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a SAÚDE como DIREITO e como SERVIÇO Amélia Cohn Edison Nunes Pedro R. Jacobi Ursula S. Karsch 7 a edição

Karsch Este texto busca desvelar a questão da CAPÍTULO I As heranças da saúde: da política da desigualdade à proposta da equidade No Brasil, o fato de a atenção médica estar

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a SAÚDE como

DIREITO e como

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Amélia CohnEdison Nunes

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7a edição

Este texto busca desvelar a questão da saúde a partir do cotidiano das classes populares sediadas no anel periférico da cidade de São Paulo. Embora sua preocu-pação central consista nos desafios para a conquista da saúde com direito, na medida em que os interlocutores são os próprios sujeitos que demandam os serviços, este estudo na foge à regra: o ponto de parti-da passa a ser doença, ou os sintomas e desconfortos que, interpretados como tal, motivam a procura de um atendimento.É necessário, no entanto, um alerta ao lei-tor: a trajetória percorrida envolve, de um lado, um objetivo específico – reconhecer as lógicas contraditórias da dinâmica da composição da cesta de serviços que as classes populares compõem –, mas de outro, ao assim proceder, ela acaba por envolver questões complexas por compreender distintos níveis de entendi-mento. Dentre estes, o mais evidente é a própria diversidade dos dados. Àqueles relativos às condições socioeconômicas associam-se outros, igualmente objetivos, mas que dizem respeito à representação social dos agentes sobre saúde-doença, direito à saúde e avaliação do próprio atendimento.Não se trata, portanto, de um texto teóri-co, mas de articulação analítica dos dados obtidos orientada pela perspectiva maior da consolidação da democracia no país. Consequentemente, prevalece a ótica da saúde como um direito a ser constituído, contraposta à concepção desse direito como acesso a uma assistência médica, no caso em questão, no geral de baixa qualidade. Trata-se, sim, de um texto que busca recuperar os sujeitos sociais, objetivo privilegiado das políticas de saú-de – e ao mesmo tempo de certa forma vítimas –, na sua relação cotidiana com os próprios serviços.

Num cotidiano da periferia de um núcleo urbano da capital paulista, marcado pela carência e dificuldade de acesso a bens de consumo coletivo, qual a posição ocupada pelas ques-tões da saúde?

É disso que trata este texto: a partir de uma pesquisa domiciliar, e enfatizan-do não o poder público, mas os atores sociais – consumidores, vítimas e partícipes da própria formulação das políticas de saúde –, buscando des-lindar a lógica dos serviços de saúde, o imaginário e a medicalização no próprio consumo desses serviços e a moblização por saúde.

Trata-se, portanto, de um texto que dialoga permanentemente em vários preceitos já estabelecidos no setor, na medida em que os confronta com a realidade cotidiana desses atores sociais da ótica da sua transformação em sujeitos sociais.

▪Amélia Cohn, socióloga, docente do

Departamento de Medicina Preventiva da

Faculdade de Medicina da USP e pesqui-

sadora do Centro de Estudos e Cultura

Contemporânea – CEDEC.

▪ Edison Nunes , cientista político,

docente do Departamento de Ciências

Públicas da PUC-SP, à época também

pesquisador do CEDEC.

▪Pedro Roberto Jacobi, economista e

sociólogo, docente do Departamento de

Administração Escolar e Economia da

Faculdade de Educação da USP, à época

também pesquisador do CEDEC.

▪Ursula Margarida Simon Karsch,

docente do Programa de Pós-Graduação

em Serviço Social da PUC-SP, à época

também pesquisadora do CEDEC.

ISBN 978-85-249-2335-7

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SUMÁRIO

PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO ........................................................ 7

INTRODUÇÃO ........................................................................................... 9

CAPÍTULO IAs heranças da saúde: da política da desigualdade à proposta de equidade ............................................................................. 15

CAPÍTULO IIA regionalização das carências: retrato de duas áreas periféricas .......................................................................................... 35

CAPÍTULO IIIO acesso em discussão: o viés da racionalidade e o viés da carência ........................................................................................... 80

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CAPÍTULO IVA medicalização e o imaginário no consumo de serviços de saúde ....................................................................................... 112

CAPÍTULO VSaúde: da carência dos serviços à reivindicação dos direitos .............. 154

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................... 187

REFERÊNCIAS .......................................................................................... 191

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CAPÍTULO I

As heranças da saúde: da política da desigualdade à proposta da equidade

No Brasil, o fato de a atenção médica estar intrinsecamente associada à previdência social imprime uma especificidade, com profundas raízes históricas, à atual questão da busca da equidade no direito dos cidadãos à saúde.

Não só esse fato remete o direito à saúde marcado pela dis-tinção original de inserção dos trabalhadores no mercado de tra-balho, como convive com as medidas implementadas pela saúde pública, que antecedem à própria instituição da previdência social no país. Caracterizada pela responsabilidade das ações de caráter coletivo de natureza preventiva no controle de endemias e pro-gramáticas na atenção a grupos selecionados da população — materno-infantil, tuberculosos, hansenianos e outros — a saúde pública no decorrer do tempo convive de forma tensamente com-plementar com a assistência médica individual filantrópica e previdenciária, e posteriormente da rede pública, sendo crescen-

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temente pressionada a buscar nova identidade sem perder a sua especificidade. Essa complementaridade tensa traduz exatamente a questão do coletivo contraposta ao individual, a do curativo contraposta ao preventivo.

