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KANT, HABERMAS E A PAZ PERPÉTUA: uma contraposição dos posicionamentos de Kant e de Habermas acerca da questão da soberania no federalismo de estados livres. Márcio Eduardo da Silva Pedrosa Morais Mestrando em Teoria do Direito pela Pucminas. Bolsista da FAPEMIG – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais. Sumário: Capítulo 1. Colocação do Problema — a questão da soberania no federalismo de estados livres através do pensamento de Kant e de Habermas, Capítulo 2. Kant e A Paz Perpétua: considerações gerais; Capítulo 3. A soberania no federalismo de Estados livres a partir de Kant e de Habermas; Conclusão; Bibliografia. A situação atual do planeta é dramática, haja vista as tragédias ambientais, a fome, os genocídios. Um dos temas mais pungentes no mundo atual é a questão da paz; a guerra assola o cenário internacional. Sangue, sofrimento, desrespeito aos direitos humanos, tudo macula o respeito do homem pelo próximo e por si mesmo. Urge estabelecer uma justiça política universal, a qual poderá aproximar a humanidade de um modelo de justiça federativa universal. Neste cenário, o que vemos é um descaso com a paz, o homem perdeu a esperança em relação à mesma, as grandes potências mundiais tudo destroem em defesa de seus interesses, desrespeitando culturas, tradições, religiões. Invasões em países emergentes com argumentos pouco convincentes: em defesa da paz, da democracia, todavia, tendo claros os reais 1

Kant, Habermas e a Paz Perpétua

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KANT, HABERMAS E A PAZ PERPÉTUA: uma contraposição dos posicionamentos de Kant e de Habermas acerca da questão da soberania no federalismo de estados livres.

Márcio Eduardo da Silva Pedrosa MoraisMestrando em Teoria do Direito pela Pucminas.Bolsista da FAPEMIG – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais.

Sumário: Capítulo 1. Colocação do Problema — a questão da soberania no federalismo de estados livres através do pensamento de Kant e de Habermas, Capítulo 2. Kant e A Paz Perpétua: considerações gerais; Capítulo 3. A soberania no federalismo de Estados livres a partir de Kant e de Habermas; Conclusão; Bibliografia.

A situação atual do planeta é dramática, haja vista as tragédias ambientais, a fome, os

genocídios. Um dos temas mais pungentes no mundo atual é a questão da paz; a guerra assola

o cenário internacional. Sangue, sofrimento, desrespeito aos direitos humanos, tudo macula o

respeito do homem pelo próximo e por si mesmo. Urge estabelecer uma justiça política

universal, a qual poderá aproximar a humanidade de um modelo de justiça federativa

universal.

Neste cenário, o que vemos é um descaso com a paz, o homem perdeu a esperança em

relação à mesma, as grandes potências mundiais tudo destroem em defesa de seus interesses,

desrespeitando culturas, tradições, religiões. Invasões em países emergentes com argumentos

pouco convincentes: em defesa da paz, da democracia, todavia, tendo claros os reais

objetivos: a busca pelo poder, mesmo que para isso tenham que desrespeitar leis internas,

tratados internacionais.

O mundo atual se caracteriza como uma sociedade de nações, sem dúvida; porém, não

se pode esquecer de que cada uma dessas nações possui sua “intimidade”, ou seja, sua

soberania, e essa é um dos elementos formadores do Estado, conforme ensina a Teoria do

Estado.

Para os (hiper)globalistas, deve até existir um Estado mundial único, estatalmente

homogêneo (HÖFFE, 2003, p. 116). Para outra corrente, não há que se aceitar um Estado

mundial, sob pena de se desconsiderar todas as diferenças entre os povos, visto terem os

mesmos culturas, hábitos, valores distintos.

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Destarte, torna-se evidente a importância das questões citadas: paz mundial, respeito

pela soberania, direitos humanos. E tratar sobre a soberania entre os Estados é o intuito que

objetiva-se por intermédio do presente artigo.

