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CONTRAPONTO. KLEE E KANDINSKY - DIÁLOGOS NUMA TERRA FÉRTIL Ana Maniero Klee e Kandinsky, companheiros de aventuras no mundo da pintura e da música, desbravaram os insondáveis caminhos da criação para construir os princípios de uma epistemologia da arte. Desta intensa troca intelectual e artística brotou uma fonte de inspiração recíproca, que pro- curava ouvir os ecos da ordem cosmológica reflectida nos mistérios da natureza e na sonoridade interior da alma humana. Vale a pena encontrar o contraponto das suas investigações, cuidadosamente anotadas na época em que partilharam o ensino no Bauhaus. Exploradores de mundos secretos, ouvintes de sons inaudíveis, descobriram que existem equiva- lências profundas entre as leis que regulam as obras da natureza e as da arte. Durante os dez anos que viveram em Weimar e Dessau, os dois ami- gos, pintores, músicos e professores, trocaram ideias, quadros e partitu- ras. Podemos imaginar conversas apressadas antes das aulas ou longos debates após os serões musicais. Reflectiram sobre uma nova Weltan¬ schauung, parecida com as teses de Wilhelm Worringer, que considerava o valor da obra de arte ou a necessidade do estilo como o reflexo do "estado psíquico no qual se encontra a humanidade face ao cosmos." 1 A pintura revelava-se como uma arte de compor formas, uma composição semelhante à da música com as suas melodias, acordes, tons, ritmos, tim- bres. Uma arte do espaço e do tempo. A temporalidade dos elementos visuais estaria oculta nas linhas estruturais da forma e nas gradações da cor. Kandinsky realizou uma verdadeira revolução copernicana na arte. 1 Wilhelm Worringer, Abstraction et Einfühlung, Paris, Editions Klincksieck, 1986, p. 50. Philosophien 19/20, Lisboa, 2002, pp. 217-240

Klee e Kandinsky Dialogo

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Klee e Kandinsky Dialogo

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  • C O N T R A P O N T O . K L E E E K A N D I N S K Y

    - D I L O G O S NUMA T E R R A F R T I L

    Ana Maniero

    Klee e Kandinsky, companheiros de aventuras no mundo da pintura e da msica, desbravaram os insondveis caminhos da criao para construir os princpios de uma epistemologia da arte. Desta intensa troca intelectual e artstica brotou uma fonte de inspirao recproca, que pro-curava ouvir os ecos da ordem cosmolgica reflectida nos mistrios da natureza e na sonoridade interior da alma humana. Vale a pena encontrar o contraponto das suas investigaes, cuidadosamente anotadas na poca em que partilharam o ensino no Bauhaus. Exploradores de mundos secretos, ouvintes de sons inaudveis, descobriram que existem equiva-lncias profundas entre as leis que regulam as obras da natureza e as da arte.

    Durante os dez anos que viveram em Weimar e Dessau, os dois ami-gos, pintores, msicos e professores, trocaram ideias, quadros e partitu-ras. Podemos imaginar conversas apressadas antes das aulas ou longos debates aps os seres musicais. Reflectiram sobre uma nova Weltanschauung, parecida com as teses de Wilhelm Worringer, que considerava o valor da obra de arte ou a necessidade do estilo como o reflexo do "estado psquico no qual se encontra a humanidade face ao cosmos."1 A pintura revelava-se como uma arte de compor formas, uma composio semelhante da msica com as suas melodias, acordes, tons, ritmos, tim-bres. Uma arte do espao e do tempo. A temporalidade dos elementos visuais estaria oculta nas linhas estruturais da forma e nas gradaes da cor.

    Kandinsky realizou uma verdadeira revoluo copernicana na arte.

    1 Wilhelm Worringer, Abstraction et Einfhlung, Paris, Editions Klincksieck, 1986, p. 50.

    Philosophien 19/20, Lisboa, 2002, pp. 217-240

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    Deslocou o tema da sua materialidade exterior para descobrir a sua espi-ritualidade interior de artista. Uma ideia surgida quando, por um acaso, se emocionou ao contemplar uma tela virada ao contrrio e na qual no podia reconhecer nada de concreto. Apenas formas, tonalidades cromti-cas reunidas na superfcie da tela, uma composio. Estava aberto o caminho para a abstraco, que teria, assim, nascido, no na via da refle-xo, mas como o produto de um choque visual.

    Como conciliar uma matemtica baseada no rigor da formas geom-tricas com outra baseada na expressividade geomtrica das formas?

    Na essncia da criao artstica estaria implcita esta dicotomia assente na conjugao da emoo e da razo, da intuio e da reflexo, do caos e da ordem. As questes epistemolgicas centrar-se-iam na pro-cura de um mtodo capaz de sistematizar uma linguagem expressiva, com a sua gramtica especfica e vocabulrio prprio. As teorias da forma e da composio foram concebidas como um suporte capaz de entrar num movimento accionado por uma fora anmica e criadora.

    Em 1926, numa dedicatria comemorativa dos sessenta anos de Kandinsky, Klee escreveu: "Pela sua idade, Kandinsky era mais velho do que eu, poderia ter sido seu aluno; e, num certo sentido, era-o de verdade. No existe uma nica palavra sua que no tenha sido, para o meu tra-balho uma luz, um encorajamento, uma confirmao. A sua palavra duplicava-se para mim na ressonncia da sua pintura [ . . . j . " 2

    Traar um risco. um risco desenhar um trao. Klee e Kandinsky arriscaram percursos numa terra frtil em dilogos, encontraram-se e desencontraram-se num contraponto para violino e piano.

    - Kandinsky: Meu caro amigo, numa pintura um ponto diz-nos mais que uma figura humana.

    - Klee: Tudo depende do modo de representao dessa figura. Ora para representar o homem "tal qual ele " seria preciso uma con-fuso de linhas perfeitamente desordenada." [...] no pretendo mostrar o homem tal qual ele , mas como poderia ser."3 Preciso arranjar um esquema de linhas capaz de o tomar visvel.

    - Ka.: No se trata de reproduzir o visvel, de imitar o objecto, esta-mos de acordo.

    - KL: A arte , antes de mais, "uma questo de formas."4

    2 Geelhaar Christian, Paul Klee et le Bauhaus, Neuchtel, ditions Ides et Calendes, 1972, p. 19.

    3 J . , p. 31.

    *T. A. M- , p. 9.

  • Contraponto. Klee e Kandinsky - Dilogos muna Terra Frtil 219

    - Ka.: Eu diria uma questo de revelao das nossas tenses interio-res, at agora mudas na pintura.

    - KL: Uma arte pura, meu caro Wassily, as suas obras so filhas do pensamento e as suas formas so livres como a criao do Mundo. Sente-se que respiram livremente. Uma arte pura supe que exista a coincidncia visvel do seu tema com a expresso dos elementos da forma. Estes fazem parte integrante de uma composio, a que chamo organismo formal.

