konrad lorenz - A demolição do homem

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perspectivas

para

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futuro

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humanidade

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extraordinariamente sombrias. Ameaado pela iminncia de um conflito nuclear ou por tantas outras formas de destruio do meio-ambiente, o homem convive com a possibilidade de ver anuladas todas as realizaes Intelectuais e emocionais que o distinguem dos demais seres vivos. A Demolio do Homem, de Konrad Lorenz bilogo e mdico, Prmio Nobeh de Medicina em 1973 , demonstra que o extermnio do meio-ambiente e a "decadncia" da cultura caminham juntos e analisa de maneira clara as razes do declnio da nossa civilizao e da cultura ocidental. Lorenz no se mostra como um pessimista cultural, mas sim, como um otimista, cujas esperanas se voltam para uma reorientao dos valores universalmente humanos.

Konrad Lorenz

A demolio do homem Crtica falsa religio do progresso

Traduo e apresentao: Horst Wertig

2 edio

editora brasiliense

Copyright R. Piper&Co. Verlag, Mnchen, 1983. Ttulo original: DerAbbau des Menschlichen.Copyright da traduo: Editora Brasiliense S.A., para publicao

e comercializao no Brasil. Capa: Joo Baptisla da Costa Aguiar Reviso: Jos W. S. Moraes Newion T, L. Sodr ISBN: 85-11-12035-1 1? edio 1986

editora

brasiliense

s.a.

rua

da

consolao, 2697 01416 - So Paulo - SP. fone (011) 280-1222 telex: 11 33271 DBLM BR

SumrioGraus de liberdade da evoluo .................................................................................................. 16 A crena do ordenamento teleolgico do mundo ......................................................................... 17 As conseqncias desmoralizadoras ......................................................................................... 17 A falsa religio do "progresso" ................................................................................................. 18 A rejeio de uma ordem social no-teleolgica ....................................................................... 19 Os trs tipos de ocorrncias teleolgicas .................................................................................. 20 A aleatoriedade da filognese ..................................................................................................... 24 O conceito da teleonomia ....................................................................................................... 24 Exemplo: um fenmeno intil .................................................................................................. 25 Alteraes funcionais .............................................................................................................. 26 Os ziguezagues da filognese................................................................................................... 28 Os becos sem sada da evoluo .............................................................................................. 34 Os efeitos da concorrncia intra-especfica............................................................................... 37 Evoluo autodestrutiva ou "sacculinizao" ............................................................................ 39 A evoluo criativa ..................................................................................................................... 43 A adaptao como processo cognitivo ...................................................................................... 43 O caminho para o "superior" ................................................................................................... 45 A evoluo cultural ................................................................................................................. 49 A cultura como um sistema vivo .............................................................................................. 51 Hereditariedade e mutaes culturais ...................................................................................... 53 O carter aleatrio da evoluo cultural ................................................................................... 56 Homo ludens .......................................................................................................................... 57 A realidade do que "apenas" subjetivo...................................................................................... 61 O problema do corpo e da alma .................................................................................................. 62 A legitimao dos procedimentos fenomenolgicos .................................................................. 62 Crtica do cientismo e dos seus crticos .................................................................................... 63 A irrefutabilidade da vivncia .................................................................................................. 69 A arte como fonte de conhecimentos fenomenolgicos ............................................................ 72 Trs hipteses para o problema do corpo e da alma.................................................................. 74 A fenomenologia das valoraes humanas ................................................................................... 79 Valoraes teleonmicas ......................................................................................................... 79 Excesso e escassez .................................................................................................................. 79 Sensao de "beleza" e domesticao ...................................................................................... 81 Avaliao de sintomas de domesticao no comportamento ..................................................... 83

Valoraes de justia ............................................................................................................... 85 Valoraes de posse ................................................................................................................ 87 A questo das valoraes no-teleonomicamente programadas .................................................... 90 Existe algo de belo em si?........................................................................................................ 90 A sensao de harmonias ........................................................................................................ 93 Os "nveis de desenvolvimento" relativos de harmonias ............................................................ 96 A percepo de perturbaes patolgicas ................................................................................ 97 A valorao realmente apriorstica ........................................................................................... 97 O esprito como adversrio da alma .......................................................................................... 100 O mal-estar na cultura .............................................................................................................. 101 A discrepncia das velocidades .............................................................................................. 101 Tendncias e moral ............................................................................................................... 103 Falhas de padres comportamentais que perderam o sentido original ......................................... 108 Definio de normalidade e patologia .................................................................................... 108 O gosto pela ordem e superorganizao ................................................................................. 109 O prazer pelo crescimento ..................................................................................................... 114 O prazer pelo funcionamento ................................................................................................ 117 O prazer pela competio ...................................................................................................... 118 Distribuio de tarefas e especializao ................................................................................. 119 A coao da desistncia de conhecimentos ............................................................................ 123 A propaganda ....................................................................................................................... 123 Entusiasmo coletivamente agressivo e propaganda poltica ..................................................... 126 A doutrinao ....................................................................................................................... 131 O desencaminhamento do esprito humano ............................................................................... 134 Idias supervalorizadas e neuroses ........................................................................................ 134 Efeitos tericos e prticos do cientismo ................................................................................. 135 A Situao do homem hoje ....................................................................................................... 138 O sistema tecnocrtico ............................................................................................................. 139 Um princpio de otimismo ..................................................................................................... 139 Mecanismos de estabilizao do sistema ................................................................................ 140 O alijamento da seleo ........................................................................................................ 142 A doutrina pseudodemocrtica .............................................................................................. 144 Um exemplo: o hospitalismo ................................................................................................. 146 O deslocamento da conscincia da realidade .......................................................................... 149 O indesejvel homem "autnomo" ........................................................................................ 150

Mtodos de amestramento ................................................................................................... 152 As dificuldades da juventude na atualidade ............................................................................... 156 O ponto crtico...................................................................................................................... 156 O dio nacionalista ............................................................................................................... 157 A fase sensvel da escolha de um grupo.................................................................................. 158 O esvaziamento de sentido do mundo ................................................................................... 159 Justificativas para o otimismo ................................................................................................... 163 Objetivos viveis para a educao .......................................................................................... 166 Na realidade, os jovens de hoje precisariam ser expostos ....................................................... 167 No dars falso testemunho .................................................................................................. 179 Valores que precisam ser revalorados .................................................................................... 183 O ponto de vista epistemolgico ............................................................................................ 185 POSFCIO: ............................................................................................................................... 192 O credo do naturalista ........................................................................................................ 192 Bibliografia ............................................................................................................................ 196 Biografia .................................................................................................................................. 202

guisa de apresentaoK.onrad Lorenz, "o pai da etologia" como o qualificou seu mestre e amigo Sir Julian Huxley, projetou-se meteoricamente no cenrio da filosofia contempornea com a publicao, em 1963, de seu livro Das Sogenannte Bse zur Naturgeschichte der Aggression (O Assim Chamado Mal Contribuio a uma Histria Natural da Agresso), cujo subttulo j aponta os caminhos que o pensador seguiria de ento em diante no sentido de divulgar junto ao pblico leigo os resultados das pesquisas mais estritamente cientficas do naturalista, que lhe valeriam, em conjunto com Nikolaas Tinbergen e Karl von Frisch, o Prmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1973. (Tanto Tinbergen quanto Frisch, colegas que trabalham sobre reas correlatas no que diz respeito aos comportamentos dos animais, porm estudam mais intensivamente espcies bem diferentes, so freqentemente citados neste e em outros livros do autor.) Esta divulgao ampla das pesquisas do comportamento animal e do comportamento humano, levando a concluses sobre este a partir de comparaes com aquele, constitui o propsito maior do filsofo Lorenz, sem prejuzo dos trabalhos cientficos do naturalista que, desde 1973, dirige o Instituto de Pesquisas do Comportamento Comparado (Institu fr Vergleichende Verhaltensforschung) da Academia Austraca de Cincias, em Altenberg, o subrbio a noroeste de Viena, onde nasceu em 1903. Doutorando-se simultaneamente em Filosofia e em Medicina, clinicou at a 2." Guerra Mundial (inclusive enquanto prisioneiro de guerra em campos russos), porm continuou a observar os peixes e os gansos que, desde criana, o fascinavam; o contnuo e imediato contato com os animais, de um lado, e com os seres humanos, pelo outro, aliado slida formao que lhe impunha um rigor kantiano nas observaes e sobretudo na interpretao de fatos observados, levaram-no a aprofundar cada vez mais as investigaes sobre a "psicologia dos animais", que depois veio a constituir-se no campo, atualmente reconhecido como dos mais importantes dentre as cincias biolgicas, da Etologia a cincia do comportamento, envolvendo instintos e tradies, hereditariedade, mutaes, rituais, etc., etc. . Assim, no de admirar-se que fossem praticamente simultneas as publicaes de sua enorme coletnea "puramente" cientfica ber Tierisches und Menschliches Verhalten (Ensaios sobre o Comportamento Animal e o Comportamento Humano) e o j citado ensaio de divulgao ampla, dirigida ao pblico leigo, sobre a agresso, na

medida em que se lhe tornavam claras as analogias (quando no homologias) entre os comportamentos dos animais e o comportamento humano, e talvez o mais importante que a agressividade tem funes caracteristicamente mantenedoras e aperfeioadoras nas espcies, inclusive a humana, mas que entre os homens outras funes, as quais ou inibem ou equilibram a agressividade entre os demais animais, vm sendo sistematicamente eliminadas. A tendncia obviamente resultante deste desequilbrio a autodestruio da humanidade. Esta a tnica do Assim Chamado Mal e dos trs livros que se lhe seguem, Civilizao e Pecado (1973), A Outra Face do Espelho (1973), e agora A Demolio do Homem (1983). So trs brados de alerta, pois Lorenz considera a sua responsabilidade humana pelo menos em p de igualdade com sua responsabilidade cientfica: se o naturalista percebe os perigos em que se encontra a humanidade como um todo e em que se encontram os seres humanos como tais, cabe ao filsofo alertar a humanidade e os seres humanos contra esses perigos. Assim sendo, so brados cada vez mais sonoros, porquanto em 1963 (O Assim Chamado Mal) esses perigos mal se delineavam, e se se concentravam nas possibilidades de uma destruio rpida atravs de bombas atmicas, em 1973 entravam em ebulio os movimentos (mais ou menos amorfos) de defesa do meio ambiente, em boa parte resultantes de uma revolta normal de adolescentes e jovens contra as geraes anteriores vide, por exemplo, Woodstock e as revoltas estudantis na Frana, na Alemanha, nos Estados Unidos entre 1965 e 1975 , e hoje os perigos da desumanizao do ser humano so os mais imediatos, ao lado dos perigos de ser destrudo o meio ambiente "no qual e do qual vive"o homem. No obstante, assim como nos livros anteriores, Lorenz adota uma postura basicamente otimista em relao ao futuro: confia em que os jovens, devidamente alertados (por ele e por muitos outros autores), se disponham a redirecionar um mundo atualmente desencaminhado, assumindo uma responsabilidade que as geraes anteriores no renegaram mas tampouco aceitaram porque

