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1 KANAGAWA, BRASIL 1 Priscila Matsunaga 2 Em 1830, Hokusai publicou uma de suas xilogravuras mais conhecidas, A grande onda de Kanagawa. A força da natureza é retratada pela suspensão da onda que, como com garras, ameaça frágeis pescadores. No fundo da cena o monte Fuji, símbolo do Japão. A obra pertence à trilogia dedicada ao vulcão e encarna, pela representação do mar, da terra, do fogo, elementos da alma japonesa. A harmonia entre as cores, a simetria do desenho da onda em relação ao céu, o Fuji quase integrado ao mar assim como os pescadores, suaviza a fúria da onda, ainda que a sensação do momento seguinte, aquele que escapa à representação, permaneça no horizonte de expectativas. A imagem, com um corte que suprimiu o monte Fuji, foi utilizada pela Cia Marginal 3 para o espetáculo Eles não usam tênis naique, em cartaz em setembro de 2015 no teatro Glauce Rocha, como parte da Ocupação Grandes Minorias. O cenário é composto por duas telas: a central e com maior dimensão, é feita pela colagem de figuras de morros e favelas cariocas, de policiais com faixas pretas escondendo os olhos, da orla; à direita do palco (visto da plateia) e em primeiro plano, a onda em garra de Hokusai. A aproximação da xilogravura japonesa ao grupo de teatro pode fazer alusão quanto à origem de seus integrantes. Com quase 10 anos de formação, a Cia Marginal nasceu na Favela da Maré e já realizou quatro espetáculos: Você faz parte de uma guerra? (2005); Qual é a nossa cara? (2007); Ô, Lili (2011) e In_trânsito (2013). Situada na zona norte do Rio de Janeiro, com aproximadamente 130 mil moradores, numa faixa entre a Avenida Brasil e a Baía de Guanabara, cortada pela Linha Vermelha e Linha Amarela, a ocupação do território da Maré começou na década de 1940. Recebeu famílias removidas na década de 1960, e com o crescimento aproximou-se de antigas habitações de pescadores. O Morro do Timbau é o único local seco uma vez que toda a área ocupada pela Maré era um imenso manguezal 4 . As marés, assim como a formação das ondas, são fenômenos naturais e não podem ser controlados pelo homem. A aproximação diz muito das inquietações que a peça impõe. A primeira delas é de origem dramatúrgica. Não é possível para os familiarizados com o teatro brasileiro ignorar a referência ao texto de Gianfrancesco 1 O texto é uma primeira tentativa de análise da peça Eles não usam tênis naique, da Companhia Marginal. Pretendo que as reflexões aqui esboçadas auxiliem em uma pesquisa mais ampla sobre o “afeto como utopia. 2 Prof. Faculdade de Letras/Ciência da Literatura, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 3 De acordo com o programa Ocupação Grandes Minorias, Eles não usam tênis naique tem direção de Isabel Penoni, com texto de Marcia Zanelato e intervenção dramatúrgica da Cia. Marginal. Direção Musical de Thomas Harres, trilha original de Rodrigo de Souza e Thomas Harres, cenário de Guga Ferra, figurino de Raquel Theo e luz de Pedro Struchiner. 4 Informações retiradas de www.redesdamare.org.br , acesso em 14 de setembro de 2015.

Kanagawa, Brasil

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Comentário sobre a peça Eles não usam tenis naique.

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KANAGAWA, BRASIL1

Priscila Matsunaga2

Em 1830, Hokusai publicou uma de suas xilogravuras mais conhecidas, A grande

onda de Kanagawa. A força da natureza é retratada pela suspensão da onda que, como

com garras, ameaça frágeis pescadores. No fundo da cena o monte Fuji, símbolo do

Japão. A obra pertence à trilogia dedicada ao vulcão e encarna, pela representação do

mar, da terra, do fogo, elementos da alma japonesa. A harmonia entre as cores, a

simetria do desenho da onda em relação ao céu, o Fuji quase integrado ao mar assim

como os pescadores, suaviza a fúria da onda, ainda que a sensação do momento

seguinte, aquele que escapa à representação, permaneça no horizonte de expectativas.

A imagem, com um corte que suprimiu o monte Fuji, foi utilizada pela Cia

Marginal3 para o espetáculo Eles não usam tênis naique, em cartaz em setembro de

2015 no teatro Glauce Rocha, como parte da Ocupação Grandes Minorias. O cenário é

composto por duas telas: a central e com maior dimensão, é feita pela colagem de

figuras de morros e favelas cariocas, de policiais com faixas pretas escondendo os

olhos, da orla; à direita do palco (visto da plateia) e em primeiro plano, a onda em

garra de Hokusai. A aproximação da xilogravura japonesa ao grupo de teatro pode fazer

alusão quanto à origem de seus integrantes. Com quase 10 anos de formação, a Cia

Marginal nasceu na Favela da Maré e já realizou quatro espetáculos: Você faz parte de

uma guerra? (2005); Qual é a nossa cara? (2007); Ô, Lili (2011) e In_trânsito (2013).