    - Ka.: Organismo formal? - KL: "Como o homem, um quadro tem o seu esqueleto, msculos e

    pele. Podemos falar de uma anatomia prpria do quadro. Um qua-dro com o tema homem, no deve ser construdo de acordo com a anatomia humana, mas segundo a anatomia do quadro."5 A obra um organismo sensvel como fibras nervosas. Ser que o ponto pode ser uma obra?

    - Ka.: Podemos considerar "[. . . ] o mundo inteiro como uma composio csmica completa, ela prpria composta por um nmero infinito de composies autnomas cada vez mais peque-nas, compostas finalmente, tanto no macrocosmo como no microcosmo, por pontos, o que d ao ponto, por outro lado, o seu estado geomtrico originrio."6

    - KL: Dar ao ponto o atributo de central situ-lo no local da cosmognese. A esta atribuio corresponde a ideia de princpio do Mundo.

    - Ka.: O ponto um elemento vivo. Comea a viver como um ser autnomo depois de ter abandonado o seu carcter geomtrico. Desta submisso evolui para uma necessidade interior. As suas ressonncias interiores ressaltam, sobrepem-se, brotam. So os segredos da profundidade e da fora de expresso das formas abstractas.

    - K L : O ponto um elemento bsico, primordial, centro original. Como se processa essa transposio de domnios, a passagem de um carcter puramente geomtrico para o mundo da pintura?

    - Ka.: Podemos considerar o ponto geomtrico como a "[.. .] unio entre o silncio e a palavra."7 Encontra, em primeiro lugar, uma forma material na linguagem escrita. Significa silncio, interrup-o entre duas palavras. Trata-se de um No-Ser, um elemento

    5J., p. 11.

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    negativo que evoluir como uma ponte entre o Ser e o Outro, transformando-se num elemento positivo, Quando transposto para a superfcie da pintura, o ponto parece um pequeno mundo parte, introvertido, portador de uma tenso concntrica, no avana, nem recua, quando incrustado no plano original, afirma-se conciso, permanente, rpido e breve.

    - Kl . : J falmos da noo no dimensional de ponto, do "ponto cinzento" que vagueia no interior do caos inicial. Trata-se de uma concentrao de princpios que se intersectam entre dimenses. Uma encruzilhada de caminhos.

    - Ka.: Uma concentrao de tenses? - KL: Sim, mas em repouso. Prontas para agir. Aquele minsculo

    ponto desafiou as leis da durao e do movimento contnuo. Fixou-se no centro de um cu estrelado, estabelecendo um local entre o dia e a noite, um dilogo pacfico entre o bem e o mal, uma cor neutra que no quente nem fria, uma descarga total no jogo das tenses - ecloso da cosmognese.

    - Ka.: Foi a que tudo comeou? - KL: Foi onde se deu a ordenao do caos, dando origem a plos

    de energia oposta. Desse ponto partiram uma infinidade de rectas disparadas em sentido contrrio, cmplices de uma luta sem tr-gua entre a vida e a morte.

    - Ka.: Estabeleceram-se ento um conjunto de princpios simult-neos, tenses que imprimem energia vida?

    - KL: A lei universal reflectiu-se num mundo inacabado que o nosso. Caber arte recri-lo luz das leis da natureza, que so o reflexo da ordem do cosmos.

    - Ka.: "A vida espiritual, qual a arte tambm pertence, sendo um dos seus mais poderosos agentes."8 A arte abstracta estabelece uma relao fortssima com a natureza, a mais forte que foi reali-zada nos ltimos tempos. A natureza e a alma so a sua fonte.

    - KL: Essa voz da natureza ouvi-a, pela primeira vez, durante a minha viagem Tunsia. Pintei um mundo de figuras errantes do Magrebe. No cu estrelado do Norte, vi nascer uma lua de face dourada no silncio das areias do deserto. Esta imagem passou a ser o meu outro Eu. Um estmulo para me encontrar. A minha mulher. Ento, eu fui a lua do Sul, quando nasce.

    8 D. E. A. ,p . 25.

  • Contraponto. Klee e Kandinsky - Dilogos numa Terra Frtil 221

    - Ka.: Na arte abstracta a obra viva porque existe um jogo de ten-ses que habita as suas formas. Uma forma desprovida de tenso no constitui um elemento pictrico. Um elemento da forma pres-supe uma tenso contida.

    - Kl . : Concebo a obra como um organismo formal com funes e rgos prprios. Uma forma como aparncia uma apario maligna. Morte. Sem funo, no passa de um formalismo.

    - Ka.: Uma boa forma aquela que convm sntese interior de uma forma no-figurativa ou abstracta. A noo de elemento da forma pode ser interpretada de duas maneiras: como uma noo exterior, o signo visual, ou como uma noo interior, uma tenso viva, que lhe intrnseca. Prefiro falar de composio em vez de organismo formal. A minha pintura composta como uma msica, baseia-se em ressonncias mltiplas captadas nas tenses que se estabelecem entre os elementos e o plano original.

    - KL: Que tipo de ressonncia tem o ponto? - Ka.: Uma sonoridade absoluta quando o ponto se encontra numa

    construo concntrica no plano original, isto , est colocado ao centro.

    - KL: O que acontece quando deslocamos o ponto da sua posio central?

    - Ka.: Passa a existir uma sonoridade que reflecte esse novo posicionamento. Esta ressonncia, que a construo central tinha reduzido ao silncio, volta a tornar-se perceptvel e transforma o som absoluto do ponto em ressonncia relativa.

    - KL: E se repetirmos o ponto? - Ka.: A repetio do ponto no plano original um factor poderoso

    para aumentar a emoo interior. Cada lugar no plano-base possui uma ressonncia prpria.

    - KL: O ponto tudo. Eu prprio sou um ponto, o criador que sonha at se transformar no seu prprio modelo. Como um "[. . . ] eu pro-jectado. Eu sou o meu prprio estilo."9 No seu primeiro acto de mobilidade, o ponto d origem linha. S o ponto morto intem-poral.

    - Ka.: Sim. Sabemos que o elemento tempo est excludo do ponto mas, em certos casos, ele pode corresponder "[. . . ] breve percus-so do tambor ou do tringulo na msica, aos golpes secos do

    9 J . ,p . 132.

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    pica-pau na natureza."10 No seu movimento atravs do plano o ponto d origem linha. Quando geomtrica, esta um ser invis-vel. No desenho, o rasto do ponto que se move, o seu produto. "Nasceu do movimento como resultado do aniquilamento da imo-bilidade suprema do ponto."11 Saltamos do esttico para o dinmico.

    - K l . : A dinmica o mais importante, essencial, a regio sem fim no domnio csmico.

    - Ka.: E a esttica onde se situa? - Kl . : A esttica pertence ao domnio terrestre. E um caso particular

    no qual a fora da gravidade mata o movimento, subjugando-o lei que regula a vida na terra.

    - Ka.: Cada quadro encerra o mistrio de uma vida. Para onde se dirige esta vida? Donde clama a alma angustiada do artista quando participa na criao? Que quer anunciar?