simplesmente no tiveram Conscincia da necessidade dessa responsabilidade, visto que somente no sculo atual as possibilidades de a evoluo tecnolgica disparar frente da evoluo cultural se tornaram concretas, deixando ambas para trs a evoluo filogentica. Neste processo, segundo Lorenz, perderam-se os valores culturais caractersticos do ser humano, pelo menos em grande parte: para que no se perca o restante, e para que se recupere o que ainda seja possvel recuperar,

mister que a sociedade sofra uma transformao radical, na qual cabe aos joven s a responsabilidade da ao reconstrutiva e aos seus pais a responsabilidade de conscientiz-los dos desvarios que, nas geraes anteriores (inclusive a dos prprios pais), vm ocorrendo; necessrio revalorar as nossas caractersticas humanas, a comear pelo respeito vida. E justamente neste sentido que Lorenz v os indcios, entre os jovens que repudiam a 'nossa atual "sociedade do sucesso", que o deixam otimista quanto ao futuro do planeta, da vida e mais particularmente ainda do ser humano. O livro no de leitura fcil primeira vista; a grande massa de informaes nele contidas parece por vezes mascarar o objetivo maior. Todavia, cabe ressaltar que cada observao de um determinado comportamento, seja no que diz respeito ao acasalamento entre aves ou numa referncia ao "custo" de uma refeio de um lobo siberiano, se destina a evidenciar um trao caracterstico do animal humano que, posteriormente, por uma ou outra razo qualquer, igualmente analisada a fundo, se desencaminhou at tornar-se nocivo ao prprio homem, quando no prpria vida. Estas explicaes convergem, por conseguinte, para a concluso citada no pargrafo anterior, de que precisamos revalorar ou seja, atribuir no-' vos valores as qualidades que so efetivamente caractersticas do ser humano. Em toda esta postura transparecem, a comear pelo rigor do material apresentado, posicionamentos filosficos bastante claros, sobretudo (creio eu) os de Sir Karl Popper e dos irmos Huxley, bem como, subjacentes a estes, os de Kant e de Goethe; em particular, a reverncia com que o Cientista trata a Natureza que estuda: conhecer a Natureza no a profana, antes ao contrrio. Quanto mais e melhor o Homem conhece a Natureza viva da qual faz parte, tanto mais encontra nela as maravilhas para admirar-se e para encontrar ou reencontrar a si mesmo e o sentido de sua prpria vida. Esta , ento, a tese profunda, cuidadosa e rigorosamente elaborada no presente livro. A partir do reconhecimento de que a espcie humana, distinguindo-se das demais por seu "esprito" definido pelo autor como a totalidade dos conhecimentos adquiridos pelos indivduos e transmitidos de gerao a gerao ao mesmo tempo que compartilhado com os demais indivduos , se desviou dos caminhos naturais da evoluo, tornando disfuncionais os processos de seleo natural intra-especfica a ponto de pr em risco a prpria sobrevivncia da espcie, a

partir deste reconhecimento sbrio, livre de qualquer atribuio de culpas ou desculpas, Lorenz prope algumas medidas que, se levadas srio desde j, podero nos devolver aos caminhos da sanidade coletiva, e o mundo, por mais modificado que j esteja em virtude da acelerao com que se impem as conquistas da moderna tecnologia, aos caminhos naturais da evoluo cultural humana, e m que a criatividade dos jovens (que precisa ser estimulada para reviver) se associar novamente s tradies dos avs e dos pais (que precisam ser mantidas vivas para poderem ser modificadas), no que Lorenz denomina de "o jogo de tudo e de todos", e que o prprio "jogo " da evoluo. Intil fugir realidade, de uma forma ou de outra: assim como Fausto se entrega magia para "conhecer o mago do mundo", e depois de passar por todas as iluses possveis e imaginveis declara "tolo quem sonha no alm o seu semelhante" as citaes se encontram no captulo "Justificativas para o Otimismo", concluindo o presente livro , o ser humano precisa reconhecer-se parte da natureza para atuar dentro dela sem destru-la, sem destruir-se a si mesmo, e para poder assim desfrutar dos valores caracteristicamente humanos que ela lhe oferece: o bem e a beleza, sobretudo, precisam ser recuperados e transmitidos s geraes mais jovens. Mais do que um brado de alerta, a presente obra do naturalista e filsofo Konrad Lorenz tambm uma contribuio para a recuperao do ser humano. So Paulo, fevereiro de 1986. Horst Wertig

Um prefcio pequenininhoNa atualidade, as perspectivas para o futuro da humanidade so extraordinariamente sombrias. Muito provavelmente ela cometer um suicdio rpido, porm de modo algum indolor, pelo uso de armas nucleares. Mesmo que tal no venha a ser o caso, est ameaada de morte lenta por envenenamento e por outras formas de destruio total do meio ambiente, no qual e do qual ela vive. E mesmo que as suas aes cegas e incrivelmente tolas sejam contidas a tempo, ainda assim paira sobre ela a ameaa de serem paulatina-* mente anuladas e retiradas todas aquelas caractersticas e realizaes intelectuais e emocionais que so especificamente humanas, que distinguem as pessoas, seres humanos, dos demais seres vivos. Muitos pensadores j notaram esse fato, e muitos livros contm j claramente o reconhecimento de que o extermnio do meio ambiente e a "decadncia" da cultura caminham juntas, passo a passo. So poucos, porm, os que consideram a demolio do humano como uma enfermidade, poucos os que, como Aldous Huxley, procuram descobrir-lhe as causas para que se possa tomar as correspondentes medi-' das preventivas e corretivas. O presente livro tem por objetivo essa busca.

Uma sinopse bem resumidaPrimeira parte: Muitas pessoas acreditam que o curso da histria do mundo seja predeterminado e orientado para objetivos pr-definidos. Na realidade, a Criao orgnica evolui por caminhos imprevisveis. Na conscincia deste fato se fundamentam tanto a nossa crena na possibilidade de eventos realmente criativos como tambm a nossa crena na liberdade e sobretudo na responsabilidade do homem. Portanto, a tarefa da primeira parte do livro consiste na refutao da suposio de que a histria da humanidade seja predeterminada, pois, se assim fosse, alis, nem se poderia falar numa histria da Criao. Segunda parte: Por ser toda a responsabilidade moral do homem determinada pelas suas sensaes valorativas, precisa ser combatida a crendice epidemicamente difundida de que apenas o que contvel e mensurvel seja real. Tem que ser convincentemente esclarecido que os nossos processos de vivncia subjetiva gozam do mesmo grau de realidade como tudo o que pode ser expresso em termos das cincias naturais exatas. Terceira parte: O raciocnio abstrato, conceituai, bem como a linguagem verbal levaram a um crescimento do saber, do poder e do querer humanos, ou seja, -a um crescimento do esprito humano, num processo exponencialmente acelerado que de fato faz com que o esprito humano se tome o "antagonista da alma". O esprito humano cria relacionamentos para os quais a disposio natural das pessoas no mais de modo algum adequada. Normas comportamentais, tanto culturalmente programadas quanto "instintivas" ou geneticamente programadas, que num passado historicamente muito recente ainda se consideravam virtudes, nas circunstncias atuais levam fatalmente ao extermnio. Quarta parte: Trata da situao em que nos metemos atravs dos processos discutidos na terceira parte. Essa situao ameaadora, mas ainda deixa margem a alguma esperana, apesar de alguns crculos viciosos irreversveis, resultantes do desenvolvimento tecnolgico e econmico. Os hbitos de raciocnio gerad os pela tecnologia se transformaram em doutrinas de um sistema tecnocrtico e como tais se consolidaram, sendo que o sistema tecnocrtico em si se tornou invulnervel por auto-imunizao. A tecnocracia tem por conseqncia uma superorganizao das pessoas, cujo efeito de retirar-lhes responsabilidades cresce proporcionalmente ao

nmero de pessoas sujeitas quele sistema. Tambm no campo da cultura eliminou-se a multiplicidade de inter-relacionamentos de causas e efeitos, que na realidade um pressuposto para qualquer desenvolvimento criativo. Em situao particularmente crtica encontra-se a juventude atual. Para evitar o apocalipse que nos ameaa, necessrio que justamente nos adolescentes e nos jovens sejam despertadas novamente as sensaes valorativas que lhes permitam perceber o belo e o bom, sensaes essas que so reprimidas pelo cientismo e pelo pensamento tecnomorfo. As medidas educacionais comeam pelo treinamento das faculdades de percepo e sensao de uma imagem (Gestalt), pois s estas podem transmitir a sensibilidade por harmonias. Para que possam funcionar adequadamente, precisam ser alimentadas, como qualquer computador tambm, por uma grande quantidade de dados e informaes. Um contato to ntimo quanto possvel com a natureza viva, to cedo quanto possvel na vida das crianas, um caminho altamente promissor para que se atinja esse objetivo.