Nesse sentido, o atual texto constitucional significa um in-discutível avanço no que diz respeito a uma concepção mais abrangente de seguridade social por contraposição àquela até então prevalecente. Enquanto esta — entendida como um seguro social — se restringe a formas de benefícios e prestações de ser-viços bastante específicas, aquela abrange um conjunto integrado de ações visando assegurar o direito à saúde e à previdência e assistência sociais, abolindo o caráter estritamente contratualista até então vigente, e reafirmando esses direitos como universais.

Não obstante esse inegável avanço, e exatamente por isso, impõe-se agora superar tradicionais e históricas dicotomias, no setor saúde, entre o universal e o particular, o público e o privado, o preventivo e o curativo, o rural e o urbano, o carente e o não carente, a assistência médica previdenciária e a não previdenciária, e entre o discurso e a prática das políticas de saúde.

A indagação de fundo que se coloca na atual conjuntura, e que encontra suporte nos dados aqui presentes, consiste em questionar até que ponto os diferentes setores sociais, sobretudo os segmentos mais desfavorecidos e espoliados da nossa sociedade, alcançaram a real amplitude e até radicalidade do artigo 196 da Constituição — “A saúde é direito de todos e dever do Estado” — ou fazem uma outra leitura do texto entendendo — e reduzindo — saúde como mera assistência médica. Como decorrência, impõe-se repensar o que se convencionou denominar de reforma sanitária brasileira em termos dos limites e potencialidades dos movimentos sociais e políticos envolvidos nesse processo.

Nesse caso, o passo subsequente consiste em deslindar a es-pecificidade da saúde e da previdência social frente às demais

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políticas sociais e políticas públicas, a origem e raízes sociais das propostas que acabaram por vigorar no atual texto constitucional, bem como problemas e impasses que se colocam da perspectiva da constituição, no Brasil, da cidadania de uma ordem democrática.

Retrospecto histórico das dicotomias

A intervenção do Estado na área do seguro social para assala-riados urbanos do setor privado data de 1919, com o seguro de acidentes do trabalho, sendo da década de 1920 a criação das Cai-xas de Aposentadorias e Pensões (CAP). O Decreto-lei n. 4.682/23 cria a primeira CAP, dos ferroviários, tendo-se este modelo de se-guro social rapidamente multiplicado nos anos subsequentes.

As CAPs, entidades públicas com larga autonomia com re-lação ao Estado, são instituídas como um contrato compulsório, organizadas por empresas, geridas através de representação di-reta de empregados e empregadores, tendo finalidade puramen-te assistencial: benefícios em pecúnia e prestação de serviços. Seus recursos têm origem tripartite: contribuição compulsória de empregados e empregadores (3,0% do salário e 1,0% da renda bruta da empresa) e da União (1,5% das tarifas dos serviços). O Estado institui, em tese financia em parte, e normatiza essa mo-dalidade de seguro social, mas não participa diretamente do seu gerenciamento.

A partir de então inicia-se uma primeira dicotomia no interior da saúde: o enfoque eminentemente curativo frente ao enfoque eminentemente preventivo. Os preceitos da saúde pública respon-dem às medidas de caráter coletivo, em particular as campanhas sanitárias — combate à febre amarela e varíola, por exemplo — que tanta celeuma provocam desde o início do século. Já às classes assalariadas urbanas, até então assistidas pelas mutualidades e pela

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filantropia (como de resto a população em geral), de longa tradição entre nós, passam a ser destinados serviços de atenção médica individual, prestados pelas CAPs, que por sua vez compravam serviços médicos do setor privado através do mecanismo de cre-denciamento médico.

Institui-se, assim, uma divisão de responsabilidades relativas ao setor na qual ao Estado ficam reservadas as medidas coletivas de saúde, particularmente as de controle daquelas endemias que se configuram como sério obstáculo para o florescimento das ati-vidades econômicas agroexportadoras. E, enquanto os recursos para tais medidas têm origem na arrecadação orçamentária, a as-sistência médica individual, sob responsabilidade do seguro social em sua quase totalidade, é financiada por recursos advindos das contribuições.

E é a partir desse momento, também, que tem origem uma característica crucial da saúde em nosso país: a concepção da as-sistência médica, muito mais restrita que saúde, como pertinente à esfera privada e não à pública. Não se constitui, portanto, saúde como um direito do cidadão e muito menos dever do Estado, mas sim a assistência médica como um serviço ao qual se tem acesso a partir da clivagem inicial da inserção no mercado de trabalho for-mal e para a qual se tem que contribuir com um percentual do salário, sempre por meio de um contrato compulsório.

A década de 1930 assiste à formação dos IAPs — Institutos de Aposentadorias e Pensões — que institucionalizam o seguro social fragmentando as classes assalariadas urbanas por inserção nos setores da atividade econômica: marítimos, bancários, comerciários, industriários e outros. Agora transformados em autarquias, os institutos passam a ser geridos pelo Estado, continuando a contar com recursos financeiros de origem tripartite, com a diferença marcante de a contribuição patronal ser agora calculada, como a dos empregados, sobre o salário pago.

