Konstantinos Kaváfis - Poemas - Nova Fronteira (1982)

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    COLEO POIESIS

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    Konstantinos Kavfis

    PoemasSeleo, estudo crtico, notas etraduo direta do grego por

    J o s P a u l o P a e s

    AEDITORANOVA

    FRONTEIRA

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    Direitos reservados desta edio pelaEDITORA NOVA FRONTEIRA S/A

    Rua Maria Anglica, 168 - Lagoa - CEP: 22.461 Tel.: 286-7822Endereo Telegrfico: NEOFRONT

    Rio d Janeiro - RJ

    CapaRetrato de dois irmos

    Arte romana, sculo II

    Reviso:S n i a S a b o y a

    P a u l o C o r i o l a n o

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Kavfis, Konstantinos.K32p Poemas / Konstantinos Kavfis; seleo, estudo crtico, notas e tradu

    o por Jos Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.(Coleo Poiesis).

    1. Kavfis, Konstantinos Poesia 2. Poesia grega ColetneaI. Paes, Jos Paulo, trad. II Ttulo III. Srie.

    82-0502CDD- 889.1CDU-877.4-1

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    SUMRIO

    Nota liminar, 9Notcia biogrfica, 13Lembra, corpo: uma tentativa de descrio crtica da

    poesia de Konstantinos Kavfis, 21

    POEMAS

    Antes de 1911

    Desejos, 95 Vozes, 96Prece, 97Um velho, 98 Crios, 99Termpilas, 100 A alma dos velhos, 101Interrupo, 102Troianos, 103

    Os passos, 104 Muros, 105 espera dos brbaros, 106O funeral de Sarpdon, 108Os cavalos de Aquiles, 110O rei Demtrio, 111 A. cidade, 112

    1911

    Idos de maro, 113O deus abandona Antnio, 114

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    Escultor de Tiana, 115Os perigos, 116A glria dos Ptolomeus. 117Itaca, 118

    1912

    Fileleno, 120Reinos alexandrinos, 121Na igreja, 123

    1913

    Coisa rara, 124Fui, 125

    1914

    Tumba de Euron, 126Candelabro, 127

    1915

    Tedoto, 128 entrada do caf, 129Jura, 130 Uma noite, 131A batalha de Magnsia, 132Manuel Comeno, 133

    1916

    Na rua, 134Quando surgirem, 135

    1917

    Tumba de Iasis, 136Passagem, 137Ao fim da tarde, 138

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    Para Amon, que morreu aos 29 anos, em 610, 139 Dias de 1903, 140 A vitrina da tabacaria, 141

    1918

    Cesario, 142 Lembra, corpo..., 144 O prazo de Nero, 145 A mesa ao lado, 146Compreenso, 147Diante da casa, 148

    1919

    Dos hebreus, 50 d.C., 149 Imenos, 150 O sol da tarde, 151

    1920

    Talvez morresse, 152Para que venham, 154

    1921

    O que eu trouxe Arte, 155 A origem, 156

    Melancolia de Jaso, filho de Cleandro, poeta em Comagena, 595 d.C., 157

    1922

    Num velho livro, 158

    1923Epitfio de Antoco, rei de Comagena, 159 Teatro de Sidon, 160

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    1924

    31 a.C. em Alexandria, 161

    1925

    Na Itlia, beira-mar, 162De vidro colorido, 163No 25. ano de sua vida, 164

    1926

    Num demo da sia Menor, 165Juliano e os antioquenses, 166Grande procisso de leigos e de padres, 167

    1927

    Dias de 1901, 168Dias de 1896, 169

    1928

    Um jovem artista da palavra 24 anos de idade, 170

    Prncipe da Lbia ocidental, 171

    1929

    Mris, Alexandria 340 d.C., 172Flores belas e brancas, como to bem convinha, 175

    1931

    Ano 200 a.C., 177

    Notas aos poemas, 179

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    NOTA LIMINAR

    Esta traduo brasileira de poemas de Konstantinos Kavfis no foi feita por nenhum emrito conhecedor do

    grego moderno e antigo. Estou muito longe de dominaro demtico, nada conheo do grego clssico, e jamaisme abalanaria a esta empresa se no tivesse podido contar, para orientar-me, com a verso francesa, de Margue-rite Yourcenar e Constantin Dimaras, e a italiana, deFilippo Maria Pontani, do corpus kavafiano. A elas recorri, no entanto, apenas quando se tratava de esclarecer

    o sentido de termos ou expresses que no pude compreender a contento com os dicionrios e gramticas deque disponho. No mais, preferi avir-me diretamente como texto grego, tal como reproduzido na edio bilngede Pontani, e algum mrito que possa ter a presente traduo dever-se- antes intuio do poeta, mnimo embora, que sou, do que competncia do lingista que

    nunca fui.Minha proposta de traduo afasta-se da de Margue-rite Yourcenar, a qual, alegando estar fora de moda, emFrana pelo menos, a traduo versificada, preferiutranspor Kavfis em prosa, com prejuzo de valores formais como mtrica, rima, estrofao, certas simetrias ejogos verbais, etc. No obstante, a mesma tradutora, em