Para isso, recorrer-se-á à obra do filósofo alemão Immanuel Kant, À paz perpétua1

(1795), do alemão Zum ewigem Frieden, a qual traz belíssimas passagens sobre a soberania e

a paz mundial, o que a torna uma obra cada vez mais atual. Recorreremos também à obra do

também filósofo alemão, Jürgen Habermas, A inclusão do outro (1996) para fazer um

contraponto com o pensamento do filósofo de Königsberg, em relação a um dos tópicos

apresentados por Kant, a soberania no federalismo de Estados livres.

Com as posições contrárias de Kant e de Habermas acerca da questão da possibilidade

de um Estado Mundial, Estado este defendido por Habermas e criticado por Kant, ao final

poderemos nos posicionar através de uma opinião pessoal. Trazendo assim ao debate assuntos

importantes e pertinentes para o Direito como um todo e para a construção de uma sociedade

mais justa, respeitadora dos direitos humanos e da soberania estatal.

2 – Kant e A Paz Perpétua: considerações gerais

A obra “À paz perpétua” foi publicada no ano de 1795, essa foi inspirada pelas

importantes cartas de direitos da época, haja vista o período denominado pela História como a

Era das Revoluções: Revolução Americana (1776), Revolução Francesa (1789), e ainda um

pouco antes, a Revolução Gloriosa (1688). Os ideais iluministas estavam em voga em toda a

Europa, e também sendo levados para todo o mundo ocidental.

Estruturalmente, a obra se divide em primeira e segunda parte. Kant a inicia com o

título: À PAZ PERPÉTUA – UM ESBOÇO FILOSÓFICO, e com as primeiras palavras já

deixam claros seus objetivos com o opúsculo:

Se esta inscrição satírica na tabuleta de um estalajadeiro holandês, sobre a qual estava pintado um cemitério, tinha por objeto os homens em geral, ou particularmente os chefes de Estado, que nunca ficam saciados de guerra, ou então apenas os filósofos, que sonhem esse doce sonho, não nos cabe decidir. Mas uma condição o autor do presente ensaio estipula, a de que o político prático se erga com grande auto-estima para olhar o teórico como um pedante que não traz, com suas idéias vazias, nenhum perigo ao Estado, o qual precisa partir de princípios

1 Traduzido do idioma alemão, no original: Zum ewigem Frieden.

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empíricos, e assim se pode deixar o teórico ficar sempre jogando o bolão, sem que o estadista conhecedor do mundo tenha de importar-se com isso.”2

Kant salienta que seu trabalho não será considerado pelos políticos, mas mesmo assim

ele não se furtará de se posicionar, dando sua opinião, o que o faz de maneira brilhante. A

primeira parte traz os artigos preliminares para a paz perpétua entre os Estados, estes em

número de seis. A segunda parte traz os três artigos definitivos para a paz perpétua entre os

Estados.

É de se ressaltar que Kant escreveu a obra, conforme afirmado alhures, sob influência

das idéias das revoluções, principalmente da Revolução Francesa, evento este que encantou o

filósofo e que fez com que toda a história do ocidente sofresse sua influência, resultando em

eventos que trazemos conosco em nosso cotidiano, em nossas instituições, até os dias atuais.

O primeiro artigo preliminar para a Paz Perpétua entre os Estados, traz o seguinte

subtítulo: 1. Não Deve Ser Considerado Válido Nenhum Tratado de Paz que Possa Ser

Convertido, com uma Ressalva Secreta, na Matéria de uma Futura Guerra3. Para Kant, se

isso ocorresse, trataria-se de um armistício e não de uma verdadeira paz, pois o próprio

documento poderá, a qualquer momento, ser colocado a serviço de Estados para se fazer uma

guerra, fazendo como que o termo “perpétua” tenha um caráter suspeito.

O segundo artigo trata da questão da possibilidade de um Estado adquirir o outro por

troca, compra, com o seguinte enunciado: 2. Nenhum Estado Existente por Si (Grande ou

Pequeno, Tanto Faz) Poderá Ser Adquirido por Outro Estado Por Herança, Troca, Compra

ou Doação4. Este artigo traz uma questão bastante interessante e importante: o fato de o

Estado não ser considerado tão somente um ente físico, o qual pode ser, a qualquer tempo e

circunstância, alienado. O Estado é mais do que isso, ele é uma sociedade de homens, homens

que possuem histórias, ou como o próprio Kant diz, “raiz”.