    - K l . : "A arte como emisso de fenmenos a imagem da criao, projeco do fundamento supradimensional, smbolo da criao, viso, mistrio um smbolo, como o mundo terrestre o smbolo do cosmos. A criao vive como gnese sobre a superfcie que envolve a obra."12

    - Ka.: A obra reflecte-se na superfcie da conscincia e vice-versa. Est para alm de um vidro transparente e rgido, que nos impede todo o contacto directo e ntimo. Quando a criao acaba, desapa-rece dessa superfcie sem deixar rasto.

    - K l . : Para Schumann, o artista capaz de projectar a luz nas profundezas do corao humano. Penso que um dos mistrios insondveis da vida que subsistem para alm do nosso conheci-mento, onde as luzes do intelecto se apagam. "A obra em pri-meiro lugar gnese [...] nasce como uma chama que se acende misteriosamente no se sabe onde, que ilumina o esprito, acciona a mo e ao transmitir-se como movimento matria transforma-se em obra."13

    - Ka.: O espiritual na arte "[. . . ] traduz-se por um movimento complexo, mas lmpido." 1 4 Temos possibilidade de penetrar na obra atravs do acto criativo, ao sentirmos a sua pulsao atravs de todos os nossos sentidos.

    Jo p. L . P., p. 42. 1 1 P. L . P., p. 6. 1 2 J.,p. 132. 13 E. A. I . , p. 340. 1 4 D. E. A., p. 25

  • Contraponto. Klee e Kandinsky - Dilogos numa Terra Frtil 223

    - K L : Nas profundezas do esprito encontram-se a imaginao, o sonho e a ideia, os instrumentos prprios da criao que sob a direco dos instintos influenciam em surdina o movimento da existncia, quando a razo se obstina em comandar.

    - Ka.: A obra est para alm da aparncia, do simples registo do objecto tal como se apresenta, tal como aparece perante a viso. E intil, diria que impossvel, copiar o objecto. O artista deve arran-car do objecto a sua expresso.

    - KL: A pintura uma arte de investigar mundos desconhecidos. A forma vale enquanto formao, caminho para a obra. Para alm do abandono da representao do objecto, quero dar mais uns passos, afastar-me das aparncias mas sem as perder de vista.

    - Ka.: Procurar a sua ressonncia no interior do esprito? O espiri-tual na arte?

    - KL: As aparncias so a forma visvel que temos da verdadeira essncia das coisas. H que interiorizar o visvel, dissec-lo em busca da viso suprema do prprio Criador, da descoberta do Ser. preciso acreditar nas aparncias que no s nos podem iludir, como tambm nos podem fazer aceder a uma via metafsica que conjuga duas outras vias, no pticas: a de enraizamento terrestre (esttica, imanente) e de participao csmica (dinmica, trans-cendente).

    - Ka.: Qual o papel da viso? - KL: O olhar (Eu), v o objecto (Tu) atravs das aparncias numa

    via psico-ptica. Consegue realizar a interiorizao do visvel. No se trata apenas de uma ressonncia, mas de uma participao conjunta da ordem esttica e da ordem dinmica que regulam a vida na terra, no universo.

    - Ka.: O exterior e o interior so duas propriedades ligadas natu-reza dos fenmenos. Exteriormente, o ponto no mais que do que um signo na sua aplicao prtica, uma utilidade, um hbito que encobre o som profundo do smbolo. A ressonncia do siln-cio... os impulsos vindos do interior pertencem natureza humana.

    - KL: O mundo aparente constitui uma preciosa fonte de investiga-o, rica em informaes nas quais vale a pena acreditar e que nos permitem humanizar a relao do Eu e do Tu, ultrapassando os fundamentos pticos. "O Mundo foi o tema da minha arte, ainda que, por vezes, nada dele seja visvel." 1 5

    15 J., p. 313.

  • 224 Ana Maniero

    - Ka.: Estes impulsos interiores no resultam de uma observao do Mundo atravs da abertura de uma janela, mas antes da nossa capacidade de nos encontrarmos nesse mundo. De olhos abertos e ouvidos atentos podemos transformar as mnimas sensaes em acontecimentos pictricos importantes.

    - K l . : O mecanismo da viso associado ao pensamento e ao sentir, consegue captar uma concepo globalizante do Mundo, inserido numa esfera de ar que o envolve, parte integrante da totalidade de um universo. O que vemos uma possibilidade, a verdade reside na origem das coisas, invisvel. O dilogo com a natureza , para o artista, uma condio sine qua non.

    - Ka.: Tal como o explorador que descobre pases novos e comea a compreender a sua lngua com maior clareza, assim o artista se apropria dos signos mortos para os transformar em smbolos vivos. "[ . . . ] o que estava morto revive."1 6

    - KL: Trata-se de um regresso do modelo matriz, de um mergulho na fonte secreta que alimenta toda a evoluo - o centro da cria-o, movimento no espao e no tempo.

    - Ka.: Para alm de espao, a linha tambm tempo? - K l : Quanto mais a linha se estende, mais retm o seu carcter tem-

    poral. O caminho do trao construtivo, toda a formao ou construo da forma movimento no espao e no tempo. A obra tem a capacidade de fixar a mobilidade do trao. Esta no um produto, mas antes gnese da forma. um episdio protagonizado num determinado local e decorrido numa determinada sucesso temporal.

    - Ka.: Como na msica. - KL: As linhas contm energias que se manifestam num consumo

    de tempo. S a obra capaz de fixar o movimento no tempo e no espao. A criao um movimento que fecunda a matria trans-formando-a numa forma viva, sensvel como fibras nervosas.

    - Ka.: "[ . . . ] a linha recta apresenta, na sua tenso, a forma mais con-cisa da infinidade de possibilidades de movimento."17 Entendo tenso como uma fora viva do movimento.

    - KL: Sob o ponto de vista cromtico o que me fascina no a iluminao, mas a luz. O claro-escuro descreve o seu movimento entre os plos de energia oposta: branco e preto. A cor branca a

    is P L. P.,p. 36. 17 P. L. P.,p. 61.

  • Contraponto. Klee e Kandinsky - Dilogos numa Terra Frtil 225

    luz em si. Entra num combate radical quando o trao negro invade uma superfcie luminosa. O contrrio igualmente vlido.

    - Ka.: Sabemos que o olhar seduzido pelas cores. Sente-as. Gulo-so, experimenta as suas propriedades, saboreia o seu gosto. Temos uma sensao semelhante aco de um manjar picante. So sen-saes fsicas, superficiais e de curta durao, apagam-se sem deixar rasto, quando a alma humana permanece fechada.

    - KL: O dinamismo da viso recai sobre a progresso ou regresso relativa quantidade ou qualidade da energia despendida. Trata-se de um movimento de fluxo e de refluxo. As cores so energias que se atraem e opem, ora aproximando-se, ora afastando-se.

    - Ka.: O significado das cores, as suas qualidades encontram eco nas ressonncias interiores, vibraes psquicas que resultam do efeito fsico superficial de que falei. As cores claras e quentes atraem o olhar, retm-no. O vermelho irrita, o amarelo fere como um som estridente de uma trombeta. O olhar pestaneja com sono perante a tranquilidade profunda do azul e do verde. Cores quen-tes e frias.