    La couronne et Ia lyre, verteu poemas da Antologia Pala-tina, que raras vezes ostentam rima, em versos sistematicamente rimados. . . Preferi, no caso, seguir o alvitre dePontani, de respeitar o esquema rimtico e estrfico do

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    original; alm disso, procurei me aproximar, na medidado possvel, da mtrica de Kavfis, salvo em esperados brbaros e poucas instncias mais, onde tive de recorrer a metros mais curtos. Nalgumas ocasies, tentei achar

    equivalentes para as rimas de palavras homfonas ou quase homfonas do original grego, como em Muros e Acidade; todo o meu engenho e arte, porm, malograramem traduzir, numa s e mesma palavra, as trs acepesdiversas com que a voz grega kmi (em diferentes grafias) rima consigo prpria nos primeiros versos de 31a.C. em Alexandria.

    Os dados para a notcia biogrfica de Kavfis colhi-os todos no livro de Robert Liddell adiante citado. Quantoao estudo crtico que se segue a essa notcia, no nenhum trabalho de erudio, de resto s possvel a quemtivesse o acesso que no tive vasta bibliografia crtica,na maior parte em grego, acerca da poesia de Kavfise de suas fontes histricas. Minha tentativa de descrio

    crtica expresso tomada de emprstimo a ClaudeRoy e que uso como subttulo pela segunda vez constitui antes a ampliao de apontamentos pessoais feitosno curso de um longo convvio com a poesia de Kavfis,que se estende de 1964, quando o li pela primeira vez emfrancs, at os quatro ltimos anos, quando finalmentee a duras penas o pude ler em grego. O fato de a minha

    leitura coincidir em vrios pontos com as de Bowra,Sefris ou Yourcenar de se esperar, em se tratando domesmo poeta; na verdade, s fui ler esses ensaios crticosdepois de j praticamente redigido o meu estudo. Para asnotas de esclarecimento das aluses histricas e mitolgicas dos poemas, recorri basicamente s notas correspondentes de Yourcenar e Pontani, delas eliminando os

    dados meramente eruditivos. A fim de poupar ao leitorconsultas a dicionrios e enciclopdias, completei as informaes dos dois escoliastas com material complemen

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    tar colhido principalmente em The Greek Myths, de Ro-bert Graves, no Dicionrio da Mitologia Grega, de RuthGuimares, em Deuses e Heris da Antigidade Clssica,

    de Tassilo Orpheu Spalding, assim como em obras geraisde referncia, entre elas a Columbia Encyclopoeia e oLarousse du XX m e sicle.

    Por fim, quero deixar consignados meus agradecimentos a trs amigos gregos que me tm ajudado nodifcil aprendizado de sua lngua a prof^ PanagiotaAlexopoulos, o jornalista Petros Papathanasiades, o poe

    ta Yannis Kiournis e dedicar este trabalho memria de um companheiro das Mas literrias da juventude,morto injusta e prematuramente: o poeta Glauco Floresde S Brito.

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    NOTCIA BIOGRFICA

    Kavfis (prefiro a grafia transliterada, em vez da simplificao Cavafy adotada pelo herdeiro e primeiro edi

    tor do poeta) significa em turco sapateiro. A despeitoda acepo proletria desse sobrenome, a famlia Kavfis,que procedia, ao que parece, da regio fronteiria entrea Prsia e a Armnia, iria contar, a partir do sculo XVIII,alguns membros de destaque, entre eles um governadorde provncia e um arcebispo. O pai dc poeta chegou aser o mais rico e o mais influente comerciante de Ale

    xandria. Havia nascido na Macednia e, depois de tertrabalhado dez anos na Inglaterra, que lhe concedeu anacionalidade britnica, resolvera associar-se ao irmopara abrir sua prpria firma em Constantinopla, no mesmo ano (1849) em que se casou com Hariclea Photiades(donde o P. mediai do sobrenome do poeta), de umaimportante famlia de Quios. Com ela foi morar no Fanar,

    o velho , bairro grego de Constantinopla, volta do pa-triarcado ortodoxo, onde se criara, no sculo XVII, umanova aristocracia helnica, os fanariotas, na qual o imprio turco iria recrutar os governadores de suas provnciasdanubianas. Cinco anos depois, o casal mudou-se paraAlexandria, cidade onde a firma Kavfis Irmos abrirauma filial. Ali nasceu, a 29 de abril de 1863, Konstan

    tinos, o ltimo dos sete filhos sobreviventes do casal. Todos filhos homens, embora Hariclea tivesse tido uma menina, morta prematuramente. Ela sempre ansiara poroutra e, quando Konstantinos nasceu, tratou-o antes como

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    filha do que como filho, vestindo-lhe roupas de menina,deixando-lhe os cabelos crescer em cachos e dele fazendoo seu benjamim extravagncia materna em que osentusiastas das explicaes psicolgicas no deixaro dedescobrir a condicionante mais remota do homossexualis-mo do poeta.