Tal artigo reflete um aspecto histórico predominante na Europa de então, o casamento

entre famílias reais para que reinos fossem unidos, formando uniões pessoais e reais de

Estados. A interpretação da proibição implícita nesse artigo abrange também o fato de um

Estado não poder alugar tropas de outro.

Já o terceiro artigo traz: 3. Exércitos Permanentes (miles perpetus) Serão Com o

Tempo Abolidos5. Kant defende a abolição dos mesmos por considerar que os gastos com

esses se avolumam incessantemente pelo fato de que o incitamento de um para superar o outro

2 In: GUINSBURG, J. A Paz Perpétua: um projeto para hoje. pág. 313 In: Op. Cit. pág. 324 In: Op. Cit. pág. 325 In: Op. Cit. pág. 33

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em número de homens, faz com que os gastos em tempos de paz sejam superiores aos gastos

em tempos de guerra.

Também existe a questão de se morrer em prol de uma causa, muitas das vezes,

ilegítima, como temos visto em nossos dias atuais, soldados são recrutados para lutar em uma

guerra que na verdade não compreendem, e as mortes são, descaradamente, mascaradas pela

mídia, mídia esta também controlada, muitas das vezes, pelo próprio Estado.

Em uma corrida armamentista, a tensão e a ameaça da guerra fazem com que ataques

antecipados sejam sempre comuns, e armas químicas, atômicas, de destruição em massa são

preparadas, secretamente, por Estados, tudo com vista à prevenção de um ataque por parte de

outro. É importante ressaltar a atualidade do terceiro artigo, ele reflete a nossa realidade em

relação às relações internacionais, à questão da política internacional, os conflitos no Oriente

Médio, o clima de tensão que existe num mundo dominado pela tecnologia de destruição em

massa.

O quarto artigo traz: 4. Não Devem Ser Feitas Dívidas Públicas em Relação a Rixas

Externas de Estados6. Kant inicia os comentários a esse artigo com os seguintes dizeres:

Se é para obter ajuda, fora ou dentro do Estado, em favor da economia do país (melhoria das estradas, novos assentamentos, criação de depósitos para o abastecimento nos anos infrutuosos etc.), essa fonte de auxílio é insuspeita. Mas como máquina para produzir efeitos opostos nas potências uma contra a outra, um sistema de crédito que cresce a perder de vista e que é, no entanto, sempre, uma dívida garantida no caso de cobrança imediata (pois, afinal, nem todos os credores a farão de um só vez) – que é a engenhosa descoberta de um povo promotor do comércio neste século – constitui um perigoso poder financeiro, ou seja, um tesouro parar travar guerra, que supera os tesouros de todos os outros Estados reunidos, e que só pode exaurir-se por uma iminente queda de impostos (...).” 7

Kant não condena os empréstimos para serem usados em melhorias para o Estado, e

também para prevenção em casos de escassez, de anos infrutuosos. O que ele condena são os

empréstimos usados na promoção de querelas entre Estados.

Já no quinto artigo, com o postulado: 5. Nenhum Estado Deve Intrometer-se pela

Força na Constituição e no Governo de Outro Estado8, Kant trata de um dos temas mais

delicados e atuais no cenário político internacional, a questão da soberania internacional.

Se fizermos uma retrospectiva nos últimos anos, recordaremos diversos eventos que

trazem em si esta condição, como exemplo, temos a Guerra do Golfo, a invasão norte-

americana no Afeganistão usando o pretexto de acabar com terroristas, a Guerra no Iraque,

6 Op. Cit. pág. 34.7 Op. Cit. pág. 34.8 Op. Cit. pág. 35.

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esta com o fito de instaurar uma democracia no país, sem citar outros, os quais são de

conhecimento de toda comunidade internacional.

A soberania estatal é um dos elementos, além de caracterizadores, marcantes do

Estado Moderno, sendo una e indivisível, não havendo Estado perfeito se essa não existir.

Kant indaga o que poderia autorizar um Estado invadir o outro. E lança a indagação se talvez

o escândalo provocado nos súditos do Estado que sofreu a intromissão seja a autorização.

E conclui a parte dos artigos preliminares para a paz perpétua com o sexto artigo: 6.