    - KL: A viso no um fenmeno puramente ptico. Trata-se de um processo dinmico estreitamente ligado ao crebro e alma.

    - Ka.: Penso que difcil definir se esta segunda aco ligada alma directa ou obtida por associao. "Estando a alma directa-mente ligada ao corpo, qualquer emoo pode sempre provocar, por associao, uma outra correspondente."18 No entanto, estas associaes variam de pessoa para pessoa.

    - KL: Estou interessado em definir uma teoria para as relaes cro-mticas. Procurei organizar uma caixa de tintas, na qual as cores estivessem alinhadas de acordo com princpios sonoros. Criei uma paleta que pudesse justificar a arrumao de cada cor no seu devi-do lugar, uma classificao que permitisse funcionar como um painel de ferramentas.

    - Ka.: Mas podemos tambm falar do perfume ou da sonoridade das cores. A reaco do olhar sensvel lembra-nos "o eco ou a res-sonncia de um instrumento de msica cujas cordas estimuladas pelo som de um outro instrumento vibrem em unssono." 1 9 Pes-soas com uma sensibilidade apurada como o meu caro amigo, so bons violinos com muito uso que, ao mais pequeno toque, vibram intensamente.

    1 8 D. E. A., p. 58. 1 9 D. E. A., p. 59.

  • 226 Ana Maniero

    - KL: Poderemos considerar que a alma est aberta a todo o tipo de sensaes?

    - Ka.: Se aceitarmos esta metfora do violino, temos que admitir que a vista est estreitamente relacionada com todos os outros sentidos. "Existem cores que parecem speras [...] e outras que nos do a impresso de serem polidas e aveludadas."20

    - KL: Cores, como o azul ultramarino, que nos apetece acariciar? - Ka.: "Algumas cores, como o vermelho lacado, parecem doces e

    macias, outras, como o verde cobalto e o azul esverdeado (de xido) so sempre secas e duras, mesmo quando saem dos tubos."21

    - KL: Pensa que a associao das cores ser suficiente para explicar a aco da cor sobre a alma?

    - Ka.: Penso que insuficiente. No entanto, no podemos ignorar que a cor um meio que possumos para exercer uma influncia directa sobre a alma. "A cor a tecla; o olho, o martelo. A alma, o instrumento de mil cordas. O artista a mo que, ao tocar nesta ou naquela tecla, obtm da alma a vibrao justa."2 2

    - KL: "Temos a certeza que uma polifonia existe no domnio musi-cal." 2 3 Transp-la para o domnio da representao plstica, como uma simultaneidade de vrios temas independentes, uma reali-dade que no vlida apenas para a msica.

    - Ka.: Muito se estudou j sobre a questo das eventuais correspon-dncias entre sons e cores. Com base na vibrao do ar e da luz, tentou mostrar-se que a pintura tem tambm o seu contraponto.

    - KL: Tenho tentado transpor para a pintura coros de vozes que can-tam em conjunto, ritmos musicais como nesta pintura que temos aqui, "Fuga em Vermelho". Pode ser que duas ou mais vozes for-mem um acorde. Penso em Bach, Mozart, Bethoven, oio sempre a sua msica. Gosto de apropriar-me dos princpios musicais de uma fuga, claramente definidos para um msico. Construo ritmos estruturais, variaes e repeties que se assemelham a uma sequncia de temas e contra-temas com planos tonais precisos.

    - Ka.: Como faz essa transposio de domnios?

    20 D. E. A. ,p . 59. 21 D. E. A., p. 59. 22 D. E. A. ,p . 60. 23 E. A. I . ,p . 296.

  • Contraponto. Klee e Kandinsky - Dilogos numa Terra Frtil 227

    - KL: Utilizando, por exemplo, planos simultneos na superfcie da pintura ou transparncias criadas com sequncias de pontos colo-ridos que ocultam e desocultam planos. Com a sobreposio de formas, a gradao de tons e a utilizao de pequenos traos den-tro e fora das linhas estruturais possvel representar ritmos que encontram o seu eco nos sons da polifonia musical.

    - Ka.: Como o consegue? - Kl . : Construindo uma espcie de "pontes flutuantes"24 que permi-

    tem efectuar a mudana estrutural das formaes ritmadas. Uma sncope que no tempo se efectua atravs da antecipao de um tom forte que se apoia num tom fraco. O elemento temporal da msica tem a sua correspondncia no ritmo formal que se estru-tura no espao da pintura.

    - Ka.: Para exemplificar poderamos olhar tambm para "O Rio Nilo", a terra frtil na civilizao egpcia?

    - K l . : Sim, seria um bom exemplo para mostrar nas minhas aulas. Pretendo estudar com os meus alunos para poder ajud-los a estu-dar comigo. Utilizo uma linguagem que possa ser aceite nos dois domnios, pintura e msica, partindo de princpios simples que possam conduzir a uma multiplicidade cada vez maior de cami-nhos. A noo de tempo na msica remete-nos para o instante que no se renova. Na pintura remete-nos para a totalidade do espao. O modo como nos apercebemos das formas e dos sons diferente. difcil ter a noo de sntese sobre uma composio musical. Mas, pelo contrrio, numa composio formal a percepo dos seus elementos feita globalmente.

    - Ka.: "O homem possui a msica em si mesmo. A harmonia das cores baseia-se exclusivamente no princpio do contacto eficaz. A alma humana, no seu ponto sensvel, responde."25

    - KL: V e ouve, saboreia, cheira, toca... sente? - Ka.: Sim. "A este fundamento, chamaremos o Princpio da Neces-

    sidade Interior."16

    - KL: Qual o papel dos elementos da forma? - Ka.: A pintura dispe de dois meios para atingir os seus objecti-

    vos: a cor e a forma.

    24 E. A. [., p. 287. 25 D. E. A., p. 60.

    26 D. E. A., p. 60.

  • 228 Ana Maniero

    - KL: Nos meus escritos sobre a "teoria da forma" defino cor como uma qualidade. Desde a minha viagem Tunsia que me identifico plenamente com a cor. Sou pintor.

    - Ka.: A forma pode existir independente na representao de um objecto (real ou no) ou nos contornos puramente abstractos de um espao ou de uma superfcie. A cor um outro caso.

    - KL: Como qualidade, a cor no pode ter uma representao abstracta?

    - Ka.: "S a imaginao permite representar um vermelho sem limi-tes."27

    - KL: Mas o vermelho chama pelo verde. - Ka.: Na representao que fazemos ao escutar esse chamamento,

    parece-me que o conceito de vermelho ilimitado, - KL: Ento quando que o vermelho ... aquele vermelho particu-

    lar? - Ka.: Apenas quando lhe impomos um limite, uma condio

    imposta fora pelo nosso pensamento. Este vermelho invisvel, concebido de modo abstracto, "desperta uma certa representao interior, simultaneamente precisa e imprecisa [...] uma sonoridade totalmente interior. O vermelho que se constri, quando ouvimos a palavra vermelho, permanece vago e como que indeciso entre o quente e o frio." 2 8

    - KL: O conceito de vermelho , afinal, como a forma, uma constru-o do nosso pensamento?