    Hariclea era mulher de grande beleza e seu esposogostava de cerc-la de luxo, pelo que a casa dos Kavfisse tornou um dos centros da alta sociedade de Alexandria. Entretanto, a morte inesperada do marido em 1870deixou Hariclea em situao difcil; a maior parte da fortuna dele fora sada na manuteno do dispendioso tremde vida da famlia, pelo que ela decidiu mudar-se paraLiverpool (1872), onde dois de seus filhos estavam entotrabalhando e onde Konstantinos foi matriculado numaescola inglesa. Especulaes infelizes do filho mais velhocom o pouco que restara da fortuna paterna vieram agravar ainda mais as dificuldades econmicas de Hariclea,que regressou a Alexandria em 1874 para viver existncia bem diversa da vida faustosa que levava nos temposdo marido. Konstantinos passou a cursar uma escola decomrcio (1881); era o orgulho da me e dos irmospela inteligncia precoce que sempre demonstrava. Escrevia em jornais e entreteve a princpio a idia de tornar-se

    articulista poltico, mas acabou por ingressar numa repartio pblica, o Departamento de Irrigao, como funcionrio no-pago. S ao fim de trs anos dessa situaoalgo vexatria, mas muito comum no Egito da poca, foique passou a assalariado. Comeou recebendo 7 librasegpcias por ms e o que ganhava na repartio, somadoao que lhe rendiam trabalhos ocasionais de corretagem,

    dava para pagar as boas roupas que gostava de vestir eo criado pessoal que contratara para o atender. Apesarda modstia do salrio, o regime de meio perodo no Departamento de Irrigao deixava-lhe o tempo mnimo de

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    que precisava para o cultivo da sua poesia. Era um funcionrio escrupuloso, algo exigente com os subordinados

    (chegou a ser subdiretor), a quem tratava em termosestritamente profissionais. Mostrava-se sempre muito reservado quant sua vida privada e os colegas de trabalho o consideravam sovina; jamais contribua para assubscries de caridade que organizavam e tinha por hbito cortar em dois os seus cigarros, menos por razesde sade que de economia. Com os seus superiores ingle

    ses, revelava-se muito conversador; eles gostavam de ouvi-lo discorrer sobre assuntos histricos, de que era entusiasta. Kavfis tinha perfeito domnio do ingls, idiomaque usou nos seus primeiros versos e nas suas anotaesntimas; falava tambm impecavelmente o francs; quantoao grego, aprendera-o no lar, era a lngua do seu coraoe ele a falava como ningum, segundo o depoimento de

    um contemporneo: Talvez, pela primeira vez, um gregomoderno falava a nossa lngua com a arte e a graa dosconversadores da Antigidade.

    Nem por ser um escrupuloso burocrata tinha o poetaqualquer interesse por tal carreira. Enchia a mesa de pastas abertas para dar a impresso de que estava muito atarefado, o que cuidava tambm de pretextar quando aten

    dia o telefone; no entanto, seus funcionrios o surpreendiam s vezes com o olhar absorto perdido no espao, debruando-se de quando em quando sobre a mesa para rabiscar alguma coisa. No coisas relacionadas com o seu trabalho de burocrata, e sim com a sua arte de poeta, da qualse sentia um traidor por exercer atividade to distanciadadela. Entre as anotaes que deixou, h esta, significativa:Quantas vezes, no trabalho, me ocorre de sbito umabela idia, uma imagem rara ou versos inteiros prontos,e eu tenho de deix-los de lado, porque o servio nopode .ser adiado! Subseqentemente, quando volto para

