocamento operado

por Benjamin, ele já não mais aparece como milagre, mas sim como uma catástrofe.

Como antítese ao ideal histórico da restauração, frente a ele [ao barroco] está a idéia de catástrofe. E sobre esta antítese se forja a teoria do estado de exceção ... e exatamente por isso [há] um mecanismo que reúne e exalta toda criatura terrena antes de entregá-la a seu fim [dem Ende] (Benjamin, 1928, p.246).261 Como veremos agora com mais precisão, o que leva Benjamin a configurar o estado de

exceção barroco como catástrofe, é o reconhecimento de que há uma escatologia barroca, ou

escatologia branca, um fim do tempo vazio, um fim que leva a terra a entregar-se a um céu

absolutamente vazio. Agamben cita Benjamin:

O além é vazio de tudo o que tem o menor sinal de um sopro de vida terrena, e o barroco lhe retira e se apropria de uma quantidade de coisas que escapavam tradicionalmente a toda figuração e, em seu apogeu, ele as exibe claramente para que o céu, uma vez abandonado, vazio

258 Benjamin, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tad. e org. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1984. 259 Essa separação, no Die Diktatur, corresponde à separação entre normas de direito e normas de realização, base da ditadura comissária. 260 Agamben. Estado de Exceção, p. 88. 261 Agamben. Estado de Exceção, op.cit. pp. 88-89.

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de seu conteúdo, esteja um dia em condições de aniquilar a terra com catastrófica violência (Benjamin, 1928, p. 246).262 Esta escatologia quebra também a correspondência, estabelecida por Carl Schmitt no

Politische Theologie, entre monarca (imanência) e Deus (transcendência), e que diz respeito à

própria definição do soberano, que “é identificado com Deus e ocupa no Estado exatamente a

mesma posição que, no mundo, cabe ao deus do sistema cartesiano (Schmitt, 1922, p. 260)”. A

função soberana é redefinida por Benjamin: o soberano “fica fechado no âmbito da criação, é

senhor das criaturas, mas permanece criatura (Benjamin, 1928, p. 264)”. Com esta redefinição

o estado de exceção vai aparecer como uma zona de indeterminação, entre anomia e direito, “em

que a esfera da criação e a ordem jurídica são arrastadas em uma mesma catástrofe”.263

Em seguida Agamben lança mão da oitava tese do conceito de história (Über den Begriff

der Geschichte, 1942) de Benjamin,264 o que para ele configura um documento decisivo do

debate Bejamin-Schmitt. No documento enunciado nesta tese benjaminiana, destaca-se não o

problema da indecidibilidade, mas o da indiscernibilidade entre norma e exceção. Pois uma

coisa é postular, como fazia Schmitt através da idéia da decisão soberana, o primado da exceção

como o que torna possível a constituição da esfera normativa; e outra coisa é deixar que a

exceção se torne a regra, onde nesse caso exceção e regra se tornam indiscerníveis. “A regra,

que coincide agora com aquilo de que vive, se devora a si mesma”. Um exemplo concreto dessa

convivência seria a do Reich nazista, que não mediu esforços para manter a “organização do seu

‘Estado dual’ sem promulgar uma nova constituição”.265 E é sob esta perspectiva que devemos

ler, como alerta Agamben, a distinção operada por Benjamin – na oitava tese do seu conceito de

história – entre estado de exceção efetivo e estado de exceção tout court.

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de emergência” em que vivemos tornou-se a regra. Devemos chegar a um conceito de história que corresponda a esse fato. Teremos então à nossa frente, como nossa tarefa, a produção do estado de exceção efetivo (wirklich); e isso fortalecerá nossa posição na luta contra o fascismo (Benjamin, 1942, p. 697).266

262 Idem, p. 89. 263 Idem. 264 Benjamin, Walter. Sobre o conceito da História, in: Obras Escolhidas. Trad. e org. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1985, vol. I. 265 Agamben. Estado de Exceção, op.cit. p. 91. 266 Idem, p. 90.

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Esta distinção que já aparece no estudo de Carl Schmitt sobre a ditadura é pois

reformulada por Benjamin, que exclui um estado de exceção fictício (em que exceção e caso

normal são distintos temporal e espacialmente), e chama para o estado de exceção vivido,

efetivo, que é indiscernível da regra. O estado de exceção que tentava promover a ligação entre

violência e direito desaparece: “não há senão uma zona de anomia em que age uma violência

sem nenhuma roupagem jurídica”. Essa tentativa do Estado de “anexar-se a anomia por meio

do estado de exceção”, não passa de “uma fictio iuris ... que pretende manter o direito em sua

própria suspensão como força de lei [ou seja, como força de lei sem lei]”.267

O ponto decisivo desta discussão, como destaca Agamben, é o estatuto da violência

como código da ação humana, que à época de Benjamin, e de Schmitt, se realiza numa mesma

zona de anomia: a que apregoa que a relação entre estado de exceção e direito deve ser mantida

a todo custo; e a que renuncia a qualquer relação com o direito, em prol da violência

revolucionária. E teria sido em prol dessa violência revolucionária que Benjamin (segundo

Agamben) se mostra afeito a defender, ou elaborar a idéia da existência da violência fora do

direito, como “violência pura”.

Esta discussão em torno da anomia, que para a política ocidental parece ser tão decisiva

(acrescenta Agamben), assemelha-se a uma outra, a discussão acerca do ser, que define a

metafísica ocidental.

Ao ser puro, à pura existência enquanto aposta metafísica última, responde aqui a violência pura como objeto político extremo, como “coisa” da política; à estratégia onto-teo-lógica, destinada a capturar o ser puro nas malhas do logos, responde a estratégia da exceção, que deve assegurar a relação entre violência anômica e direito.268 A expressão violência pura (reine Gewalt), segundo Agamben, é de suma importância

para Benjamin no ensaio de 1921. Violência pura denota uma ação humana que não funda nem

conserva o direito, por conseguinte, não pode ser compreendida como “uma figura originária

do agir humano que, em certo momento, é capturada e inscrita na ordem jurídica”. Isso porque

267 Idem, p. 92. 268 Tanto no direito como na linguagem, há um conflito que incide sobre um vazio: “anomia, vacuum jurídico de um lado e, de outro, ser puro, vazio de toda determinação e predicado real”. Para o direito, “esse espaço vazio é o estado de exceção constitutivo.” No caso da ordem jurídica há ainda uma dimensão essencial: a zona onde se situa um agir humano sem relação com a norma, “coincide com uma figura extrema e espectral do direito, em que ele se divide em uma pura vigência sem aplicação (a forma de lei) e em uma aplicação sem vigência: a força de lei sem lei, ou força de lei desprovida de lei. Estado de Exceção, pp. 92-93.

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103 a concepção de pureza (Reinheit) é relacional. E por ser relacional, e não substancial,269 o

critério da pureza na crítica de Benjamin da violência (i.e. na “exposição de sua relação com o

direito e com a justiça”), residirá em sua relação com o direito – o tema da justiça sendo tratado

apenas em relação aos fins do direito.

Com estes esclarecimentos Agamben pode então apresentar o que para ele constitui

propriamente a tese benjaminiana da crítica da violência, que envolve a discussão sobre a

questão da distinção meio-fim. Através dessa discussão, veremos que o termo violência pura

aparece desdobrado em tema da violência como “meio puro”. Vejamos primeiramente como o

autor expõe a tese de Benjamin.

A tese de Benjamin é que enquanto a violência mítico-jurídica é sempre um meio relativo a um fim, a violência pura nunca é simplesmente um meio – legítimo ou ilegítimo – relativo a um fim (justo ou injusto). A crítica da violência não a avalia em relação aos fins que ela persegue como meio, mas busca seu critério “numa distinção na própria esfera dos meios, sem preocupação quanto aos fins que eles perseguem (Benjamin, 1921, p. 179)”. Como se pode notar, o tema da violência aparece como meio não atrelado à consecução

de fins, no caso em questão, como meio não atrelado à consecução de fins justos. Ou seja, essa

tese que procura desestabilizar a tradicional distinção meio-fim, não vai lançar mão de um meio,

legítimo ou ilegítimo, para identificar fins justos. E aqui já estamos falando da violência como

“meio puro”, que por sua vez requer o equacionamento de um problema: o de como estabelecer

um outro modo de relação com o fim. Em suma, o problema é

caracterizar um outro tipo de violência que então, certamente, não poderia ser um meio legítimo ou ilegítimo para esses fins, mas não desempenharia de modo algum o papel de meio em relação a eles e manteria com eles outras relações [nicht als Mittel zu Ihnen, vielmehr irgendwie anders sich verhalten würde] (Benjamin, 1921, p. 196).270 Este outro modo de relação com o fim, que está referido ao conceito de meio “puro” não

se encontra, portanto, numa relação de meio quanto a um fim. De acordo com esse raciocínio,

pura é a violência que “se mantém em relação com sua própria medialidade ... a violência pura

269 “É um erro pressupor, em algum lugar, uma pureza que consiste em si mesma e que deve ser preservada [...]. A pureza de um ser nunca é incondicionada e absoluta, é sempre subordinada a uma condição. Esta condição é diferente segundo o ser de cuja pureza se trata; mas nunca reside no próprio ser. Em outros termos, a pureza de todo ser (finito) não depende do próprio ser [...]. Para a natureza, a condição de sua pureza que se situa fora dela é a linguagem humana (Benjamin, 1966, p. 205 e seg). Benjamin, Walter. Briefe. Suhrkamp, Frankfurt a. M. , 1966, 2vol. Cf. Estado de Exceção, p. 94. 270 Agamben. Estado de Exceção, op.cit. p. 95.

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104 se revela somente como exposição e deposição da relação entre violência e direito”. Violência

pura e violência jurídica mantêm assim uma estreita relação, posto que o critério de sua

distinção – força de lei sem lei (ou seja, lei que está em vigor mas não se aplica ou se aplica sem

estar em vigor) ou meio puro – se baseia, “em todos os casos, na solução da relação entre

violência e direito”.

Enquanto a violência como meio fundador do direito nunca depõe sua relação com ele e estabelece assim o direito como poder (Macht), que permanece “intimamente e necessariamente ligado a ela” (Benjamin, 1921, p. 198), a violência pura expõe e corta o elo entre direito e violência e pode, assim, aparecer ao final não como violência que governa ou executa (die schaltende), mas como violência que simplesmente age e se manifesta (die waltende).271 Logo após esta exposição do “desmascaramento da violência mítico-jurídica operado

pela violência pura”, Agamben aborda um ponto intrinsicamente a ela ligada, a leitura

benjaminiana do “novo advogado”; que ainda estudando “os nossos velhos códigos”, reproduz

uma idéia do direito “que não tem mais força nem aplicação”. Esta figura, ou imagem do direito

corresponde à imagem de um direito tal como apresentado no ensaio de Benjamin sobre

Kafka:272 “de um direito que não é mais praticado mas apenas estudado ... uma figura possível

do direito depois da deposição de seu vínculo com a violência e o poder”. Esse direito não mais

praticado, mas estudado, não seria a justiça, mas apenas” a porta que leva a ela”.273

Constata-se pelo exposto que tanto Benjamin, através da leitura de Agamben, e o

Agamben do estado de exceção, problematizam a idéia de que o direito enquanto ordem jurídica

possa ser qualificada como justa, ou ainda, possa aparecer ligada à idéia de justiça. Citando o

caso de Benjamin, vimos que através da crítica da violência ele procura desestabilizar uma

tradicional equação: a de que direito/ordem jurídica diz o mesmo que justiça, que por sua vez se

baseia na tradicional distinção meio-fim. Ora, desde que essa distinção implica em lançar mão

de um meio, legítimo ou ilegítimo, para identificar fins justos, a noção de violência como meio

“puro”, não pode aparecer atrelada à consecução de fins justos. De outra maneira isto é

observado em Agamben, quando ao se interrogar acerca do sintagma “força de lei”, afirma que

o estado de exceção não passa de uma força de lei sem lei. O estado de exceção “define um 271 Idem, p. 96. 272 Benjamin, Walter. “Franz Kafka”. Suhrkamp, Frankfurt a. M. , 1934, vol2.2. Ed. Bras. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”, in: Obras Escolhidas. Trad. e org. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1985, vol. I. 273 Benjamin, Walter. “Notizen zu einer Arbeit über die Kategorie der Gerechtigkeit”. Frankfurter Adorno Blätter, n. 4, 1992. Estado de Exceção, p. 98.

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105 ‘estado de lei’ em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem ‘força’)

e em que, atos que não tem valor de lei adquirem sua ‘força’”. Para reforçar o seu argumento

ele ainda indica: o conceito “força de lei”, enquanto “termo técnico do direito, define uma

separação entre ... a aplicabilidade da norma e sua essência formal, pela qual decretos,

disposições e medidas, que não são formalmente leis, adquirem, entretanto, sua ‘força’”.274

4.2 A justiça em sua dupla face, ou em seu duplo movimento

Isto posto, retorno ao texto de Derrida, Do direito à justiça, destacando o modo como o

autor interpreta o termo aplicabilidade, a propósito da discussão sobre a questão da força

implicada no conceito da justiça como direito.

A aplicabilidade, a “enforceability”, não é uma possibilidade exterior ou secundária que viria ou não juntar-se, simplesmente, ao direito. É a força essencialmente implicada no próprio conceito da justiça como direito, da justiça enquanto ela se torna direito, da lei enquanto direito (...) A palavra “enforceability” chama-nos pois à letra. Lembra-nos literalmente de que não há direito que não implique nele mesmo, a priori, na estrutura analítica do seu conceito, a possibilidade de ser “enforced”, de ser aplicado pela força (...) Há, por certo, leis não aplicadas, mas não há lei sem aplicabilidade ou “enforceability” da lei sem força, seja esta força direta ou não, ... Que diferença existe entre, por uma lado, a força que pode ser justa, em todo o caso julgada legítima (não apenas o instrumento ao serviço do direito, mas o exercício e o próprio cumprimento, a essência do direito) e, por outro lado, a violência que se julga sempre injusta? O que é uma força justa ou uma força não violenta?275 Estas interrogações encontram-se no contexto da discussão sobre o idioma, em especial

no que se refere à tradução do termo Gewalt, que tanto em francês como em inglês são

traduzidos por violência, desconsiderando o fato de que para os alemães Gewalt também

significa poder legítimo, autoridade, força pública – Gesetzgebende Gewalt (poder legislativo),

geistliche Gewalt (poder espiritual), Staatsgewalt (autoridade ou o poder do Estado). Gewalt é

assim tanto violência como poder legítimo, i.e. autoridade justificada. Mas como distinguir,

pergunta Derrida,

274 Agamben. Estado de Exceção, op.cit. p. 60. 275 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. pp. 12-13.

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a força de lei de um poder legítimo e a violência pretensamente originária que esta autoridade deve ter instaurado sem, ela mesma, poder autorizar-se qualquer legitimidade anterior, embora, neste momento inicial, ela não seja nem legal nem ilegal, outros apressar-se-iam a dizer, nem justa nem injusta?276

Esta pergunta traz implícita a discussão sobre a problemática envolvida na distinção

entre direito e justiça, em especial no que diz respeito a pretensão do direito “exercer-se em

nome da justiça”, uma justiça que (como já indicado) “exige instalar-se num direito que deve

exercer-se (constituído e aplicado) pela força ‘enforced’”. Essa discussão, como se verá posteriormente,

será tratada a partir de algumas aporias, ou ainda, a partir da idéia da justiça como aporia. Ela é

inicialmente apresentada como uma experiência do impossível.

Aporia é um não-caminho. A justiça seria, deste ponto de vista, a experiência daquilo de que não podemos fazer a experiência ... eu creio que não existe justiça sem esta experiência, tão impossível como ela é, da aporia. A justiça é uma experiência do impossível. Uma vontade, um desejo, uma exigência de justiça, cuja estrutura, não fosse uma experiência da aporia não teria qualquer chance de ser o que é, a saber, um justo apelo da justiça. E como experiência do impossível, traz a exigência de que é preciso calcular com o

incalculável.