PRIMEIRA PARTEGraus de liberdade da evoluo

A crena do ordenamento teleolgico do mundoAs conseqncias desmoralizadorasTeilhard de Chardin deu o passo muito significativo de equacionar a criao do mundo com a evoluo. O que ele reconhece, que a cada passo evolutivo corresponde um acrscimo de valores, no menos fundamental para a sua viso do mundo do que para a nossa. Segundo Teilhard de Chardin, contudo, o caminho evolutivo do inanimado para os seres vivos, dos planos mais baixos para os superiores, fundamentalmente predestinado da mesma forma como Oswald Spengler acreditava no desaparecimento inelutvel da nossa cultura. Esses pontos de vista, opostos entre si, tm as mesmas conseqncias para o comportamento humano: ambos permitem ao homem liberar-se do peso da responsabilidade pelo que ocorre no mundo. Os fatores do desenvolvimento orgnico, sobretudo mutao e seleo natural, geraram o esprito humano como tambm geraram todas as demais manifestaes da vida; porm, o esprito humano encontrou os meios e os caminhos para eliminar o mais importante dos fatores que lhe deram origem: a seleo natural, preservadora e cruel. A evoluo ps o homem em p, colocando-o numa posio (num sentido profundamente simblico) instvel, e depois se afastou dele, lavando as mos. A seleo criativa, da qual falaremos na quarta parte deste livro, j no tem mais efeitos sobre o homem; foi substituda pela seleo intra-especfica, da qual sabemos muito bem a que bizarras armadilhas pode conduzir pelos caminhos de evoluo das espcies. De certa forma podemos dizer que a evoluo criativa, no sentido filogentico, est encerrada na nossa Terra. O desenvolvimento cultural da humanidade se processa a passos cada vez mais acelerados e atingiu na atualidade uma velocidade tal, que podemos dizer, sem receio de estarmos exagerando, que em relao a ela a velocidade da evoluo gentica e filogentica desprezvel, ou seja, nula. De toda forma, as modificaes efetuadas em todo o planeta pelo desenvolvimento cultural

humano so to rpidas que excluem um acompanhamento, mesmo "a reboque", do desenvolvimento filogentico. O homem se acha extremamente ameaado. "A fora eternamente viva, criativamente balsmica", como a chama Goethe, somente pode tornar-se efetiva, hoje em dia, atravs da percepo de valores dos homens. A deciso de que a vida orgnica, aqui e agora, evoluir "para cima" ou "para baixo" transformou-se numa responsabilidade do homem. Sem uma percepo de valores, a questo das conseqncias de nossas aes no pode levar nem a mandamentos nem a proibies. Ningum desenvolvimento sabe se ainda da existe alguma possibilidade ainda ser de o futuro eu,

filogentico

humanidade

ascendente;

pessoalmente, creio muito que assim seja. Considerando-se que o desenvolvimento cultural, ainda que mas rpido do que o desenvolvimento filogentico por algumas potncias de dez, siga leis mais ou menos semelhantes, bem provvel que este venha a ser orientado no mesmo sentido daquele, ou seja, que a filognese venha a ser orientada na mesma direo daquele desenvolvimento cultural. Essa direo parece, em vista do nosso atual ordenamento tecnocrtico do mundo, ser indubitavelmente descendente. Se tal for o caso, a nossa condio humana est em perigo.

A falsa religio do "progresso"Se bem que hoje j existam muitas pessoas conscientes dos perigos trazidos tona pelo desenvolvimento tecnolgico da humanidade, ainda assim h tambm inmeras outras cujo pensamento "tecnomorfo" as deixa convictas de que qualquer desenvolvimento traz consigo, necessariamente novos valores. Mesmo que se adote a concepo goethiana do desenvolvimento como uma diferenciao e subordinao das partes, tal concepo errada no somente no sentido filogentico como ainda mais em relao aos possveis desdobramentos culturais. Apesar de o surgimento de novos valores pressupor um desenvolvimento, no se segue a este como uma conseqncia inelutvel. O processo de um desenvolvimento (tomando-se o termo num sentido lamentavelmente estrito) j se transformou na prpria concepo do que seja uma criao de valores, no contexto do ordenamento tecnocrtico da sociedade.

Uma ilustrao particularmente atraente nos fornecida pelo que se compreende por "desenvolvimento regional" no 'jargo americano: to develop an area significa que, na gleba em questo, toda e qualquer vegetao natural ser sumariamente exterminada, o solo assim exposto ser recoberto por concreto (ou, na melhor das hipteses, por um gramado artificial "paisagstico"), um pedacinho de praia martima porventura existente ser reforado por muros de arrimo em cimento armado, crregos sero retificados (quando no canalizados atravs de grossas manilhas), e tudo isto ser ento rigorosamente envenenado por meio de pesticidas para depois ser vendido, pelos mais altos preos possveis, a um consumidor devidamente urbanizado e imbecilizado. E, por sobre isso, o pensamento tecnomorfo nos impe, de maneira quase taxativamente neurotizante, a idia de que se confundem a mera possibilidade tcnica de se realizar determinado processo e o compromisso obrigatrio de efetivamente lev-lo a cabo. Esta imposio j se tornou um verdadeiro mandamento da religio tecnocrtica: Tudo o que de qualquer modo puderes fazer, fars. Sem dvida que exagero um pouco. No obstante, ainda hoje a grande maioria das pessoas seguidora fiel e irrestrita da crendice de que o progresso da nossa civilizao ter que levar, necessariamente e por trilhas predestinadas, ao crescimento de novos valores.

A rejeio de uma ordem social no-teleolgicaA muitas pessoas parece inacreditvel existirem no Universo processos cuja evoluo no seja orientada por objetivos predeterminados. Pelo fato de atribuirmos um valor negativo a atitudes nossas que no tenham sentido, incomoda-nos a ocorrncia de fenmenos que prescindem de qualquer sentido. Goethe faz Fausto, que observa a arrebentao de sucessivas vagas na ressaca, dizer-nos os seguintes versos:1 "Me aterraria o tremendo espetculo! A catica fora do Elemento revolto!"

1

Fausto, Segunda Parte, Ato IV, Cena 1. (N. T.)

O que mais magoa o homem, porm, o que mais lhe fere o amor-prprio, que todas as suas nobres qualidades sejam absolutamente indiferentes ocorrncia dos fenmenos csmicos. Uma vez que ele percebe o predomnio do que no tem sentido na cosmogonia, passa a recear que j pela imensa quantidade este nonsense leve a melhor sobre todos os esforos humanos de dar um sentido s coisas. Desse receio surge a necessidade imperiosa de supor a existncia de um sentido oculto em tudo o que ocorre. Como diz Nicolai Hartmann, "o homem no quer de modo algum encarar a spera realidade que o considera irrelevante; logo lhe parece que assim a vida no vale a pena". E, mais adiante, continua o filsofo: "Nem de longe consegue (o homem) imaginar que o 'dar sentido' s coisas uma prerrogativa humana, e que talvez seja justamente pela sua ignorncia que ele se desfaa dela". Paradoxalmente, essa ojeriza por uma cosmogonia no-teleolgica,

no-predeterminada at o fim, tambm motivada pelo medo de que o livre-arbtrio do homem possa mostrar-se ilusrio, o que no somente carece de qualquer sentido epistemolgico como ainda totalmente errado no que diz respeito a um ordenamento teleolgico do mundo: "A aceitao passiva e incontestada do prprio conceito de um mundo previamente determinado do incio ao fim j elimina a priori qualquer liberdade do homem", limitando-o do comportamento de um veculo sobre trilhos, que obrigatoriamente atingir o seu destino. Tal concepo significa a negao absoluta do homem como um ser dotado de responsabilidade.

Os trs tipos de ocorrncias teleolgicasOs processos teleolgicos predeterminados que existem no cosmos ocorrem exclusivamente na rea orgnica. Uma anlise de categorias do nexo final, como o entende Nicolai Hartmann, s pode ser procedida quanto ao emaranhado causai de uma cadeia de eventos bem definida. Esta se caracteriza por trs atos, que de resto tampouco podem ser separados entre si nem considerados independentemente uns dos outros, visto constiturem uma unidade funcional: primeiro, a definio de um objetivo, passando-se por sobre o fluxo temporal como na antecipao de algo futuro; segundo, uma escolha dos meios a partir do objetivo definido, escolha essa portanto de certo modo retroativa; terceiro, a realizao do objetivo atravs da seqncia causai dos meios escolhidos. sempre necessrio haver um "portador" das informaes, um "definidor" para o objetivo e um "selecionador" dos meios, conforme diz Nicolai Hartmann com a

mxima nfase. Alm disso, na maioria das vezes tambm necessrio que o "terceiro ato", ou seja, a realizao do objetivo, seja "supervisionado", visto que na escolha dos objetivos possvel haverem ocorrido equvocos; neste caso aparece, em algum ponto da seqncia causai, um desvio da linha previamente traada, que precisa ento ser corrigido por novos meios. Nicolai Hartmann de opinio que o portador das informaes e o definidor do objetivo s pode ser uma conscincia, pois, segundo ele, "somente uma conscincia tem mobilidade temporal de pontos de vista, pode saltar por sobre o fluxo do tempo, pode prefixar, antecipar ocorrncias, selecionar os meios causais e acompanh -los no sentido inverso ao do fluxo temporal deixado margem, desde a predeterminada 'realizao do objetivo' at o 'estgio inicial' dado". Desde que Nicolai Hartmann escreveu estas sentenas, a bioqumica, a pesquisa morfogentica e a etologia desvendaram alguns processos que certamente no so acompanhados de uma conscincia, mas que nem por isso deixam de conter em suas estruturas causais os trs atos exigidos. O modo pelo qual o plano estrutural previamente contido no genoma antecipa a gerao de um novo organismo corresponde inteiramente ao primeiro ato, definio do objetivo, e o modo pelo qual o objetivo atingido, mediante a utilizao dos meios mais diversos (conforme a oferta do ambiente) num processo auto-regulador que garante ser o objetivo realizado definitivamente, corresponde sem dvida e exatamente ao encadeamento dos trs atos postulados por Hartmann, ainda que evidentemente a um nvel categrico inferior ao do comportamento humano ideologicamente consciente. Entre esses dois nveis h como que uma rampa de comportamentos teleolgicos dos animais e dos homens, que ascende da busca desordenada at os procedimentos metdicos e complexos do homem. O fato de que na ontognese fisiolgica de um ser vivo ocorre um processo genuinamente definido pelo seu fim qual seja, a efetiva realizao de um plano previamente estabelecido leva facilmente conjectura tentadora de que tal tambm seja verdadeiro para o desenvolvimento filogentico dos seres vivos; j os termos "desenvolvimento" ou "evoluo" nos levam a essa conjectura. Todos ns conhecemos aqueles lindos diagramas esquemticos da rvore genealgica dos seres vivos, que comea pelos organismos unicelulares, parece elevar -se atravs de inmeras ramificaes dos organismos inferiores aos superiores, culminando no homem como objetivo e corao da Criao! Ponto final. E destarte se sobrepe