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    casa e me recomponho e tento record-los, eles j se foram. E est certo que assim seja. como se a Arte medissesse: No sou nenhuma criada para que me enxotes

    quando eu me apresento nem para que me apresentequando me queiras. E se me renegas miservel traidor pela tua desprezvel bela casa, pelas tuas desprezveisboas roupas e pela tua desprezvel posio social, contenta-te ento com elas (mas como poders?), e, nas poucas vezes em que eu aparecer e estiveres pronto para rece-ber-me, posta-te diante da porta da tua casa minha espe

    ra, como o deverias fazer todos os dias.A referncia bela casa, s boas roupas e posiosocial mostra que, malgrado s vicissitudes financeirasde sua famlia, Kavfis no vivia assim to mal. Moravacom a me, a quem era muito afeioado e a quem acompanhava s recepes oferecidas pelo quediva, isto , ovice-rei do Egito, ou pela sociedade alexandrina, que con

    tinuava a ter os empobrecidos Kavfis na conta de gentebem. Jantava todas as noites com a Gorda (esse erao apelido familiar de Hariclea, enquanto o de Konstantinos era o Magro) e fazia-lhe companhia at a hora emque ela se retirava para o seu quarto, quando ento saapara visitar os amigos, ir tentar a sorte no cassino (eraum jogador cauteloso) ou ento procurar nalgum caf daRue d'Anastasi os belos e suspeitos efebos gregos de quetanto falou nos seus poemas amorosos e que levava paraum quarto alugado numa casa de rendez-vous da RueAttarine: anos mais tarde confessaria a um amigo: Nossaraa no produz belas mulheres, mas belos homens. Seuspendores homossexuais se exteriorizaram, ao que se sabe,por volta dos vinte anos, quando teve um caso com umprimo de Constantinopla. A vida secreta que era obrigado

    a viver por causa desses pendores subornava o criadopara desarrumar-lhe a cama quando no viesse dormirem casa. a fim de Hariclea nada perceber fazia-o

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    sofrer. Embora se dissesse, no seu dirio ntimo, estarliberto dos preconceitos contra semelhante tipo deamor, envergonhava-se da sordidez dos lugares onde o ia

    procurar e das bebedeiras a que se entregava para superar eventuais inibies e que, no dia seguinte, o punhamdoente e desgostoso de si. Alis, recorda-o Durrel no seuQuarteto, a prostituio era um dos mais florescentes comrcios de Alexandria; mulheres e homens dividiam entresi as caladas opostas do Boulevard Ramleh para oferecer seus favores amorosos aos fregueses.

    Em 1897, em companhia do irmo mais velho,Konstantinos fez uma viagem de frias Inglaterra e Frana e quatro anos aps, acompanhado de outro irmoe graas a um presente de 100 libras recebido de umamigo, visitou pela primeira vez a Grcia. A essa altura,j tinha escrito alguns de seus poemas mais caractersticos, como espera dos brbaros, Vozes, Prece e

    Muros, que publicara por conta prpria em folhas soltas para divulg-los entre amigos e escritores seus conhecidos. Comeara a escrever poesia por volta de 1882, masao fazer um balano de sua produo, posteriormente,escolheu o ano de 1911 como marco divisrio, considerando imaturos muitos dos poemas escritos antes dessadata. Como disse Saroyannis, Cavfy no nascera poeta;

    tornou-se poeta com o passar dos anos. Achou sua formafinal em 1911.Durante a estada na Grcia, onde se demorou ms

    e meio, travou ele conhecimento com Gregorios Xenopou-los, considerado o criador do teatro neo-helnico. O dramaturgo, que seria tambm o fundador do Nea Estia, omais importante peridico literrio de Atenas, registrou

    a impresso nele causada pelo poeta, com a sua pelemuito trigueira, de nativo do Egito, e a sua elegncia dealexandrino, no se esquecendo de anotar que, por trsdo elegante e polido comerciante poliglota, escondiam-se,

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    cuidadosamente, o filsofo e o poeta; retratos dessa poca no-lo mostram, de fato, como um dndi, de monculo,

    plastron, casaca e flor na botoeira, a lembrar um poucoMareei Proust. Antes de regressar a Alexandria, deixouum poema para ser publicado na revista ateniense Pana-thenea; anteriormente, Hespera, jornal de lngua gregaeditado em Leipzig, havia-lhe publicado trs outrospoemas.

    Em 1903, na mesma Panathenea, Xenopoulos manifestou, num artigo, sua admirao pela arte de Kavfis,transcrevendo-lhe vrios poemas para conhecimento dosleitores. No ano seguinte, em Alexandria, o poeta editanum panfleto sua primeira coleo de 13 poemas, qualse seguiria outra, em 1910, de 21. J ento, a despeitoda limitada divulgao de sua obra, era considerado umdos pontos focais da vida intelectual grega em Alexandria, onde circulavam duas revistas literrias em grego,