O direito não é a justiça. O direito é o elemento do cálculo, e é justo que exista direito, mas a justiça é incalculável, exige que se calcule com o incalculável; e as experiências aporéticas são experiências tão improváveis quanto necessárias da justiça, quer dizer, momentos em que a decisão entre o justo e o injusto não está nunca assegurada por uma regra.277 Ou seja, enquanto a justiça exige que se calcule com o incalculável, o direito, como

sistema normativo e regulador, parece não sobreviver sem a simetria, que de uma certa maneira

garante o caráter estável da sua existência como legalidade. Essa justiça pensada e/ou praticada

no direito só pode então garantir a máxima defendida neste âmbito, aplicar a justiça como

direito nos tribunais, pela força “enforced”. O que remete necessariamente à discussão sobre o

papel atribuído à figura do juiz, em especial aos momentos das tomadas de decisão, onde ele

deve tentar produzir uma decisão justa. O que implica conciliar o ato de justiça, que diz respeito

a uma necessária singularidade, “a indivíduos, a grupos, a existências insubstituíveis, o outro ou

o eu com o outro, numa situação única”, com o caráter de generalidade do direito. Mas como

276 Idem, pp. 13-14. 277 Idem, pp. 27-28.

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107 conciliar um tal ato de justiça, com “a regra, a norma, o valor ou o imperativo de justiça,

mesmo se uma tal generalidade prescreve uma aplicação a cada vez singular?”278

Este problema levantado por Derrida, que não é inédito, ganha uma certa gravidade

quando ele põe em cena o problema da língua, ou ainda, quando ele relaciona o problema da

língua com a questão da possibilidade de justiça. Derrida está se referindo às situações de

violência nas quais uma pessoa, ou uma comunidade de pessoas supostamente passíveis de lei,

sofrem um julgamento sem que os mesmos compreendam os seus direitos, nem tampouco o

idioma no qual a lei está inscrita ou a sentença proferida.

A violência desta injustiça ... não é uma violência qualquer, nem uma injustiça qualquer. Essa injustiça supõe que o outro, vítima da injustiça da língua ... seja capaz de [falar] uma língua em geral, seja ela um homem enquanto animal falante, no sentido de que nós, os homens, damos a esta palavra, linguagem. Houve aliás um tempo, que não está nem longe nem acabado, em que nós, os homens, “queria dizer” nós, os Europeus, adultos, machos brancos carnívoros e capazes de sacrifícios.279

É preciso, pois, reconsiderar em sua totalidade, o axioma metafísico-antropocêntrico que

prevalece nas sociedades ocidentais acerca do pensamento do justo e do injusto. Isso não quer

dizer que ao se efetuar um questionamento que institui o “sujeito humano (de preferência e

paradigmaticamente o macho adulto ... ) como a medida do justo e do injusto”, venha a apagar

esta oposição. Um tal questionamento visa antes conduzir “à reinterpretação de todo o aparelho

de limites nos quais uma história e uma cultura puderam confinar a sua criteriologia”. Dito de

outro modo, isto não quer dizer que haja “uma abdicação quase nihilista diante da questão

ético-político-jurídica da justiça, e diante da oposição do justo e do injusto”.280

No entanto, quando se olha o problema mais de perto, em especial no que se refere ao

momento da tomada de decisão, há que se ponderar sobre o assunto. E aqui é preciso deixar

claro que eu estou pensando esse momento tal como circunscrito na esfera judicial, onde o juiz

comparece para aplicar a justiça como direito nos tribunais;281 ou ainda, comparece para tentar

produzir uma decisão justa, para tentar conciliar o ato de justiça, que diz respeito a uma

necessária singularidade, com o caráter de generalidade do sistema normativo. O que explica a

278 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p,29. 279 Idem, pp. 30-31. 280 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 32. 281 Vale lembrar que a decisão de um juiz é apenas um exemplo do que para Derrida constitui este momento. Ou seja, esse momento da tomada de decisão diz respeito a todo tipo de relação, incluindo a simples relação com o texto.

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108 interrogação lançada pelo autor: como conciliar um tal ato de justiça com “a regra, a norma, o

valor ou o imperativo de justiça, mesmo se uma tal generalidade prescrever uma aplicação a

cada vez singular?”.282

Este problema levantado por Derrida, como indicamos anteriormente, envolve as

situações de violência sofridas por parte de um estrangeiro, ou de uma comunidade de

estrangeiros (supostamente passíveis de lei) quando submetidos a um julgamento – e que se

mostra arbitrário porque não há uma compreensão acerca de quais seriam os direitos de um

estrangeiro, nem tampouco uma compreensão sobre o valor ou o imperativo de justiça que

estaria informando o que é prescrito na lei escrita, e onde pelo menos em tese garantiria a

justeza da sentença proferida pelo juiz.

Isto faz lembrar o que Agamben procurou problematizar no Estado de Exceção: que o

direito possa estar ligado à idéia de justiça; e que é desmontado pelo autor quando ele põe em

cena a complexa estratégia acionada pelo direito, com o auxílio de um dos seus mais potentes

recursos, o conceito “força de lei”, para garantir a ordem jurídica na vigência do estado de

exceção – que na época de Benjamin e de Schmitt, onde o código da ação humana era

efetivamente informado pelo estatuto da violência, tentava promover a ligação entre direito e

violência.

Lembremos que no registro do discurso derridiano, o elemento da violência está

diretamente associado à violência da língua (cf. capítulo 3, tópico 3.1)que, no âmbito do direito,

se aplica ao ideal de se fazer justiça no tratamento das leis; motivo pelo qual Derrida questiona

(como registrado no início deste tópico), com base no elemento da força implicado no conceito

de justiça no direito, a separação entre força legitimada, não violenta, a “força de lei”, que se

considera justa, e a violência, força não legitimada, sempre tida como injusta.

É com base nesta pretendida separação, sobre a qual se assenta a correlação entre direito

e justiça, que Derrida chega a afirmar que o direito, ou a justiça como direito “assegura também

a possibilidade da desconstrução”, e visto que “A desconstrução é a justiça”,283 ela assegura

também a possibilidade da justiça face à gama variada (ou infinita) de problemas que um tal

pensamento coloca. E talvez seja por conta desta característica, que traz também consigo a

exigência infinita de se fazer justiça, que se faz necessário assumir um compromisso ético com a

282 Derrida. Do direito à justiça, p. 29. 283 Derrida. Do direito à justiça, op.cit pp. 25-26.

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109 justiça. Um compromisso que certamente nada tem a ver com a idéia de uma ética atrelada aos

valores presentes nos humanismos estabelecidos (cf. capítulo 2), ainda que não descartando uma

das categorias diretamente envolvidas na referida idéia, como a de responsabilidade. Mas antes

de verificar como essa categoria é tratada no discurso derridiano, recorto uma passagem (já aqui

reproduzida parcialmente) que a antecede.

( ... ) ao desconstruir as partituras que instituem o sujeito humano ... como a medida do justo e do injusto, não se conduz necessariamente à injustiça, nem ao apagamento de uma oposição entre o justo e o injusto, mas talvez, em nome de uma exigência mais insaciável de justiça, à reinterpretação de todo o aparelho de limites nos quais uma história e uma cultura puderam confinar a sua criteriologia. Na hipótese que de momento perspectivo superficialmente, aquilo que se chama correntemente de desconstrução não corresponderia de todo ... a uma abdicação quase nihilísta diante da questão ético-político-jurídica da justiça, e diante da oposição do justo e do injusto, mas a um duplo movimento.284

Este duplo movimento incide sobre a questão da responsabilidade, que é esquematizado

nos termos que seguem: primeiramente a colocação de uma responsabilidade sem limite, que é

sem limite (ou incalculável)) porque aposta na idéia de que é possível recuperar, através da

memória histórica, os limites contidos nas concepções de lei, de direito e de justiça, prescritos

no decorrer da história, ou historicamente construídos nas diferentes sociedades. E por se tratar

de uma responsabilidade incalculável, é preciso ser justo com a justiça: escutá-la e compreender

“de onde é que ela vem, o que quer de nós, sabendo que o faz através de idiomas singulares”,

como por exemplo, Díke, Jus, Justitia, Gerechtigkeit. Esta justiça que “se endereça sempre à

singularidades, à singularidade do outro, apesar ou mesmo em razão de sua pretensão à

universalidade” não pode então ser vista como uma posição que abdica de qualquer interesse

pela questão da justiça, ou seja, não quer dizer que haja uma insensibilidade face à injustiça.

É, pelo contrário, um sobrelanço hiperbólico na exigência da justiça, a sensibilidade a uma espécie de desproporção essencial que deve inscrever nela o excesso e a inadequação. O que leva a denunciar, não apenas limites teóricos, mas injustiças concretas, com efeitos mais sensíveis, na boa consciência que pára dogmaticamente nesta ou naquela determinação herdada da justiça.285 O segundo movimento acentua o sentido da responsabilidade perante a memória como

uma responsabilidade perante a própria concepção de responsabilidade, ou seja, acentua esse

sentido procurando indicar que a concepção de responsabilidade que nos é familiar (a que está

284 Idem, p. 32. 285 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 33.

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110 mais próxima de nós), pode alimentar um sentimento de pertencimento que não nos deixa

“enxergar”, em seus pormenores, a dinâmica que “regula a justiça e a justeza dos nossos

comportamentos, das nossas decisões teóricas, práticas, ético-políticas”.286

Este conceito de responsabilidade, que é inseparável do aparelho conceitual, teórico ou

normativo da justiça, e que corresponde a um feixe de conceitos conexos, como o de

propriedade, vontade, liberdade, consciência de si, sujeito, eu pessoa, comunidade, decisão,

etc., não deve ser descartado.

No entanto, promete Derrida, haverá um momento (um por-vir) em que tais conceitos

serão suspensos, onde então não será mais preciso falar da justiça, da própria justiça, ou do

“interesse teórico que se orienta para os problemas da justiça”. Este momento só pode

encontrar o seu movimento na “experiência de uma inadequação”, ou “no apelo sempre

insatisfeito, para além das determinações dadas do que se chama, em contextos determinados, a

justiça, a possibilidade da justiça”.287

Derrida cita como exemplo duas experiências de inadequação, que ainda vigoram nos

dias de hoje. Estas duas experiências, que são tratadas por ele como uma das formas de

violência fundadora da lei, consistem em “impor uma língua a minorias nacionais ou étnicas

agrupadas pelo Estado”. Os dois momentos referem-se ao caso francês. O primeiro ocorreu por

conta da consolidação

da unidade do Estado monárquico, impondo o francês como língua jurídico-administrativo, e interditando que o latim [que segundo Derrida já transportava uma violência], língua do direito e da Igreja, permitisse que todos os habitantes do reino fossem representados numa língua comum, através de um advogado intérprete, sem deixarem que lhes fosse imposta esta língua particular, que era ainda o francês. O segundo momento, o da Revolução Francesa, acentuou o que então ocorreu no

primeiro, posto que a “unificação lingüística assumiu, por vezes, os contornos pedagógicos

mais repressivos, em todo o caso, mais autoritários”.288 Nos dois casos o problema lingüístico

permanece ainda hoje (na França) agudo, aparecendo no âmbito das questões (que são

inseparáveis) da política, da educação e do direito.

286 Idem, pp. 33-34. 287 Idem, p. 34 288 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 35.

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Neste ponto Derrida volta-se novamente para a discussão sobre a distinção entre o

direito e a justiça, ou ainda, introduz o que tratará mais adiante acerca da problemática

envolvida nessa distinção, a partir de algumas aporias. Nessa “introdução”, fica mais claramente

delimitada a “afinidade” que o liga ao pensamento de Emmanuel Lévinas. Primeiramente

Derrida se refere aos exemplos das aporias que serão dadas sobre a referida distinção, como “um

potencial único aporético que se distribui ao infinito”. Esses exemplos

suporão aqui, explicitarão ou produzirão ali ... uma distinção difícil e instável entre, por um lado, a justiça (infinita, incalculável, rebelde à regra, estranha à simetria, heterogênea e heterotrópica) e, por outro lado, o exercício da justiça como direito, legitimidade ou legalidade, dispositivo estável, estatutário e calculável sistema de prescrições regradas e codificadas.289 Em seguida o autor se diz tentado a assimilar o caráter da infinitude da justiça defendido

por Lévinas. Trata-se de uma breve referência, ainda que significativa para entendermos em que

sentido a filosofia de Lévinas exerce neste escrito.

Estaria tentado, até um certo ponto, a aproximar o conceito de justiça – que aqui tendo a distinguir do direito – do de Lévinas. Fá-lo-ia, justamente, em razão desta infinitude e da relação heteronômica com outrem, com o rosto de outrem que me ordena, de quem não posso tematizar a infinitude e de quem sou refém.290

Essa presença de Lévinas na concepção de justiça de Jacques Derrida, ou esta

aproximação, se mostra, pois, “em razão desta infinitude e da relação heteronômica com

outrem ... “, visto que (e aqui ele cita o próprio Lévinas) “a relação com outrem - quer dizer,

justiça”, i.e. “retidão do acolhimento feito ao rosto” (cf. Totalité et infini). Uma retidão que não

se reduz ao direito, mas que é indissociável dele. Derrida faz em seguida alusão a um direito

infinito, em Lévinas, que teria como base não “o conceito de homem”, mas “o humanismo

judeu”, o de outrem: “a extensão do direito de outrem” é a de “um direito praticamente

infinito”.

A extensão desse direito é infinita porque

289 Idem, p. 36. 290 Idem.

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Aqui a eqüidade não é a igualdade, a proporcionalidade calculada, a distribuição eqüitativa ou a justiça distributiva, mas a dissimetria absoluta. E a noção levinasiana de justiça aproximar-se-ia mais do equivalente hebreu que nós traduziríamos talvez por santidade.291 Isto posto, Derrida abre a discussão em torno do problema da distinção entre justiça e

direito. Como indicamos no início deste capítulo, o texto Do direito à justiça é permeado pelo

propósito de desmontar essa distinção, uma tarefa que não é simples uma vez que ela não pode

ser tida como uma verdadeira distinção, como “uma oposição cujo funcionamento

permanecesse logicamente regulado e dominável”. O problema reside então na pretensão do

direito em “exercer-se em nome da justiça” que, por sua vez, “exige instalar-se num direito que

deve exercer-se (constituído e aplicado) pela força ‘enforced’”.292

O problema da distinção entre justiça e direito será tratado, inicialmente, a partir da

relação entre decisão e justiça (primeira aporia), que traz em seu bojo o questionamento sobre a

ação livre e responsável como condição do exercício da justiça.

O nosso axioma mais comum é o de que para ser justo – ou injusto, para exercer a justiça – , ou para a violar, tenho de ser livre e responsável pela minha ação, pelo meu comportamento, pelo meu pensamento, pela minha decisão. Não se dirá de um ser sem liberdade, ou pelo menos que não é livre neste ou naquele ato, que sua decisão é justa ou injusta. Mas esta liberdade ou esta decisão do justo deve, para ser e para ser dita tal, ser reconhecida como tal, seguir uma lei ou uma prescrição, uma regra.293 Neste ponto faço uma intervenção que está na base do que Derrida pretende

problematizar. Refiro-me ao sistema de organização dos comportamentos voluntários, onde no

mundo ocidental moderno a vontade constitui uma das dimensões essenciais da pessoa, vista em

seu aspecto de agente, fazendo da liberdade um atributo do querer – um poder que se apresenta,

portanto, como um poder sobre si mesmo ou sobre outro. E aqui reproduzo uma pergunta feita

por Hannah Arendt:294 o que levou os modernos a interiorizarem a liberdade,295 a ponto da

mesma não somente aparecer separada da política (da liberdade se mostrar independente), como

também aparecer identificada com a segurança, e eu acrescento, com a soberania?