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A estrutura dos IAPs, convivendo ainda por décadas com a estrutura das CAPs remanescentes em várias empresas, permane-ce até 1966, quando então é unificado todo o sistema previdenciá-rio no Instituto Nacional de Previdência Social — INPS. No entan-to, acompanhando as profundas transformações da sociedade brasileira nesse período, sobretudo os processos de acelerada in-dustrialização e urbanização, os serviços previdenciários de saúde vão progressivamente sendo pressionados pela demanda dos trabalhadores assalariados urbanos, sem outro serviço médico al-ternativo, quer estatal, quer privado, à exceção de uma rede de estabelecimentos de natureza filantrópica e de uma rarefeita rede pública hospitalar, ambulatorial e de atenção primária.

O apogeu do modelo desenvolvimentista, na segunda metade da década de 1950, marca o início de um processo acelerado de aprofundamento das dicotomias entre atenção médica curativa e medidas preventivas de caráter coletivo, acompanhada da dicoto-mia entre serviços público e privado de saúde. Sedimentam-se, até a década de 1970, essas dicotomias, numa clara divisão de tarefas e clientelas, quando então, a partir da sua segunda metade, a rede pública de serviços de saúde passa a assumir crescentemente tam-bém a assistência médica individual.

O Sistema Nacional de Saúde — Lei n. 6.229/1975 — sela essa dicotomia ao estabelecer, reafirmando, as especialidades preferen-ciais das tarefas a cargo da Previdência Social e do Ministério da Saúde, ao mesmo tempo que referenda a situação de fato de os serviços vinculados ao Ministério da Saúde estarem agora con-templando também a assistência médica individual. Dadas, porém, a importância da presença da previdência social nos serviços de saúde, e sua opção pela compra dos serviços privados — seja sob a forma de credenciamento ou sob a forma de convênios — asso-ciada a um decrescente gasto do orçamento da União com o setor, cristaliza-se nessa mesma década o setor privado de prestação de serviços médicos. Mais do que se cristalizar, esse setor floresce e

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se capitaliza às custas da intervenção estatal não na área propria-mente da saúde mas da previdência social. Em contraposição, a rede pública de serviços passa a sofrer um acentuado processo de sucateamento, fruto da sua não prioridade no interior das políticas de saúde, e destas no interior das diretrizes políticas gerais do país.

Estabelece-se, então, a par de uma divisão social do trabalho entre os ministérios da Previdência e Assistência Social (criado em 1974) e da Saúde (que data de 1953), uma seletividade da cliente-la de ambos para os seus respectivos serviços de saúde. O primei-ro destina-se à população mais diferenciada, dadas as caracterís-ticas sociais do nosso país, por estar formalmente inserida no mercado de trabalho, e os serviços públicos vinculados ao outro ministério, às populações de mais baixa renda, excluídas do setor formal da economia.

Tal fato imprime uma terceira dicotomia, que consolida a as-sistência médica como um direito contratual, compulsório e con-tributivo, contraposta à assistência médica — pública e filantrópica — para a população carente.

Em decorrência, estabelece-se uma aguda diferenciação entre os setores urbano e rural em termos de acesso e disponibilidade de equipamentos médicos, associada a uma generalizada diferen-ciação e estigmatização da clientela. Esta manifesta-se em termos de um grande marco divisório entre carentes — orientados para o setor público e filantrópico — e assalariados — orientados, por intermédio da previdência social, para o setor privado (que tam-bém os diferencia em termos de qualificação e status ocupacional), e só mais recentemente orientados também para o setor público de serviços.

E, se de um lado o processo de desenvolvimento econômico do país gera um perfil de demanda dos serviços de saúde que faz com que os serviços públicos assumam, a partir dos anos 1980, a assistência médica individual, de outro, esse mesmo processo,

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paradoxalmente, imprime alterações na lógica da relação entre serviços públicos e privados da saúde.

De fato, a lógica do favorecimento do setor privado da assis-tência médica através da política previdenciária prevalece de forma explícita até os anos 1980. Neste período estabelece-se uma clara divisão de trabalho e clientelas entre os setores público e privado de saúde, apresentando este distintas modalidades de organização. Corresponde a esse período o apogeu das empresas médicas, co-nhecidas como medicina de grupo, dos hospitais privados (que tinham em grande parte a sua construção viabilizada com finan-ciamento federal do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS) criado em 1974), e das cooperativas médicas. Essas distintas modalidades do setor privado contaram com uma clientela cativa — previdenciária — através da compra de seus serviços, quer sob a forma de convênios ou de credenciamentos, firmada pelo INPS e posteriormente pelo Inamps.

Esse processo de privatização da esfera pública, não exclusivo da saúde, tem como consequência o prevalecimento da lógica do lucro e da capitalização nos investimentos do setor. Em decorrência, constata-se hoje uma distribuição fortemente desigual dos equipa-mentos de saúde no país quando se consideram as dimensões re-gional, urbano-rural, e da rede urbana. Assim, as regiões Sul e Sudeste do país concentram o maior volume proporcional dos equipamentos de saúde, o que ocorre mais intensamente apenas naquelas cidades que se configuram como importantes polos re-gionais. Por sua vez, no interior dessas cidades essa mesma lógica prevalece quando se evidencia a maior concentração desses recur-sos nas áreas mais centrais e ricas. E, no que diz respeito à dimen-são urbano-rural, a recente incorporação dos trabalhadores rurais ao sistema previdenciário, datada da década de 1960, e até então assistidos pelas instituições filantrópicas sem vínculo com a previ-dência social, muito pouco representou na superação dessas dis-paridades, no caso bastante mais acentuadas.