filognese, que de fato trilhou esse caminho evolutivo, uma seta orientadora resultante da constatao do caminho trilhado, seta essa, todavia, que faz com que o homem seja apresentado como o objetivo predeterminado de toda a histria do cosmos uma concepo do mundo que os homens adoram ouvir. A tentativa de dotar os fenmenos evolutivos de um sentido e de uma orientao, que intrinsecamente no tm, to errada quanto os esforos d e tantas outras pessoas, cujo pensamento nitidamente cientfico, e que no obstante procuram obter, a partir de eventos histricos, a abstrao de leis histricas que permitam a previso de futuros eventos histricos, mais ou menos no sentido anlogo ao de que o conhecimento de algumas leis da fsica permite ser prevista a ocorrncia de eventos fsicos. At hoje a crena de que uma cincia terica da histria seja necessariamente possvel, assim como o a fsica terica, continua nos estertores mas ainda no morreu. Karl Popper desmascarou esse ponto de vista como a superstio que : no resta dvida de que o conhecimento humano influi no curso da histria da humanidade, e se levarmos em conta que justamente o acrscimo do conhecimento humano totalmente imprevisvel, ento o futuro curso da histria tambm imprevisvel. Como Karl Popper demonstra de modo irrefutvel em seu livro The Poverty of Historicism, nenhum aparelho cognitivo capaz de fazer previses seja ele um crebro humano ou um computador eletrnico pode jamais prever os seus prprios resultados. Todos os experimentos dirigidos nesse sentido somente produzem resultados aps a ocorrncia do evento, pelo que obviamente perdem a caracterstica de uma previso. "Por ser puramente lgico", di z Karl Popper, "este argumento se aplica a previsores cientficos de qualquer complexidade, inclusive 'sociedades' de previsores que interagem entre si." ("This argument, being purely logical, applies to scientific predictors of any complexity, including ' societies' of interacting predictors.") Tudo isso no menos vlido para o curso da filognese do que para o curso da histria da humanidade. Tambm a filognese decisivamente influenciada pela aquisio de informaes, a qual ainda imprevisvel, alm disso, num sentido diferente da imprevisibilidade da aquisio de conhecimentos humanos: qualquer mutao, por mnima que seja, modificar todo o curso futuro da filognese de modo irreversvel. Por conseguinte, a trilha evolutiva do mundo dos organismos no pode estar predestinada nem predeterminada desde a origem da vida. O famoso aforismo

de Ben Akiba, de que tudo j existiu antes, o contrrio do que constitui a verdade histrica: nada j existiu antes.

A aleatoriedade da filogneseO conceito da teleonomiaNo raro o profissional de anatomia comparada, ou de Etologia comparada,que se haja familiarizado com alguma etapa da evoluo orgnica, se v envolvido num conflito bastante estranho. Ficamos tolhidos num vaivm entre uma incontida admirao pelas construes fantasticamente geniais realizadas pela evoluo e o desapontamento por esta mesma evoluo no haver encontrado algumas solues que parecem nossa mente gritantemente bvias: quanta coisa, absolutamente sem sentido, arrastada de gerao a gerao! Muitos cientistas tendem a supervalorizar o grau de "sentido utilitrio", como, por exemplo, Nicolai Hartmann quando expe que tal sentido utilitrio compreensvel a priori, axiomtico, tendo por conseguinte a caracterstica de uma categoria do que orgnico. Diz Hartmann: "Pela prpria essncia do assunto fica claro que um organismo provido de rgos, membros, formas e funes inteis no pode estar apto sobrevivncia". Essa frase univocamente exagerada ao extremo; a ela precisamos contrapor a compreenso dos fatos como repetidamente frisada por Oskar Heinroth: "No mundo orgnico no existe apenas o til, como tambm tudo aquilo que no suficiente intil para levar extino da espcie". A citada frase de Nicolai Hartmann no , portanto, muito correta nem mesmo se a referirmos, como o prprio filsofo, "apenas ao essencial e ao que relevante para a vida". Os enganos e as armadilhas sem sada a que os fenmenos evolutivos foram atrados por aparentes vantagens momentneas podem ser qualquer coisa menos irrelevantes para a evoluo subseqente do filo em questo. Uma discusso detalhada se encontra nos primeiros captulos do meu livro A Outra Face do Espelho (Die Rckseite des Spiegels). O "sentido utilitrio" da construo do corpo, bem como do comportamento de qualquer ser vivo, tem por objetivo, exclusiva e

comprovadamente, a gerao de uma descendncia to numerosa quanto possvel, ou seja, a sobrevivncia da espcie e nada mais que isso. A pergunta "para que" o gato tem garras aguadas e recurvas, bem como a resposta "para pegar ratos", constituem uma forma taquigrfica da pergunta sobre quais seriam os esforos mantenedores da espcie cuja presso seletiva teria feito com que os gatos fossem providos deste tipo de garras em particular. Ns denominamos esta pergunta, relativa

ao sentido utilitrio mantenedor da espcie, de "questo teleonmica", em oposio "questo teleolgica", pela qual se busca um sentido existencial.

Exemplo: um fenmeno intilEm seu ensaio O No-Funcional na Natureza (Das Unzweckmassige in der Natur), Gustav Kramer apresenta muitos exemplos desse fenmeno de construes sem aparente "sentido utilitrio" , dos quais aqui reproduziremos apenas um: em curso da passagem da vida aqutica para a terrestre, a be xiga de flutuao dos peixes se transformou no rgo respiratrio. Nos peixes, e at mesmo nos ciclstomos (por exemplo, lampreias), o aparelho circulatrio apresenta as brnquias imediatamente subseqentes ao corao, o que implica que todo o sangue bombeado pelo corao tem que atravessar obrigatoriamente o rgo respiratrio para ento passar, j oxigenado, imediatamente e sem mistura com sangue pobre, ao sistema circulatrio corporal. De vez que a bexiga de flutuao um rgo abastecido de oxignio pelo sistema de circulao corporal (mesmo no estgio em que j se tornou o rgo respiratrio nico do animal), o sangue dela efluente retorna ao sistema circulatrio corporal, pelo qual, por conseguinte, passa sangue misto, ou seja, em parte constitudo de sangue rico em oxignio, provindo do rgo respiratrio, e em parte sangue pobre, j desoxigenado, j usado pelo corpo. Esta soluo, altamente insatisfatria do ponto de vista tcnico, se mantm ainda hoje em todos os anfbios e na maioria dos rpteis. Todos esses animais e isso raramente enfatizado num contexto global se cansam com extrema facilidade. Uma r, que no haja conseguido alcanar uma boa cobertura com uns poucos saltos, pode ser facilmente apreendida; o mesmo pode ser dito dos mais rpidos, dos mais ariscos lagartos. No h anfbio nem rptil cuja capacidade de esforo muscular continuado possa comparar-se de tubares, peixes com esqueletos sseos ou aves. Entre os rpteis, apenas os crocodilos apresentam uma parede divisria completa no corao, separando assim o lado direito do corao do esquerdo e, portanto, a circulao pulmonar da sistmica. Mas os crocodilos descendem de uma linhagem de rpteis que provavelmente se locomoviam sobre duas pernas, tendo grande facilidade de locomoo e apresentando alguns pontos de contato com as formas ancestrais das aves. Exceto no caso dos crocodilos, somente os mamferos e as aves apresentam a circulao pulmonar totalmente separada da sistmica, irrigadas em seqncia pelo sangue; as veias pulmonares conduzem o sangue

recm-aerado, puramente arterial, ao lado esquerdo do corao, que ento o bombeia atravs do sistema circulatrio corporal, enquanto o lado direito do corao recebe o sangue puramente venoso do sistema circulatrio corporal e o bombeia aos pulmes. Houve, portanto, um lapso bastante longo, desde o surgimento dos primeiros vertebrados terrestres at os mais evoludos rpteis e aves, antes que a "construo provisria", pela qual a circulao pulmonar vinha sendo "rebocada" pela circulao corporal, fosse substituda por uma soluo cuja eficincia atingisse novamente o grau de eficincia da circulao dos peixes, anteriormente abandonada juntamente com a respirao branquial.

Alteraes funcionaisA questo de uma estrutura ou funo geneticamente programada ter ou no um "sentido utilitrio" somente pode ser colocada, como evidente, em relao a condies ambientais muito bem definidas. Pequenas alteraes no ambiente em que vive um organismo podem facilmente tornar inadequados alguns "dispositivos" orgnicos que, ainda havia pouco, eram de suma importncia para a preservao da espcie. Porm, tambm aquelas modificaes primariamente decorrentes de uma ao do prprio organismo, por exemplo, a conquista de um novo nicho ecolgico, podem alterar muitas propriedades estruturais ou funcionais, de efeito at ento preservador da espcie," tornando-as indiferentes ou mesmo prejudiciais. Para sorte do pesquisador da filogentica, as "adequaes de ontem" procedidas por uma espcie ainda so mantidas de modo bem conservador durante muitas geraes. A "baguna" das estruturas postas fora de uso mais tarde reutilizada freqentemente, de forma tal que o seu "sentido" original fica totalmente alienado das novas estruturas ou funes: a este fenmeno costumamos denominar "alterao funcional" (Funktionswechsel, functional change). O aproveitamento de possibilidades oferecidas por "estruturas de antanho" marginalizadas pelo desuso se nos apresenta muitas vezes como absolutamente genial. Um belo exemplo a "reforma" do primeiro orifcio branquial dos peixes primitivos, transformando-o nas vias auditivas externas de sapos e rs, rpteis, aves e mamferos. Quando os nossos ancestrais passaram da vida aqutica vida terrestre, da respirao branquial pulmonar, os orifcios branquiais, pelos quais at ento passara a gua necessria respirao, perderam a sua funo. As partes do esqueleto que sustentavam os arcos branquiais foram parcialmente reaproveitadas

na formao do osso hiide e da laringe, mas os orifcios branquiais se fecharam e desapareceram com exceo de um, o mais anterior: este primeiro orifcio branquial, o chamado espirculo (que em algumas arraias e em vrios tubares funciona como orifcio para inspirao), se encontrava numa regio muito prxima ao labirinto, o rgo responsvel pela percepo das sensaes de peso e de acelerao. Nada mais "vivel" (literalmente) do que o estabelecimento de uma ligao entre o antigo canal condutor da gua de respirao e este dispositivo j por si s sensvel a vibraes, enchendo-o agora de ar e transformando-o, juntamente com aquele canal, em condutor de ondas sonoras ou "canal auditivo". Um segundo exemplo, ainda mais admirvel, de alterao funcional igualmente ligado origem do ouvido. A articulao mandibular dos peixes, batrquios, aves e rptis formada por dois ossos: um o os quadratum, cuja ligao com o esqueleto craniano bastante rgida, e o outro o os articulare, que constitui a parte mais posterior do maxilar inferior. Quando os rpteis se transformaram em mamferos, o os articulare se soltou do maxilar e o os quadratum da base do crnio; o primeiro se ligou ao tmpano, o ltimo ao ouvido interior, e ambos se tornaram rgos transmissores de ondas sonoras, os chamados "ossculos auditivos". Simultaneamente, desenvolveu-se na parte anterior uma nova articulao mandibular. Nessa simultaneidade reside um problema mecnico muito difcil, pois que duas articulaes encaixadas nos mesmos elementos de esqueleto e adjacentes se bloqueiam mutuamente. De certa forma, a ocorrncia de alteraes funcionais mascara a freqncia com que os rgos perdem a sua utilidade original, porque via de regra uma estrutura que no mais utilizada em suas funes originais ser ento reaproveitada para algum outro fim, mais ou menos como se costuma reaproveitar uma velha pea de vesturio para dela fazer um pano de prato ou um espanador. At mesmo o apndice humano serve de base a tecidos linfticos (isto sem detalhar as "funes de quinta-coluna", s quais costumava referir-se meu pai, que consistem na valiosa contribuio dos apndices alimentao dos cirurgies). simplesmente inacreditvel quanta coisa pode surgir de rgos fora de uso. De um orifcio branquial surge um ouvido, de uma articulao mandibular surgem os ossculos auditivos, do olho pineal de antigos vertebrados surge a glndula pineal, uma glndula de secreo interna, e do endstilo, um aparelho de filtragem recoberto de clios que os primeiros vertebrados j tinham, surge a tireide isto para citar apenas uns poucos exemplos.