291 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. pp. 36-37. 292 Idem, p. 37. 293 Idem, p.37 294 Arendt, Hannah. Que é liberdade in: Entre o Passado e Futuro. Ed Perspectiva S.A. SP, 2001. 295 Com esta interiorização pelos modernos da liberdade, o vinculo da política com a liberdade se desfaz porque esse vínculo não se mostra mais como ideal pertinente à esfera pública. Cf. Hannah Arendt.

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No que tange à separação entre liberdade e política, pode-se dizer que ela se mostra

como um corolário do sistema conceitual moderno, sistema que organizou os comportamentos

voluntários pautados na idéia de livre-escolha (ou livre-arbítrio) e autonomia.

A categoria da vontade supõe uma orientação da pessoa em direção à ação, além de uma

preeminência que, na ação, se atribui ao sujeito humano (agente) posto como origem, causa

produtora de todos os atos que dele emanam. O agente apreende-se a si mesmo, nas relações

com os outros e com a natureza, como um centro de decisão, como detentor de um poder que

não depende nem da afetividade, nem da inteligência pura, poder que não comporta o mais e o

menos. A vontade se apresentaria assim como um poder que não comporta divisão, e que se

manifesta em particular no ato de decisão. Assim, desde que um indivíduo se empenhe numa

opção (se decide), ele se constitui como agente, como sujeito responsável e autônomo que se

manifesta em atos e por atos que lhe são imputáveis.

Ou seja, só há ação na medida em que há um agente individualizado que seja o centro e

fonte dela; só há agente com um poder que ligue o ato ao sujeito que o decidiu e que, ao mesmo

tempo, assuma a responsabilidade por ele.296

A vontade no ocidente moderno, no sistema de organização dos comportamentos

“voluntários” se define portanto pela autonomia e pela livre-escolha, pelo querer e pelo poder de

escolha, pelo mandar e ser obedecido, e também, como observa Hannah Arendt, pelo conflito

entre o que eu quero e o que eu posso.

4.3 Decisão, justiça e indecidível: o questionamento derridiano sobre

a idéia de justiça presente

Com isto podemos voltar ao texto de Derrida, mais especificamente ao ponto da

discussão introduzida anteriormente sobre a relação entre decisão, justiça e indecidível, que é

indissociável do questionamento sobre a ação livre e responsável como condição do exercício

da justiça no direito. Relembro o que foi dito por Derrida: “O nosso axioma mais comum é o de

que para ser justo – ou injusto, para exercer a justiça – , ou para a violar, tenho de ser livre e

296 Cf. Dumont, Louis. O Individualismo, Rocco, 1985.

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114 responsável pela minha ação, pelo meu comportamento, pelo meu pensamento, pela minha

decisão”.

Este ato de decisão, pautado na idéia de autonomia e liberdade, deve seguir uma regra

(uma lei ou uma prescrição), “deve poder ser da ordem do calculável ou do programável, como

ato de eqüidade, por exemplo”.297 Mas para que haja decisão e para que uma decisão seja tida

como justa, o ato não “consiste simplesmente em aplicar uma regra”.

Nesta discussão Derrida toma como exemplo a decisão de um juiz, com o propósito de

mostrar que nenhuma decisão, presentemente, pode ser tida como justa, ou “puramente justa

(quer dizer, livre e responsável)”.298

Reconstituo esta aporia nos termos que seguem. Para que uma decisão possa ser tida

como justa (livre e responsável), é preciso que cada caso seja avaliado presentemente, no seu

momento próprio, sem dispensar o que prescreve a lei geral ou a regra de direito. Essa pureza

almejada pelo sistema normativo visaria legitimá-lo “confirmar-lhe o valor, por um ato de

interpretação restaurador, como se no limite a lei não existisse antes, como se o próprio juiz a

inventasse em cada caso”.299 E isso apoiado na crença de que haveria um momento próprio para

proferir uma decisão justa e responsável, ou seja, ao mesmo tempo, “conservadora da lei”,

regrada, e sem regra, “suficientemente destrutiva ou suspensiva da lei para dever, em cada caso,

reinventá-la, rejustificá-la, reinventá-la pelo menos na reafirmação e na confirmação nova e

livre do seu princípio”. Cada caso quer dizer que cada decisão é diferente que, por sua vez, vai

exigir uma interpretação que atenda a demanda, ou as demandas que cada caso apresenta. Ou

seja, vai exigir uma “interpretação absolutamente única que nenhuma regra existente e

codificada pode nem deve absolutamente garantir”. Com isso nos deparamos com duas

alternativas: se a decisão for referendada pela regra existente, ou pelo menos “a garantir de

modo seguro”, o juiz vai ser posto sob suspeita a partir da alegação de que ele não estaria sendo

puramente justo, livre e responsável. Em suma, ele seria avaliado como

uma máquina de calcular; o que às vezes acontece, o que acontece sempre em parte e segundo uma parasitagem, irredutível pela mecânica ou pela técnica, que introduz a iterabilidade das sentenças; mas, nesta medida não se dirá do juiz que ele é puramente justo, livre e responsável. 300

297 Derrida, Do direito à justiça, op.cit. p. 37. 298 Idem, p. 39. 299 Idem, p. 38. 300 Derrida. Do direito à justiça, op.cit.p. 38.

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Na outra alternativa o juiz também será posto sob suspeita, e a partir da mesma alegação

referida: a de que ele não estaria sendo puramente justo, livre e responsável. É quando o juiz se

mostra propenso a não se referir a nenhuma lei escrita, a nenhuma regra, “ou se, devido a não

ter nenhuma regra por dada, para além da interpretação, ele suspender a sua decisão, parar no

indecidível ou, ainda, improvisar fora de qualquer regra e de qualquer princípio”.301

Através do resultado do paradoxo apresentado nesta primeira aporia pode-se

compreender melhor, ainda que de um outro ângulo, o jogo da submissão e da subtração a que

Derrida se referia no seu questionamento sobre a metafísica como pensamento do presente -

discutido no capítulo anterior a partir principalmente do Ousia e Grammé, onde o autor

reconstitui a leitura heideggeriana de Aristóteles e de Hegel tal como efetuada na época do Ser e

Tempo.

Este jogo (acrescento) pode ser verificado no âmbito do direito, que na sua pretensão de

exercer-se em nome da justiça, e de tentar produzir, no momento próprio (presentemente), uma

decisão justa (livre e responsável), obscurece o fato de que essa pretensão está submetida à

ordem do calculável, sem a qual o direito não poderia garantir a estabilidade da sua existência

como legalidade. Essa problemática que é destacada por Derrida através do exemplo da decisão

de um juiz, é redimensionada – é quando ele levanta a idéia de que, em momento algum, se

pode dizer (presentemente) que alguém “é um justo, menos ainda ‘eu sou justo’”. Para ser justo

com a justiça, seria melhor admitir que esse ‘justo’ refere-se ao que é “legal ou legítimo”, que

por sua vez está “em conformidade com um direito, regras e convenções que autorizam um

cálculo, mas com um direito cuja origem fundadora mais não faz do que arredar o problema da

justiça”.302 Isso porque (continua Derrida),

no fundamento ou na instituição deste direito, o mesmo problema terá sido posto, violentamente resolvido, quer dizer, enterrado, dissimulado, recalcado. O melhor paradigma é aqui a fundação

301 Idem, pp. 38-39. 302 Lembremos que neste texto não encontramos referências longas ao pensamento de Heidegger, mas apenas alusões (já registradas aqui em nota), como a alusão sobre a estranha correspondência que Carl Schmitt manteve com Heidegger e Benjamin, entre outros. Além disso ele procura mostrar, ainda que rapidamente, ou muito fortuitamente, que não se pode confundir a temática da Destruktion heideggeriana, com o conceito da “Destruição”, que esteve também no centro do pensamento benjaminiano, em especial no seu Zur Kritik der Gewalt. E será por conta da intrincada ligação operada na época (década de 1920), que este texto de Derrida procura imprimir um outro ritmo, ou um outro estilo, à leitura da obra de 1921. Talvez seja por este motivo que a decisão, que no âmbito do direito é tido como um termo técnico, ou seja, provido de absoluta pureza, se mostre tão cuidadosamente apresentado nesta primeira aporia.

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dos Estados-Nações ou o ato instituinte de uma constituição que instaura aquilo que, em francês, se chama o estado de direito.303 *** Isto leva a pensar em um aspecto da discussão efetuada por Agamben sobre a

problemática da decisão como indecibilidade, que foi abordada a partir de uma situação limite, o

estado de exceção, mas nem por isso menos paradigmática para a compreensão das inúmeras

estratégias que o direito aciona – também por meio do conceito “força de lei” – em uma

situação onde vigora o chamado estado de direito. E é isso que vimos, através da reconstituição

de alguns pontos da interpretação do autor sobre A crítica da violência, de Walter Benjamin;

interpretação que se mostrou afinada com a inquietação que o ensaio benjaminiano trazia, em

relação ao questionamento de que o direito poderia estar efetivamente comprometido com a

justiça.

Este questionamento foi igualmente trazido à tona por conta do conceito de decisão,

mais especificamente por conta da intervenção de Carl Schmitt, que no Politische Theologie o

apresenta nos termos de uma distinção, entre a norma e a sua realização, entre norma e decisão.

Distinção que pretende legitimar um estado (o estado de exceção) que escapa à norma a partir

de um “elemento formal especificamente jurídico: a decisão (Schmitt, 1922, p. 19)”. O que para

Benjamin não passa de uma “peculiar e desmoralizante experiência da indecibilidade última de

todos os problemas jurídicos (Benjamin, 1921, pp. 189 e 196)”. E nesse ponto (como vimos)

Agamben recorre à obra de 1928 (Origem do drama barroco alemão), onde o problema da

indecibilidade (segundo a interpretação do autor italiano) aparece inscrita no âmbito da

discussão sobre a questão da indecisão soberana, onde Benjamin opera uma separação entre o

poder soberano e o exercício de tal poder; separação que põe em cena a idéia de que entre o

poder e o exercício do poder, há uma distância que nenhuma decisão é capaz de preencher.

Esta separação, que corresponde à separação entre normas do direito e normas de

realização do direito, entre norma e decisão, pretende denunciar o caráter metafísico presente no

conceito schmittiano de decisão: com a suspensão da norma, o estado de exceção “revela

303 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 39.

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117 (offenbar) em absoluta pureza um elemento formal especificamente jurídico: a decisão (Schmitt,

1922, p. 19)”.304

Assim, tomando como referência a discussão entre norma e decisão efetuada por

Schmitt, concluiu-se que a discussão benjaminiana sobre a decisão posta no âmbito da

problemática da indecisão soberana – interpretada por Agamben nos termos de uma

indecibilidade - põe em cheque a identificação entre poder e exercício do poder requerida pela

teoria schmittiana da soberania, erigida então (mas não somente) a partir da categoria decisão tal

como pensada metafisicamente. Entre Macht e Vermögen, há uma distância, ou um vazio, que

nenhuma decisão é capaz de preencher.

O soberano que, a cada vez, deveria decidir a respeito da exceção, é precisamente o lugar em que a fratura que divide o corpo do direito se torna irrecuperável: entre Macht e Vermögen, entre o poder e seu exercício, abre-se uma distância que nenhuma decisão é capaz de preencher.305

***

No âmbito da segunda aporia (“a assombração do indecidível”), Derrida deixa entrever

que esta distância entre Macht e Vermögen, para explicar o problema da indecisão – ou da

impossibilidade de decidir – estaria calcada na idéia de decisão livre e responsável. E talvez seja

por isso que ele apresente um questionamento mais incisivo sobre essa idéia, que dependeria da

prova do indecidível para ser tida como uma decisão verdadeiramente livre.

Ele abre essa aporia questionando a idéia de que na forma do direito, haveria a

posssibilidade de se falar de um exercício da justiça com vistas a sua efetivação. Salvo por uma

decisão cortante, a de que a decisão de calcular não pode fazer parte da ordem do calculável.

Esta decisão de justiça não consiste apenas na sua forma final, numa sanção penal, por exemplo, eqüitativa ou não, na ordem da justiça proporcional ou distributiva. Começa, deveria em direito ou em princípio começar, com a iniciativa de tomar conhecimento, de ler, de compreender, de interpretar a regra, e mesmo de calcular. Porque se o cálculo é cálculo, a decisão de calcular não é da ordem do calculável, e não deve sê-lo.306

É por este motivo (igualmente) que se faz necessário dissipar a associação do “tema da

indecibilidade”, com o que no âmbito da desconstrução entende-se por indecidível. Dirá

304 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 56. 305 Idem, p. 88. 306 Idem, p. 39.

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118 Derrida: “O indecidível não é apenas a oscilação ou a tensão entre duas decisões”,307 mas a

“experiência daquilo que, estrangeiro, heterogêneo à ordem do calculável e da regra, deve no

entanto – é de dever que é preciso falar – entregar-se à decisão impossível, tendo embora em

conta o direito e a regra”.308

Mas isto que para Derrida constitui a prova do indecidível, não poderia ser concebido

como um momento ultrapassado ou relevado (aufgehoben) na decisão. Para melhor explicar

essa fala, reconstituo os passos dos argumentos efetuados pelo autor.

Primeiramente ele faz referência à liberdade que a experiência do indecidível

proporciona: uma decisão só pode ser tida como efetivamente livre quando se faz a experiência

do indecidível. Caso contrário, “ela não passaria da aplicação programável ou do desenrolar

contínuo de um processo calculável”. E nesse caso então, a decisão poderia ser talvez legal, mas

não justa, o mesmo valendo para o momento em que se efetua a experiência da suspensão do

indecidível, onde ela também não é justa. Nesse ponto Derrida introduz o enunciado que segue:

“só uma decisão é justa”,309 que na verdade (como se verá adiante), se refere à “idéia de

justiça” infinita. Com o enunciado só uma decisão é justa, o autor está querendo demonstrar que

é possível falar de decisão sem que para isto tenhamos que nos referir “à estrutura de um sujeito

ou à forma proposicional de um juízo”. E ainda que a cultura ocidental procure reforçar a idéia

de autonomia e liberdade a partir do ato de decisão, sempre referido a um “sujeito”, esse (de

uma certa maneira) não pode nunca decidir nada. O sujeito seria “mesmo aquilo a que uma

decisão não pode acontecer senão como um acidente periférico que não afeta a identidade

essencial e a presença a si substancial, que fazem de um sujeito um sujeito”.310

Através destas intervenções, o autor vai poder mostrar o que no decorrer deste trabalho

vem se mostrando recorrente: o questionamento sobre a metafísica como pensamento do

presente (como pensamento do ser como presença). E não é por acaso que a categoria decisão,

tão crucial como termo técnico, ou como uma regra, com vista à afirmação da idéia de justiça no

direito, se apresente (pelo menos até o momento) como uma espécie de caso exemplar para o

307 Ou seja, não é tão somente a oscilação “entre duas significações ou entre duas regras contraditórias e determinadas, mas igualmente imperativas”. Por exemplo, o “respeito do direito universal e da eqüidade, mas também da singularidade sempre heterogênea e única do exemplo não subsumível”. 308 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 40. 309 Idem. 310 Idem.