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A outra face da lógica da capitalização e da lucratividade que rege as políticas de saúde, sobretudo nessas últimas décadas, manifesta-se num modelo de assistência médica de alta densidade tecnológica, particularmente nos procedimentos diagnósticos e terapêuticos. Em decorrência, a divisão de trabalho entre os setores privado e público acaba por reservar para este exatamente aqueles atos que por serem mais complexos e, portanto, de elevado custo, não respondem à rentabilidade do setor privado. Acompanha ain-da esse processo, como decorrência da lógica privatista que o rege, a incorporação da assistência médica individual, não hospitalar pelo setor público, na medida exata do desinteresse, de variada natureza, por parte do setor privado.

Mas, se tal fato implica uma superação na divisão de trabalho clássica entre os setores privado e público, na medida em que este, além das medidas de caráter coletivo, também assume a assistên-cia médica individual eminentemente curativa, esta é crescente-mente incorporada através de programas segmentados, prática tradicional da saúde pública (ao lado do programa materno-in-fantil, por exemplo, institui-se o programa de adultos, os progra-mas recentemente criados de atenção à mulher de saúde do tra-balhador), e não através de políticas integradas por um novo modelo de atenção à saúde, sem a contraposição entre práticas curativas e preventivas.

Nesse sentido, a crescente incorporação da assistência médica individual pelo setor público questiona e desafia os modelos de atenção médica até então prevalecentes, formulados seja pela saú-de pública, seja pela medicina. Em decorrência, essa incorporação acaba por imprimir, e reafirmar, na sua prática cotidiana, a repro-dução de procedimentos orientados por aqueles modelos, sem impactar a sua reformulação no interior da nova lógica que deveria reger essa prática médica, voltada para a busca da equidade no direito à saúde.

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Gonçalves,1 em estudo recente, aponta a existência de dois modelos tecnológicos no interior da medicina: o da medicina clí-nica e o da saúde pública. O primeiro recorta o seu objeto de tra-balho a cada ato médico, “nas alterações morfofuncionais do corpo humano biológico individual”, que por sua “variação ‘anormal’ definição quantitativamente os polos mutuamente excludentes, apenas no limite, do ‘normal’ e do patológico”, em uma relação de causalidade mecânica que exclui qualquer variável não biológica. O segundo recorta o objeto simultaneamente num “espaço carte-siano triaxial em que ‘população’, ‘espaço geográfico’ e ‘tempo’ definem-no no movimento de ‘taxas’, relações matemáticas entre ‘doentes’ (definidos exatamente pelos mesmos critérios clínicos operacionalizáveis, até mesmo por critérios totalmente subjetivos ou parcialmente objetivados, mas só em nível de comunidade de atributos ‘experimentalmente’ supostos como eficientes) e doentes em potencial”. E, neste caso, os conceitos de ‘normal’ e ‘patológico’ assumem uma dimensão qualitativa na definição do conjunto de eventos considerados indesejáveis, possibilitando assim que o que se considera normal contenha a ocorrência da doença, sempre em termos probabilísticos, podendo qualquer variável explicativa ser possível, desde que coerente teoricamente e quantificável sob a forma de atributos dos indivíduos ou subgrupos de uma população.

Assim sendo, conclui o autor:

“É óbvio que o processo diagnóstico da ‘medicina clínica’ terá que se efetuar individualmente, a cada vez de novo; ao mesmo tempo, o diagnóstico em Saúde Pública, salvo situações claramente diferen-tes da norma (como epidemia, por exemplo), só poderá ser realizado

1. Gonçalves, R. B. M. Processo de trabalho em saúde coletiva. São Paulo: Cortez. [No prelo.] Do mesmo autor: Organização tecnológica do processo de trabalho em saúde pública no Estado de São Paulo. In: Encontro Anual da Anpocs, GT: Processo de Trabalho e Reivindicações Sociais, 12., Águas de São Pedro, São Paulo, 1988, fonte das citações.

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através de amplos, dispendiosos e complexos inquéritos populacio-nais, após os quais se incorpora ao conhecimento consagrado sob a forma de ‘saber’, tendendo para a burocratização no plano do pro-cesso de trabalho.”

O agente de saúde pública, médico ou não, constitui-se como parte de um trabalhador imediatamente coletivo, no âmbito do Estado. Constituídas as matrizes desses dois modelos, a partir dos três momentos — agentes, objetos e instrumentos do trabalho — totalidade parcial integrada a outra ainda mais ampla, dialética das relações entre trabalho e necessidades a que correspondem, o autor parte para o universo empírico — centros de saúde da cida-de de São Paulo — a partir do pressuposto teórico de que as prá-ticas de trabalho aí instituídas estão marcadas, na sua dinâmica principal, pelo que denominou de conflito de jurisdição entre os recortes de um novo modelo que se buscava implantar — a incor-poração sistemática da assistência médica individual no interior da racionalidade epidemiológica — e agentes estabelecidos pela prática tradicional do modelo tecnológico da medicina clínica, “que, com os médicos, entrava triunfante pela porta da frente dos centros de saúde”.