    Nea Zo e Grmmata.Desde 1907, Kavfis, que havia perdido a me em

    1899, passara a morar praticamente s no n. 10 da RueLipsius, o qual se tornou uma espcie de lugar de peregrinao dos jovens escritores de Alexandria. Ocupava osegundo andar de uma casa cujo pavimento trreo alojava um prostbulo, o que o levava a dizer, em tom de

    mofa: Eu*sou o esprito; abaixo de mim est a carne.A essa casa ficou indelevelmente associada a figura deKavfis nos seus ltimos anos de vida, a figura do velhopoeta de Alexandria popularizada por Durrell no seuroman-fleuve. Os visitantes da Rue Lipsius o recordamsentado na penumbra no gostava de luz eltrica, preferindo-lhe a luz das velas ou de um candeeiro a gaso

    lina , a fumar uma longa piteira. Ou ento, metidonuma velha capa de chuva, a perambular pelos cafs conversando com toda a sorte de pessoas para amenizar umpouco a sua solido, um cavalheiro grego, de chapu de

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    palha, estacionado num ligeiro ngulo de afastamento emrelao ao universo, tal como o descreveu o romancista

    ingls E. M. Forster, o primeiro a lhe tornar o nomeconhecido na Europa. Ungaretti e Marinetti tambm oiriam conhecer pessoalmente em Alexandria, temposdepois.

    Kavfis era muito cioso de seu prestgio literrio;cuidava de o consolidar nos seus contactos com os jovensintelectuais alexandrinos, cuja criatividade, entretanto,

    jamais estimulou, talvez por medo da concorrncia. A umdeles disse: Como um comerciante anuncia suas mercadorias para as vender, assim tambm deve o poeta anunciar os versos que est oferecendo. E outra feita observou: As pessoas andam sempre ocupadas, muito ocupadas, pelo que no dispem de tempo para interessar-sepelos vizinhos e semelhantes. Assim, nosso dever falarde ns mesmos e de nosso trabalho, at faz-las parar,deixar de lado o que esto fazendo e prestar-nos ateno.

    Muitos, porm, no lhe aceitavam a poesia audaciosa, de moralidade pouco cannica. O grupo da Nea

    Zo, por exemplo, era partidrio de Palams, ento reinando absoluto na poesia ateniense. Kavfis no gostavadele, e ao usque de segunda, que reservava para os visitantes desimportantes da Rue Lipsius, chamava maldosamente usque de Palams. Por sua vez, a outra revistagrega de Alexandria, Grmmata, estampou em 1912 umartigo negando a Kavfis a condio de grande poeta eacusando-o de, para valorizar sua prpria obra, denegrira de outros autores.

    Para fazer frente aos adversrios, industriou ele em1918 um jovem amigo, Aleko Singopoulos a quemfaria herdeiro nico de seu esplio literrio , a pronunciar uma conferncia que ficou histrica. Nela, Singopoulos falou francamente do hedonismo e da sensualidade da obra de Kavfis, para escndalo das pessoas mais

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    idosas da assistncia, vrias das quais abandonaram ostensivamente o salo em sinal de protesto. Houve inclusive uma cmica conspirao para impedir Singopoulos

    de falar: alguns rapazes o embriagaram e o meteramnum carro de aluguel, ordenando ao cocheiro que o levasse para longe da cidade. O conferenci^ta, porm, percebeu a tempo a tramia, pulou do carro e regressou ap, chegando esbaforido e atrasado ao salo de conferncias . . .

    A reputao escandalosa do poeta, que uma srie de

    artigos escritos em 1924 por um certo Lagoudakis, denunciando-o como um outro Oscar Wilde, s fez aumentar, no impediu o governo grego de condecor-lodois anos depois com a ordem da Fnix. Como igual condecorao havia sido conferida ao mesmo tempo a umadanarina espanhola, amante ao que se dizia do entoditador da Grcia, os amigos de Kavfis o instaram arecus-la. Ele, porm, que jamais se interessara pela atualidade poltica grega, por considerar-se no grego, masheleno, resolveu aceitar a comenda, alegando amar ereverenciar o Estado grego.

    Por essa poca, estava aposentado, havia trs anos,do Departamento de Irrigao. Em 1932, os mdicos lhediagnosticaram um cncer na garganta. Aleko Singopoulos e sua mulher, Rika, o levaram a Atenas para ope

    rar-se. L, no hospital da Cruz Vermelha, foi-lhe feitauma traqueotomia, em conseqncia da qual perdeu avoz, passando da por diante a comunicar-se por meio debilhetes escritos.

    No ano seguinte, j de volta a Alexandria, seu estado de sade se agravou consideravelmente, a despeito dadedicao de Rika Singopoulos, que dele cuidava. Ao

    cabo de longa agonia, morreu Konstantinos P. Kavfisa 29 de abril de 1933, no dia em que completava exatamente 70 anos de vida.