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119 desdobramento do enunciado só uma decisão é justa – enunciado que pretende pôr em cheque

“toda a presunção à certeza determinante de uma justiça presente”.311

Voltemos à prova do indecidível. Derrida acentua que uma decisão só pode ser tida

como uma decisão livre após passar por essa experiência; onde então ela pode ser

experimentada como uma regra, mas como uma regra distinta da convencionalmente

estabelecida, i.e. “presentemente justa, plenamente justa”.312 A peculiaridade dessa prova é que,

enquanto experiência, não pode ser concebida como um momento ultrapassado ou relevado na

decisão. Nessa experiência o indecidível permanece alojado como um fantasma, ainda que

alojado como “um fantasma essencial ... em todo o evento [événement] de decisão”.313

Através do uso desta metáfora, Derrida quer acentuar que a passagem pela prova do

indecidível pode redimensionar a idéia de decisão, como uma decisão livre. É quando a decisão,

nesse percurso, “volta a seguir uma regra ... inventada ou reinventada, reafirmada” e nessa

condição, não mais presentemente e plenamente (absolutamente) justa. Como invenção ou

reinvenção, reafirmação, não se pode dizer que a decisão “foi tomada como uma regra” e, nesse

sentido, “nada permite dizê-la justa”, ou que “já seguiu uma – que, por sua vez, nada garante

absolutamente”. E se fosse plenamente garantida, “a decisão ter-se-ia tornado cálculo e não se

poderia dizê-la justa”.314

A experiência (ou prova) do indecidível, que guarda em sua memória um rastro vivo,

atua (no interior da própria experiência) como uma espécie de fantasma, ou de assombração,

sobre toda “segurança de presença, toda a certeza ou toda a pretensa criteriologia que nos

asseguraria da justiça de uma decisão, na verdade do próprio evento da decisão”. E quem

poderá assegurar (questiona o autor) que o ato de decisão, erigido ou informado a partir desses

critérios, “não seguiu, de acordo com este ou aquele rodeio, uma causa, um cálculo, uma regra,

sem mesmo ter procedido a esta suspensão imperceptível que decide livremente da aplicação ou

não de uma regra?”315

Como acrescenta Derrida, a axiomática que comanda o discurso jurídico atual e

hegemônico, bem como a categoria de decisão – a axiomática “subjectale” da responsabilidade,

da consciência, da intencionalidade, da propriedade – sendo uma axiomática limitada (ou frágil) 311 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 41. 312 Idem, p. 40. 313 Idem, p. 41. 314 Idem, p. 40. 315 Idem.

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120 afeta o decisionismo (em sua forma ingênua ou elaborada) que, por sua vez, se manifesta

através de casos mais tangíveis. E aqui o autor está querendo acentuar o dogmatismo obscuro

que marca os discursos sobre a responsabilidade nos momentos das audiências – onde são

produzidas as decisões – que conta até mesmo com o auxílio dos “especialistas”.

O dogmatismo obscuro, que marca os discursos sobre a responsabilidade de um acusado, sobre o seu estado mental, o caráter passional, premeditado ou não, de um crime, as deposições incríveis de testemunhos ou de “especialistas” a tal respeito, bastariam para atestar, na verdade para provar, que nenhum rigor crítico ou criteriológico, nenhum saber são acessíveis a tal respeito.316 Vale lembrar que o que aí é dito, já traz em germe o que será tratado na terceira e última

aporia (“a urgência que barra o horizonte do saber”) onde o questionamento sobre “toda a

presunção à certeza determinante de uma justiça presente”, passa a ser discutido em sua relação

com a justiça por vir. No âmbito da segunda aporia esse questionamento é apresentada nos

termos que seguem:

se há desconstrução de toda a presunção à certeza determinante de uma justiça presente, ela opera, ela mesma, a partir de uma “idéia de justiça” infinita, e infinita porque irredutível, e irredutível porque devida ao outro – devida ao outro antes de todo e qualquer contrato, porque vinda, a vinda do outro como singularidade sempre outra.317 Uma tal justiça, que desmonta a pretensão do direito exercer-se em nome da justiça,

é o próprio movimento da desconstrução a operar no direito e na história do direito, na história política e na história tout court, antes mesmo de se apresentar como o discurso que assim se intitula na academia ou na cultura do nosso tempo – o “desconstrucionismo”.318

No entanto, esta “idéia de justiça” não pode levar a pensar imediatamente em todos os

horizontes, mas a um tipo de horizonte, como, por exemplo, o horizonte pressuposto na idéia

reguladora de justiça no sentido kantiano, ou no do acontecimento messiânico. Nesse caso, a

reserva de Derrida incide sobre o fato de serem horizontes; ou ainda, sua reserva é precisamente

devido a serem horizontes. E para corroborar essa reserva ele recorre a indicação que a língua

316 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 41. 317 Neste ponto Derrida alude ao pensamento de Pascal, ou a sua maneira de falar sobre esta idéia de justiça, que contra qualquer ceticismo teria se mostrado propenso a defender a indestrutibilidade dessa idéia “no seu caráter afirmativo, na sua exigência de dom sem troca, sem circulação, sem reconhecimento, sem círculo econômico, sem cálculo e sem regra, sem razão ou sem racionalidade teórica, no sentido de dominação reguladora”. Derrida. Do direito à justiça, pp. 41-42. 318 Idem, p. 42.

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121 grega oferece sobre o nome horizonte. Um horizonte “é ao mesmo tempo a abertura e o limite

da abertura que define, quer um progresso infinito, quer uma espera”.319

4.4 A justiça presente e a justiça por vir

Na última aporia Derrida vai discutir a questão da justiça presente em sua relação com a

justiça por vir; que está ligada à reserva apontada presedentemente, onde a justiça presente,

posta pelo direito – marcada pela imediaticidade do ato de decisão – será redimensionada face

ao horizonte do saber, que requer uma espera que, no âmbito do direito, não pode esperar:

a justiça, por mais inapresentável que seja, não espera. Ela é o que não deve esperar ... uma decisão justa é sempre imediatamente requerida, imediatamente, o mais depressa possível. Não consegue obter a informação infinita e o saber sem limites das condições, das regras ou dos imperativos hipotéticos que a poderiam justificar.320

E ainda que pudesse dispor destes recursos (continua Derrida), o “momento da decisão,

enquanto tal, o que deve ser justo, deve permanecer um momento finito de urgência e de

precipitação”. Isso quer dizer que a decisão - como ato(s) de justiça ou de direito - é

estruturalmente finita, e constituída por esse momento finito.

Estes atos “tout courts”, que são marcados pelo “avanço excessivo de interpretação”, e

nomeado como transbordamento do performativo (performativo que vigora nos “atos de

linguagem”), tem um valor instituidor que se mostra tanto ou mais eficaz na medida em que o

performativo corrente lança mão de uma convenção anterior. Como explica o autor, um

performativo só poderia ser justo, “no sentido da justiça, senão fundando-se em convenções, e

portanto sobre outros performativos escondidos ou não”, conservando “sempre em si qualquer

violência eruptiva. Não responde mais às exigências da racionalidade teórica”. E ainda que

esse constativo (que constitui uma dimensão de justeza e de verdade) repouse na estrutura

performativa (na estrutura da certeza baseada no a priori), ele não responde mais às exigências

da certeza a priori. Daí se poder falar de uma precipitação essencial da dimensão de justiça dos

enunciados performativos, precipitação que acontece com “uma certa dissimetria” e com

319 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 43. 320 Idem, pp. 43-44.

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122 “alguma qualidade de violência”.321 Essa interpretação efetuada a partir da proposição

apresentada por Lévinas – a de que “a verdade supõe a justiça” -– conduz Derrida a indicar o

que há de paradoxal neste transbordamento do performativo.

Paradoxalmente, é por causa deste transbordamento do performativo, por causa deste avanço sempre excessivo da interpretação, por causa desta urgência e desta precipitação estrutural da justiça, que ela não tem horizonte de espera (regulador ou messiânico).322

E por isto mesmo (continua o autor) a justiça tem

talvez, um porvir (avenir), justamente, um por-vir (à-venir) que será preciso distinguir rigorosamente do futuro. Este perde a abertura, a vinda do outro (que vem) sem a qual não há justiça; e o futuro pode sempre reproduzir o presente, anunciar-se ou apresentar-se como um presente futuro na forma modificada do presente. A justiça permanece por vir (à venir), ela tem que vir ... Talvez seja por isso que a justiça, na medida em que não é apenas um conceito jurídico ou político, abra ao porvir a transformação, a reforma ou a refundação do direito e da política.323 Estas palavras, que ensaiam o “fechamento” Do direito à justiça, remetem para o que

falamos no âmbito deste capítulo: a de que haverá um momento (um por-vir) em que, diante do

que nos encontramos, e somos responsáveis, a justiça venha a se realizar, ainda que como uma

promessa. O que só vêm a confirmar a importância do vínculo estabelecido pelo autor entre

responsabilidade, memória e justiça, condição assaz importante para uma possível efetuação da

referida abertura.

Esta condição está assentada na idéia da justiça como experiência do impossível (cf.

tópico 4.2, A justiça em sua dupla face, ou em seu duplo movimento), que traz consigo a

exigência de se calcular com o incalculável. “A justiça incalculável manda calcular”. Esse

duplo movimento da justiça, “comandado” por uma promessa, a saber, a promessa de se poder

fazer a experiência da justiça como “experiência da alteridade absoluta”, nos é apresentado nos

termos que seguem. A justiça que permanece por vir (I), ainda que inapresentável, seria “a

chance do evento (événement)” se tornar possível, e que, enquanto evento, “excede o cálculo, as 321 Derrida. Do direito à justiça, op.cit p. 45. 322 Idem. Derrida se refere aqui, como já indicamos, ao horizonte pressuposto na idéia reguladora kantiana, ou ao do acontecimento messiânico. Trata-se portanto de um tipo de horizonte, “cujas espécies seriam numerosas e concorrentes”, e concorrentes porque semelhantes e com a pretensão de “ter sempre o privilégio absoluto e a singularidade irredutível. A singularidade do lugar histórico ... permite-nos entrever o próprio tipo como a origem, a condição, a possibilidade ou a promessa de todas as exemplificações (messianismo ou figuras messianicistas determinadas de tipo judaico, cristão ou islâmico, idéia em sentido kantiano, escato-teologia de tipo neo-hegeliano, marxista ou pós-marxista, etc.). Do direito à justiça, p. 42. 323 Idem, p. 46.

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123 regras, os programas, as antecipações, etc.” Mas esse excesso em relação ao direito e ao

cálculo, ou esse “transbordamento do inapresentável em relação ao determinável”, não (II)

“pode ou não deve servir de álibi para o alheamento das lutas jurídico-políticas, no interior de

uma instituição ou de um Estado, entre instituições ou entre Estados”.324

De acordo com estas duas perspectivas, a justiça que manda calcular deve observar duas

outras condições. Primeiramente a de que seria preciso calcular em relação ao que está mais

próximo da associação que geralmente se faz sobre a justiça, como é o caso do direito, ou do

campo jurídico; um campo que, por sua vez, não é capaz de assegurar as suas fronteiras, visto

que há outros campos “que intervêm nele e que não são apenas campos: a ética, o político, a

técnica, o econômico, o psico-sociológico, o filosófico, o literário, etc”.

Além disto, seria preciso forjar uma negociação para além “do lugar onde nos

encontramos e para além das zonas já identificáveis da moral, da política ou do direito, para

além da distinção entre o nacional e o internacional, o público e o privado, etc”.

Daí ser necessário reinventar uma “ordem” (ou seja, forjar uma invenção do impossível)

que não pertença nem à justiça, nem ao direito, nem tampouco à politização aí envolvida, que é

interminável; e que ao ser tratada como uma oposição entre complexidade e simplicidade,

obriga a reinterpretar “os próprios fundamentos do direito, tal como eles previamente tenham

sido calculados ou delimitados”. O que teria ocorrido, por exemplo, nas lutas emancipadoras em

favor da Declaração dos Direitos do Homem, da abolição da escravidão, etc., então informadas

pelo ideal clássico de emancipação. O que não implica desqualificá-lo, ou mesmo renunciar a

ele, ainda que, diante da politização envolvida no âmbito jurídico – ou da “jurídico-politização”

em sua vertente geo-política, i.e. como direito internacional – se faça necessário reelaborar o

próprio “conceito de emancipação, de franqueamento ou de ‘libertação”.325

É preciso pois reelaborar esse conceito para além do direito e da justiça, e precisamente

“para além de todas as reapropriações determinadas e particulares do direito internacional”;

onde então outras zonas poderão abrir-se, ainda que inicialmente lhes possam parecer

secundárias ou marginais. E essa marginalidade, acrescenta o autor,

significa também que uma violência, um terrorismo mesmo, bem como outras formas de fazer reféns estão a operar. Os exemplos mais próximos de nós deveriam ser procurados do lado

324 Derrida. Do direito à justiça, op.cit, p. 46 325 Idem, p. 47

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das leis relativas ao ensino e à prática das línguas, a legitimação dos cânones, a utilização militar da investigação científica, o aborto, a eutanásia, os problemas da enxertia de órgãos, de nascimento extra-ulterino, a bio-engenharia, a experimentação médica, o “tratamento social” da sida (AIDS), as macro ou micropolíticas da droga, dos sem-abrigo, etc. (...).326

4.5 O por vir e as políticas da diferença

Levando em conta estes dados, vou reconstituir uma pequena fatia do debate

contemporâneo sobre a diferença, a partir de alguns dos posicionamentos de Derrida sobre as

políticas da diferença. Um posicionamento que é indissociável da sua discussão – apresentada

no texto Imprevisível liberdade - sobre a concepção de evento (o por vir), e onde noções como

a de decisão, de responsabilidade, de liberdade são questionadas mais incisivamente e

aparecem a serviço de uma determinada lei, a da heteronomia.

Começo pelo que é tratado no texto Políticas da diferença,327 onde o autor busca

inicialmente esclarecer o que no decorrer deste estudo já foi citado (cf. capítulo 3): a de como

situar o pensamento da différance – que está mais próximo da associação que se faz do universal

– diante das diferenças.

O que o motivo da différance tem de universalizável em vista das diferenças é que ele permite pensar o processo de diferenciação para além de qualquer espécie de limites: quer se trate de limites culturais, nacionais lingüísticos ou mesmo humanos. Existe a différance desde que exista um rastro vivo, uma relação vida/morte ou presença/ausência ... Existe différance desde ... que haja o rastro, através e apesar de todos os limites que a mais forte tradição filosófica ou cultural acreditou reconhecer entre o “homem” e o “animal” ... Há portanto aí claramente uma potência de universalização. Depois a différance não é uma distinção ... mas um movimento de espaçamento, um devir-espaço” do tempo, um “devir-tempo” do espaço, uma referência à alteridade, uma heterogeneidade que não é primeiramente oposicional. Daí uma certa inscrição do mesmo, que não é o idêntico, como différance.328 Estes esclarecimentos que aparecem no referido texto - publicado pela primeira vez em

1965 -, demonstram que o autor procura se posicionar – a partir do pensamento da différance –

sobre a intrincada e polêmica discussão, que emerge na década de 1960, com relação às

326 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 48. 327 Lembro que os dois textos (entre outros), foram publicados com o título De que amanhã ... Diálogos, juntamente com Elisabeth Roudinesco. 328 Derrida. Políticas da diferença, op.cit. p. 33.

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125 diferenças. Uma discussão que a partir da década de 1990329 passa a ser nomeada como “política

do reconhecimento”, como “multiculturalismo” ou como “pluralismo”; divisões que se

subdividem em outras, como a famosa divisão (ou debate) entre “liberais” e “comunitários” no

interior do chamado pluralismo330, debate que ganhou visibilidade com a retomada do

contratualismo liberal de base kantiana por meio do trabalho de John Rawls, Uma Teoria da

Justiça.331

No texto Políticas da diferença, Derrida se pronuncia sobre os chamados comunitaristas

nos seguintes termos.