Vez por outra se tem a impresso bem antropomorfa de que a natureza atribui uma funo qualquer a um rgo que se tornou intil, funo essa que do ponto de vista global do organismo realmente dispensvel, como se fosse dado um "cabide-de-emprego" qualquer, a titulo de esmola, a um funcionrio que j se tornou intil ou senil. claro que, de fato, a situao um tanto diferente: a existncia de um tecido em desuso, ou mesmo a existncia de um espao anteriormente ocupado pelo rgo que perdeu suas funes, oferece uma "vantagem barata" escolha da filognese, para reutilizar aquele tecido ou aquele espao para novas funes, sendo que para essas novas funes, caso houvessem sido previstas, seria utilizado outro novo rgo especificamente projetado para realiz-las. A filognese no tem, contudo, a capacidade de previso; nem pode o organismo interromper

temporariamente suas funes vitais durante o tempo necessrio reforma e levantar um tapume com os dizeres "Fechado para Reparos". Esses processos, bem tpicos de toda a filogentica, tm por conseqncia que um organismo vivo no pode jamais ser equiparado construo de um prdio concebido e planejado pelo intelecto humano, para a qual, por isso mesmo, todos os componentes necessrios j foram especificamente projetados de antemo para satisfazer os seus objetivos. O organismo vivo mais se parece moradia de um pioneiro, que antes, para ter no mais que um abrigo das intempries, construiu um simples barraco, e depois, medida que cresciam sua famlia e seu bem-estar material, construiu outra casa maior e melhor, mantendo porm aquele barrswo e utilizando-o agora como celeiro, ou estbulo, ou para outra finalidade qualquer. O filogeneticista pode proceder como um historiador da arte, cujo estudo de alguma antiga catedral lhe permitir analisar as etapas de sua construo e a sua histria. Mas muito raro um historiador constatar que os objetivos do processo de edificao hajam sido to profundamente modificados no decorrer da construo, quanto se modificam os objetivos investigados pelo filogeneticista a cada passo de suas pesquisas.

Os ziguezagues da filognesePode acontecer em empreendimentos humanos, humanamente planejados, que eventos sbitos e imprevistos, por vezes imprevisveis, obriguem utilizao de estruturas j construdas para finalidades totalmente diversas daquelas a que, segundo os planos originais, se destinavam. Castelos j foram transformados em

escolas bem como em lares para velhos, navios j foram transformados em quartis ou em hotis. Na filognese, por outro lado, encontram-se mudanas de curso incomparavelmente mais bruscas e a partir de direes que j vinham sendo seguidas durante longos intervalos de tempo contnuos. Tais mudanas de curso so s vezes explicveis por "invenes" ou "descobertas" novas, que ocorreram em determinado espao vital e capacitaram os animais correspondentes a ocuparem outros, novos nichos ecolgicos. Uma dessas "invenes" interessantes a bexiga de flutuao dos peixes. Originalmente sua funo primria era a de rgo respiratrio, e ela provavelmente surgiu e se desenvolveu em regies pantanosas, ou seja, em guas doces de teores de oxignio baixos e variveis. A bexiga de flutuao se constituiu na condio indispensvel para a conquista de espaos terrestres pelos ancestrais dos dipnicos e dos rpteis; ao mesmo tempo, porm, sendo um rgo hidrosttico, tornou possvel a "construo" de um esqueleto interno rgido (sseo), cujo peso seria literalmente insustentvel se no fosse hidrostaticamente equilibrado pelo empuxo sobre a bexiga de flutuao. Para que se compreendam as razes do vastssimo predomnio de peixes com esqueletos sseos sobre os peixes com esqueletos cartilaginosos (como os tubares) nas populaes dos mares, necessrio ter-se tido em mos um pequeno cao e um peixe de esqueleto sseo de dimenses comparveis, a fim de avaliar a incrvel superioridade das foras corporais que o peixe de esqueleto sseo tem, em virtude dos efeitos de alavanca que s so possveis com o esqueleto de ossos rgidos. Uma das mais notveis e radicais mudanas de curso de que temos conhecimento na histria dos animais superiores o retorno de rpteis e mamferos terrestres, quadrpedes, aos oceanos. No me refiro aqui origem de quadrpedes habitantes das guas, como, por exemplo, tartarugas, crocodilos e lees-marinhos, que mantiveram a forma geral dos quadrpedes; refiro-me antes queles animais cuja forma corporal e cuja mecnica de locomoo se tornaram novamente idnticas s dos peixes: os ictiossauros, entre os rpteis, e as baleias, entre os mamferos. A antiga palavra walfisch 2 uma prova de que durante muito tempo esses animais foram considerados peixes.

2

Walfisch: baleia, em alemo. (N. T.)

Precisamos relembrar quantos passos filogenticos foram necessrios para fazer com que vertebrados aquticos se transformassem em terrestres, quo longo o caminho que leva do peixe ao mamfero, para dar o devido valor e pasmar diante do "empreendimento" de transformar um mamfero novamente em "peixe". Comparando com os processos humanos de definio de objetivos, isso eqivaleria ao procedimento de um mecnico que comea a construir um automvel e, quando este j est quase ou totalmente pronto, o transforma numa lancha a motor. Obviamente, foi mais fcil para os rpteis do que para os mamferos atingir novamente a forma corporal e a mecnica de locomoo semelhantes s dos peixes. A maioria dos rpteis tinha, como ainda hoje tem, colunas vertebrais longas e lateralmente flexveis, que apresentam um movimento sinuoso tambm quando os animais se locomovem em terra seca, e todos esses rpteis "nadam como peixes" quando lanados gua. Para que se completasse totalmente a adaptao a este modo pisciforme de locomoo restava apenas que se formasse uma superfcie vertical (sobretudo uma nadadeira-leme nas partes motrizes da cauda), bem como que o corpo adquirisse uma forma mais aerodinmica a fim de reduzir o atrito inerente ao movimento. Quando os peixes "inventaram" a nadadeira caudal, mui tos milhes de anos antes, a maioria deles desenvolveu esta nadadeira na face ventral da regio terminal da cauda, que por isso mesmo passou a apresentar uma leve inclinao para cima. A morfognese da nadadeira caudal de todos os peixes sseos e as formas adultas da nadadeira caudal de tubares e de esturjes ainda hoje tm esta construo. J os ictiossauros "optaram" pelo procedimento inverso, o que facilmente compreensvel vista dos rpteis atuais que esto adaptados para nadar: nestes, a superfcie vertical que constitui o leme obtida pelo prolongamento para cima de barbatanas, escamas dorsais altas, etc., enquanto a sua superfcie ventral que permanece em contato com o cho quando o animal se arrasta em terra seca continua chata. Este o motivo provvel por que a nadadeira caudal dos ictiossauros lhes cresceu na face dorsal da extremidade da cauda. O retorno dos mamferos forma dos peixes se deu por um caminho muito mais longo: sua coluna vertebral havia se tornado mais curta, sua cauda se tornara mais fina e havia perdido quase toda a sua musculatura. Quando se locomovem, j no mais existe o movimento ventral sinuoso, do qual apenas permanece um resqucio na coordenao dos movimentos dos membros a passo e no trote: nestas duas formas de locomoo se adiantam simultaneamente a perna traseira de um lado do corpo e a

perna dianteira do outro, o que resultante daqueles movimentos ventrais sinuosos dos nossos ancestrais primordiais. Quando os mamferos nadam e quase todos sabem nadar , a maioria "anda" a passo rpido tambm na gua, pelo que a correspondente coordenao dos movimentos no se distingue perceptivelmente da coordenao do passo ou do trote em terra firme. H apenas algumas excees, notadamente lontras e castores, j muito bem adaptados vida aqutica, que apenas remam mansamente com as patas traseiras quando se locomovem sem pressa para diante. Mas os mamferos ainda dispem de uma outra forma de coordenao motora, alm do passo e do trote, para se locomoverem: o "galope", que aparece em diversas variantes, desde a simples "alternao de pontos de apoio" (na qual se movimentam simultaneamente ambos os membros dianteiros e em seguida ambos os membros traseiros) at as formas muito complexas de locomoo dos animais providos de cascos; em todas as variantes, o galope serve quase invariavelmente ao deslocamento do animal to rapidamente quanto possvel. O "galope lento", geralmente conhecido pelo termo "saltitar", prprio das lebres e de seus parentes (Lagomorphae) e dos cangurus. O passo e o trote desses animais desapareceram, as lebres tambm usam os saltos com ambas as pernas para nadar, de sorte que na realidade deslizam s arrancadas pela gua, e ao que parece at hoje cangurus ainda no foram vistos nadando. Quanto mais curtas forem as extremidades de um mamfero, tanto mais o seu trote ceder ao galope, isto , tanto mais baixas sero as velocidades de locomoo s quais ele deixar de trotar e passar a galopar. Conforme pode ser observado na bela fotografia de um cachorro a galope, nesta forma de locomoo importante o movimento do ventre, a saber, o modo como o ventre se verga e se estica no plano sagital; a grande vantagem do galope reside no fato de que a musculatura ventral, cuja utilizao tanto a passo como no trote quase nula, passa a ser diretamente til locomoo. A coluna vertebral dos mamferos adequada para essas diversas formas de locomoo apresenta, pois, maior mobilidade no plano vertical do que no horizontal, e a musculatura necessria a tais formas de locomoo mais fortemente desenvolvida no sentido de fornecer esses movimentos sagitais do que para movimentos laterais. Quando um mamfero se torna novamente aqutico e