Associa-se a esse fenômeno do conflito de jurisdição nas práti-cas de trabalho do setor público de primeira linha a incorporação da assistência médica individual, marcadamente a partir de 1983, com as Ações Integradas de Saúde (AIS). Estas acabam por au-mentar a complexidade da tarefa de construção de um novo mo-delo tecnológico da medicina e da superação da diferenciação e estigmatização da clientela entre carentes e não carentes, ou seja, entre trabalhadores formalmente inseridos no mercado de trabalho e deste excluídos.

Vale dizer, a inexistência de uma política integrada de saúde, compondo o modelo altamente excludente do desenvolvimento econômico das últimas décadas em nosso país, acaba por gerar

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no setor uma prática acentuadamente diferenciada para os dis-tintos segmentos da sociedade. À lógica da “pobreza de recursos cuidando da carência”, tradução da ausência de prioridade para investimentos públicos no setor, por parte do Estado nas três esferas de poder, associa-se o atendimento diferenciado da popu-lação previdenciária. Com o aumento significativo de recursos da previdência social, que acompanha a curva da economia formal, e com a diferenciação que ela gera no interior do setor privado através das distintas modalidades de compra dos seus serviços por parte do INPS — posteriormente Inamps — e, portanto, dos tipos de atos médicos aos quais essa população pode recorrer, vai-se consolidando a concepção do direito à saúde como possi-bilidade de acesso a uma precária assistência médica de eficiência duvidosa.

Concomitantemente, vai-se gerando uma concepção densa-mente medicalizada da atenção à saúde: desconfortos, dores e sintomas — reais ou imaginários — devem ser resolvidos recor-rendo-se a um médico, que por sua vez terá avaliada a sua compe-tência por parte da clientela pela receita que prescreverá. E, se de um lado os serviços médicos privados comparados pelos órgãos públicos através do mecanismo de credenciamento (pagamento por serviços prestados), que ao contrário dos convênios médicos incentiva a sua utilização, de outro a seletividade da clientela e de procedimentos médicos efetuada pelo setor privado, quando to-mada em seu conjunto, acaba por sobrecarregar o setor público de serviços. Isso porque este passa a ser buscado pela população sem cobertura previdenciária e por largos segmentos desta, descartados pelo setor privado através de distintos mecanismos. Exemplo desse fenômeno é a peregrinação de pacientes pelos hospitais privados em busca de vagas, no geral encontrando como último reduto um hospital público. É o chamado “repique”, que sobrecarrega os ser-viços públicos de saúde, que além de insuficientes encontram-se em estado de sucateamento, fruto da política estatal de favorecimento

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do setor privado, através da compra de seus serviços ou de finan-ciamento para investimentos de infraestrutura.

Em decorrência, as políticas de saúde no país, que sempre contaram com um suporte financeiro bastante frágil, vão cristali-zando um acesso extremamente desigual da população aos serviços de saúde, ao mesmo tempo que estigmatizante. Elas instituem, de um lado, a concepção — e seu reverso, o comportamento — da clientela como carente, e de outro, uma diferenciação entre os as-salariados por níveis de renda e padrões de inserção nos setores da economia. Em ambos os casos o marco comum é a concepção do direito como um privilégio vinculado à contribuição previdenciá-ria e/ou de seguros saúde privados. Reverter esse processo, isto é, perseguir a equidade, significa não “apenas eliminar privilégios de grupos e pessoas, mas também contemplar a discriminação positiva, a fim de garantir ‘mais’ direitos a quem tiver ‘mais’ necessidades”,2 dada a própria especificidade da saúde, em que doenças iguais não significam doentes com necessidades iguais.

Acresce-se a isso o caráter altamente centralizado no âmbito do Executivo das formulações e implementações dessas políticas, mesmo no que diz respeito às propostas da sua descentralização. De fato, e em que pesem os avanços conquistados sobretudo na década de 1980 no setor, estes ocorreram tendo como traço a im-permeabilidade relativamente grande do Legislativo, dos partidos políticos, dos setores organizados da sociedade, dentre outros, à mobilização pelas questões da saúde. É um dado de realidade que a mobilização dessas distintas forças sociais, particularmente visí-vel quando da Assembleia Nacional Constituinte, teve importância nas recentes conquistas do setor, mas também o é o fato de a sua ênfase excessiva nos aspectos do arcabouço institucional da orga-

2. Vianna, S. M. Equidade nos serviços de saúde. Brasília: Ipea/Iplan, dez. 1989. p. 4. (Texto para discussão, n. 24.)

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nização do setor revelar uma fragilidade do enraizamento social das lutas que possibilitaram essas conquistas.3

Em busca da equidade

As décadas de 1970 e 1980 são fecundas em estudos diagnós-ticos, analíticos e propositivos sobre as questões da saúde no Brasil. Inquestionavelmente o movimento da reforma sanitária conta com a liderança dos intelectuais da área da saúde coletiva, congregando estudiosos da saúde pública e da medicina social, e de profissionais do setor público dos serviços de saúde.