De uma maneira geral ( ... ) sempre desconfiei do culto do identitário, bem como do comunitário, que lhe é freqüentemente associado. Procuro sempre lembrar a dissociação cada vez mais necessária entre o político e o territorial ... (reticências do autor). Compartilho de sua

329 Lembremos que os dois trabalhos (de Jacques Derrida) que constituem o Força de Lei (Do direito à justiça e Prenome de Benjamin) foram apresentados, nos EUA, por volta deste período. Cf. nota 1 do capítulo 4. 330Para Gisele Cittadino, o pluralismo possui duas significações distintas: “ou o utilizamos para descrever a diversidade de concepções individuais sobre a vida digna (representados pelos liberais contratualistas: John Rawls, Ronald Dworkin e Charles Larmore); ou para assinalar a multiplicidade de identidades sociais, específicas culturalmente e únicas do ponto de vista histórico. Quanto a esta significação de pluralismo, são os representantes do pensamento comunitário – Michael Walzer, Charles Taylor, Michael Sandel e Alasdair MacInttire – que a utilizam para salientar a multiplicidade de formas específicas de vida que compartilham valores, costumes e tradições. Cittadino, G. Introdução, pp.1-2, in: Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva, Ed. Lumen Júris Ltda, RJ, 2000. 331A Theory of Justice, Cambridge, Massachusets, 1971; Trad. Bras. Uma Teoria da Justiça, Martins Fontes, SP, 1997. John Rawls levanta o problema da pluralidade de doutrinas compreensivas incompatíveis entre si – religiosas, filosóficas e morais -, tendo por finalidade o estabelecimento de um consenso. Para tanto faz questão de enfatizar que este problema – que diz respeito a uma concepção política de justiça –, não pressupõe nenhuma doutrina particular. Cada doutrina “funciona como um componente, um módulo que se pode acrescentar ou adaptar a numerosas doutrinas distintas ou que pode ser delas derivado. De certa maneira ela pode ser a base de um consenso”. (Cf. Rawls, J. Préface (p.10), in: Justice et Démocratie, Paris, Éditions du Seuil, 1993). Além disto, também não pressupõe nenhuma situação individual particular. No entender de Rawls, um indivíduo seria portador de um ideal de vida coletivo (de cooperação social) e, enquanto tal não pode ser dela separado – pois é isso que definiria a sua identidade pessoal como identidade política. A teoria política da justiça tentará engendrar uma adaptação através do estabelecimento de um liame indireto entre pluralismo moral e consenso político. O que implica incluir o debate sobre o modo como os indivíduos percebem e aderem os princípios que guiam a legislação e a esfera jurídica, nos regimes democráticos; implica portanto promover uma coexistência razoável entre as liberdades/direitos individuais e os seus limites através da justiça social, contribuindo para fazer brotar um consenso. Mas para que isto ocorra é preciso que os valores morais não sejam unificados como aplicações diretas de uma mesma doutrina compreensiva junto à sociedade, que para Rawls não constitui uma comunidade; entre elas há apenas uma estrutura parecida, resultante de um consenso em uma sociedade não homogênea. Os valores morais se exprimiriam então por meio das instituições políticas e de seu funcionamento; valores aos quais os indivíduos poderiam se identificar – a despeito de em outros lugares eles se identificarem com valores muito diferentes. E ainda que se trate de uma justificação endereçada aos que estão em desacordo conosco, ela deve sempre partir de premissas que nós e os outros reconhecemos como publicamente aceitáveis. Além disto, a teoria da justiça como eqüidade não pode permitir que os desacordos entre valores morais se reduzam a uma querela entre indivíduos – que são capazes de combinarem os valores sem no entanto chegarem a um consenso Rawls procura solucionar o problema através do que designa concepção política da sociedade e da pessoa, que define a sociedade como devendo realizar um ideal de cooperação social entre os cidadãos que querem ser tratados como pessoas morais, livres e iguais; concepção que permitiria aos mesmos reconhecerem o ideal político da democracia ao qual aspiram por razões variadas. (Cf. La priorité du juste et les conceptions du Bien, p.311 Justice et Démocratie).

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preocupação diante da lógica comunitária, diante da compulsão identitária, e resisto ... a esse movimento que tende para um narcicismo das minorias que vem se desenvolvendo por toda a parte ... Em certas situações, deve-se todavia assumir responsabilidades políticas que nos ordenam uma certa solidariedade para com aqueles que lutam contra esta ou aquela discriminação, e para fazer reconhecer uma identidade nacional ou lingüística ameaçada, marginalizada, minorizada, delegitimizada, ou ainda, quando uma comunidade religiosa é submetida a repressão.332 No entanto, dirá ainda o autor, “isto de modo algum impede que se desconfie da

reivindicação identitária ou comunitária enquanto tal”.333 Com isso ele quer acentuar que

diante de uma discriminação, ou de uma ameaça de discriminação momentânea, é preciso fazer

uma aliança igualmente “momentânea, prudente”, ou seja, uma aliança “ao mesmo tempo

apontando seus limites – tornando-os tão explícitos e inteligíveis quanto possível”. Através

desse posicionamento com relação as inúmeras diferenças, e as causas que as acompanham –

como por exemplo, “a das mulheres, dos homossexuais e outros grupos” – Derrida está

querendo dizer que se faz necessário apoiá-las, um apoio que deve se extinguir no momento em

que se percebe o que há de potencialmente perverso, ou perigoso, nessa lógica da reivindicação.

O comunitarismo ou o Estado-nacionalismo são as figuras mais evidentes desse risco, e portanto desse limite na solidariedade. O risco deve ser avaliado a cada instante, em contextos cambiantes que dão lugar a transações sempre originais. Nenhum relativismo nisso, trata-se ao contrário da condição de uma responsabilidade efetiva, se algo assim existe.334 Diante das complexas situações que as sociedades ocidentais apresentam, a

responsabilidade política (para Derrida) vai ser acompanhada de uma sugestão: a de que as

escolhas políticas não sejam mais pautadas por oposições nitidamente definidas. Essa

responsabilidade reside em “buscar calcular o espaço, o tempo e o limite da aliança”. O que

implica que as escolhas políticas sejam antes determinadas por “acentuações do que por

oposições nitidamente definidas: eu sou isto ou aquilo. Não, eu sou isto e aquilo; e sou antes

isto do que aquilo, de acordo com as situações e as urgências”.335

Esta idéia de responsabilidade política remete para a discussão efetuada no tópico 4.4,

onde a questão da justiça presente - em sua relação com o saber - é redimensionada . Se, no caso

332 Derrida. Políticas da diferença, op.cit p. 34. 333 Idem, p. 35. 334 Idem. 335 Idem.

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127 da justiça posta pelo direito, “uma decisão é sempre imediatamente requerida”, no âmbito do

saber, ou do seu horizonte, é requerida uma espera – que aponta para um futuro – que “perde a

abertura, a vinda do outro (que vem)”, sem a qual também não há justiça; e que se refere ao

duplo movimento que a justiça traz consigo: a de que a justiça incalculável, a justiça que

permanece por vir (um por vir que não é sinônimo de futuro), não pode ou não deve alimentar

uma atitude de indiferença face ao momento da decisão, ou da imediaticidade do ato de decisão

(o que deve ser justo).

Este momento, que deve permanecer como “um momento finito de urgência e de

precipitação”, leva a pensar que uma das faces da responsabilidade política - defendida por

Derrida - a tomada de uma decisão por solidariedade, diante das discriminações sofridas por

inúmeros grupos (ou inúmeras diferenças), seria também marcada por um momento finito de

urgência e precipitação; e que na qualidade de decisão finita precisa apontar os limites que uma

tal decisão pode trazer consigo.

Portanto não hesito em apoiar, por mais modestamente que seja, causas como as das feministas, dos homossexuais, dos povos colonizados [trata-se aqui, segundo o autor, de “compreender a urgência vital do reflexo identitário”], até o momento em que desconfio, até o momento em que a lógica da reivindicação me parece potencialmente perversa ou perigosa.336 Como se pode notar até o momento, Derrida fala da categoria responsabilidade sem

acionar uma das tantas outras que estão próximas da associação que se faz da mesma, como a do

respeito. Uma categoria que n’A Política do Reconhecimento de Charles Taylor, por exemplo,

se mostra importante para a defesa de sua tese sobre o reconhecimento das diferenças. A

Política do Reconhecimento (ensaio publicado pela primeira vez em 1995) defende o

reconhecimento das diferenças entre pessoas e culturas pautado na idéia, ou na crença, de um

possível estabelecimento de uma fusão de horizontes;337 idéia que, por sua vez, está calcada

(mas não somente) no seu questionamento sobre o que chama teorias subjetivistas,

336 Derrida. Políticas da diferença, op.cit. p. 35. 337 Esta expressão cunhada por Gadamer, pretende ensinar (segundo Taylor) como devemos nos movimentar diante de uma cultura bastante distinta da nossa, onde a compreensão do que “significa ter valor”, por ser desconhecidas para “nós”, geralmente tende a provocar um certo estranhamento. Ou ainda, tende a ser sentida por “nós” como algo que ameaça o que até então “tínhamos por certo como a base da valoração”, como a base, portanto, da nossa identidade. Com a fusão de horizontes “aprendemos a nos movimentar num horizonte mais amplo em que aquilo que antes tínhamos por certo como a base da valoração pode ser situado como uma possibilidade ao lado da base diferente da cultura desconhecida. A fusão de horizontes opera por meio do desenvolvimento de novos vocabulários de comparação voltados para articular esses novos contrastes”. A Política do Reconhecimento (p.270) in: Argumentos Filosóficos, Edições Loyola, 2000.

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128 freqüentemente invocadas neste debate. “Derivando muitas vezes de Foucault ou Derrida, elas

alegam que todos os juízos de valor se baseiam em padrões em última análise impostos por

estruturas de poder que contribuem para consolidar”.338 Levando à escolha e/ou valorização de

um lado, por solidariedade, o que significaria renunciar à força que alimenta este tipo de política

– a busca de reconhecimento e respeito.

***

Esta idéia lançada por Taylor remete para uma indicação já apresentada no decorrer

deste trabalho, através de Hannah Arendt, sobre a separação entre liberdade e política - efetuada

no limiar da modernidade em nome da liberdade individual, que para garantir a sua permanência

deveria estar desvinculada da política.339 Um vínculo que, não obstante, parece se recolocar (na

contemporaneidade) como uma condição importante para viabilizar a formação de um coletivo

sem exclusões (por opção sexual, religiosa, por origem social, racial, etc.). E que ainda retém

uma das principais idéias propagadas pelo projeto civilizatório instaurado na modernidade; que

fundado em argumentos universalistas promete igual respeito e igual dignidade para todas as

pessoas e culturas – por conseguinte, promete igual respeito à diferença.

É preciso não esquecer que o modelo que serve de base a inúmeras constituições

democráticas modernas (o modelo político liberal clássico) é estruturado a partir de um espaço

público supostamente igualitário; e enquanto tal precisa acionar certos mecanismos a fim de que

esse postulado seja preservado. Daí se observar nestas constituições a presença da prática da

tolerância, e até mesmo de certos artifícios “menos nobres”, como as políticas de

favorecimentos, para que as diferenças não se mostrem publicamente, sob pena de arranhar o

que se apresenta como um dos postulados de qualquer democracia liberal. O que quer dizer:

homogeneizando as diferenças publicamente, ficaria garantido o ideal de tratamento igualitário

de todos os indivíduos reunidos em uma democracia liberal.

E isto em nome do argumento do respeito. É assim que o respeito à diferença, por

conseguinte o respeito à dignidade, enquanto uma das balizas constitucionais das democracias

338 Idem, p. 272. 339Arendt, H. Entre o Passado e o Futuro, op.cit.

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129 liberais, fez de sua capacidade de integrá-lo um dos fundamentos de sua legitimidade, e um dos

principais argumentos de sua “superioridade” civil e moral.

A solução para tal consistiu, e ainda consiste, em “diluir” as diferenças nesta igualdade,

observando que esta perspectiva de igualdade contribuiu para que a diferença aparecesse,

paralelamente, sob a forma de uma desigualdade entre iguais.

E o que torna peculiar esta discussão sobre as diferenças no âmbito político, se deve ao

fato dela recolocar, como condição para a viabilização de um coletivo sem exclusões, o que a

modernidade sempre pretendeu ter na base de seu projeto civilizatório; por exemplo, valores

como o universalismo, a igualdade, a justiça, o reconhecimento, o respeito.340

Para ficar no exemplo de Charles Taylor, defensor de uma política em prol do

reconhecimento das diferenças, os beneficiários, ou os supostos beneficiários dessas políticas -

“as pessoas que poderiam de fato beneficiar-se do reconhecimento” -, fazem uma distinção

decisiva entre o que pode ser entendido “como genuína expressão de respeito” ou apenas

paternalismo, i.e. apenas um ato de condescendência face “as criações de outras culturas” –

onde nesse caso tende-se a “valorizar” as mesmas sem no entanto haver uma compreensão

efetiva do seu valor. As pessoas que podem beneficiar-se do reconhecimento “sabem que

desejam respeito, e não condescendência. Toda teoria que desfaça a distinção parece, ao menos

prima facie, distorcer facetas cruciais da realidade”.

E será neste contexto que Charles Taylor vai dirigir o seu questionamento sobre o que

chama teorias subjetivistas. Cito mais uma vez a passagem que corrobora o que está sendo dito,

e agora em sua íntegra.

Com efeito, teorias subjetivistas, mal-acabadas, neonietszchianas, costumam ser invocadas com freqüência nesse debate. Derivando muitas vezes de Foucault ou Derrida, elas alegam que todos os juízos de valor se baseiam em padrões em última análise impostos por estruturas de poder que contribuem para consolidar.341

340 Uma situação que também envolve a discussão sobre a questão da exclusão econômica, no contexto de globalização dos mercados e da internacionalização do sistema financeiro; onde “valores como ganhos incessantes de produtividade, acumulação ilimitada e livre circulação de capitais converteram-se em imperativos categóricos”; atingindo com isto desde “a ordem jurídica forjada pelos Estados-nação com base nos princípios da soberania e da territorialidade”, até os padrões de reciprocidade entre as pessoas e/ou grupos sociais; que também se vêem modificados diante da instalação do desemprego estrutural; “inviabilizando até mesmo a partilha de uma cultura comum, onde todos possam ver-se como iguais”.Cittadino, G. Introdução, in: Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva, op.cit. pp. 1-2. 341 Taylor. A Política do Reconhecimento, op.cit. p. 272.

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130

O autor está se referindo especificamente às teorias que, buscando escapar da distinção

anteriormente referida - i.e. a distinção entre ato de respeito e ato de condescendência (também

nomeado pelo autor como “juízo favorável dado por exigência”) -, lançam mão de um outro

recurso, o campo da solidariedade.

Os proponentes de teorias neonietszchianas esperam escapar desse nexo de hipocrisia [i.e. escapar do juízo favorável dado por exigência] transformando a questão inteira em questão de poder e contrapoder. Então, deixa-se o respeito e está-se no domínio de escolher um lado em que ficar, no campo da solidariedade. Ao fazer esta escolha, continua Taylor, eles renunciam à força que alimenta este tipo de

política – a busca de reconhecimento e respeito. E ainda que se pudesse exigir dos referidos

proponentes a incorporação desta proposta, corre-se o risco de vê-los agir por condescendência.

E para o autor,

a última coisa que queremos nesse estágio dos intelectuais eurocentrados são juízos positivos do valor de culturas que eles não estudaram exaustivamente. Porque reais juízos de valor supõem uma fusão de horizontes de padrões em que tenhamos sido transformados pelo estudo do padrão do outro, de modo que não estejamos simplesmente julgando a partir de nossos velhos padrões familiares. Um juízo favorável feito prematuramente seria não só condescendente como etnocêntrico. Ele louvaria o outro por ser como nós”.342

Esta outra face da ação por condescendência, i.e. “da exigência peremptória de juízos de

valor favoráveis”, tende igualmente a homogeneizar as diferenças. Isso porque ela traz consigo

(ainda que implicitamente) a idéia de que já dispomos dos padrões de valor das culturas para

efetuar esses juízos, que no entanto nada tem a ver com os “reais juízos de valor”. E na medida

em que não dispomos desses padrões reais, corremos o risco de incluir o diferente a partir de

nossas referências, das categorias que fornecem uma certa inteligibilidade para nós – o que pode

acabar tornando todo mundo igual.