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    LEMBRA, CORPO

    uma tentativa de descrio crtica dapoesia de Konstantinos Kavfis

    I

    Para que o leitor de lngua portuguesa sem nenhumafamiliaridade com a moderna literatura grega possa bemcompreender o lugar nela ocupado por KonstantinosKavfis, nada mais apropositado do que estabelecer umparalelo entre este e Fernando Pessoa. Trata-se, logo sev, de uma comparao de objetivos meramente didticos, em que as similaridades no so menos ilustrativas

    do que as diferenas entre esses dois poetas apicais naevoluo histrica das literaturas a que pertencem.O primeiro ponto de contacto a ser lembrado o

    fato de ambos terem vivido mais ou menos contempora-neamente em colnias inglesas da frica: um no seuextremo norte, em Alexandria, Egito; o outro no seuextremo meridional, em Durban, frica do Sul. Em Dur-

    ban, onde seu padrasto era cnsul de Portugal, Pessoafez, como se sabe, os estudos primrios e ginasiais emescolas inglesas, o que lhe vincaria a formao literria,a ponto de ele mais tarde vir a escrever poemas em ingls.Todavia, sua permanncia em frica durou apenas at osanos de adolescncia: em 1905 ele a abandonava parasempre a fim de regressar a Portugal. Kavfis, pelo con

    trrio, nunca deixou a frica: nascido em Alexandria, aliviveu at a morte, salvo por umas poucas e breves viagens, sobretudo Grcia. Nesta, sempre se sentiu um visitante : pouco lhe interessava a atualidade poltica grega, e,

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    se viu com simpatia os esforos de seus compatriotas nosentido de reconstruir a nao ainda h pouco liberta doquadrissecular domnio otomano, disso no deixou sinais

    em sua poesia, como os deixaram, tantos e to veementes,seus companheiros de gerao, em especial Kostis Palams, sucessor por direito de conquista daquele ttulo depoeta nacional atribudo a Dionisos Soloms, o fundador da literatura moderna da Grcia.1A verdadeira ptriade Kavfis era mesmo a cidade fundada por AlexandreMagno no delta do Nilo como ponta-de-lana e smbolo,a um s tempo, da vocao transnacional do helenismo,a que, mais do que a qualquer patriotismo geograficamente circunscrito, o poeta se confessava ligado. Nisto,alis, ele estava concorde com Fernando Pessoa, cujosebastianismo se voltava antes para o passado aventurosoe martimo de sua raa do que para o seu mesquinhopresente.

    particularmente significativo que tanto a poesia

    de Kavfis como a de Pessoa s viessem a ser conhecidasdo grande pblico aps a morte de seus autores. Pessoapublicou em vida um nico livro de versos, Mensagem; a parte mais importante de sua obra foi editada depoisde sua morte. Kavfis no chegou sequer a publicar livroenquanto viveu: seus poemas eram divulgados em folhetos ou folhas soltas, mandados imprimir por ele mesmo

    para distribuio a um crculo restrito de amigos e admiradores. Quando introduzia modificaes em algum dospoemas assim publicados e, manaco de perfeio, passou a vida a polir seus versos , apressava-se ele em

    1. Moderna, entenda-se, dentro da cronologia especfica da histriagrega, onde o perodo antigo se estende dos seus primrdios at a queda de

    Constantinopla (1453), o perodo medieval abrange os quatro sculos dedominao turca, e o perodo moderno corresponde poca que vai doincio da libertao do pas (1823) at os dias atuais. Cf. Andr Mirambel,La littrature grecque moderne, Paris, PUF, 1965 (2.a ed.), pp. 7-12.

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    mandar reimprimi-lo, remetendo a nova verso aos quetivessem recebido a anterior, para substitu-la. Esse sistema de divulgao conhecia precedentes na poesia po

    pular da Grcia: tanto os rimadri de Creta quanto ospyitrides de Chipre, conforme so chamados numa enoutra dessas grandes ilhas do Mar Egeu aqueles poetasprofissionais ou semiprofissionais que andam pelas aldeiasa recitar, costumam imprimir seus poemas em folhas soltas para vend-los aos aldees,2 como ainda hoje se faz nonordeste do Brasil com a poesia de cordel. O magro cnon

    da poesia kavafiana, 154 peas ao todo, s foi recolhidoem livro postumamente, por Aleko e Rika Singopoulos,amigos e herdeiros de seu autor. Outro amigo deste, oescritor ingls E. M. Forster, a quem se devem os primeiros esforos no sentido de fazer-lhe o nome atravessar asacanhadas fronteiras da lngua grega para se tornar conhecido na Europa como um de seus maiores poetas, em

    penhou-se, com o auxlio de T. S. Eliot, em interessar oseditores ingleses a traduzirem-lhe a poesia, mas tal empenho esbarrou sempre na m vontade do poeta, que noachava estivesse sua obra j pronta para a publicaodefinitiva e no queria tampouco viesse a ser conhecidaem traduo antes de ter sido conhecida no original.