    - Ka.: Sim, concebido numa srie de gradaes insensveis de ver-melho. Imprecisas. Interiores.

    - KL: Mas, em simultneo, tambm preciso porque permanece puro na sua interioridade?

    - Ka.: Sim, porque est desnudado, sem pender para o quente ou o frio, inteiro. No temos a percepo de pormenores, nem de gra-daes.

    - KL: Como o som do violino que julgamos ouvir quando a palavra violino pronunciada.

    - Ka.: Como o som imaginado sem as modificaes que se produzi-riam se fosse tocado ao ar livre ou em conjunto com outros ins-trumentos.

    2 7 D. E. A., p. 64. 2 8 D. E. A., p. 64.

  • Contraponto. Klee e Kandinsky - Dilogos numa Terra Frtil 229

    - K l . : O que precisamos para reproduzir um vermelho com uma aparncia sensvel ou matrica?

    - Ka.. Temos que escolher um tom entre a gama infinita de verme-lhos, isto , devemos caracteriz-lo subjectivamente.

    - K l . : Mas as cores modificam-se conforme a proximidade das outras cores vizinhas.

    - Ka.: As cores prximas, "[...]como elementos inevitveis, pela sua presena delimitam e modificam as caractersticas subjectivas, envolvendo-as com uma ressonncia objectiva."29

    - K l . : Cor tambm forma? - Ka.: A forma exerce efeitos sobre a cor. A forma exterior a

    objectividade da ressonncia. - K l . : As formas tm uma cor prpria? - Ka.: "Forma, no sentido mais restrito da palavra, a delimitao

    de uma superfcie por outra."30 Mesmo quando abstractas ou geo-mtricas, as formas tm um interior espiritual, so seres dotados de qualidades idnticas a essas formas. Emanam um perfume espi-ritual que lhes prprio. Este, quando associado a outros perfu-mes, formas, diferencia-se, enriquece-se como um som nas suas harmonias. Mas no fundo, se o pensarmos isoladamente, perma-nece inaltervel.

    - K l . : Como as cores que preenchem o interior das formas geomtri-cas de base: o amarelo do tringulo, o vermelho do quadrado e o azul do crculo?

    - Ka.: Todas as formas so seres que exercem aces diferentes. Tambm o modo como as figuras geomtricas esto orientadas na superfcie da pintura determina um movimento prprio importante na composio.

    - K l . : Podemos imaginar que o tringulo nasce da tenso entre um ponto e uma linha recta. Quando assente sobre um dos lados exprime repouso. Pelo contrrio, quando assente num dos seus vrtices exprime dinamismo. Este conceito remete-nos para as questes do equilbrio. Sabemos que a linha horizontal denota uma aparncia esttica, que existe um dinamismo prprio na obli-qidade das linhas que escapam lei implacvel do fio de prumo, que a verticalidade imposta pela fora da gravidade. Na constru-o formal h que definir com rigor as potencialidades de cada elemento visual.

    2 9 D. E. A., p. 64. 30 D. E. A., p. 65.

  • 230 Ana Maniero

    - Ka.: Sei que est mais interessado na sistematizao de uma gramtica visual, um ponto de partida para a composio. Penso, por outro lado, que devemos partir de uma substncia subjectiva qual vamos atribuir um invlucro objectivo, uma forma exterior. No caso da cor, cada valor acentuado ou atenuado pela forma.

    - KL: Como na msica, a mais abstracta das artes? - Ka.: Como os sons agudos e as formas pontiagudas. O amarelo no

    tringulo. Os sons profundos. O azul no crculo. - KL: Ser que existe uma desarmonia na dissonncia entre a forma

    e a cor, como, por exemplo, no tringulo azul ou no crculo ama-relo?

    - Ka.: Pelo contrrio, so novas possibilidades que podem dar ori-gem a novas harmonias.

    - KL: Trata-se de uma matria inesgotvel, um nmero ilimitado de combinaes.

    - Ka.: Uma forma um ser espiritual porque possui o seu prprio som (contedo) interior, a sua subjectividade.

    - KL: Manifestar esse contedo interior a essncia da forma? - Ka.: "Esta a definio do seu carcter interior. Retomemos o

    exemplo do piano. No lugar da palavra cor coloquemos a pala-vra forma. O artista a mo que, com a ajuda do pincel, extrai a alma humana a vibrao justa." 3 1

    - KL: Estamos mais uma vez a falar do princpio do contacto eficaz da alma humana, a que chamou Princpio da Necessidade Interior.

    - Ka.: O aspecto exterior da forma, o seu invlucro objectivo, enri-quece-se quando desvenda o seu contedo interno de um modo mais expressivo. O contorno, o trao delimitador, funciona como um intermedirio da subjectividade e objectividade da forma.

    - KL: Mesmo no caso de uma forma abstracta? - Ka.: Desde sempre que a forma como desenho teve a inteno

    representar os contornos de um objecto material, concreto, fsico, real. Mas se a forma for abstracta porque no representa nenhum objecto real.

    - KL: Ser um pintor abstracto no significa, para mim, transformar em abstraces eventuais correspondncias entre objectos natu-rais; consiste, antes, em separar, independentemente dessas even-tuais correspondncias, as relaes puramente pictricas. "A pure-

    31 D. E. A., p. 66.

  • Contraponto. Klee e Kandinsky - Dilogos numa Terra Frtil 231

    za do domnio do abstracto."32 A este domnio pertencem os elementos da forma que constituem uma linguagem que construo com o zelo de uma abelha. nesta linguagem rigorosamente cons-truda que se baseiam as minhas composies.

    - Ka.: H formas que tm vida prpria. So cidads de iguais direi-tos no reino da abstraco, sejam elas geomtricas ou no.

    - KL: Questionar a pureza das formas , tambm, falar da coeso orgnica de uma composio na qual podem coexistir elementos decifrveis no domnio da abstraco. Qual a fronteira entre o real e o abstracto?

    - Ka.: Sabemos que to impossvel, como intil, copiar um objecto. "Uma forma material jamais se poder reproduzir com fidelidade absoluta."33 No se contenta com formas puramente abstractas?

    - KL: Centro a questo da pureza das formas em tomo desta ideia: no nos interessa saber "[. . . ] se gato ou co ou nada (que no existe) est representado, mas se a representao utiliza os meios prprios para o domnio da pintura ou se utiliza meios exteriores a esse espao." 3 4

    - Ka.: Para mim a chave da abstraco desloca-se do ponto de vista material para o espiritual, do exterior para o interior. As formas abstractas so ressonncias interiores, ecos da pureza inerente aos meios pictricos, pontos, linhas, superfcies, cores.

    - KL: Estamos de acordo na questo da espiritualidade, em parte. O contedo da pintura abstracta so os seus valores interiores, espi-rituais, expressos atravs dos meios pictricos, "o conjunto dos efeitos organizados segundo uma finalidade interior".35 "Gato" pertence aos meios exteriores a que uma pintura pode recorrer. Uma pintura pode ou no representar um gato, mas no pode dei-xar de ter cor ou forma, que so afinal os meios essenciais a que gosto de recorrer. Os elementos da forma traduzem, em si, a essncia da pureza. Pontos, linhas, superfcies, cores.