Tentando escapar de nexos como estes, e de outros, Taylor sentencia: “entre a exigência

inautêntica e homogeneizante de reconhecimento de igual valor”, e o “autofechamento em

padrões etnocêntricos do outro”,343 deve haver um modo de defender o pressuposto de igual

valor.

342 Taylor, C. A Política do Reconhecimento, op.cit. p. 272. 343 Idem, p. 273.

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Embaraçado com a possibilidade de lidar com a idéia de pressuposto, que implica trazer

à tona a idéia de fundamentação (e para ele “um fundamento proposto é religioso”), Taylor

fecha a discussão sobre a sua política de reconhecimento dizendo: “o que o pressuposto requer

não são juízos peremptórios e inautênticos de igual valor”, mas admitir que “estamos

muitíssimo longe do horizonte último em que o valor relativo de diferentes culturas possa ser

evidente”.344

***

A discussão efetuada até o momento procurou desdobrar a sugestão feita por Derrida

sobre a idéia de campo, que fortuitamente colocada nos momentos finais Do direito à justiça,

serviu para abrir as fronteiras de um debate que, até então, buscava questionar os fundamentos

do direito, da moral e da política, ou ainda, buscava mapear os elementos do discurso jurídico-

político como fazendo parte de um “campo” – e isso com o fito de pensar para além dos

territórios ou das zonas já identificáveis no âmbito desse discurso. Isso que foi feito tendo como

contraponto A Política do Reconhecimento, nos mostrou que uma das faces da idéia de

responsabilidade política defendida por Derrida, a tomada de decisão por solidariedade, é vista

com reserva por Charles Taylor; uma reserva que não tem a ver somente com a defesa do autor

em torno da concepção de respeito – principal força que alimenta a sua idéia de reconhecimento

-, mas também por conta da concepção de responsabilidade que Derrida apresenta, uma das

forças que permite ao autor assumir, em certas situações, responsabilidades políticas que nos

“ordenam uma certa solidariedade para com aqueles que lutam contra esta ou aquela

discriminação”.

Para além desta idéia de responsabilidade, ou do que para o autor constitui uma das suas

faces, encontra-se uma outra discussão que lhe é indissociável, o este que advém, ou deste que

advém (o por vir): “o que vem, o que virá, sob os nomes de uma outra ética, de uma re-

politização à medida de um outro conceito do político, de uma transformação em curso do

direito internacional, etc.”345

344 Idem, p. 274. 345 Derrida. Imprevisível liberdade, in: De que amnhã ... op.cit, p.68.

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No contexto do debate desenvolvido no texto Imprevisível liberdade, o questionamento

do autor vai estar centrado na idéia de liberdade subjetiva, que de um modo geral procura pôr

em cheque a idéia de que para se exercer a justiça – i.e. para ser justo, injusto, ou para violar a

própria justiça – “tenho de ser livre e responsável pela minha ação, pelo meu comportamento,

pelo meu pensamento, pela minha decisão”.346

Este questionamento, como indicado acima, é orientado pela concepção de evento (este

que advém), onde noções como a de decisão, de liberdade, de responsabilidade serão

redimensionadas.

O deste que advém, que constitui o próprio evento, é o que resiste, ou deve resistir, ao

“imperialismo do discurso determinista [a da liberdade subjetiva]”, que “eu não chamaria

sujeito, nem eu, nem consciência, nem menos inconsciência, mas faria disso um dos lugares do

outro, do incalculável, do acontecimento”.347

Este advém, ou deste que advém é

o que imprevisivelmente surge, convoca e transborda ao mesmo tempo minha responsabilidade (minha responsabilidade antes de minha liberdade – que ela no entanto parece pressupor, minha responsabilidade na heteronomia, minha liberdade sem autonomia), o evento, o advento (deste) que advém mas ainda não tem figura reconhecível – e que portanto não é necessariamente um outro homem, meu semelhante, meu próximo.348

Através desta idéia de evento, Derrida procura demonstrar que é possível desatrelar a

concepção de decisão de qualquer responsabilidade. O evento, ao chegar imprevisivelmente,

surpreende de modo tão absoluto que “não devo mais não responder de maneira tão

responsável quanto possível”. Assim, o que foi pressuposto como minha responsabilidade na

heteronomia, minha liberdade sem autonomia, se reforça diante do enunciado o outro é a minha

lei: “o que chega ou que funda em mim, aquilo a que estou exposto, para além de qualquer

controle. Heteronomia portanto, o outro é minha lei.”349

Este que advém, por sua vez, não excede somente um determinismo, mas também as

causas, os cálculos, as regras, e até mesmo as estratégias que cercam as categorias de domínio,

soberania ou autonomia (“meu domínio, minha soberania, ou minha autonomia”).

346 Idem. Do direito à justiça, op.cit. p. 37. 347 Derrida. Imprevisível liberdade, p. 68. 348 Idem. 349 Idem, p. 69.

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Eis por que, mesmo que ninguém seja um “sujeito-livre”, nesse lugar, existe o “livre”, um certo espaço de liberdade se abre, ou em todo caso é suposto aberto por (este) que advém, um espaçamento liberado, des-engajado ... Eis por quê essa figura está ligada a todas as questões políticas da soberania. É aí que sou exposto e, felizmente, se ouso dizer, vulnerável. Ali onde outro pode chegar, existe “por vir” ou por-vir.350

De acordo com esta concepção de liberdade, a condição da decisão, que é suposta e

requerida em toda parte, é a prova do indecidível sob a forma do evento (deste que advém). “Se

sei que é preciso decidir, não decido”.351

E aqui Derrida está se referindo à problemática da decisão em sua relação com a

autoridade do saber, do meu saber, e do poder – posto que a tomada de uma decisão, ou não,

também está em meu poder. O fato de eu saber que preciso decidir, não implica que eu tenha

que produzir uma decisão: “um salto é requerido, mesmo sendo preciso saber mais e o melhor

possível antes de decidir”. Mas se o ato de decisão está também em meu poder, ou seja, se a

decisão “é meu ‘possível’, se ela é apenas o predicado do que sou e posso ser, tampouco

decido”.352

A possibilidade da liberdade seria este que advém, o que seria não-cognoscível – o

evento imprevisível, o indecidível, o não-calculável –, um âmbito em que se abre um

espaçamento des-engajado, e para além de qualquer controle sobre o outro. No evento, o outro

é a minha lei. Eis por que

“minha” decisão é e deve ser a decisão do outro em mim, uma decisão “passiva”, uma decisão do outro que me exonera de qualquer responsabilidade. Proposição de que creio ser possível racionalmente ... demonstrar a necessidade inelutável e as implicações. Quando digo “racionalmente”, aludo evidentemente a uma história da razão, e portanto também a seu por-vir. A (este) que advém sob o nome de razão.353 Esta concepção de decisão, ou esta prova do indecidível falada sob a forma “deste que

advém” não corresponde, de todo, a uma abdicação nihilísta diante da questão da

responsabilidade. Como vimos na discussão sobre as políticas da diferença, Derrida defende

que, em certas situações, deve-se assumir responsabilidades políticas que nos ordenam uma

350 Idem. 351 Idem, p. 70 352 Derrida. Imprevisível liberdade, op.cit. p. 70. 353 Idem.

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134 certa solidariedade contra essa ou aquela discriminação. Na discussão sobre a imprevisível

liberdade, o questionamento sobre a liberdade é radical, expressa a partir do que segue: a de que

o “pensamento mais ‘livre’ é aquele que transige o tempo todo com efeitos de máquina. Eis por

que raramente me sirvo da palavra liberdade”. E ainda que o autor defenda, ou venha a

defender a liberdade “como um excesso de complexidade em relação a um estado maquinal

determinado, me baterei por liberdades, mas não falarei tranqüilamente da liberdade”.354

Essa desconfiança quanto ao uso do termo liberdade, como já se pode notar, tem a ver

com os pressupostos metafísicos associados a esse termo, ou a essa palavra. Essa palavra, como

observa Derrida,

me parece freqüentemente carregada de pressupostos metafísicos que conferem ao sujeito ou à consciência – isto é, um sujeito egológico – uma independência soberana em relação às pulsões, ao cálculo, à economia, à máquina. Se a liberdade é um excesso de jogo, então militarei para que se reconheça essa liberdade e para que seja respeitada, mas prefiro evitar falar de liberdade do sujeito ou da liberdade do homem.355 Esta fala remete para o que foi amplamente tratado no decorrer deste trabalho, o

questionamento sobre os conceitos de homem e de sujeito. E não é por acaso que esse

questionamento não pode se esquivar da discussão sobre a possibilidade da justiça no âmbito do

direito, visto que nas sociedades ocidentais esse seria “o lugar próprio, um lugar privilegiado

em todo caso, da emergência e da autoridade do sujeito, do conceito de sujeito. Se ele está

mantido no direito, está por toda a parte”.356

354 Idem, p. 65. 355 Derrida. Imprevisível liberdade, op.cit..p. 65. 356 Idem, p. 74. Vale observar que trabalhos como o de G. Citadino, por exemplo, corrobora (ainda que por outros motivos) o que Derrida nos diz, sobre esta autoridade do sujeito do direito: é quando ela aponta (ainda que implicitamente) para o papel que o direito vem ocupando no âmbito das reflexões de caráter ético-político, a ponto dele estar sendo problematizado como um “território” de desenvolvimento do paradigma ético. E isso principalmente por conta das novas demandas que surgem em decorrência do desenvolvimento acentuado das tecnologias, sobretudo no que diz respeito as pesquisas em informação, em engenharia genética, em biotecnologia, etc.(cf. Cittadino, G. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva, op.cit). Acrescento ainda que este papel que o direito vem ocupando atualmente é fruto de um processo (um longo processo) que antecede aos movimentos sobre as políticas das diferenças, de aspirações de reconhecimento, etc.. É quando o direito se vê chamado a formalizar e a regulamentar problemas relacionais e socioculturais (assédio sexual, comportamentos discriminatórios, casos de racismo, etc.) que antes estavam fora do campo jurídico, mas faziam parte de domínios obrigantes concernentes à exigência de respeito - como os valores familiares, a pressão dos pares, as tradições, as convenções, a etiqueta, etc. -, na esfera privada da vida dos indivíduos. É assim que, “não encontrando resposta à sua exigência de respeito na esfera privada, os indivíduos, apelando ao direito, têm transferido seus problemas relacionais e socioculturais para a praça pública”. (cf. Semprini, Andrea, Multiculturalismo, EDUSC, SP, 1999). O fato é que, no decorrer deste processo o direito tem se apresentado cada vez mais como um sistema que busca se afirmar como o locus privilegiado da justiça.

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Diante disto (continua Derrida) como “extirparíamos o sujeito do direito?” E seria

possível aventar essa possibilidade sem levar em conta o processo acentuado de mecanização na

chamada era da informática? Dirá o autor: “existe um ponto em que o cálculo encontra seu

limite: o jogo, a possibilidade do jogo no interior das máquinas de calcular”. Além disso, “a

relação do ser vivo com o outro – a relação tanto consigo tanto com o outro -, permanece, por

definição, um incalculável, algo alheio a qualquer máquina”.357

Este limite do cálculo é tratado pelo autor (no texto em pauta) através do que chama a

“hospitalidade”.

O outro, a chegada do outro é sempre incalculável. Isso não deixa de produzir efeitos na máquina, mas não pode ser calculado pela máquina. É preciso pensar, que quer dizer aqui inventar, o que for preciso para não fechar nossos olhos diante da máquina e diante do extraordinário progresso do cálculo, compreendido ao mesmo tempo, no interior e no exterior da máquina, esse jogo do outro, esse jogo com o outro. Uma vez aceito seu princípio e entregue à exposição do outro – portanto ao acontecimento que vem nos afetar, portanto a esse afeto que é aquilo pelo que se define a vida -, nesse momento, é preciso se arranjar para inventar o advento de um discurso capaz de apreender isso.358

No contexto da imprevisível liberdade, a hospitalidade serve de gancho para abordar o

problema dos fluxos migratórios, e das decisões políticas (ou dos discursos retóricos) tomadas

até então a esse respeito. O que é requerido por Derrida é a possibilidade de se discutir uma

política da imigração, i. e. um controle dos fluxos migratórios, sem dispensar o âmbito de um

trabalho bem elaborado sobre a língua. E com isso o autor pretende indicar os limites e as

ilusões de uma certa atitude política sobre a hospitalidade, que consistiria em querer dominar,

por meio de argumentos pautados na idéia de hospitalidade incondicional – a de visita, ou a de

convite – a questão da hospitalidade em geral. A idéia de hospitalidade incondicional (ou pura),

supõe que o que chega não foi convidado para ali onde permaneço senhor em minha casa e ali onde controlo minha casa, meu território, minha língua, lá onde ele deveria (segundo as regras da hospitalidade condicional, ao contrário) se curvar de certa forma às regras em uso no lugar que o acolhe. Ou seja, a hospitalidade pura “consiste em deixar sua casa aberta para o que chega

imprevisivelmente, que pode ser um intruso, até um intruso perigoso, eventualmente suscetível

357 Derrida. Imprevisível liberdade, p. 75. 358 Derrida. Imprevisível liberdade, op.cit. pp. 75-76.

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136 de fazer o mal.”359 O que explicaria o fato desse tipo de hospitalidade não aparecer como um

conceito político ou jurídico. Isso porque,

para uma sociedade organizada, que possui suas leis e quer manter o controle soberano de seu território, de sua cultura, de sua língua, de sua nação, para uma família, para uma nação que quer controlar sua prática de hospitalidade, é preciso de fato limitar e condicionar a hospitalidade. Pode-se fazê-lo às vezes, com as melhores intenções do mundo, pois a hospitalidade incondicional também pode ter efeitos perversos. Como se pode notar, as duas modalidades da hospitalidade (a de visita, e a de convite),

“permanecem irredutíveis uma à outra”. O que quer dizer que essa distinção “exige à referência

à hospitalidade de que conservamos o sonho e o desejo às vezes angustiado, aquela da

exposição a (este) que chega”. Essa hospitalidade pura, que é válida para a “passagem das

fronteiras de um país”, tem um papel que pode ser comparado ao que acontece na nossa vida

corrente, onde também assumimos um risco, i.e. uma exposição – é quando, por exemplo,

“alguém chega, o amor chega”. Mas para compreender essas situações (continua Derrida), “é

preciso manter esse horizonte sem horizonte, essa ilimitação da hospitalidade incondicional,

embora sabendo que se pode fazer disso um conceito político ou jurídico. Não existe lugar para

esse tipo de hospitalidade no direito e na política”.360

Do que falamos sobre o tratamento acerca do limite do cálculo, destaco o que para o

autor constitui uma condição necessária para se discutir uma política de controle dos fluxos

migratórios, um trabalho bem elaborado sobre as palavras e sobre a língua.

O problema da língua está intrinsicamente ligada à possibilidade de se fazer justiça em

relação à violência que ocorre no âmbito do jogo da linguagem. Isso foi ilustrado

contundentemente através de uma das discussões levantadas por Derrida (neste capítulo) sobre

as situações de violências sofridas por migrantes, supostamente passíveis de lei, diante de um

julgamento onde eles não compreendem quais seriam os seus direitos. Daí o autor levantar

inicialmente a pergunta: como conciliar uma singularidade - um ato de justiça - com o caráter de

generalidade requerido pelo direito?, que posteriormente foi transposta para uma outra situação:

a da linguagem em relação à singularidade que as línguas apresentam, cujo imperativo de justiça

nem sempre coincide com o imperativo de justiça ditado pelo direito, ou pela lei do direito.