    Mas nem por haverem levado uma obscura existn

    cia de burocratas, falta de lances de maior brilho ou dra-maticidade, e nem por ter a sua obra ficado praticamentedesconhecida enquanto viveram, deixaram Kavfis e Pessoa de ser afinal reconhecidos como os grandes poetasque so. To grandes que no os pde prender o crculode giz das literaturas a que pertencem; eles o ultrapassaram para se impor no contexto mais rico e mais amplo

    2. Roderick Beaton, Folk Poetry of Modem Greece, Cambridge Uni-versity Press, 1980, pp. 155-174 e 180.

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    da Weltliteratur, a qual, se no existe como visionaria-mente a imaginou Goethe, existe ao menos como umaespcie de bolsa mundial de valores literrios a cujo pre

    go s tm acesso uns poucos eleitos. Infelizmente, nestecaso, a expresso crculo de giz mais do que simplesmetfora. Tanto quanto o portugus de Pessoa, o neo-grego de Kavfis uma dessas lnguas-tmulo em que,por serem conhecidas apenas das comunidades nacionaisonde so faladas, ficam quase sempre sepultas as obrasnelas escritas, por primas que sejam. Relativamente s

    principais literaturas da Europa a francesa, a espanhola, a inglesa (com seu esgalho ultramarino norte-americano), a alem e a russa , no descabido considerarmarginais quer a literatura portuguesa tout court, quera literatura grega moderna. Marginalidade decorrente noda desimportncia de sua produo, mas das dificuldadesde acesso impostas pela barreira de lnguas que at agora

    no tiveram a circulao extrafronteiras do francs, doespanhol, do ingls, do alemo e at mesmo do russo. Ofato de a obra de Kavfis e de Pessoa ser hoje conhecidafora do mbito restrito do portugus e do neogrego realmente de espantar, sobretudo quando se consideratratar-se de poesia, modalidade de expresso literria infinitamente mais difcil de traduzir que a prosa de fico,

    o teatro ou o ensaio. A eles se deve, pois, a proeza deredimirem em certo grau, da marginalidade, a poesia moderna de Portugal e da Grcia, impondo-a ateno domundo. Nessa empresa involuntria, o poeta de Alexandria parece ter sido mais bem-sucedido que o de Lisboa.Os prmios Nobel ainda recentemente conferidos a Sef-ris e Elytis atestam o reconhecimento urbi et orbi da im

    portncia da poesia neogrega, ao passo que a de lnguaportuguesa, tirante o caso at agora anmalo do prprioPessoa, continua praticamente no limbo.

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    No se pode, est claro, ignorar que um e outropoeta implicitamente se inculcavam por traduzveis namedida em que se filiavam exemplarmente na tradio

    europia dos herdeiros do Simbolismo, to bem estudadapor C. M. Bowra ao debruar-se sobre a poesia de Va-lry, Rilke, George, Block e Y eats ,3 o mesmo Bowraque em outro livro, The Creative Experiment, 4 iria analisar Konstantinos Kavfis e o Passado Grego, emboralamentavelmente esquecesse a poesia de Fernando Pessoa.Entretanto, a ouvidos brasileiros e portugueses, o termoSimbolismo no diz muito, talvez porque os nossos sim-bolistas se esgotassem nos limites de seu tempo histrico,sem deitar renovos para o futuro. Em Portugal como noBrasil, o Modernismo constitui menos uma retomada crtica da esttica simbolista do que um novo ponto de partida cujos modelos foram buscados alhures, na Frana,

    por exemplo, onde' a poesia dita moderna representou,ao contrrio, uma radicalizao de certas lies de Bau-delaire e Mallarm. Dessas lies se podem encontrar ecosna poesia de Kavfis, tanto quanto na de Pessoa. Primeiroque tudo, no comum empenho de exprimir o invisvel dasubjetividade pelo visvel da objetividade, as coisas servindo de smbolos ou correlativos objetivos 5 para figu

    rar sentimentos e sensaes irredutveis a conceitos lgicos: assim, em vez de descrever ou informar, cuidaramantes de sugerir e evocar, devolvendo palavra poticao seu poder musical de dizer o indizvel. Depois, na crenacomum de a arte poder realizar aquele mundo do Ideal

    3. Em The Heritage of Symbolism, Nova York, Schoken, 1961.4. No va York, Grove Press, s.d, pp. 29-60.5. Trata-se, claro est, do famoso conceito propo sto por T. S. Eliot

    em seu ensaio sobre o Hamlet. Cf. Selected Essays, Londres, Faber andFaber, 1949, pp. 141-146.