    - Ka.: O meu objectivo , sobretudo, desenvolver um estudo dos meios exteriores de acordo com o seu valor espiritual, isto , ouvir o eco de uma necessidade interior. Fao uma pintura de ressonn-cia objectiva utilizando a linguagem universal das formas abs-tractas.

    3 2 E. A. I . , p. 72. 3 3 D. E. A., p. 67. 3 4 E. A. I . ,p. 73.

    E. A. I . , p. 291.

  • 232 Ana Maniero

    - Kl . : No me parece incompatvel com a pureza das formas inte-grar numa pintura o conceito exterior que temos de "co" ou de "gato". Identificando ou no uma forma com o real, partimos da utilizao exclusiva dos meios puros da criao.

    - Ka.: Os vrios objectos de uma pintura (reais, parcial ou totalmen-te abstractos) relacionam-se entre si e dependem do todo da com-posio. Transformam-se profundamente, acabam por ser a pr-pria forma global. A ressonncia da forma isolada enfraquece-se pois esta apenas um dos elementos constitutivos que colabora na construo de uma composio.

    - KL: Como vimos existem duas matemticas que, por vezes, se contradizem. Numa composio global, no caso do amarelo, a adio de uma quantidade transforma-se em subtraco. Os valo-res apurados so inversos. Da que considero os meios pictricos como os responsveis intrnsecos pelo contedo formal de uma obra. Quais as regras matemticas que se podem definir para a progresso ou regresso dos valores cromticos? E neste estudo que centro a minha investigao na teoria das cores.

    - Ka.: Quanto mais a forma exterior, orgnica, se apaga, mais os elementos abstractos se afirmam, mais ampliam as suas ressonn-cias. Para ouvi-las, precisamos de partir de um elemento orgnico, que embora remetido para um plano secundrio, far-se- tambm sentir na forma exteriormente escolhida.

    - KL: A escolha de um objecto real torna-se assim essencial? - Ka.: Absolutamente. "Na dupla sonoridade (acordo espiritual) dos

    dois elementos constitutivos da forma, o orgnico pode apoiar o abstracto (por assonncia ou dissonncia) ou, pelo contrrio, per-turb-lo." 3 6

    - KL: Como se revela o som interior do elemento abstracto? - Ka.: O modelo-base, o objecto interior, produz um som acidental,

    que ao ser substitudo por outro, implica que se produza uma modificao essencial na sua nota base.

    - KL: Sempre a sonoridade. Trata-se de chegar a um acordo essen-cial para que esprito e matria se encontrem plenamente.

    - Ka.: Voltemos ao exemplo do piano. Vamos substituir "cor" e "forma" por "objecto". Qualquer um produz uma multiplicidade de irradiaes, efeitos psicolgicos sobre o homem que atingem tanto o inconsciente, como o subconsciente.

    36 D. E. A., p. 69.

  • Contraponto. Klee e Kandinsky - Dilogos numa Terra Frtil 233

    - Kl . : Estamos a falar de um reservatrio de imagens que existe no nosso interior, fonte inesgotvel donde brotam as ideias mais fecundas e promissoras?

    - Ka.: O mundo nossa vo!ta,"[...] faz vibrar constantemente as cordas do piano (alma) atravs das teclas (objectos). Esta aco, que por vezes nos parece incoerente, tripla: o efeito cromtico do objecto, o efeito da sua forma e o efeito do objecto em si mesmo, independente da forma e da cor."37

    - K l . : a que o artista intervm? - Ka.: Em substituio da natureza criadora, ele vai dar uma ordem

    a estes trs factores. A escolha desse objecto nasce assim, tam-bm, de uma necessidade interior.

    - K l . : Da que quanto mais o elemento abstracto se libertar do objecto concreto, da forma orgnica, mais livre e puro soar?

    - Ka.: Da que no necessrio a presena do elemento fsico, con-creto, numa composio. Este pode facilmente ser substitudo por formas exclusivamente abstractas ou por formas fsicas transpos-tas para o abstracto.

    - K l . : Como se processa essa transposio do fsico para o abstrac-to?

    - Ka.: Atravs da intuio, nica via capaz de executar, de uma forma equilibrada, a simbiose do abstracto e do concreto, do sub-jectivo e do objectivo.

    - K l . : "Construmos e reconstrumos sem parar. Mas a intuio continua a ser uma boa coisa. Podemos funcionar consideravel-mente sem ela, mas no podemos fazer tudo."38 As teorias servem para clarificar, simplificar e arrumar as ideias. So o arsenal da criao artstica. Mas no esto animadas de um sopro de vida profunda cuja nica fonte de inspirao vive no nosso interior. Os exerccios que fao com os meus alunos distinguem-se da pura teoria apenas pelo seu carcter prtico.

    - Ka.: Tanto o artista como o espectador precisam de se familiarizar com a linguagem das formas abstractas, de conhecer as suas sub-tilezas.

    - Kl . : A grande questo saber se ser ou no necessrio renunciar ao elemento concreto em favor do abstracto.

    3 7 D. E. A., p. 70. 3 8 T. A. M . , p. 48.

  • 234 Ana Maniero

    - Ka.: Na arte no existem proibies ou obrigaes. "Ela eterna-mente livre [...] o absoluto no existe [...] cada forma to inst-vel como uma nuvem de fumo."3 9

    - KL: Reconheo a forma, formao, como uma forma viva oposta ao formalismo ou forma sem funo. Os elementos da forma so chamados para a sua construo. Agarrados pelo movimento cria-tivo, atravessam o caos cosmolgico para se instalarem definiti-vamente numa nova ordenao fixada na superfcie da obra. "O caminho essencial e define o carcter da obra livre [...] a forma no deve ser considerada como um resultado, mas como gnese, um devir, um ser."40

    - Ka.: Sabemos que a mais pequena alterao produzida numa das partes da forma modifica a sua essncia.

    - KL: Precisamos de regressar do modelo matriz, espreitar a forma original, explorar mundos secretos.

    - Ka.: Precisamos de ouvir a sonoridade interior, a subjectividade da forma para revel-la atravs da pureza das formas abstractas. Aquilo que est oculto pode revelar-se na arte. Deixar a desco-berto, desocultar a forma conduz-nos descoberta de novos leit--motive na composio formal.

    - KL: Parece-me que o caminho para a essncia da forma passa pela contemplao deste mundo de iluses. Cabe ao artista desvendai-os segredos que nele residem num estado de in-visibilidade laten-te, ver para alm das aparncias e penetrar no seu interior para ouvir a ressonncia entre o Eu e o Tu, humanizar a relao entre o artista e o objecto num dilogo ntimo e profundo. Numa s pala-vra, preciso desocultar.

    - Ka.: Na abstraco procuramos o essencial da forma, o que acessrio tem que desaparecer. E este o nosso objectivo artstico.

    - KL: Atravs da conjugao das duas vias que se conjugam no nosso olhar contemplativo, uma de ordem esttica ou terrestre e outra de ordem dinmica ou csmica, podemos aceder sntese da aparncia e da essncia do Ser. Estamos na zona do "ponto cinzento".

