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mos queas cores de uma floresta outonal... Crê, no entan to, que esses matizes, em todas as suas fusões e conver sões, são representáveis com precisão por um mecanismo arbitrário de grunhidos e chiados. Crê que de dentro de um corretor da bolsa possam realmente sair ruídos capa zes de significar todos os mistérios da memória e todas as agonias do desejo" (G. F. Watts, p.88, 1904). 126 kafka e seus precursores <L<3 13*7 Certa vez planejei um exame dos precursores de Kafka. A princípio, considerei-o tão singular quanto a fênix dos elogios retóricos; depois de alguma intimidade, pensei reconhecer sua voz, ou seus hábitos, em textos de diversas literaturas e de diversas épocas. Registrarei alguns deles aqui, em ordem cronológica. 0 primeiro é o paradoxo de Zenão contra o movimen- \ to. Um móvel que está em A (afirma Aristóteles) não po derá alcançar o ponto B, porque antes deverá percorrer a metade do caminho entre os dois, e antes, a metade da metade, e antes, a metade da metade da metade, e assim até o infinito; a forma desse ilustre problema é, exatamen te, a de O castelo, e o_móvel e a flecha e Aquiles são os pri meiros personagens kafkianos ria literatura No segundo d texto que o acaso dos livros me deparou, a afinidade não , fl n W, está na forma, mas no tom. Trata-se de um apólogo de Han Yu, prosador do século EX, e consta na admirável Antholo- eieraisonnée de Ia littérature chinoise (1948), de JVlargou- Jiès. E este o parágrafo que assinalei, misterioso e tranqüi lo: "Universalmente se admite que o unicórnio é um ser sobrenatural e de bom agouro; assim declaram as odes, os i*7 .1-0

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mos queascores deuma floresta outonal... Crê, noentanto, que esses matizes, em todas as suas fusões e conversões, são representáveis com precisão por um mecanismoarbitrário de grunhidos e chiados. Crê que de dentro deum corretor da bolsa possam realmente sair ruídos capazes de significar todos os mistérios damemória e todas asagonias do desejo" (G. F. Watts, p.88, 1904).

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kafka e seusprecursores

<L<3 13*7

Certa vez planejei um exame dos precursores de Kafka. Aprincípio, considerei-o tão singular quanto a fênix doselogios retóricos; depois de alguma intimidade, penseireconhecer sua voz, ou seus hábitos, em textos de diversas

literaturas e de diversas épocas. Registrarei alguns delesaqui, em ordem cronológica.

0 primeiro é o paradoxo de Zenão contra o movimen- \to. Um móvel que está em A (afirma Aristóteles) não poderá alcançar o ponto B, porque antes deverá percorrer ametade do caminho entre os dois, e antes, a metade da

metade, e antes, a metade da metade da metade, e assimaté o infinito; a forma desse ilustre problema é, exatamente, a de O castelo, e o_móvel e a flecha e Aquiles são os primeiros personagens kafkianos ria literatura No segundo dtexto que o acaso dos livros me deparou, a afinidade não , fl n W,está na forma, mas no tom. Trata-se de um apólogo de Han

Yu, prosador do século EX, e consta na admirável Antholo-eieraisonnée de Ialittérature chinoise (1948), deJVlargou-Jiès. E este o parágrafo que assinalei, misterioso e tranqüilo: "Universalmente se admite que o unicórnio é um sersobrenatural e de bom agouro; assim declaram as odes, os

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anais, as biografias de varões ilustres e outros textos cujaautoridade é indiscutível. Até os párvulos e as mulheres dopovo sabem que ounicórnio constitui um presságio favorável. Mas esse animal não figura entre os animais domésticos, nem sempre éfácil encontrá-lo, não se presta aclassificações. Não é como o cavalo ou o touro, o lobo ou ocervo. Emtais condições, poderíamos estar diante do unicórnio e não saberíamos com segurança que se trata dele.Sabemos que determinado animal com crina é cavalo eque outro animal com chifres é touro. Não sabemos comoé_ ojuniçórnio".l

>fD Oterceiro texto procede de uma fonte mais previsível,os escritos de Kierkegaard. Aafinidade mental desses doisgggiíoreié^oisa^quejiinguém ignora; oque ainda não sedestacou, que eu saiba, éofato de que Kierkegaard, assimqggg Ka£k^lqi_pródigo ejn^arábolasj^ligjosas de temac^ntemporâneg_e_burguês. JLojvrie, em seu Kierkegaard(Oxford University Press, 1938), transçreveduas. Uma éahi^r^e^umfajsifiçadpr que examina, incessantementevigiado, as notas do Banco da Inglaterra; Deus, da mesmaforma, desconfiaria de Kierkegaard e lhe teria encomendado uma missão, justamente por sabê-lo afeito ao mal. Oassuntode outra são as expedições ao pólo Norte. Os párocos dinamarqueses teriam declarado do púlpito que participar de tais expedições convém àsalvação eterna da alma.Teriam admitido, no entanto, que chegar ao pólo era difícil e talvez impossível, e que nem todos podiam levar a

1Odesconhecimento desse animal sagrado esua morte ignominiosa oucasual nas mãos do povo são temas tradicionais da literatura chinesa Veja-se oúltimo capítulo de Psychologie und Alchemie (Zurique, 1944), deJung, que contém duas curiosas ilustrações.