Mas, se tal fato imprime uma marca na larga produção da área — textos militantes com forte teor de denúncia — por outro lado redunda na formulação de propostas para o setor que buscam viabilizar a constituição da saúde como um direito do cidadão brasileiro.

E em que pese o leque de perspectivas de análise que inspiram os estudos a respeito, não sendo o caso aqui de desenvolver uma reconstrução crítica dos mesmos, não resta dúvida de que a diver-sidade de estratégias propostas apresenta a cidadania como ele-mento comum.

Essas proposições nucleares ao movimento repousam seus princípios articuladores na estatização dos serviços de saúde, na constituição do Sistema Único de Saúde, na descentralização, na universalização e na equidade do direito à saúde, em que pesem, sempre, as distintas interpretações sobre cada um desses aspectos.

3. A respeito dessa tese, veja-se Cohn, A. Caminhos da reforma sanitária. Lua Nova, São Paulo, Cedec, n. 19, p. 123-40, nov. 1989.

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Esses princípios, formulados já na segunda metade da década de 1970, vão-se traduzindo, e aperfeiçoando, em medidas concretas na década posterior, produto do intrincado jogo de forças entre os setores progressistas — articulados em torno das teses reformistas — e conservadores. Exemplos disso são as Ações Integradas de Saúde (AIS), que têm os seus primeiros convênios assinados com os Estados em 1983, os Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (SUDS), que têm seus primeiros convênios firmados em 1987, e o texto constitucional, promulgado em outubro de 1988.

Nesse sentido constata-se hoje um real avanço na reorganiza-ção do setor saúde no país, contando agora com o pré-requisito indispensável dos dispositivos constitucionais. Não obstante, esses avanços institucionais contrastam não só com a gravidade do qua-dro sanitário brasileiro, mas com o impacto das recentes transfor-mações da engenharia institucional do setor frente à nova concepção de direito à saúde como algo bastante mais abrangente do que a simples assistência médica curativa e preventiva.

Mas, se a concepção de saúde que se vai forjando no interior do movimento sanitário extrapola definitivamente os limites do saber e da prática médicas, trazendo para o interior mesmo do entendimento da produção social da saúde e da doença os proces-sos sociais, isso não logrou até o momento mudanças significativas no próprio setor. Mais que isso, está ainda por se construir um novo modelo de atenção à saúde superando os polos saúde pública/assistência médica individual (ou prevenção/cura), programas de saúde/modelos integrados de atenção à saúde, universalidade/produtividade, rural/urbano etc., buscando-se a nova qualidade de atendimento que deve acompanhar e atualizar esse novo con-ceito e saúde.

Da mesma forma, porém, que esse processo exige a construção de um novo saber — teórico e prático — exige também que a ques-tão da saúde seja resgatada, sem preconceitos, pela política. Não

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se trata aqui de contrapor a técnica (ou a ciência) à política, prática tão comum dos “mandarins da saúde”, mas de enfrentar as difi-culdades que as questões da saúde antepõem, dada a sua especifi-cidade, para o seu entendimento e para que conquiste o status pertinente no interior das questões sociais. Isso implica, inclusive, a sua assunção como prioridade por parte das diferentes forças sociais e canais político-institucionais.

Em consequência, tem-se não só a premência de estudos e pesquisas de caráter propositivo para o setor, caminhando para além da preocupação diagnóstica e de oposição ao que aí está, como também do reconhecimento e explicitação das forças políticas em jogo e do perfil da clientela, entendida como público-alvo priori-tário da política de saúde. E, para tanto, não basta pensar nos macroprocessos políticos, sociais e institucionais, mas a eles tem-se de associar a preocupação com o desvelamento do cotidiano dos sujeitos envolvidos.

E, se os dados aqui presentes não respondem diretamente, por exemplo, à indagação de até que ponto a população em geral, so-bretudo os segmentos de mais baixa renda, apreende o verdadeiro alcance do significado do direito à saúde (e não a assistência mé-dica simplesmente), eles certamente trazem subsídios importantes para se avaliar a distância entre a representação da saúde compar-tilhada por largos segmentos da população e aqueles preceitos defendidos pelo Movimento da Reforma Sanitária.

O mesmo ocorre, ainda, com os preceitos da descentralização, com o Sistema Único de Saúde com comando único em cada esfe-ra de poder, e o desconhecimento, por parte da população de baixa renda, quanto ao âmbito estadual ou municipal do serviço a que recorre.

Por outro lado, se estudos sobre o padrão de consumo de serviços de saúde por parte da população indicam o que os dados dessa pesquisa confirmam, vale dizer, que a população elabora uma

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composição peculiar dos serviços de saúde que utiliza, a marca de oposição que caracteriza esses mesmos estudos faz com que eles reafirmem determinados preceitos que não encontram respaldo nos dados aqui apresentados. Um deles diz respeito, por exemplo, ao estigma da clientela quanto à medicalização a que foi submeti-da. Não só a automedicação é quase inexistente como quando ela ocorre é no sentido muito mais radical: não só estados mórbidos requerem a imediata procura de um médico, à exceção daqueles episódios corriqueiros assim entendidos por ricos e pobres, como a automedicação no geral se restringe à reutilização de receitas anteriormente prescritas por médicos. Por outro lado, como se verá, embora as condições de vida, marcadas pela carência, estejam nuclearmente presentes nos motivos que levaram à procura de um serviço de atenção médica, estes não traduzem, de maneira ime-diata, a condição de medicalização a que esses segmentos estariam submetidos, tal como no seu entendimento clássico de a atenção médica — e consequentes prescrições — estar substituindo a pre-cariedade da sua situação de vida.