Nenhum Estado, em Guerra com um Outro, Deve Permitir Hostilidades de Tal Natureza que

Tornem Impossível a Confiança Recíproca na Paz Futura: como o Emprego de Assassinos

(percussores), envenenadores (venefici), a Ruptura da Capitulação, o Incitamento à Traição

(perduellio) no Estado Combatido9.

Kant afirma serem esses, estratagemas desonrosos. Apesar de Kant afirmar a

possibilidade e a realidade da guerra, defende o que poderíamos afirmar de “guerra justa”, ou

seja, uma guerra que tivesse por objetivo posterior um estado de paz, guerra que teria o seu

resultado arbitrado nos chamados juízos de Deus, o qual decidiria de que lado se encontra o

direito.

Kant, nos comentários ao presente artigo, também condena a chamada bellum

punitivum, ou seja, guerra de punição, pois nenhum Estado possui relação de subordinação a

outro. E também salienta o fato de que:

[...] uma guerra de extermínio, na qual pode ocorrer o aniquilamento de ambas as partes ao mesmo tempo e, com isso, também de todo direito, só permitiria haver a paz perpétua no grande cemitério do gênero humano. Portanto, semelhante guerra, com o emprego de meios que conduzem a isso, deve ser simplesmente proibida.”10

Após o sexto artigo supracitado, Kant inicia a segunda seção de sua obra, a qual

contém os chamados artigos definitivos para a paz perpétua entre os Estados, seção que

contém três artigos.

Kant, antes de introduzir os artigos definitivos, em seu preâmbulo aos mesmos, afirma

que a paz não é um estado de natureza entre os homens, e que do contrário, o estado de

natureza entre os homens é sim um estado de guerra, um estado que mesmo que não haja a

efetiva irrupção de hostilidades, a ameaça de guerra é constante. E assim conclama a todos os

homens que lutem por um estado de paz, afirmando que este precisa ser instaurado.

Após a consideração, Kant inicia a apresentação e dissertação dos três artigos

definitivos para a paz perpétua.

9 Op. Cit. pág. 35.10 Op. Cit. pág. 36.

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O primeiro artigo definitivo traz: PRIMEIRO ARTIGO DEFINITIVO PARA A PAZ

PERPÉTUA – A Constituição Civil Em Cada Estado Deve Ser Republicana.11 Kant nos

comentários ao artigo define a constituição republicana como aquela que é estabelecida

conforme os princípios da liberdade dos membros da sociedade; conforme os princípios

básicos de dependência de todos em relação a uma única legislação comum; e conforme a lei

da igualdade dos mesmos, como cidadãos.

Kant também salienta que o fundamento da constituição republicana é a paz perpétua,

afirmando que o ônus da guerra deve ser suportado pelos próprios cidadãos, pois são este que

decidem pela mesma.

Se (e não pode ser de outro modo nessa constituição) é exigido o consentimento dos cidadãos para decidir ‘se deve ou não haver guerra’, então nada é mais natural que ponderem bastante antes de encetar um jogo tão malévolo, pois devem resolver a tomar sobre si mesmos todas as tribulações da guerra (como são: combater pessoalmente; prover os custos da guerra com seus próprios haveres; reparar penosamente a devastação que ela deixa atrás de si: e, finalmente, para cúmulo dos males, tomar sobre si o peso de uma dívida que amarga a própria paz e que [por causa das próximas e sempre novas guerras] jamais será liquidada).12

Para que não se confunda constituição republicana com democrática, Kant observa que

as formas de Estado (civitas) podem ser divididas de acordo com a diferença das pessoas que

detêm o poder supremo do Estado; de acordo com o modo de governar o povo adotado pelo

soberano.

À primeira, Kant dá o nome de forma imperii, e a divide em três: um só detém o poder

soberano (autocracia), alguns detêm o poder (aristocracia) ou todos detêm tal poder

(democracia). Em relação ao modo de governar, a forma de governo (forma regiminis), poder-

se-á ser dividido em republicano ou despótico. O republicanismo é o princípio político da

separação do poder executivo do legislativo; o despotismo é o da execução arbitrária pelo

Estado das leis por ele próprio originadas.