Situada na zona norte do Rio de Janeiro, com aproximadamente 130 mil moradores,

numa faixa entre a Avenida Brasil e a Baía de Guanabara, cortada pela Linha Vermelha

e Linha Amarela, a ocupação do território da Maré começou na década de 1940.

Recebeu famílias removidas na década de 1960, e com o crescimento aproximou-se de

antigas habitações de pescadores. O Morro do Timbau é o único local seco uma vez

que toda a área ocupada pela Maré era um imenso manguezal 4. As marés, assim como

a formação das ondas, são fenômenos naturais e não podem ser controlados pelo

homem. A aproximação diz muito das inquietações que a peça impõe.

A primeira delas é de origem dramatúrgica. Não é possível para os

familiarizados com o teatro brasileiro ignorar a referência ao texto de Gianfrancesco

1 O texto é uma primeira tentativa de análise da peça Eles não usam tênis naique, da Companhia Marginal. Pretendo que as reflexões aqui esboçadas auxiliem em uma pesquisa mais ampla sobre o “afeto como utopia”.

2 Prof. Faculdade de Letras/Ciência da Literatura, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

3 De acordo com o programa “Ocupação Grandes Minorias”, Eles não usam tênis naique tem direção de Isabel Penoni, com texto de Marcia Zanelato e intervenção dramatúrgica da Cia. Marginal. Direção Musical de Thomas Harres, trilha original de Rodrigo de Souza e Thomas Harres, cenário de Guga Ferra, figurino de Raquel Theo e luz de Pedro Struchiner.

4 Informações retiradas de www.redesdamare.org.br, acesso em 14 de setembro de 2015.

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Guarnieri, Eles não usam black-tie. A peça estreada em 1958 pelo Teatro de Arena de

São Paulo, um dos principais grupos teatrais brasileiros, trouxe como protagonistas

trabalhadores, moradores de um morro carioca, em vias de deflagrar uma greve. O

assunto do espetáculo ganhou contornos dramáticos pelo conflito entre o pai Otávio,

militante do sindicato, e o filho Tião, também operário e contrário à greve. O filho

procura a ascensão social, pressionado não pela companheira Maria, mas por aspirar a

melhores condições de vida a uma família que está por vir. O primeiro ato de Black-tie

define-se pela notícia da gravidez da Maria e do anúncio do noivado. Em Eles não

usam tênis naique, o espetáculo começa com uma narração sobre a peça: Então irmão,

eu vou contar a história do retorno de Jedai. Mas o Jedai é o Santo, tá ligado. Então eu

vou contar a história do retorno do Santo. Aconteceu no dia de operação. Tava rolando

uma mega operação (...). O narrador passa a enumerar todos os envolvidos na

operação para tomar o morro: Exército, PM, Bope, civil, marinha, armas e envolvidos. A

história a ser dramatizada trata do reencontro entre Roseli e Santo, seu pai. Ela, uma

das líderes do “movimento”, é traficante assim como Santo foi antes de passar 20 anos

ausente, fugitivo. Como podemos observar, o conflito está na relação pai e filho. A

diferença está na composição dramatúrgica, pois ao contrário de Black-tie, o início da

peça se dá pela narração, como um prólogo, mas em tudo diferente dos prólogos

brechtianos que pretendem distanciar o espectador. Na narração de Eles não usam

tênis naique a função é dramática, de identificação do espectador a um discurso

demasiado midiático e conhecido, com a voz do narrador sendo alterada pelo

microfone e o rosto escondido pela camiseta. O narrador descreve a cena de

reencontro, dando detalhes do quarto, dos personagens envolvidos, misturando ficção

e realidade – nomeando atores conhecidos por suas atuações em filmes sobre a

violência no Rio de Janeiro - , quando Rose fugindo da polícia reencontra o pai e

decidem conversar na pracinha. Ao contrário de Black-tie, que se passa toda no

barraco da família, a peça se dirige a um local público, que o narrador “não dá conta”

em contar. Por isso vemos a cena, àquilo que é supostamente público e pode ser

observado.

Em torno de um conflito familiar, a origem dos personagens se altera: os

operários dão lugar a traficantes. Contudo, há um dado de encenação, baseado no

figurino, que embaralha essa percepção: Rose e Santo se vestem como operários, com

macacões e botas pesadas. Agora não é mais a fábrica que emprega e sim o tráfico. Há

ainda a não identificação de ator-personagem, pois Rose e Santo são interpretados

pelos quatro atores que se revezam sem distinção. A intenção em contar uma história,

que começou com a narração, é agora dissolvida entre os intérpretes. O recurso

cristaliza na composição do personagem – Rose-traficante-do-bem-que-não-matou-e-

vive-do-tráfico-como-única-opção e Santo-ex-traficante-arrependido-e-agora-

convertido-que-tenta-convencer-a-filha-a-sair-do-tráfico – discursos que circulam no

senso comum.