Constatações como essas obrigam uma nova reflexão sobre as matrizes que até o momento nortearam as propostas de reor-ganização do setor, ao mesmo tempo que refletem a trajetória in-telectual e política do Movimento da Reforma Sanitária no país. Em outros termos, trazem consigo a necessidade de se repensar a equidade e o direito à saúde contrapondo a dimensão do direito positivo às desigualdades sociais da sociedade brasileira e às re-presentações desses segmentos sociais sobre a saúde, a doença, os serviços de saúde em termos não só da qualidade, mas do acesso e disponibilidade.

Ilustra esse tipo de questionamento, por exemplo, o contraste brutal entre o diagnóstico de especialistas do setor sobre o baixo impacto dos serviços médicos, sobre os indicadores de saúde e o relativamente baixo grau de insatisfação da população com os

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próprios serviços. Ou, ainda, o que a população entende por faci-lidade ou dificuldade no acesso ao serviço: aquela bastante referi-da ao tempo gasto na procura do serviço, o que remete à disponi-bilidade e eficiência organizacional, e esta referida ao seu contrário, à demora no atendimento ou à insegurança de ser ou não atendido.

Mas, se tais elementos implicam na necessidade de se apro-fundar a dimensão normativa dos direitos sociais nas relações do Estado com os cidadãos, eles remetem igualmente para a especifi-cidade da saúde como demanda ou como serviço, no interior da qual ganha destaque o seu caráter diáfano. E, em que pese a ameaça da dor e da morte, ela remete à sua parca visibilidade po-lítica e, portanto, à dificuldade de, no geral, partidos e organizações sociais incorporarem-na como algo prioritário.

Constituir, portanto, a saúde “um direito de todos e dever do Estado” implica enfrentar questões tais como a de a população buscar a utilização dos serviços públicos de saúde tendo por refe-rência a sua proximidade, enquanto para os serviços privados a referência principal consiste em “ter direito”. Da mesma forma, e exatamente porque essas questões remetem à tradição brasileira de direitos sociais vinculados a um contrato compulsório de caráter contributivo, contrapostos a medidas assistencialistas aos carentes, a equidade na universalização do direito à saúde está estreitamen-te vinculada às mudanças das políticas de saúde no interior de um processo de alteração da relação do Estado com a sociedade, o que vale dizer, da alteração do sistema de poder no país.

Mas, na medida em que, mesmo quando assim pensada, a saúde demanda a sua especificidade, há que se atentar para o fato de um determinado perfil de oferta de serviços gerar um perfil de demanda e de representações por parte da população sobre o pro-cesso saúde/doença, ao mesmo tempo que induz à busca da compreensão da relação entre carências, demandas e a sua consti-tuição em direitos. Compreender esse fenômeno requer debruçar-

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-se não só sobre a carência diagnosticada, mas à sentida pela po-pulação e, da mesma forma, não só sobre as necessidades de saúde tecnicamente diagnosticada, mas também sobre o processo através do qual essas necessidades se transformam em demandas.

E se esse esforço requer enfrentar a questão da saúde, já por si tão escorregadia pelo seu caráter pouco concreto (o que é pleno bem-estar biopsicossocial, tal como definido pela Organização Mundial de Saúde?), exige desde logo que se mude o referencial, até então predominante, da doença para a saúde. Registre-se, aqui, que mesmo os estudos, inclusive este, que buscam pautar-se pela questão da saúde, partem do referencial da doença.

Contribuir, portanto, para a construção da saúde como um direito buscando entender esse processo implica esmiuçar o coti-diano dos movimentos sociais, da constituição da demanda dos serviços de saúde, da prática institucional dos agentes envolvidos, da estranha simbiose do saber popular e do saber científico na área da formulação das políticas de saúde, da relação, enfim, entre os movimentos e manifestações sociais por saúde e o Estado.

Expresso noutros termos, tendo como base os acontecimentos recentes no setor, implica em agregar à ênfase das questões ma-croinstitucionais, predominante até o momento, a preocupação com os complexos mecanismos que compõem esse processo num gra-diente articulado entre os níveis micro e macroinstitucionais. Por exemplo, se a compreensão do que é o Estado no Brasil é funda-mental para se entender a dinâmica das políticas de saúde e do setor, há que se superar a constatação de que a ineficiência leva à institucionalização ritualística da prática profissional dos agentes, alienados do compromisso com o público, buscando a especifici-dade desse fenômeno na relação entre instituição/clientela para além do fato de a carência ser justificada pela pobreza. Tampouco basta para um efetivo avanço no setor — e as experiências recentes da descentralização o testemunham — significativas conquistas

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institucionais sem estreita relação com os setores populares, pois isso acaba por imprimir a essas conquistas uma acentuada fragili-dade frente às distintas conjunturas, dando lugar a toda sorte de distorções. A experiência SUDS é rica nesse sentido: foi objeto de inúmeras interpretações, desde significar um aporte maior de re-cursos para estados e municípios até o favorecimento de distintos modelos de assistência médica privada, não poucas vezes trans-plantados diretamente para o setor público.