redesenvolve a movimentao sinuosa to apropriada locomoo nesse meio, bem mais simples proceder ondulao no plano vertical do que no horizontal. Em outras palavras: a "natao ondulatria" dos mamferos aquticos provavelmente oriunda do galope. Assim sendo, as superfcies motrizes, que precisam oferecer resistncia gua e por isso so necessariamente normais ao plano de locomoo, se desenvolveram no plano horizontal: a cauda mais alargada de algumas lontras, a cauda chata e em forma de p de remo dos castores e as barbatanas caudais das baleias bem como dos manatis (peixes-boi) conformam superfcies horizontais. Tambm os lees-marinhos (Otariidae) "nadam a galope", mas no as focas: estas executam movimentos laterais, sinuosos, com as patas traseiras e com a cauda; as superfcies de suas patas-remos se encontram no plano vertical. Toda uma gama de famlias de mamferos retornou gua. As fuinhas, entre os carnvoros, parecem particularmente bem-dotadas para a vida aqutica, por terem os membros curtos e largos e pela mobilidade de sua espinha dorsal. Assim, entre ele s se encontram todas as formas intermedirias imaginveis, desde as martas (bastante prximas s doninhas), excelentes mergulhadoras, passando pelas lontras fluviais e pelas lontras marinhas, at a lontra gigante da Amrica do Sul, que de tal maneira se parece com as verdadeiras morsas que quase indubitvel serem estas tambm descendentes de musteldeos readaptados vida aqutica. Contra essa suposio temos que lembrar, porm, que morsas e focas nadam de modos diferentes entre si, o que a meu ver leva obrigatoriamente a postularmos hipteses separadas para as origens dessas duas espcies. Em ambas a cauda reduzida a um mero toco, ao passo que nas lontras se alarga guisa de nadadeira (o que essencial para o "nado a galope"); em ambas so as patas traseiras que funcionam como "nadadeira caudal"; porm, como j foi dito, no caso dos lees-marinhos estas se acham num plano horizontal, e no caso das focas num plano vertical. Otariidae e phocidae provavelmente surgiram independentemente uns dos outros. No caso dos peixes-boi (Sirenia) e das baleias (Cetacea), os membros traseiros desapareceram totalmente, sendo que a locomoo efetuada por meio de uma nadadeira caudal constituda por tecidos drmicos e conjuntivos e "sobreposta" ao corpo um rgo totalmente novo para os mamferos, surgido expressamente para a adaptao vida aqutica. As morsas descendem de mamferos que eram parentes prximos dos elefantes e dos hiracideos. Algum tempo atrs tambm se procurou a origem das baleias nesta mesma linhagem; mais recentemente, a tendncia da

anatomia comparada identificar os ancestrais das baleias entre os carnvoros, principalmente entre alguns musteldeos primitivos. Esta suposio confirmada pelo fato de que as baleias so carnvoras ao contrrio das morsas, estritamente vegetarianas quase sem exceo; apenas alguns botos, de vida fluvial, tambm se alimentam de plantas. Se levarmos em conta as evidentes desvantagens presentes na construo de um ser vivo, que j se havia tornado uni animal terrestre de sangue quente e respirando o ar, e que agora dever voltar a ser um animal aqutico, pasmaremos diante do fato de que tudo isso valha a pena para a natureza. Podemos considerar cada espcie animal ou vegetal como um "empreendimento" autnomo e auto-suficiente. Entre as baleias, assduas freqentadoras das regies polares, at mesmo o aquecimento do prprio corpo consome vastas quantidades de energia, ainda que a espessa camada gordurosa que o recobre seja um excelente isolante trmico, alm de ter as duas funes de auxiliar a flutuao, como rgo hidrosttico, e de facilitar a locomoo, deixando mais hidrodinmica a superfcie do "casco" do animal. Em compensao, por funcionar como isolante trmico, essa camada gordurosa perde a funo de reserva energtica, visto que no pode ser nem parcialmente consumida. A alimentao das baleias tambm no um assunto to simples por causa de um segundo problema: as suas presas precisam suprir no somente as suas necessidades de energia como tambm as suas necessidades de gua. Sabemos que se golfinhos mantidos em cativeiro recusam alimentar-se, qualquer que seja o motivo, morrem muito mais rapidamente de sede (ou seja, da desidratao) do que de fome. Outra dificuldade dos cetceos reside na necessidade de virem tona para respirar; esta dificuldade foi parcialmente resolvida por alguns mecanismos de adaptao altamente interessantes, mas nunca totalmente eliminada. bem verdade que as baleias podem manter presa a respirao por longos perodos de tempo; afogam-se porm com extraordinria facilidade quando se tenta captur-las por meio de redes fato que tristemente conhecido pelos caadores e tratadores dos modernos grandes oceanrios. Tambm o parto causa grandes dificuldades aos cetceos, os nicos mamferos que jamais vo terra e por isso obviamente tambm tm que parir dentro d'gua. O perigo evidente de que o neonato venha a afogar-se evitado, no caso das baleias, por procedimentos instintivos altamente interessantes: uma outra fmea, amiga (e muito freqentemente filha adulta) da parturiente, j se apresta durante o

nascimento para receber o filhote e, assim que este aparecer, lev-lo superfcie para a primeira respirao. Para tanto, ela equilibra o beb sobre sua cabea, e isso mantendo-o j na posio correta para elevar o seu orifcio respiratrio (o "espirculo") acima da superfcie. Tendo em vista os muitos mecanismos auxiliares, estruturais bem como comportamentais, de que se vale a natureza para contornar as dificuldades e para resolver os problemas decorrentes da "reconstruo" de um mamfero terrestre para adapt-lo vida aqutica, no podemos deixar de admirar a "genialidade" das medidas e "invenes adicionais" to bem planejadas e executadas; por outro lado, tampouco podemos deixar de pasmar pelo fato de que uma mudana de orientao da adaptao, to radical e ao mesmo tempo de conseqncias to profundas, "vale a pena", ou seja pelo fato de que um mamfero aqutico pode manter-se na concorrncia com os "profissionais" da vida aqutica, que so os peixes.

Os becos sem sada da evoluoOs caminhos da evoluo so claramente determinados pelo acaso, que, num determinado meio que ocorre momentaneamente, d a uma igualmente determinada mutao a recompensa de uma vantagem na seleo natural. Acabamos de ver, no item anterior, quo freqentemente ocorrem alteraes na orientao desses caminhos; e esses caminhos deixam os seus rastros nas anteriormente discutidas "adaptaes de ontem" (p. 29) que, permanecendo nas estruturas dos seres vivo s, permitem ao pesquisador da filogentica reconstru-los. O prprio genoma contm os resultados de uma infinidade de mutaes e de processos seletivos; todavia no contm "registro" algum sobre a seqncia em que ocorreram tais eventos. Sendo cada mutao casual e aleatria, teramos que usar nmeros astronmicos para exprimir a improbabilidade de que alguma vez a evoluo retornasse precisamente pelo mesmo caminho que percorreu na vinda. Este fato, que para ns se tornou evidente em virtude dos atuais conhecimentos genticos e filogenticos, j foi descoberto muitos anos atrs pelo paleontlogo belga Louis Dollo a partir de suas investigaes em filogentica comparada, que o levaram a postular a "Lei da Irreversibilidade da Adaptao". Quanto mais especializada a adaptao em outras palavras, quanto mais longo e emaranhado houver sido o caminho dos processos mutativos e seletivos que levou a espcie ao seu estgio atual , tanto maior a improbabilidade de que essa

adaptao seja "revogada". Se ocorrer alguma presso seletiva que torne vantajosa tal "revogao", a evoluo praticamente sempre percorrer no "retorno" um caminho diferente daquele pelo qual "veio". Quando ocorre, por exemplo, que uma ordem de peixes, adaptando-se vida no fundo do mar, deixou regredir e desaparecer o seu rgo hidrosttico (a "bexiga de flutuao") e por conseguinte tornou-se mais pesado do que a gua, perdendo a capacidade de flutuar, e que essa ordem, mais tarde e por quaisquer motivos, gera novas formas que nadam livremente, ento a natureza no ir retirar do sto a antiga bolha de ar que de resto j voltou a ser muito rudimentar, mas inventar um novo aparelho de flutuao, conformado em superfcies de sustentao geralmente constitudas de nadadeiras peitorais, como ocorre com os "peixes-voadores" (Triglidae, Dactylopteridae), durante muito tempo erroneamente considerados efetivamente capazes de voar, pela condio de planeio que lhes fornecida pelas nadadeiras peitorais. Outro exemplo do processo em questo, ainda mais bonito do que o que acabamos de ver, dado por O. Abel em seu Curso de Paleozoologia (Lehrbuch der Palozoologie, Jena, 1920). O pesado casco das tartarugas surgiu, nas formas terrestres, do alargamento das costelas por extenses espinhosas das vrtebras, fundindo-se as costelas e vrtebras finalmente num casco nico, fechado e contnuo. Provalmente passando por pntanos de gua doce, a ordem conquistou o mar aberto, e o pesado casco dos ancestrais terrestres foi tornado mais leve por lacunas (fontanelas), que progrediram dos bordos do casco dorsal para a coluna vertebral, enquanto, simultaneamente, tambm o casco ventral regredia. Apareceram destarte formas de alto-mar, cujo casco leve e (por causa da aerodinmica) de pequena curvatura. Deste tipo de tartarugas altamente especializadas para a vida em alto-mar, algumas ramificaes retornaram, l pelo eoceno ou pelo oligoceno, a regies costeiras, onde vantajoso ter o casco forte e resistente. Nesses animais se formou, sobrepondo-se aos resqucios do antigo casco sseo, um novo casco, composto de pequenas plaquetas irregularmente poligonais, guisa de um mosaico. Os descendentes dessas tartarugas, originariamente habitantes do alto-mar mas j agora vivendo nas regies costeiras (como o Psephophorus, que aparece do eoceno at o plioceno), novamente voltam ento ao alto-mar, repetindo-se nesses descendentes a reduo do casco. Somente assim podemos explicar, com base em formas fsseis, o fato, de qualquer outro modo inexplicvel, de que as atuais tartarugas de alto-mar