Passando para o segundo artigo definitivo, este objeto do título do presente artigo, por

ser objeto de reflexão do filósofo alemão Jürgen Habermas em sua obra A inclusão do outro

(1996), por fazer uma atualização da obra de Kant duzentos anos depois, nas próprias palavras

de Habermas. O posicionamento central da atualização se converte neste segundo artigo, no

qual Habermas traz opinião diversa da de Kant, conforme veremos mais à frente.

11 Op. Cit. pág. 40.12 Op. Cit. pág. 42.

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O segundo artigo traz: SEGUNDO ARTIGO DEFINITIVO PARA A PAZ PERPÉTUA

– O Direito das Gentes Deve Ser Baseado Em Um Federalismo de Estados Livres.13 Kant,

assim, defende um Federalismo ou uma união de Estados, porém todos livres, sem haver uma

dependência entre si.

Observa-se que, pelo fato de dissertarmos sobre o mesmo em capítulo separado, não

aprofundaremos por ora neste artigo e passaremos já para o terceiro artigo definitivo, que traz:

TERCEIRO ARTIGO DEFINITIVO PARA A PAZ PERPÉTUA – O Direito Cosmopolítico

Deve Restringir-se Às Condições da Hospitalidade Universal.12 Kant observa que não se trata

de filantropia, mas sim de hospitalidade, como o próprio Kant define, dando o exemplo de um

estrangeiro ser tratado com respeito no território de outro Estado, afirmando que enquanto

este conviver com hospitalidade, não deverá ser tratado de forma hostil.

Kant ao comentar o artigo, afirma que o homem tem direito de viajar para qualquer

lugar da superfície do globo, sempre havendo uma aproximação de pessoas, mesmo os

habitantes em lugares inóspitos, ou seja, o homem é um animal cosmopolita.

Kant também se refere às visitas a países estranhos com o fito de explorar a economia

dos mesmos, sua vegetação e recursos naturais, como exemplo, o acontecido nas Américas

em 1492 e no Brasil a partir de 1500, o que para os países invasores é conhecido como

conquista.

Com essas considerações, ainda que sucintas, passaremos ao próximo capítulo, no qual

faremos uma abordagem sobre o segundo artigo definitivo, artigo esse que serve de

comparação entre dois filósofos importantes para o pensamento ocidental, um “antigo” e

outro “contemporâneo”, Kant e Habermas.

3 – A soberania no federalismo de Estados livres a partir de Kant e de Habermas

O segundo artigo definitivo, conforme já explicitado, traz o seguinte tema: SEGUNDO

ARTIGO DEFINITIVO PARA A PAZ PERPÉTUA – O Direito das Gentes Deve Ser Baseado

Em Um Federalismo de Estados Livres, Kant rejeita expressamente um Estado Mundial,

considerando assim a diversidade cultural da sociedade internacional:

Ora assim como encaramos o apego dos selvagens à sua liberdade anárquica, que é a de se combater incessantemente, de preferência a submeter-se a uma coerção constituída por eles mesmos, portanto de preferir a liberdade louca à racional, com profundo desprezo, e consideramo-lo como grosseria, falta de polimento e degradação animalesca da humanidade; assim também, dever-se-ia pensar, os

13 Op. Cit. pág. 50.

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povos civilizados (cada um por si reunidos num Estado) precisariam apressar-se a sair, o quanto antes melhor, de uma condição tão condenável: em vez disso, porém, cada Estado coloca bem mais a sua Majestade (pois a Majestade do povo é uma expressão absurda) precisamente em não se submeter a nenhuma coerção legal exterior.” 14

Deste modo, fica claro posicionamento de Kant, apesar de o mesmo autor considerar

importante uma organização que congregue os Estados, tal organização não pode se tornar um

Estado Mundial. Em sentido contrário ao posicionamento de Kant, está o posicionamento do

filósofo Jürgen Habermas15 ao dizer:

Como já se demonstrou, não é consistente o conceito kantiano de uma aliança de povos firmada de forma duradoura e capaz de respeitar, ao mesmo tempo, a soberania dos Estados. O direito cosmopolita tem de ser institucionalizado de tal modo que vincule os governos em particular. A comunidade de povos tem ao menos de poder garantir um comportamento juridicamente adequado por parte de seus membros, sob pena de sanções. Só assim o sistema de Estados soberanos em constante atitude de auto-afirmação, instável e baseado em ameaças mútuas poderá transformar-se em uma federação com instituições em comum, que assumam funções estatais, ou seja, que regulem a relação de seus membros entre si e controlem a observância dessas regras.” 16

Assim, durante o ensaio A idéia kantiana de paz perpétua – à distância histórica de

200 anos, incluído na cita obra A inclusão do outro, Habermas, traz aos dias atuais, as idéias

expostas por Kant em seu opúsculo.