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Por essa breve descrição é possível perceber que o assunto que trata Eles não

usam tênis naique é de alto grau de interesse para problematizar a situação dos

moradores das favelas, a violência diária, a dominação do tráfico, o Estado ausente e

opressor. As respostas, entretanto, parecem saídas ideológicas que disputam adeptos.

Rose, que vive na favela, possui uma consciência circunscrita à sua condição. Ela

acredita que as pessoas nascem ruins, com inclinação para a maldade – maldade que a

acompanha desde seu nascimento e que apenas por ela é possível redenção. Pessoas

nascem bandidos ou mocinhos. Santo que representa a “boa consciência”, saiu da

favela, não pratica crimes, e se reencontrou com a natureza e com a religião. Vive hoje

em uma casinha, com galinhas, temente a Deus.

Os diálogos, embora desestabilizados pela encenação, são de dualidades

integradas: contra o discurso sobre a violência, a compreensão das condições sociais

que a engendram; contra os assassinatos indiscriminados, praticados também pelos

traficantes, o passado regido por uma “ética bandida”; contra o mal inerente, a

bondade. Enquanto a dramaturgia caminha para a solução dramática, a encenação

exige a compreensão trágica, no sentido apreendido por Peter Szondi: O trágico é um

modus, um modo determinado de aniquilamento iminente ou consumado, é

justamente o modo dialético. É trágico apenas o declínio que ocorre a partir da

unidade dos opostos, a partir da transformação de algo em seu oposto, a partir da

autodivisão. Mas também só é trágico o declínio de algo que não pode declinar, algo

cujo desaparecimento deixa uma ferida incurável5. A pulverização dos discursos

comuns entre os atores coloca em um ciclo infindável o debate público sobre as causas

da violência urbana e as condições de vida dos moradores das favelas. Há apenas uma

cena, salvo engano, que faz de fato pensar. Ao falar sobre o irmão traficante, Hiltinho,

filho adotivo de Santo, hoje chefe do tráfico, Rose fala: Hiltinho gosta, Hiltinho mata

rindo. Antes o ator tinha feito diretamente ao público a pergunta: Não existe gente

ruim? Alguém responde: Sim. Começa o som de funk. A coreografia que acompanha é

feita com tal agressividade que desconstrói qualquer imaginário positivado, mesmo

aquele que circula e integra sobre o símbolo “diva” características identitárias que

outrora buscaram se configurar como resistência social. A coreografia somada à letra

reforça o abuso, a ofensa, a desmedida de todo ato contra a vida. O público se cala, fica

sem chão, engole amargo a resposta de que tem gente que nasce ruim.

De acordo com o programa, a Ocupação Grandes Minorias, busca mapear as

questões sociopolíticas da contemporaneidade brasileira através da cena, revelando

um novo teatro engajado, que tenha potência poética e pensamento capazes de

confrontar a indiferença e a insensibilidade que congelam as relações do indivíduo com

o outro e com o seu tempo e podem mesmo levar uma sociedade ao terror e à

barbárie. Se não me engano, Eles não usam tênis naique vai além por indicar que o

5 Szondi, Peter. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janerio: Jorge Zahar Ed., 2004.

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terror e a barbárie não estão a meio caminho. São como A Onda de Hokusai;

inexoráveis. A aproximação é falsa, entretanto, porque ao contrário das ondas e das

marés, o terror e a barbárie não são naturais. E é exatamente esse pensamento que

impede a peça concretizar uma outra ambição da Ocupação: celebrar a palavra viva e

a vida em comunidade e incitar essa mesma comunidade a ser criadora da realidade

que deseja. A tragicidade, então, ultrapassa a relação palco e plateia e deixa uma

ferida aberta àqueles que possuem inclinação épica e não trágica, que procuram as

respostas nos mecanismos da luta de classes e não na sociedade do afeto, que não

pensam em um engajamento emocional, pois essa é a face da moeda. Contra o medo,

a esperança; contra o terror, a paz. A ausência de qualquer iluminação, mesmo em viés

– teríamos como apresentar outra? – enterra qualquer criação. O pensamento (e aqui

traduzo por conhecimento) gerado por Eles não usam tênis naique, é morto. O olhar de

Rose é mortal, porque é o olhar da morte6.

6 A expressão foi retirada de Peter Szondi em sua análise da peça A morte de Danton. (Szondi, Peter. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 138).