    - Ka.: No que diz respeito construo do contraponto entre o branco e o preto, as variaes so ilimitadas na composio for-mal: transformaes orgnicas internas, movimento destas sobre a tela, seleco de elementos abstractos ou de elementos objectivos, princpios de dissonncia ou de ressonncia, combinaes de ele-

    3 9 D. E. A., p. 71. 4 0 E. A. I I . , p. 269.

  • Contraponto. Klee e Kandinsky - Dilogos numa Terra Frtil 235

    mentos ocultos e de elementos expostos, de formas geomtricas indeterminadas, de movimentos rtmicos e arrtmicos, de contor-nos acentuados e de contornos atenuados.

    - K l . : E a cor? - Ka.: Tambm contm em si mesma um contraponto de possibili-

    dades infinitas. A cor em conjugao com o desenho colocar a arte ao servio do divino. Cada artista sente uma necessidade interior constituda por trs necessidades msticas. Como um ser criador, o artista, deve exprimir o que lhe prprio (primeiro ele-mento artstico), o que prprio da sua poca (segundo elemento artstico) e, em geral, exprimir o que prprio da arte (terceiro elemento artstico).

    - K l . : Cada um espera a ecloso do seu Eu profundo. Aps alguns anos de evoluo interior do meu prprio "Eu egocntrico, che-guei finalmente, tranquilamente, ao Eu divino." 4 1

    - Ka.: O terceiro elemento artstico puro, eterno. Enquanto elemento essencial da arte, no obedece a qualquer lei do espao ou do tempo. O olhar do artista espiritual e sabe reconhecer o carcter divino da arte em qualquer poca ou em qualquer parte do mundo.

    - K l . : "Neste mundo ningum me consegue agarrar. Tanto habito junto dos mortos, como daqueles que ainda no nasceram, mais prximo da criao do que habitual, longe de estar suficiente-mente perto."42

    - Ka.: A grandeza de uma obra avalia-se pela intemporalidade e espiritualidade contida no terceiro elemento. " [ . . . ] os dois primei-ros elementos contm em si prprios o tempo e o espao, uma espcie de invlucro relativamente opaco."43 A arte deve caminhar no sentido da sua libertao em relao ao elemento estilstico de uma poca.

    - KL: Na pintura dos nossos dias assistimos legitimao do ltimo passo em direco arte moderna: "o abandono do objecto."44

    Meu caro Kandinsky, as suas formas abstractas so produtivas e esto inseridas num universo espiritual onde se respira ar puro. "A modernidade um consolo para a individualidade."45

    41 T. A. M , p. 14. 4 2 No cemitrio de Schlosshalle, em Berna, pode ler-se no epitfio do tmulo de Pau!

    Klee. 4 3 E. A., p. 74. 4 4 T. A. M. ,p . 12. 4 5 T. A. M. , p. 14.

  • 236 Ana Maniero

    - Ka.: "O artista pode utilizar qualquer forma para se exprimir.''4 6 O que une as obras de arte no a sua exterioridade. Essa unio reside nas suas razes mais profundas, no seu contedo mstico que o seu elemento essencial.

    - KL: Comparo o artista ao tronco de uma rvore. Imerso num mundo multiforme, confronta-se com a ordenao do fluxo das aparncias, coisas da natureza e da vida. Esta ordem ramifica-se e comparvel s razes da rvore. Desta regio profunda emerge a seiva que penetra no tronco. Sem ter a noo desta corrente que o assola, o artista encaminha para a obra os dados da viso. A obra , por sua vez, comparvel aos ramos que formam a copa da rvore. Ramificam-se em todas as direces procurando a luz, a vida. No concebvel a ideia de que os ramos sejam construdos segundo o modelo das razes da rvore. As alturas no so o refle-xo do que est em baixo. A funes diferentes, correspondem ordens diferentes que provocam dissemelhanas. Ao artista no se lhe pode exigir que copie o modelo, as exign-cias da dimenso plstica afastam-no j de tal possibilidade. De facto, o artista ocupa uma posio bem modesta, no sendo um servidor submisso, nem senhor absoluto, ele simplesmente um intermedirio. "No reivindica a beleza dos ramos. Ela apenas passou por ele."47

    - Ka.:"0 sentimento inato do artista o talento, no sentido evang-lico do termo, que no se deve enterrar. O artista que no utiliza os seus dotes um escravo indolente."48

    - KL: Na composio formal impe-se uma deformao causada pela passagem para uma nova ordem. A natureza aspira sua res-surreio, o artista caminha nas vias da grande criao. Deus criou um mundo de formas inacabadas. Cabe arte conceber obras naturais como formas vivas possuidoras de rgos com funes prprias. A arte atravessa a vida, fixando-a na obra. Sabemos que na composio musical possvel ter a percepo da ordem exacta pela qual esta foi concebida. Tal no acontece na pintura.

    - Ka.: Meu caro Klee, os meios de que dispomos para a construo da pintura so os elementos da forma que pertencem dimenso plstica. A cor, quando isolada, enquadra-se num esquema muito simples. Ou quente ou fria, ou clara ou escura. Que lhe parece?

    4 6 D. E. A., p. 75. 4 7 T. A. M. , p. 17. 48 D. E. A., p. 77.

  • Contraponto. Klee e Kandinsky - Dilogos numa i erra r eriu 3 /

    Kl. : Comecemos um pouco mais atrs, na classificao dos elementos da forma. Tanto podemos medir a extenso de uma linha, de um valor tonal ou cromtico, como tambm podemos avaliar a densidade/peso desses valores. Mas, nem a rgua, nem a balana chegam para definirmos uma cor. Para alm de ser um valor mensurvel e luminoso, ela uma qualidade. Um amarelo pode ocupar uma rea maior ou menor, ter mais ou menos lumino-sidade, mas no so essas as caractersticas que o distinguem do vermelho ou do azul.

    Ka.: O amarelo tende para o calor e o azul para o frio. Trata-se de um movimento horizontal, na superfcie o calor aproxima-se e o frio afasta-se do espectador.

    KL: Comecei por estudar a cor no crculo cromtico construdo a partir das cores do arco-ris. Defini dois tipos de movimentos: perifrico e diametral. Depois, transportei essa classificao para a esfera, incluindo tambm o movimento polar.

    Ka.: Considerei tambm movimentos. Dois, que dizem respeito ao contraste quente/frio, um na horizontal (de/para o espectador) e outro em espiral (excntrico/concntrico) e, outros dois, que dizem respeito ao contraste claro/escuro, um de resistncia (branco/nascimento e preto/morte) e outro idntico ao amarelo e azul (excntrico/concntrico). O amarelo irradia fora, aproxi-mando-se do espectador, enquanto o azul se enrola na sua concha, afastando-se do espectador.