Habermas afirma que a “paz perpétua”, já invocada pelo abade Saint Pierre, é um ideal

que deve conferir atratividade e força elucidativa à idéia de condição cosmopolita. Assim,

Kant confere uma terceira dimensão à teoria do direito, ao lado do direito público e do direito

internacional surge o direito cosmopolita, conforme afirmado alhures.

Consideramos a posição de Kant como a correta, apesar de Habermas também ter

razão em seu posicionamento. Habermas defende o sistema de povos com um instrumento de

sanção comum, para que o vínculo seja forte e as posições respeitadas.

Kant, de outro lado, afirma que um sistema de povos com um órgão que se posicione

acima das partes, pode ferir a soberania das nações.

Trazendo o debate entre as duas posições para os dias atuais, temos o exemplo da

Organização das Nações Unidas e sua real efetividade, e também a questão das invasões

norte-americanas ao redor do mundo, ferindo soberanias, tudo em vista de se buscar uma “paz

democrática” para todos os povos.

Concordamos que a soberania de um povo deve ser respeitada, não sendo suscetível de

ameaça por parte de outros povos, mesmo que seja para estabelecer uma paz perpétua, em

14 Op. Cit. pág. 46.15 Estampado em sua obra A inclusão do outro (1996).16 In: HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. pág. 200/201.

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defesa da democracia, como querem os atuais donos do poder, herdeiros de um poder que um

dia já pertenceu à poderosa Roma, que também invadiu para impor sua cultura.

Também afirmamos que Habermas tem razão, pois se não houver um órgão superior

externo para impor sanções, as regras para efetivação da paz perpétua não serão cumpridas,

mas em um contraponto entre soberania e invasão de soberania para a imposição de uma paz

perpétua, como foi colocado por Habermas, ficamos com o posicionamento da não invasão e

o respeito da soberania, de Kant, pois a soberania estatal é um dos elementos mais

importantes para a caracterização do Estado e uma de suas mais relevantes conquistas.

Conclusão

Com essas breves colocações expostas no presente artigo, percebemos a importância

da obra “À Paz Perpétua” e sua atualidade. Principalmente, para os dias em que vivemos,

onde a história é manchada e escrita com o sangue de vários povos, tudo em vista de uma

ânsia de capital e dominação.

Kant não escreveu muito sobre história, relações internacionais, política internacional,

porém o pouco que escreveu em dimensão, ultrapassa em conteúdo muita tinta já usada por

outros autores, principalmente, considerando a contemporaneidade de seu pensamento,

conformado já relatado.

Temos a esperança de que dias melhores virão, que não vejamos mais crianças e civis

inocentes morrerem, mortes essas em decorrência de objetivos inescrupulosos, que, na

verdade, escondem por trás de argumentos falhos e mentirosos, interesses econômicos.

Deste modo, concluimos o presente artigo, que apesar de breve, aborda uma obra de

importância não só para a Política Internacional, mas também para o Direito, obra cuja

profundidade de idéias e posicionamentos, tem o potencial de fundamentar muitas discussões

e querelas entre Estados, principalmente, nos dias atuais, quando, já dizemos, a soberania dos

povos nada mais representa que um mero item, e vidas são apenas computadas em índices de

guerra; “a Segunda Guerra Mundial matou mais que a Primeira Guerra Mundial”, é apenas o

que ouvimos, e não nos comovemos com o sofrimento alheio.

Os posicionamentos implícitos em À paz perpétua são apenas sementes para

prepararmos um campo onde possamos semear as sementes desta paz por ela defendida e

almejada!

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BIBLIOGRAFIA

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HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

GUINSBURG, J. (org). A paz perpétua: um projeto para hoje. São Paulo: Perspectiva, 2004.

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