359 Idem, p. 77. 360 Derrida. Imprevisível liberdade, op.cit. p. 77

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A língua comparece então como elemento importante para indicar os limites, ou “o

aparelho de limites nos quais uma história e uma cultura puderam confinar a sua

criteriologia”; confinamento que também poderia ser interpretado como uma vontade do direito

manter o domínio, por meio de uma tecnologia – ou por um sofisticado critério de cálculo -,

sobre a questão da decisão em geral. E não é demais dizer que talvez seja também por esse

motivo que Derrida se mostre tão enfático ao denunciar as violências sofridas por migrantes

A violência desta injustiça ... não é uma violência qualquer, nem uma injustiça qualquer. Esta injustiça supõe que o outro, a vítima da injustiça da língua, aquela que todas as outras supõem, seja capaz de [falar] uma língua em geral, seja ela um homem enquanto animal falante, no sentido de que nós, os homens, damos a esta palavra, linguagem. Houve aliás um tempo, que não está nem longe nem acabado, em que nós, os homens, “queria dizer” nós, os Europeus, adultos, machos brancos carnívoros e capazes de sacrifícios.361

5 Considerações finais

O que foi apresentado neste trabalho traduz um aspecto da complexa estratégia acionada

por Derrida, para falar da alteridade através da idéia de justiça, e para demonstrar o que ela traz

de abertura para pensar o problema da exclusão sem cair no discurso familiar, previsível,

calculável; um discurso que em termos gerais está assentado na noção de homem e/ou nos

valores presentes nos humanismos estabelecidos.

Com isto fica claro que esta idéia de justiça, orientada pela problemática da différance,

traduz também o esforço, por parte do autor, de abarcar uma gama variada (ou infinita) de

questões que se faz necessário enfrentar, quando se está comprometido em discutir o tipo de

problema referido. O que explica o fato de apresentarmos essa justiça como possibilidade da

justiça, e que encontra na idéia de responsabilidade sem limite um dos modos de assegurá-la –

trazendo consigo a necessidade de se assumir um compromisso ético com a justiça.

361 Idem. Do direito à justiça, op.cit. pp. 30-31.

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138

Estas questões foram tratadas em consonância com a escrita derridiana, que é expressa a

partir dos problemas que estão mais próximos de “nós”, como é o caso do capítulo 4, e também

das questões que parecem mais longínquas, como é o caso dos capítulos 2 e 3, onde o grau de

formalidade com que os problemas são ali apresentados, se mostra compatível com o grau de

dificuldade do percurso efetuado pelo autor, e que em termos muito gerais representa o esforço

para questionar os limites de uma lei que é hegemônica no Ocidente, a lei do ser.

Não obstante tal indicação, estas “considerações finais” procuram mostrar que a

fecundidade do discurso de Derrida para pensar a diferença em nossa época, e a originalidade

como ele desenvolve a reflexão sobre o problema, não implica desconsiderar o pensamento

heideggeriano, que escolhemos aqui como um fio condutor entre outros, para apreciar os

argumentos acionados pelo autor no decorrer dessa reflexão. E aqui eu me refiro a uma

indicação fornecida por ele (registrada no capítulo 3), acerca da importância da questão aberta

por Heidegger sobre a delimitação da metafísica – a delimitação do ser como presença -,

também conhecida como uma problemática sobre o esquecimento do ser; que na abertura desta

tese (cf. capítulo 2) foi focalizada a partir da questão sobre a possibilidade de uma ética (no

filósofo alemão), e que teve como referência (entre outras) a crítica do humanismo; uma crítica

que n’Os fins do homem é questionada por Derrida, que já informado pelo pensamento da

différance deixa entrever que é preciso tratar a justiça em sua ligação com a ética. E deixa

também entrever que é preciso abrir uma espaço para “mediar” essa ligação, que no nosso caso

foi apresentada como possibilidade da justiça, ou como possibilidade de se fazer justiça em

relação às singularidades.

Isto posto, começo pela questão sobre a possibilidade da justiça no âmbito do direito.

Esta questão, como vimos, foi impulsionada pela discussão sobre a problemática

envolvida na distinção entre direito e justiça, em especial quanto à pretensão do direito exercer-

se em nome da justiça, uma justiça que “exige instalar-se num direito que deve exercer-se

(constituído e aplicado) pela força ‘enforced’”. Esse debate que foi tratado a partir da idéia da

justiça como aporia levou o autor a distinguir o direito e a justiça nos termos que seguem.

O direito não é a justiça. O direito é o elemento do cálculo, e é justo que exista direito, mas a justiça é incalculável, exige que se calcule com o incalculável; e as experiências aporéticas são

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experiências tão improváveis quanto necessárias da justiça, quer dizer, momentos em que a decisão entre o justo e o injusto não está nunca assegurada por uma regra.362

Lembro ainda que a distinção apresentada, e o desdobramento que daí se seguiu, esteve

orientado por um propósito mais geral: a de que o questionamento sobre o direito e sobre a

justiça, constitui um questionamento sobre os fundamentos do direito, da moral e da política.

Cito mais uma vez a passagem que corrobora essa idéia.

Um questionamento desconstrutivo que começa ... por desestabilizar, ou complicar a oposição entre nomos e physis – quer dizer, a oposição entre a lei, a convenção, a instituição, por um lado, e a natureza, por outro, com todas as [oposições] que elas condicionam, por exemplo, e não é senão um exemplo, a do direito positivo e do direito natural différance é o deslocamento desta lógica oposicional ... um questionamento desconstrutivo que começa, como foi o caso, por desestabilizar, complicar ou lembrar aos seus paradoxos valores como os do próprio e da propriedade em todos os seus registros, o de sujeito, e portanto do sujeito responsável, do sujeito do direito e do sujeito da moral, da pessoa jurídica ou moral, um tal questionamento desconstrutivo é, de parte a parte, um questionamento sobre o direito e sobre a justiça. Um questionamento sobre os fundamentos do direito, da moral e da política.363

Este questionamento, tal como apresentado nos momentos “finais” do capítulo anterior,

se abre para uma proposta que toma corpo através de um duplo movimento: a de que é preciso

forjar uma negociação da justiça incalculável com o que está mais próximo da associação que se

faz sobre a justiça, a saber, o direito. E aqui Derrida se refere ao direito como fazendo parte de

um campo, o campo jurídico, que nessa qualidade não consegue assegurar as suas fronteiras; e

isso porque há outros campos que intervêm nele, e que também não são apenas campos, como

“a ética, o político, a técnica, o econômico, o psico-sociológico, o filosófico, o literário, etc.”.

Como corolário desta proposta (segundo movimento), o autor indicou que é preciso

forjar uma negociação para além dos territórios ou das zonas já identificáveis do direito, da

moral ou da política, i.e. forjar uma negociação para além dos territórios atualmente

identificáveis da jurídico-politização em sua vertente geo-política (como direito internacional).

E nesse caso se faz necessário reinventar uma ordem para além dessa politização do jurídico. O

que implicaria reelaborar o conceito de emancipação, de franqueamento ou de libertação, onde

então outros territórios, ou outras zonas poderiam abrir-se no sentido de contemplar problemas

362 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. pp. 27-28. 363 Idem, p. 16.

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140 que, na atualidade, são ainda tratados como secundários ou marginais (cf. tópico 4.4, A justiça

presente e a justiça por vir).

Levando em conta as sugestões aí apresentadas, procurei reconstituir o debate (tópico

4.5) sobre alguns dos posicionamentos de Derrida acerca das políticas da diferença em sua

relação com a concepção de evento (o por vir).

Através desta discussão pudemos mostrar, de uma forma mais ampla o modo como o

autor pensa a idéia de negociação, que no âmbito do capítulo 4 está assentada primordialmente

na dinâmica do jogo da justiça como incalculável e calculável, que por sua vez se abre para o

por vir (o este que advém), onde então se torna possível encontrar um ponto em que o cálculo

encontra seu limite.

Este limite do cálculo é tratado (no texto Imprevisível liberdade) através da idéia de

hospitalidade, que funciona como uma estratégia para falar (mas não somente) das decisões

políticas - ou dos discursos retóricos – tomadas sobre o problema dos fluxos migratórios, e do

seu controle.

Neste contexto, como vimos, o posicionamento de Derrida é inequívoco: não se pode

discutir uma política de controle sobre o referido problema sem incluir um projeto de trabalho

que contemple a singularidade das línguas.

Este problema, que foi ilustrado à luz de casos concretos, i.e. à luz das situações de

violência sofridas por migrantes diante de um julgamento, serviu para demonstrar que o

problema da singularidade das línguas é um elemento importante para indicar o limite do

cálculo e, por conseguinte, também para denunciar a violência que ocorre no âmbito do jogo da

linguagem, violência que no direito é expressa através da sua pretensão de manter o domínio,

por meio de um critério de cálculo informado pela tecnologia, sobre a decisão em geral. Uma

pretensão que foi manifestada através da ilustração dessas situações de violência,

exemplarmente traduzida em uma passagem já citada (cf. final do capítulo 4)

A violência desta injustiça ... não é uma violência qualquer, nem uma injustiça qualquer. Esta injustiça supõe que o outro, a vítima da injustiça da língua, aquela que todas as outras supõem, seja capaz de [falar] uma língua em geral, seja ela um homem enquanto animal falante, no sentido de que nós, os homens, damos a esta palavra, linguagem. Houve aliás um tempo, que não está nem longe nem acabado, em que nós, os homens, “queria dizer” nós, os Europeus, adultos, machos brancos carnívoros e capazes de sacrifícios.

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No esquema apresentado no capítulo 3, a crítica da linguagem está associada à discussão

sobre o etnocentrismo da metafísica, sobre a ligação do logos como verdade com o modelo da

escritura fonética – mas que enquanto modelo não responde a “nenhuma Necessidade de essência

absoluta e universal”.364 Isto quer dizer que apesar da condição logocêntrica se mostrar hegemônica

na cultura, na ciência e na filosofia do Ocidente, seria possível romper com a hegemonia dessa

condição, não implicando com isso a sua extinção.

Expliquemos melhor o que aí é dito. Segundo Derrida, um modelo não é uma estrutura,

i.e. não é um sistema construído e em perfeito funcionamento, mas antes um ideal que almeja

alcançar essa condição – um ideal que dirige “explicitamente um funcionamento que de fato nunca é

totalmente fonético”,365 ou nunca funciona perfeitamente. E por não funcionar perfeitamente é

passível de questionamento(s), como o da violência da injustiça aludida pelo autor: onde se “supõe

que o outro, a vítima da injustiça da língua, aquela que todas as outras supõem, seja capaz de

[falar] uma língua em geral, seja ela um homem enquanto animal falante, no sentido de que nós, os

homens, damos a esta palavra, linguagem.”

O questionamento efetuado no âmbito do capítulo em questão, que está assentado na

promessa de uma experiência que está por vir, a experiência da alteridade absoluta, não impede

portanto que se denuncie uma tal injustiça, nem tampouco deve servir de álibi para o alheamento

das lutas ético-políticas que envolvam discriminações.

A passagem recortada remete ainda para uma discussão levantada por Derrida sobre o

nascimento da etnologia como ciência, que só pôde nascer no momento em que a cultura européia,

i.e.a história da metafísica e dos seus conceitos, deixou de ser considerada enquanto cultura de

referência. Daí a crítica do etnocentrismo,366 “condição da etnologia”, ser tida por Derrida como

“hitoricamente contemporânea da destruição da história da Metafísica.”367

O ponto crítico a ser destacado tem a ver com o estatuto do discurso da nova ciência, que vai

buscar nos conceitos da tradição metafísica os recursos para a desconstrução desses conceitos, ou

ainda, vai buscar os recursos para denunciar as premissas do etnocentrismo.368

364 Derrida. Gramatologia, op.cit. p. 37. 365 Idem. 366 De uma maneira geral, a referida crítica tinha o propósito de questionar o autocentramento de uma cultura como referência para a avaliação de outras culturas. 367 Derrida. A escritura, o signo e o jogo ... op.cit. p. 235. 368 Derida toma como exemplo a oposição natureza-cultura (utilizado de forma ambígua nas pesquisas do etnólogo francês Claude Lévi-Strauss), que apesar dos seus rejuvenescimentos e maquilagens, é “congênita à filosofia. É mesmo mais velha que Platão. Tem pelo menos a idade da Sofística. Desde a oposição physis/nomos, physis/techné,

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Ora, a Etnologia, - como toda a ciência – surge no elemento do discurso. E é em primeiro lugar uma ciência européia, utilizando, embora defendendo-se contra eles os conceitos da tradição. Conseqüentemente, quer o queira quer não, e isso depende de uma decisão do etnólogo, este acolhe no seu discurso as premissas do etnocentrismo no próprio momento em que o denuncia. Esta necessidade é irredutível, não é uma contingência histórica.369

Assim como na etnologia, também na filosofia e na psicanálise assistimos a este tipo de

movimento: “É com os conceitos herdados da metafísica que, por exemplo, Niietzsche, Freud e

Heidegger operaram”.370 Esse movimento que acompanha as reflexões de Derrida no seu trato com

o pensamento heideggeriano, é não raras vezes acionado quando ele se refere à face ambígua da

posição de Heidegger com respeito a concepção do ser como presença e ao logocentrismo; ou ainda,

quando ele desconstroi as premissas do debate sobre a delimitação do “nós” na crítica do

humanismo tal como efetuada pelo filósofo alemão.

Vale observar que se chegamos a considerar, a título de exemplo, o momento de nascimento

de uma ciência, que se denomina como “ciências humanas”, é porque talvez através daí nosso autor

queira pôr em foco um dos aspectos que configura a reunião da rede em torno da afirmação do

pensamento do homem, do “nós”; e que na passagem recortada precedentemente, onde ele

denuncia a violência que ocorre no âmbito do jogo da linguagem, essa mesma violência apareça

associada ao “nós”. Essa violência remonta a um “tempo que não está nem longe nem acabado, em

que nós, os homens, ‘queria dizer’ nós, os Europeus, adultos, machos brancos carnívoros e capazes

de sacrifícios.”

Numa das principais conclusões d’Os fins do homem, encontra-se a sugestão de que é

preciso pôr um fim, ou romper efetivamente com o pensamento do homem. Ali ficou demonstrado

que a substituição efetuada por Heidegger em relação ao télos do homem – a substituição do “nós-

os-homens” (o nós da metafísica) pelo “nós-homens” – consistiu em restaurar a dignidade do

homem, i.e. a sua essência, a partir do valor de proximidade, de presença em geral.

Observemos que ao lançar mão da idéia de presença como Anwesenheit, presença em geral,

Heidegger estava querendo delimitar a sua posição por relação à determinação da presença como

chega até nós graças a uma cadeia histórica que opõe a “natureza” à lei, à instituição, à arte, à técnica, mas também à liberdade, ao arbitrário, à história, à sociedade, ao espírito, etc.” (pp. 235-236). 369 Derrida. A escritura, o signo e o jogo ... p. 235. 370 Idem, p. 234. Vale lembrar que estas palavras aparecem no contexto da discussão sobre o questionamento contemporâneo do conceito de centro, que teria começado a anunciar-se e a ser trabalhado através destes autores; e onde o aparecimento dessa produção é tratada por Derrida no âmbito do sistema de diferenças - ou de oposições binárias, como presença/ausência – que busca diluir ou apagar a idéia de signo.

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Gegenwärtigkeit (determinação fundamental da ousia), i.e. da “presença no sentido temporal da

permanência”.371 Isto significa (segundo Derrida) que o questionamento heideggeriano sobre a

autoridade do presente e da metafísica, tinha um propósito, “nos conduzir a pensar a presença do

presente”, i.e. a essência do presente.