    KL: Nos movimentos que considerei no crculo das cores pode-mos estabelecer mltiplas relaes cromticas, contrastes, harmo-nias. So classificaes de valores cromticos. O movimento perifrico permite-nos encontrar as cores vizinhas, primrias e secundrias, que se sucedem segundo uma ordem lgica - cada cor secundria est situada entre as duas cores pri-mrias que lhe deram origem, isto , o violeta est entre o verme-lho e o azul, o laranja entre o amarelo e o vermelho, o verde entre o azul e o amarelo. No movimento diametral podemos encontrar trs pares de cores, cujas relaes so diametralmente opostas - o vermelho que se ope ao verde, o azul ao laranja e o amarelo ao violeta. No centro da circunferncia est o cinzento.

    Ka.: "O amarelo e o azul, contidos no verde como foras paralisa-das, podem tornar-se activos. Existe no verde uma vitalidade ine-xistente no cinzento. A razo para este fenmeno o cinzento ser composto por cores que no possuem uma fora realmente activa

  • 238 Ana Maniero

    (capaz de se mover), e que por sua vez so dotados de uma capa-cidade de resistncia imvel e de uma imobilidade incapaz de resistncia. [...]Imagine-se um imenso poo sem fundo."49

    - KL: O cinzento resulta da mistura das trs primrias ou de uma primria com uma secundria que contenha as outras duas prim-rias. Estas cores opem-se, olham-se olhos nos olhos, colocadas face a face no interior do crculo.

    - Ka.: E na esfera o que se passa? - KL: Constru uma sntese em volume, cuja expresso o globo

    terrestre. A cintura onde se encontram as cores do espectro situa-se na zona equatorial. Os pontos branco e preto so os plos Norte e Sul. O ponto cinzento est situado no centro do globo e por isso encontra-se a igual distncia dos cinco elementos-base ou pigmentos vivos: branco, azul, amarelo, vermelho e preto. O movimento polar indica-nos o movimento da luz: o claro/ /escuro. Numa topografia que se estende no espao tridimensio-nal, os valores tonais e cromticos encontram uma expresso com-pleta que rene os trs movimentos.

    - Ka.: Podemos imaginar que as cores que contm o verde so acti-vas, possuem um movimento prprio. Existe um movimento implcito no funcionamento dos valores cromticos e tonais.

    - KL: O que me interessa saber onde realmente acaba a aco de uma cor. Tanto me preocupa o que o vermelho, como o que no . No existe no verde, "[. . ,] porque vermelho e verde anulam-se como cores."50 Ao opor-se, complementam-se. Uma chama pela outra, uma aparece quando se olha fixamente para a outra. So inseparveis. Mas existe um vermelho azulado que tende para o frio, e um vermelho amarelado que tende para o calor.

    - Ka.: Os efeitos das cores sobre as pessoas so importantes. O amarelo pode tornar-se insuportvel quando adquire uma intensi-dade cada vez mais clara. "O amarelo uma cor tipicamente ter-restre [...] o azul uma cor tipicamente celeste."51 O amarelo quando misturado com o azul, adquire um tom doentio. Por outro lado, o azul apaziguador. Quando mais claro, torna-se menos sonoro at se converter numa quietude silenciosa.

    - KL: Como se ouvem os azuis?

    *9 D. E. A., pp. 80,81. 5 0 E. A. I . , p. 486. 5! D. E. A., pp. 81, 82.

  • Contraponto. Klee e Kandinsky - Dilogos numa Terra Frtil 239

    - Ka.: O azul claro parece uma flauta, o azul escuro um violoncelo e o azul ainda "[. . . ] mais escuro evoca a sonoridade suave do con-trabaixo. Na sua aparncia mais solene, pode ser comparado aos sons mais graves do rgo." 5 2

    - K l . : Interesso-me pela organizao de estruturas ritmadas na pin-tura. Na partitura, o universo musical divide-se em tempo, que se movimenta na horizontal (pauta) da esquerda para a direita e, em espao, que se organiza visualmente na vertical (acordes, linhas meldicas, intervalos). Gosto de utilizar na pintura uma estrutura quadrangular semelhante ao tabuleiro de xadrez. Neste espao posso trabalhar com modulaes a vrios tempos, consigo criar mltiplas variaes ritmadas. Um ritmo regular ou irregular denota um determinado tempo que se estende no espao da pin-tura.

    - Ka.: Estamos no domnio da sonoridade interior das cores. - K l . : Muitos dos meus quadros contm inscries de notas e pautas

    musicais transformadas em jardins e cidades. - Ka.: Transposies de ritmos estruturais, prprios de uma compo-

    sio musical, para o domnio plstico? - Kl . : Voltemos "Fuga em Vermelho". Existe uma horizontalidade

    formal comparvel sobreposio de vozes numa fuga e inscri-o das notas musicais numa pauta. O contraponto reside na har-monia cromtica que se movimenta na vertical, fazendo apelo a um sistema de linhas horizontais que se multiplicam segundo rit-mos definidos por uma sobreposio de planos que sugerem temas e contra-temas. As formas geomtricas, como tringulos, crculos e rectngulos, coexistem com outras formas que correspondem a representaes de objectos concretos, como jarras.

    - Ka.: Absorvi plenamente a msica de Schmberg, inspirao para as minhas composies que exploram os efeitos psicolgicos da cor sobre a alma, sonoridades interiores, o espiritual na arte.

    - K l . : Meu caro amigo, percorremos em conjunto os caminhos da arte para fertilizar as terras da criao. Por vezes, caminhmos em direces diferentes. Continuo fiel a Bach. Transfiro ritmos, sucesses temporais do domnio musical para o domnio formal. Polifonias, fugas. Mas, quando a vida acaba o que nos resta o esprito. Neste mundo de mundos habitamos o nosso universo espiritual. Procu-rmos a essncia da fora criadora no espiritual da arte e explor-

    5 2 D. E. A., p. 83.

  • 240 Ana Maniero

    mos as analogias possveis entre a sonoridade da msica e o con-tedo formal da pintura. Mas uma dvida subsiste - onde reside a pureza das formas, nas foras vivas da abstraco ou nos elementos vivos da criao?

    Abreviaturas

    T. A. M. - Paul Klee, Thorie de VArt Moderne, Paris, Denel/Gonthier, 1980. E. A. I . - Paul Klee, Das Bildnerische Denken, trad. francesa: crits sur VArt I ,

    la Pense Crtrice, Paris, Dessain et Tolra, 1977. J. - Paul Klee, Le Journal, trad. francesa de Pierre Klossowsky, Paris, Bernard

    Grasset, 1959. D. E. A. - Wassily Kandinsky, Do Espiritual na Arte, Lisboa, Publicaes

    D. Quixote, 1991. P. L. P. - Wassily Kandinsky, Ponto, Linha, Plano, Lisboa, Edies 70, 1996.

    ABSTRACT

    Klee and Kandinsky, companions in adventure both in the world of painting and music, opened the paths of creation and built the beginning of an epistemology of art. From this intense intellectual and artistic exchange sprang a strong inspiration that heard the echoes of the cosmological order as reflected in the mysteries of nature and the sounds of the human soul. It is worth finding the counterpoint of their investigations, carefully written down at the time they taught together at the Bauhaus. Explorers of secret worlds, listeners of inaudible sounds, they discovered the profound similarities between the laws of nature and the aits.