sejam dotadas de dois cascos, um sobreposto ao outro, ambos regressivos, e nenhum dos dois funcional. De certa forma, a longo prazo uma alta especializao sempre perigosa para a espcie. No s extremamente improvvel que ela encontre o "caminho de volta"; medida que aumenta a especializao tambm decresce a probabilidade de ser encontrado qualquer outro novo caminho, no caso de o caminho j percorrido desembocar num beco sem sada. As diversas possibilidades de utilizao de qualquer estrutura, inclusive de ferramentas feitas pelo homem, decrescem com a sua especializao. Quanto mais longe houver chegado uma adaptao especializada, tanto menos suportar alteraes do ambiente a que se adaptou. Andorinhas e apoddeos (Apus spp.) esto admiravelmente bem adaptados para a captura de insetos; as espcies dessas famlias se distribuem de maneira muito bem-sucedida e em grande nmero pelas zonas temperadas do hemisfrio norte. Nenhuma outra espcie de aves nos apresenta catstrofes to devastadoras como as que acometem essas famlias quando porventura o mau tempo do outono chega cedo e interrompe o vo livre dos insetos antes que os pssaros tenham iniciado sua migrao. A adaptao filogentica especializada pode ser comparada a um

empreendimento industrial e comercial que investe grandes quantias de capital no projeto e fabricao de um novo produto, antes de saber por quanto tempo a "conjuntura de mercado" permanecer favorvel venda desse produto. Quanto mais especializado for o maquinrio da fbrica, tanto mais dificilmente poder ser utilizado para a fabricao de outros produtos quando aquela "conjuntura" se esgotar. O que pode levar as espcies, assim como as empresas humanas, s mais abstrusas adaptaes especializadas a perspectiva de grandes lucros imediatos. Em meu livro A Outra Face do Espelho (Die Rckseite des Spiegels, 1973) comentei os efeitos retroativos positivos da aquisio de capital e de informaes, aos quais a Filognese, segue, "optando" por um outro caminho, sem qualquer previso compreensvel dos resultados ao passo que as empresas humanas freqentemente "optam" apesar dessa previso.

Os efeitos da concorrncia intra-especficaA seleo natural no prefere de modo algum as opes que, a longo prazo, seriam vantajosas para a espcie; sua preferncia recai indiscriminadamente sobre tudo aquilo que, momentnea e imediatamente, oferece os melhores sucessos de preservao, manuteno e expanso da espcie. Essa "falta de discernimento" vem tona de maneira particularmente clara nos casos em que tais sucessos no dependem das circunstncias extra-especficas do meio ambiente e sim da interao mtua de indivduos pertencentes mesma espcie. A concorrncia intra-especfica pode produzir estruturas bastante bizarras e que se opem aos reais interesses da espcie. Nos casos em que a escolha do parceiro sexual cabe fmea (como ocorre com muitas aves, que apresentam o chamamento coletivo para o acasalamento, e tambm com alguns mamferos superiores), desenvolvem-se nos machos rgos de ostentao, cujo aperfeioamento pela seleo se deve exclusivamente aos mecanismos de resposta e disparo inatos fmea. A concorrncia entre os machos fica ento restrita ao desenvolvimento da "tcnica de fazer a corte" mais efetiva. Isto se afigura particularmente insensato quando o desenvolvimento daqueles rgos de sinalizao exige, para que sejam efetivos, a utilizao ou "realocao" de estruturas que servem a alguma outra funo, a qual fica prejudicada por essa diferenciao, conforme ocorre, por exemplo, no caso do faiso argusiano. As asas do macho so amplamente prolongadas e decoradas com "olhos" como que pintados sobre elas, absolutamente lindos. Se bem que os gaios argusianos adultos ainda sejam capazes de voar, o seu vo perceptivelmente prejudicado pelo tamanho das asas. O desenvolvimento das asas precisa, pois, chegar a uma soluo de compromisso entre, de um lado, a necessidade de que o animal mantenha a sua capacidade de fugir de seus predadores e, do outro, as exigncias que o "gosto" da fmea lhe impe: se o pssaro voar mal demais, ser morto por algum carnvoro ainda no solo, antes de poder gerar filhotes; por outro lado, se as suas asas no forem suficientemente atraentes, a fmea preferir algum outro galo, e ele tambm morrer sem prognie. Outro exemplo de como uma espcie atrada a uma armadilha pela seleo intra-especfica, desta vez entre os mamferos, o dos veados. Nas espcies de grande porte, os machos so sempre providos de grandes galhadas, constitudas de substncia ssea. A cada ano, essas galhadas so eliminadas e crescem de novo: precisamos ter em vista quantas e quais desvantagens essa formao traz espcie. J so altssimos os custos de produzir anualmente uma "rvore" ssea pesando

vrios quilogramas. Enquanto ainda estiver crescendo, o novo corno recoberto por uma pelcula (o "veludo"), o que o torna extraordinariamente vulnervel; alm disso, nas espcies habitantes de floresta densa, as galhadas prejudicam bastante a movimentao do animal por melhor orientao que tenha o veado sobre as dimenses e posicionamento das extremidades de suas galhadas e por mais hbil que seja em manobr-las. Todavia, so todas estas desvantagens as selecionadas, porque as galhadas so utilizadas, durante as poucas semanas do cio, nas lutas entre machos rivais e porque, alm disso, as distintas senhoras exigem que as galhadas funcionem como um disparador tico. A. Bubenik comprovou que, mediante o uso de uma galhada artificial de dimenses exageradamente grandes, podemos atrair todo o harm para longe do mais forte campeo. A seleo recai, pois, sobre aquilo que, no momento e sob as condies predominantes, promete a gerao da maior prole possvel, e no sobre aquilo que a longo prazo seria til preservao da espcie, ou seja, no sobre o que tem sentido teleonmico. Entre as caractersticas estruturais e comportamentais selecionadas

unicamente em benefcio do genoma do indivduo, mas que no tm sentido algum para a preservao da espcie ou so at mesmo prejudiciais a ela, tambm se conta o infanticdio, j observado entre os langures (Semnopithecinae) e entre os lees. Em ambas as espcies cada macho possui um harm de vrias fmeas; toda vez que um pax destronado, todos os seus filhotes que ainda estejam vivendo com suas mes so mortos a dentadas pelo novo pax, o que constitui para este uma vantagem com relao reproduo, porquanto assim as mes entraro mais cedo em novo cio e podero ser conseqentemente cobertas tambm mais cedo. O que acontece prole pstuma do ex-proprietrio do harm ainda no sabemos. E de resto, alguns observadores so de opinio que o infanticdio, descrito por Y. Sugiyama entre os citados macacos, uma ocorrncia excepcional e patolgica, o que no de todo improvvel, dada a raridade do fato. As funes da seleo natural aqui discutidas, obviamente nocivas preservao das respectivas espcies, constituem no meu modo de entender um forte argumento a favor da hiptese de que o processo evolutivo no contm nenhum plano "embutido", que leve ao desenvolvimento em direo ao maior aperfeioamento da

adaptao, e menos ainda que tenha por efeito uma tendncia "para cima" deste desenvolvimento. A adaptao a determinada ocorrncia pode ser equacionada com a aquisio de informaes sobre ela. A seleo intra-especfica fornece informaes apenas sobre as caractersticas do concorrente rival. A espcie no adquire "conhecimento" algum, atravs da seleo intra-especfica, sobre o mundo exterior; por conseguinte, com relao ao mundo exterior, a espcie entra com extraordinria facilidade numa das armadilhas da evoluo, que, como vimos, apresentam pouco ou nenhum sentido teleonmico.

Evoluo autodestrutiva ou "sacculinizao"Creio que nos pargrafos precedentes ficou suficientemente bem demonstrado que a partir de qualquer estgio atingido a evoluo pode prosseguir numa direo aleatria, atendendo cegamente s exigncias representadas por uma presso de seleo qualquer. Esclareamos que o conceito que acabamos de empregar, de um "direcionamento da evoluo", contm um julgamento de valores implcito, por ora no-refletido; este juzo de valores ser discutido na segunda parte do livro. Para o contexto presente, basta que cada um de ns entenda o que queremos dizer qua ndo falamos de um ser vivo "superior" ou "inferior". No presente pargrafo falaremos de uma direo evolutiva que parece levar a uma reduo dos valores. E praticamente impossvel encontrar-se um termo adequado e imediatamente compreensvel para este processo: os termos "involuo", "decadncia" e mesmo "degenerao" tm os seus significados, que no correspondem ao processo ora em questo. A expresso "evoluo demolidora" (Abbauende Evolution) seria talvez a mais apropriada, 3 pela analogia com o procedimento de serem retirados de um prdio aqueles elementos que caram em desuso; esta expresso, assim como "evoluo autodestrutiva", to especfica que procurei denominar o processo de "sacculinizao", a partir de um de seus exemplos mais impressionantes. Escolhi o termo "sacculinizao", unvoco porm carente de uma definio, baseando-me no exemplo de um ser vivo em que o processo de evoluo autodestrutiva se passa de maneira particularmente ntida e observvel. O

3

Ab-Bau: "des-construo". (N. T.)

caranguejo Sacculina carcini provavelmente um descendente da subclasse dos coppodes, ou talvez o seja dos cirrpedes. Como larva recm-sada do ovo, trata-se de um tpico nuplio, ou seja, um pequenino caranguejo de seis pernas, com as quais rema arisco pela gua, e dotado de um sistema nervoso central cuja programao lhe permite identificar e procurar um possvel hospedeiro, o siri praieiro (Carcinides maenas); encontrando o hospedeiro, com muita percia o caranguejinho se fixa bem na fresta entre a couraa capopeitoral e a couraa caudal, e a se enraza. Assim que esta etapa se completou, comeam a crescer pequenas cnulas desprovidas de qualquer estrutura a partir da extremidade anterior do caranguejinho, infiltrando-se pelo corpo do hospedeiro, perfurando-o assim como o micelo de um cogumelo perfura o solo que o alimenta. Olho, extremidades e sistema nervoso do parasita desaparecem por completo; crescendo sobre o hospedeiro, ele se transforma numa enorme glndula sexual, que atinge as dimenses de uma cereja em siris maiores. Ocorrncias anlogas podem ser observadas em muitos parasitas, mas tambm so freqentes em muitas espcies que, alm de no serem consideradas nocivas, se mostram indubitavelmente teis s outras espcies suas parceiras so os chamados simbiontes. Os simbiontes em que aparecem alguns fenmenos da evoluo autodestrutiva so, por exemplo, muitos dos nossos animais domsticos, que pouco a pouco foram perdendo todas aquelas adaptaes especializadas que haviam sido imprescindveis para que seus ancestrais pudessem sobreviver na selva. Quase todos os animais domsticos perderam boa parte da mobilidade de seus ancestrais selvagens; todos somente ganharam algo em relao quelas

caractersticas que so do interesse do homem e sobre as quais, consciente ou inconsciente, este exerceu presses de seleo. A esse processo denominamos habitualmente "domesticao". De acordo com nosso sentido esttico, atribumos valores negativos maioria dos fenmenos aparentes da domesticao; Julian Huxley falava da "vulgarizao". Com efeito, em comparao com os nossos animais domsticos a maioria dos respectivos ancestrais selvagens apresenta ntidos sinais de "nobreza" porm existem pelo menos duas excees muito significativas. Eu costumava, em aulas e conferncias, mostrar lado a lado as formas selvagem e domesticada dos diversos animais, e de repente mostrava um puro-sangue rabe e um cavalo selvagem da raa