A restauração da essência do homem consistiria então na restauração da proximidade do

ser e do homem, ou seja, na restauração da essência do presente. O próprio do homem (nós-

homens) é estar próximo do ser, e estar próximo do ser é próprio do homem.

Esta equação, por sua vez, serviu de elo para mostrar que no âmbito da linguagem

heideggeriana, a relação sentido (verdade) do ser - sentido (verdade) do homem, guiada pela idéia

de autenticidade (de próprio), trazia um apelo que motivou Derrida a questionar o alcance da

proposta requerida pelo filósofo alemão – na contemporaneidade – sobre a proximidade entre

homem e ser.

Destaco mais uma vez as palavras que teriam impulsionado Derrida a questionar o alcance

desta proposta: “Manter-se de pé na clareira do ser é o que eu chamo ek-sistência do homem. Só o

homem tem como própria essa maneira de ser”.372

Na terminologia derridiana, a segurança dessa proximidade (“tal como ela habita e se habita

a si mesma na língua do Ocidente”) estaria sofrendo um abalo. O que seria um indício de que o

círculo focalizado no télos do homem, que se completa no âmbito do pensamento do ser, precisa ser

rompido. Cito novamente a passagem que aponta para essa sugestão:

o fim do homem é pensamento do ser, o homem é o fim do pensamento do ser, o fim do homem é o fim do pensamento do ser. O homem é desde sempre o seu próprio fim, isto é, o fim do seu próprio. O ser é, desde sempre, o seu próprio fim, isto é, o fim do seu próprio.373

O tom entusiasmado e imperativo do encadeamento proposto não está calcado somente no

abalo da aludida segurança, mas também na expectativa de abertura de um maior questionamento

sobre a referida relação no âmbito do pensamento ocidental, questionamento que para o autor está

ligado à exigência infinita de se fazer justiça “à singularidade do outro, as singularidades”; uma

justiça, ou uma concepção de justiça que (como vimos) foi elaborada por Levinas, e assimilada por

Derrida em razão da “infinitude e da relação heteronômica com outrem, com o rosto de outrem que

371 Cf. Derrida. Ousia e Gramé, op.cit. 372 Ousi e Grammé, Heidegger apud Derrida, p. 174. 373 Derrida. Os fins do homem, op.cit. p. 175.

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me ordena, de quem não posso tematizar a infinitude e de quem sou refém.”374 Esse outrem, ou essa

alteridade absoluta, foi tratada pelo autor como uma experiência para discutir o duplo movimento

da justiça (a justiça calculável e a que permanece por vir); uma experiência que foi acionada para

introduzir um outro aspecto do debate sobre a différance (cf. La différance), estrategicamente

apresentado como o mais próprio a ser pensado.

Parto, pois, estrategicamente, do lugar e do tempo em que “nós” estamos, ainda que a minha abertura não seja justificável e seja sempre a partir da différance e da sua “história” que nós podemos pretender saber quem “nós” somos e onde estamos e o que poderiam ser os limites de uma “época”.375

Esta referência aos fins do homem tinha o propósito de abrir a discussão sobre o tempo, que

encontra na exigência de ligação entre tempo e espaço – como “devir-tempo” do espaço e “devir-

espaço” do tempo – o suporte para a afirmação da concepção derridiana de alteridade.

Este suporte foi representado principalmente por duas figuras, a de Freud e a de Aristóteles,

que em suas pesquisas teriam encontrado um meio de driblar o jogo da ausência e da presença. Em

Freud isto foi feito através do conceito de inconsciente, uma alteridade – ou uma alteridade radical

– que nos permite entrar em relação com um passado que não foi nunca presente; e cujo “‘por vir’

futuro não será nunca a produção ou a reprodução na forma da presença”, ou de um “vir-a-ser-

passado daquilo que foi presente”.376

Este passado que não foi nunca presente, como vimos, foi enunciado por Levinas para

qualificar o outrem (qualificar a alteridade absoluta), motivo pelo qual Derrida chega a indicar que a

différance, desse ponto de vista, abarcaria a crítica da ontologia clássica efetuada por Levinas.

Tratar-se-ia de uma rede que, ao lado igualmente de Nietzsche, “reúne e atravessa a nossa ‘época’

como delimitação da ontologia (presença)”.

Esta delimitação – determinação do ser em ente(i)dade, em presença – só se deixou

compreender por conta do surgimento da problemática aberta por Heidegger sobre o esquecimento

da diferença entre a presença (o ser) e o presente (o ente).

374 Idem. Do direito à justiça, op.cit. p. 36. 375 Idem. La différance, op.cit. p.38. 376 Segundo Derrida, o inconsciente difere-se, e também delega representantes, mas não há indício de que esse delegante “‘exista’, seja presente, seja ‘ele mesmo’ em qualquer parte e menos ainda que ele se torne consciente”. Nessa estrutura (do retardamento) a alteridade marca-se em efeitos irredutíveis fora-de-tempo. (Cf. La différance, p. 54).

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Esta discussão sobre a delimitação, ou sobre a determinação do ser em presença, remete

ainda para uma suspeita levantada por Derrida no debate sobre a “justiça presente” (no âmbito do

direito) em sua relação com o saber.

No contexto do referido debate o autor chamou a atenção para a positividade do excesso de

interpretação, no direito, face à exigência requerida pelo mesmo de se fazer justiça, e que por não

ter um horizonte de espera, como no saber (o saber regulador ou messiânico), pode apontar para um

porvir (avenir), que por sua vez nada tem a ver com o futuro. Isto porque o futuro

perde a abertura, a vinda do outro (que vem) sem a qual não há justiça; e o futuro pode sempre reproduzir o presente, anunciar-se ou apresentar-se como um futuro presente na forma modificada do presente.377

Isto posto, me volto para Aristóteles, que segundo Derrida já teria conseguido pôr em foco a

ligação entre tempo e espaço, ou ainda teria conseguido exceder a alternativa da presença e da

ausência. Essa questão que foi posta em cena a partir da reconstituição da problemática erigida por

Heidegger sobre o esquecimento do ser, procurou mostrar inicialmente que a tradição metafísica, ao

suprimir a aporia aristotélica sobre o tempo, privilegiou apenas uma dimensão das suas colocações

sobre a definição do tempo, a do ser como presença.

Nesta definição o tempo é pensado em suas duas modalidades, como passado e como futuro.

“O ente é o não-tempo, o tempo é o não-ente na medida em que se determinou já secretamente o

ente como presente, a ente(i)dade (ousia) como presença”. Nesse caso, o tempo e o movimento são

pensados a partir da ousia como presença.378

Nas análises do tempo como cálculo, ou seja, em sua dimensão matemática, Aristóteles

admite que o tempo não pode ser perfeitamente matematizado – o que quer dizer que “o agora [o

presente] não pertence à essência do tempo, está fora do tempo”379; “o tempo, como número do

movimento, está do lado do não-ser, da matéria, da potência, do inacabamento. O ser em ato, a

energeia, não é o tempo, mas a presença eterna”. Essa compreensão do movimento e do tempo

como presença em ato trouxe uma outra indicação, a de que ambos não são nem presentes nem

ausentes: “o tempo não é o não-ser, e os não seres não são no tempo. Para ser no tempo, é

necessário ter começado a ser e a tender, como toda a potência, para o ato e para a forma”.380

377 Derrida. Do direito à justiça, op.cit. p. 46. 378 Derrida. Ousia e Grammé, op.cit. p. 87. 379 Idem, p. 99. 380 Idem.

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Esta interpretação foi “guiada” pelo termo ama, traduzido como “ao mesmo tempo”,

“conjuntamente”, e também indicado como um advérbio temporal-intemporal, trazendo em germe

um apelo para a não-coexistência das partes do tempo - que uma vez constituída (a não-

coexistência), seria experimentada como “impossibilidade do impossível”. Mas esse apelo, como

vimos, alude também a um “entre”, onde então é possível estabelecer a não-coexitência a partir de

uma coexistência específica; ou seja, a partir “de uma certa simultaneidade do não-simultâneo, na

qual a alteridade e a identidade do agora são conjuntamente mantidas no elemento diferenciado de

um certo mesmo”.381 Ao propor uma tal coexistência, Aristóteles teria tomado uma decisão

conceitual em favor da articulação entre o tempo e o espaço como diferença constituída, e nos

termos de uma cumplicidade “do mesmo e do outro no interior do com ou do conjuntamente, do

simul no qual o ser-conjuntamente não é uma determinação do ser, mas a sua produção mesma”.382

Esta discussão assemelha-se em vários pontos com a efetuada por Derrida, por exemplo,

quando ele nos fala sobre a alteridade como uma heterogeneidade que não seria primeiramente

oposicional, dada a sua inscrição no elemento diferenciado do mesmo (que não é o idêntico) como

différance; ou ainda, dada a sua inscrição nesse elemento como um movimento (da différance) de

espaçamento: um “devir-espaço” do tempo, um “devir-tempo” do espaço.

Isto quer dizer que, tal como o termo ama, o indecidível apela para uma coexistência

específica, uma coexistência que é possibilitada pelo movimento de espaçamento, sem a qual a

différance não poderia suportar, contornar e acolher ao mesmo tempo (no jogo da escrita), a

heterogeneidade, ou as oposições, como por exemplo, a oposição sujeito-objeto, presença-ausência,

etc. – um movimento que, como indicamos no contexto desta discussão, também deixa entrever

tudo o que é excluído por meio da linguagem. E não por acaso Derrida buscou o apoio de

pensamentos que conseguiram driblar o jogo da presença e da ausência, uma das determinações

segundo a qual a metafísica nomeia a diferença.

O argumento do autor é de que as determinações que nomeiam a diferença pertencem ao

texto metafísico e, nessa medida, a determinação da diferença ontológica (heideggeriana) estaria

igualmente inscrita no círculo que reproduz tais determinações. Daí Derrida chegar a afirmar que a

différance se mostraria anterior à questão do ser, porque já não mais postulada como diferença entre

ser e ente, entre presença e presente.

381 Idem, p. 94 382 Idem, p. 93.

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Esta indicação ganha um outro contorno quando nos voltamos para Os fins do homem, que

de modo incisivo pôs em relevo a necessidade de se romper com o círculo focalizado no fim do

homem. O que quer dizer que esse texto não procurava simplesmente afirmar a anterioridade da

différance (ou da ligação exigida pela mesma) por relação à diferença ontológica requerida por

Heidegger, mas igualmente operar um deslocamento sobre uma das discussões desenvolvidas no

âmbito desse círculo, a questão da ética, e que no entender de Derrida não constitui um motivo de

preocupação para essa ontologia. Uma certeza que é fortuitamente colocada sob suspeita, no

contexto do Ousia e Grammé, quando ele se pergunta: “por que qualificar a temporalidade de

autêntica – ou própria (eigentlich) – e de inautêntica – ou imprópria – desde o momento em que

toda a preocupação ética foi suspensa?”

E neste ponto (mas não somente), Derrida fornece uma pista sobre os termos do diálogo que

ele pretende estabelecer (n’Os fins do homem) com o filósofo alemão: ao invés de se deter nesta

suspeita – o que implicaria “permanecer” no âmbito dos questionamentos heideggerianos sobre o

conceito de homem e o conceito de sujeito – ele optou por levantar o problema da relação (em

Heidegger) entre humanismo e verdade do ser. Isso que foi feito a partir da discussão sobre o “nós”

(o homem) no pensamento metafísico, permitiu ao autor demonstrar os limites desses

questionamentos, ou dessa crítica do humanismo, que consistiu em substituir o homem

simplesmente metafísico – o homem concebido como animal rationale – por uma concepção mais

própria do homem, o Dasein, considerado o ente exemplar pela proximidade que mantém com o

ser. Registro mais uma vez as palavras de Heidegger citadas por Derrida:

O próprio do homem, o seu ‘eigenheit’, a sua ‘autenticidade’, é o de se relacionar com o sentido do ser, de o escutar e de o interrogar (fragen) na ek-sistência, de manter-se de pé na proximidade da sua luz.383

Vimos que a desconstrução efetuada por Derrida sobre a delimitação do “nós”, e o apelo que

ela trazia – a necessidade de se romper com o pensamento do ser -, se tornou possível graças a sua

insistência em interpelar o pensamento de Heidegger na perspectiva do ente que nós somos – onde

ele pôde mostrar que o Dasein é “uma repetição da essência do homem que permite recuar aquém

dos conceitos metafísicos da humanitas”. E ao tomar essa decisão conseguiu desenvolver a sua

investigação sem fazer referência ao conceito de inautenticidade, que junto com o de autenticidade

383 Heidegger apud Derrida. Os fins do homem, p. 174.

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leva à discussão sobre a questão da ética; uma discussão que, segundo a leitura efetuada pelo autor

sobre a ontologia heideggeriana, reproduz o círculo focalizado no télos do homem, estabelecido

então por meio do valor de proximidade entre homem e ser. Uma proximidade (ou uma relação) que

traz desdobramentos no que se refere à questão da responsabilidade, tal como tratada pelo filósofo

alemão.

Esta questão foi levantada em nota (no capítulo 2) a propósito de um esclarecimento feito

por Heidegger, na Carta sobre o Humanismo (1947), acerca das interpretações sobre o que foi dito

na obra de 1927, Ser e Tempo, sobre o impessoal. Cito mais uma vez a passagem que apresenta esse

esclarecimento.

( ...) o que se diz em Ser e Tempo, parágrafos 27 e 35, sobre o impessoal [das man] não pretende ser, de forma alguma, uma simples contribuição incidental para a sociologia. Igualmente, o “impessoal” não significa apenas a oposição ético-existentiva [ôntica] ao ser próprio da pessoa. O que aí se diz, contém, antes uma indicação pensada a partir da questão da Verdade do Ser.384

Neste contexto, como indicamos, Heidegger refere-se implicitamente ao que ele chama de

ditadura da publicidade, que no seu afã de uniformizar o que deve ser consumido (“através de

cálculos e manipulações”) nos retira o sentimento de responsabilidade sobre a nossa existência

imediata e próxima (a existência cotidiana). Essa existência, que se mostra com mais nitidez através

da convivência no trabalho - e que na maioria das vezes não aparece como uma relação constitutiva

da nossa existência -, é marcada pela exacerbação da competição, que por sua vez fomenta um

comportamento que nos é familiar, face à lida com o outro, a indiferença. Esse exemplo representa

um dos modos deficientes da preocupação, sintetizado pelo autor nos termos que seguem: “O ser

por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado um do outro, o não sentir-se tocado

pelo outro”.385

Este questionamento heideggeriano sobre a ditadura do impessoal – ou esta outra face da

discussão sobre a época da técnica e da ciência, sobre a crítica do pensamento representativo -,386 é

informado pela verdade do ser, uma verdade que no âmbito da convivência cotidiana exclui o

caráter mais próprio da responsabilidade, o sentimento da responsabilidade de ser.

384 Heidegger. Carta sobre o humanismo, op.cit. pp. 31-32. 385 Heidegger. Ser e Tempo, I, op.cit.p. 173 e p. 179. 386 Esta discussão, como vimos, foi apresentada através de um dos escritos de Duque-Estrada, onde é levantada a hipótese de que a possibilidade de uma ética em Heidegger, dependeria “da ultrapassagem, que possa vir a ocorrer, do pensamento representativo”.

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Responsabilidade de ser, a que procura alertar para o perigo da expansão ilimitada da

objetivação, i.e. a do acesso uniforme de tudo para todos, e onde o outro (na convivência cotidiana)

é tido como aquele que serve de medida para a minha existência, fazendo com que “os outros

desapareçam ainda mais em sua possibilidade de diferença e expressão”.387

Responsabilidade sem limite, a que procura assegurar a possibilidade da justiça face à gama

variada (ou infinita) de questões que envolvem o problema da exclusão em geral, trazendo consigo

a necessidade de se assumir um compromisso ético com a justiça.

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