A questão que se coloca hoje, para o setor saúde, no interior da transição democrática, aliás como para os demais setores, é exatamente como conciliar as profundas desigualdades sociais que marcam a sociedade brasileira com a democracia, num contexto de crescente “invisibilidade social da desvalorização das políticas sociais”,4 no geral reforçada pelo discurso da eficiência e da mora-lização administrativa, tão atual hoje no país, e exatamente quando se propõe a universalização desses direitos sociais.

Certamente a perspectiva do “resgate da dívida social” não constitui aqui o melhor enfoque: não se trata de resgatar o custo social do modelo de acumulação prevalecente no Brasil, mas sim da construção da cidadania a partir das reivindicações concretas dos segmentos mais desfavorecidos da população, não da ótica da saúde como questão institucional versus questão social, mas da busca da legitimidade das reformas concretas que respondam às expectativas e necessidades da população. Superar a defasagem entre as propostas técnico-institucionais e as demandas das distin-tas forças sociais exige que se rompa o círculo vicioso da ineficácia justificando a ineficiência frente a uma clientela subordinada a um ritualismo institucional que contém a demanda, e sem que isso signifique apenas a busca de uma mera racionalidade de economia

4. Santos, B. S. “O Estado, a sociedade e as políticas sociais”, Revista Crítica de Ciências Sociais, Portugal, Universidade de Coimbra, n. 23, p. 60, set. 1987.

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de recursos. Para tanto, é necessário que, ao se superar a concepção da existência de uma divisão, ou mesmo contraposição, entre ques-tões institucionais e questões sociais, não se confunda ambas como sendo equivalentes.

Os dados apresentados e analisados a seguir buscam caminhar no reconhecimento das questões aqui tocadas a partir da constru-ção do perfil de utilização dos serviços de saúde na periferia do município de São Paulo.

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7a edição

Este texto busca desvelar a questão da saúde a partir do cotidiano das classes populares sediadas no anel periférico da cidade de São Paulo. Embora sua preocu-pação central consista nos desafios para a conquista da saúde com direito, na medida em que os interlocutores são os próprios sujeitos que demandam os serviços, este estudo na foge à regra: o ponto de parti-da passa a ser doença, ou os sintomas e desconfortos que, interpretados como tal, motivam a procura de um atendimento.É necessário, no entanto, um alerta ao lei-tor: a trajetória percorrida envolve, de um lado, um objetivo específico – reconhecer as lógicas contraditórias da dinâmica da composição da cesta de serviços que as classes populares compõem –, mas de outro, ao assim proceder, ela acaba por envolver questões complexas por compreender distintos níveis de entendi-mento. Dentre estes, o mais evidente é a própria diversidade dos dados. Àqueles relativos às condições socioeconômicas associam-se outros, igualmente objetivos, mas que dizem respeito à representação social dos agentes sobre saúde-doença, direito à saúde e avaliação do próprio atendimento.Não se trata, portanto, de um texto teóri-co, mas de articulação analítica dos dados obtidos orientada pela perspectiva maior da consolidação da democracia no país. Consequentemente, prevalece a ótica da saúde como um direito a ser constituído, contraposta à concepção desse direito como acesso a uma assistência médica, no caso em questão, no geral de baixa qualidade. Trata-se, sim, de um texto que busca recuperar os sujeitos sociais, objetivo privilegiado das políticas de saú-de – e ao mesmo tempo de certa forma vítimas –, na sua relação cotidiana com os próprios serviços.

Num cotidiano da periferia de um núcleo urbano da capital paulista, marcado pela carência e dificuldade de acesso a bens de consumo coletivo, qual a posição ocupada pelas ques-tões da saúde?

É disso que trata este texto: a partir de uma pesquisa domiciliar, e enfatizan-do não o poder público, mas os atores sociais – consumidores, vítimas e partícipes da própria formulação das políticas de saúde –, buscando des-lindar a lógica dos serviços de saúde, o imaginário e a medicalização no próprio consumo desses serviços e a moblização por saúde.

Trata-se, portanto, de um texto que dialoga permanentemente em vários preceitos já estabelecidos no setor, na medida em que os confronta com a realidade cotidiana desses atores sociais da ótica da sua transformação em sujeitos sociais.

▪Amélia Cohn, socióloga, docente do

Departamento de Medicina Preventiva da

Faculdade de Medicina da USP e pesqui-

sadora do Centro de Estudos e Cultura

Contemporânea – CEDEC.

▪ Edison Nunes , cientista político,

docente do Departamento de Ciências

Públicas da PUC-SP, à época também

pesquisador do CEDEC.

▪Pedro Roberto Jacobi, economista e

sociólogo, docente do Departamento de

Administração Escolar e Economia da

Faculdade de Educação da USP, à época

também pesquisador do CEDEC.

▪Ursula Margarida Simon Karsch,

docente do Programa de Pós-Graduação

em Serviço Social da PUC-SP, à época

também pesquisadora do CEDEC.

ISBN 978-85-249-2335-7