Przewalski tambm lado a lado mas em posies "trocadas": ento at mesmo os conhecedores demoravam alguns segundos para compreender que o puro-sangue rabe a forma domesticada do cavalo de Przewalski. Ora, o que vale para os cavalos sob o ponto de vista esttico igualmente vlido para os ces sob o ponto de vista do comportamento social. Durante cerca de 14 mil anos o homem exerceu duras presses seletivas sobre uma forma selvagem que j de incio se apresentava socialmente bem organizada, presses essas orientadas sempre no sentido do desenvolvimento de caractersticas geralmente consideradas como virtudes

humanas: capacidade de amar, lealdade, coragem, valentia, obedincia. Realmente, no de se estranhar que, no decurso de tal lapso de tempo, surgissem seres que nos ultrapassam de longe em todas essas caractersticas. A evoluo que encontramos tanto nos parasitas como nos simbiontes pressupe sempre a parceria com uma outra forma de vida, a qual assume as funes que regridem em seu parasita ou parceiro. O siri praieiro acha sua alimentao, se abriga em lugar seguro e realiza inmeras outras funes, e o parasita "se confia" ao hospedeiro. Do mesmo modo, os animais domsticos dependem das funes realizadas pelo homem. A questo de maior importncia que se nos apresenta sabermos se uma espcie pode entrar em evoluo autodestrutiva sem que outra forma de vida hospedeiro ou simbionte execute vicariamente algumas de suas funes. Conhecemos um nico exemplo seguro da ocorrncia de fenmenos caractersticos da domesticao num animal selvagem, de vida livre e certamente no-parasitria: o urso-das-cavernas. Ao investigar esqueletos de ursos-das-cavernas na Gruta dos Drages (Drachenhohle), prxima a Mixnitz, na Estria, Wilhelm von Marinelli encontrou sinais unvocos de domesticao, tais como somente se conhecem, considerado todo o reino animal, entre os animais domsticos e mais particularmente no cachorro. O urso-das-cavernas foi o primeiro fssil de sua poca isto , a primeira espcie a extinguir-se e, em vida, o maior e mais valente de todos os animais em seu espao vital; decerto no existiu carnvoro maior, que se alimentasse do urso-das-cavernas. Esta c a nica indicao de que tambm podem surgir sinais de uma evoluo demolidora sem que um hospedeiro ou um parceiro simbintico substitua as diferenciaes especficas perdidas. Esta questo de importncia vital para ns

homens, porque a nossa espcie j apresenta sinais corporais indiscutveis de domesticao, e porque a destruio de caractersticas e realizaes especificamente humanas conjura o aterrorizante espectro da desumanizao. Se avaliarmos as formas de adaptao dos parasitas pela quantidade de informaes "demolidas", chegamos a uma perda de informaes que corresponde inteiramente aos nossos sentimentos negativos em relao aos parasitas. O caranguejo Sacculina carcini, adulto, no dispe mais de informao alguma sobre o meio ambiente, exceto no que diz respeito ao seu hospedeiro.

A evoluo criativaA adaptao como processo cognitivoPelos resultados de Manfred Eigen sabemos hoje que o surgimento da vida no foi de modo algum uma ocorrncia to tremendamente improvvel como o supunham todos os bilogos e filsofos no-vitalistas at ento. Em seu livro A Estratgia da Gnese (Die Strategie der Genesis, 1976), Rudolf Riedl demonstrou de modo convincente que o acaso fica restrito de muitas maneiras: no s pelas vantagens que traz em alguns casos, como principalmente pela complexidade da interao recproca dos genes, que de modo algum agem independentemente uns dos outros (conforme se supunha). Estamos plenamente convencidos de que qualquer mutao, pela qual se aumentam as chances de sobrevivncia de um organismo, muito improvvel; a tal improbabilidade se contrape, todavia, o fato de que tal mutao, quando oferece ao organismo novas oportunidades de dominar o seu meio ambiente,

correspondentemente recompensada. Cada mutao, que abre novas possibilidades ao organismo de adequar-se ao meio ambiente, representa o fato de que novas informaes sobre esse meio ambiente foram efetivamente adquiridas pelo sistema orgnico, nem mais nem menos que isso. A adaptao um processo essencialmente cognitivo. Esta constatao nos ajuda a compreender que a seleo intra-especfica no tem efeito adaptativo algum: os dados cognitivos por ela fornecidos ao organismo no tm relao alguma com o meio ambiente; so relativos unicamente s caractersticas da prpria espcie. O material atacado pela seleo natural sempre constitudo pelas propriedades do fenotipo, propriedades essas decorrentes exclusivamente de recombinaes genticas aleatrias e, naturalmente, de modificaes igualmente aleatrias. formalmente correto afirmarmos que a evoluo procede segundo os princpios do acaso e da eliminao; essa afirmao parece, contudo, improvvel, porque os poucos bilhes de anos de existncia do nosso planeta seriam insuficientes para que ocorresse a gerao, dessa forma, dos seres vivos superiores e do homem a partir de seres pr-vivos parecidos aos vrus. No entanto sabemos, pelos resultados de Manfred Eigen, que os efeitos possivelmente provocados pelo acaso s o "domados", j pelas propriedades qumicas dos elementos e pela complexa interao

recproca entre os genes, que, conforme demonstrou Rupert Riedl, de modo algum entram em ao to independentemente uns dos outros quanto se pensava. Continuamos mantendo a opinio de que uma mutao qualquer, pela qual so melhoradas as oportunidades de sobrevivncia de uma espcie, altamente improvvel. A esta improbabilidade se contrape, todavia, o igualmente imenso aperfeioamento das oportunidades de sobrevivncia e reproduo da espcie, que se segue quela mutao bem-sucedida. O ganho dos conhecimentos adquiridos atravs da nova adaptao ainda traz consigo um "aumento de capital" com dividendos adicionais, a saber, atravs do aumento do nmero de descendentes sobreviventes. Aumentando o nmero de descendentes, aumenta tambm a probabilidade de que a um deles caber o prximo "tiro na mosca". Assim sendo, em todos os seres vivos existe uma correlao positiva entre aquisio de conhecimentos e acrscimo do seu capital. Alis, esse crculo de causas e efeitos pode ser inteiramente visualizado pela comparao com empresas industriais. Qualquer grande empresa do ramo qumico, por exemplo, investe regularmente uma boa parcela de seus lucros lquidos em seus laboratrios de pesquisa, fundamentando essa deciso na suposio, justificada pelos resultados, de que os conhecimentos obtidos atravs dessas pesquisas sero bem recompensados pelo acrscimo de capital. (A rigor, isso no nem uma comparao nem uma analogia, mas antes um caso especfico: empresas industriais tambm so sistemas vivos.) A "adaptao a" dado meio ambiente significa sempre, portanto, o estabelecimento de uma correlao que de certa maneira fornea unia imagem desse meio ambiente. Neste caso Donald McKay fala da informao representativa um conceito que de modo algum idntico ao dos tericos da informao. Uma srie ininterrupta de transies leva das mais simples adaptaes moleculares dos mais primordiais seres pr-vivos at sofisticada viso que o homem tem do mundo. No se pode, entretanto, equacionar esse progresso evolutivo com o processo que eu denominaria de "evoluo criativa". Eu apenas descrevi os abstrusos ziguezagues univocamente, da evoluo a to detalhadamente orgnica no porque contm eles um demonstram, direcionamento

que

evoluo

predeterminado e implcito. H um ponto em que o exemplo do delta fluvial, freqentemente citado, no corresponde ao desenrolar da evoluo: enquanto todos os cursos d'gua sempre se dirigem para vazante (por definio, buscando os nveis

mais baixos), pode ocorrer no curso da evoluo que alguns gneros se desenvolvam em sentido retrgrado. Dos vrus podemos dizer at mesmo que o seu surgimento fez com que a matria viva regredisse ao estgio de matria inanimada. Antes de mais nada, porm, precisamos ter bem clara a noo de que uma adaptao melhor e mais confivel de um ser vivo a seu meio ambiente no pode ser equacionada com o adiantamento do seu estgio evolutivo, representado pela diferenciao de suas caractersticas e pela extenso e complexidade do caminho percorrido. Qualquer paramcio est to bem adaptado ao seu meio ambiente quanto o homem est ao dele. Se compararmos as respectivas chances de sobrevivncia dessas duas espcies no futuro prximo da nossa Terra, as perspectivas para a forma de vida "inferior" at se mostram bem melhores do que as nossas. Para definirmos os "estgios superiores" no podemos ento utilizar a perfeio da adaptao, assim como tampouco podemos usar o grau de complexidade ou o grau de diferenciao e subordinao das partes ao todo. Na melhor das hipteses, poderamos medir o "adiantamento" de um estgio evolutivo pelo volume das informaes nele contidas.

O caminho para o "superior"O caminho que tomar o desenvolvimento de um sistema vivo depende de acasos internos e externos; citando Manfred Eigen, as ocorrncias da vida so "um jogo em que nada fixo, exceto as suas regras". Se bem que a evoluo no seja essencialmente direcionada para certos objetivos, um processo cognitivo. O fato de reconhecermos a ausncia de qualquer predeterminao no deve, entretanto, impedir-nos de reconhecer um outro fato: sem exceo alguma, os "mais adiantados" seres vivos de qualquer era terrena so animais "superiores" em relao aos das eras anteriores. Teramos que violentar as nossas escalas de valores "inatas" para duvidarmos de que os tubares devonianos foram superiores aos trilobitas cambrianos, os rpteis batrquios do carbonfero superiores aos tubares, ou os rpteis do mesozico superiores queles batrquios. A essa valorizao irracional se contrape, sem dvida, algo real em nosso mundo exterior atual, e este "