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cabo a aventura. Por fim, teriam anunciado que qualquer'viagem — daDinamarca a Londres, digamos, novapor de'carreira — oujma_rja5s«c^dominical num carro de praçaseriam, olhando-se bem, verdadeiras expedições ao póloNorte. A quarta das prefigurações foi a que encontrei nopoema "Fears and Scruples", deBj-owning, publicado em-'1876. Um homem tem, ou julga ter, um amigojamoso.Nunca o viu e ofato é que ele não pôde, até agora, ajuda- -Io, mas dele contam gestos muito nobres, e cartas autênticas circulam com seunome. Há, porém, quem ponha emdúvida os gestos, e os grafólogos afirmam ocaráter apócrifo das cartas. Ohomem, no último verso, pergunta: "Eseesse_anügo_fqsse Deus?".

Minhas notas registram igualmente dois contos. Umpertence àsHistoires désobligeantes deLéon Blny e relataocaso de pessoas que estão repletas de globos terrestres,atlas, em guiasferroviários e baús, e que morrem sem ja-mais ter conseguido sair de sua cidade natal. O outro intitula-se "Carcassonne" e é obra de lorde Dunsany. Um •\-j^iri-exército de guerreiros invencíveis parte deum castelo infinito^ subjuga reinose vê monstros, e se exaure nos desertose nas montanhas, mas nunca chega a Carcassonne, emborachegue a divisá-la. (Este conto é, como facilmente se perceberá, oestrito reverso do anterior; no primeiro, nunca se saide umacidade; no último, nunca sechega.)

Se não meengano, as peças heterogêneas que enumerei sj^arj^cemjromKafka; se não me engano, nem todasse^arecem entre si. Este último fato é o mais significativo. Emcada um desses textos reside a idiossincrasia-deKafka, em grau maior ou menor, mas se Kakfa não tives-se escrito, não a perceberíamos; ou seja, ela não existiria.

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Opoema "Fears and Scruples", de Robert Browning, profetiza aobra de Kafka, mas nossa leitura de Kafka afina edesvia sensivelmente nossa leitura do poema. Browningnão o lia como nós agora o lemos. No vocabulário rríti-co^a palavra precursor éindispensável, mas seria preci-S° Purificà-la de toda conotaçãp.cje polêjnicajjauialida-de. Ofato éque cada escritor cria sens prQ^Mr?nrcs c;culraba^mgdifiça_nossa concepção do passado assimSPJ^ádejriodificar ofuturo.* Nessa correlação, nadaimporta a identidade ou a pluralidade dos homens. OP£faeirojÇa&a_de Betrachtung é menos ^eq^^^pKafkados.niitos sombrios edas instituições atrozes do queBrowning ou lorde Dunsany.

Buenos Aires, ipp

2 Veja-se T. S. Eliot, Points of View (i94i), pp. a5.6.

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do cultodos livros

No oitavo livro da Odisséia, lê-se que os deuses tecem desgraças para que às futuras gerações não falte o que cantar;a afirmação de Mallarmé "O mundo existe para chegar aum livro" parece repetir, uns trinta séculos depois, o mesmo conceito de uma justificação estética dos males. As duasteleologias não coincidem, porém, inteiramente; a do gregocorresponde à época da palavra oral, e a do francês a umaépoca da palavra escrita. Numa se fala de contar, e na outrade livros. Um livro,qualquer livro, é para nós um objeto sagrado: já Cervantes, que talvez não escutasse tudo o que lhediziam as pessoas, lia até "os papéis rasgados das ruas". Ofogo, numa das comédias de Bernard Shaw, ameaça a biblioteca de Alexandria; alguém exclama que vai arder amemória da humanidade, e César diz a ele: "Deixe-a arder.

É uma memória de infâmias". O Césarhistórico, na minhaopinião, aprovaria ou condenaria o juízo que o autor lheatribui, mas não o julgaria, como nós, uma brincadeira sa-crílega. Arazão é clara:para osantigosa palavraescritanãopassava de um sucedâneo da palavra oral.

Consta que Pitágoras nãoescreveu; Gomperz (Griechis-che Denker, 1, 3) sustenta que eleteria agido assim por ter

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