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    postulado pela metafsica esttica de Mallarm, mundoa cuja perenidade implcita ou declarada opunham elessua funda e doda conscincia da decadncia da poca

    em que viviam, fosse a do presente real, fosse a do passado recriado pela imaginao. Pela sua viso desencantada das coisas, a um s tempo nostlgica e irnica, Pessoa e Kavfis so continuadores do decadentismo simbo-lista, de que a poesia contempornea herdou uma das suaslinhas-de-fora.

    Ainda no campo das similitudes entre os dois poetas,

    caberia lembrar o gosto de ambos pela personificao,gosto que compartilharam com outro grande poeta seucontemporneo, o Ezra Pound das personce. Em Pessoa,como se sabe, esse gosto se extremou na heteronmia:levado qui pela fatalidade de seu sobrenome, desdobrou-se a individualidade do poeta numa srie de outrasindividualidades poticas, cada qual com biografia e voz

    distintas Alberto Caeiro, Ricardo Reis e lvaro deCampos, para citar apenas os heternimos principais. EmKavfis, com o seu nunca desmentido apego cidade gre-co-oriental to saturada de passado que o viu nascer e asua sempre alerta conscincia de pertencer, pelo idiomae pela ancestralidade, multissecular tradio helenstica,o gosto da personificao satisfaz-se antes com o riqus

    simo sortimento de mscaras posto sua disposio pelaHistria. Histria que ele sempre tratou, no com reverncia de historigrafo, mas com -vontade de poeta:escolhia a seu talante episdios e personagens, combina-va-os por vezes arbitrariamente e a todos impunha o visde sua sensibilidade e de sua viso do mundo. Como seno bastasse, criou uma galeria de personagens imaginrios para entretec-los trama dos fatos e dos lugares histricos e fazer de cada um deles, seno um alter ego completo como os heternimos de Pessoa, pelo menos uma

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    criatura inconfundivelmente kavafiana a habitar um mundo no menos kavafiano.

    Restaria por fim mencionar que tanto Kavfis como

    Pessoa focalizaram em sua poesia o amor homossexual.No caso de Pessoa, por fora daquela frustrada sexualidade a que faz referncia Gaspar Simes e dos pendores exacerbadamente intelectualistas de sua natureza, apoesia amorosa tem importncia secundria, confinando-se aos English Poems, vale dizer, parte menor e decerto modo excntrica de sua obra, quando mais no

    fosse por ter sido escrita em ingls. Ele prprio chamavaesses poemas de obscenos por exaltarem uma carnali-dade nociva aos processos mentais superiores e de cujosmpetos cuidou de livrar-se em definitivo pelo simplesprocesso de os exprimir intensamente : fi ao nmero dospoemas ingleses pertence Antinous, o qual tem porassunto o amor interdito entre o imperador Adriano e

    o efebo que d nome ao poema. J Kavfis, naturezasimetricamente oposta de Pessoa na medida em quenela o sensual e o concreto sobrepujavam de longe o intelectual e o abstrato, pe o amor maldito no centro desua arte potica como pulso todo-poderosa. Conquantoa conscincia da transgresso lhe acompanhe sempre,declarada ou virtualmente, as manifestaes, nem por isso

    o homossexualismo kavafiano recorre a uma linguagemcifrada (o qualificativo ainda de Gaspar Simes)como o ingls de Pessoa: com um vigor e um pathoslricoinigualveis, extravasa-se no mesmo neogrego que o autorde espera dos brbaros levou s raias da perfeio.

    Creio que o breve paralelo at aqui desenvolvido jtenha atendido ao objetivo didtico proposto - dar ao

    6. Citado por Joo Gaspar Simes, Vida e Obra de Fernando Pessoa;histria de uma gerao, Lisboa, Bertrand, s.d., vol. II, p. 182.

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    leitor uma idia da importncia da arte kavafiana ,pelo que escusa lev-lo adiante, a minudncias. Maistil ser, agora, debruar-nos sobre a poesia de Kavfispara com ela ilustrar e aprofundar alguns dos pontos apenas aflorados no que ficou.

    II

    Conforme j se disse, a obra potica de Kavfis quan

    titativamente pequena: apenas 154 poemas curtos, que,juntos, mal do para formar um volume de lombadaestreita. Mas, no escrever esses poemas e retoc-los ata forma definitiva com que quis fossem conhecidos domundo, gastou ele uma vida inteira. Digam-no as datasinicial e final do ndice de matrias do cnon publicadopor Savdis.7 Ali, os 154 poemas esto agrupados suces

    sivamente, de conformidade com os anos em que foramescritos, desde os iniciais, anteriores a 1911, at os ltimos, escritos em 1933, o mesmo ano da morte do poeta.Nessa ordenao cronolgica, ano por ano, no h falhas:embora no fosse um autor prolfico, Kavfis foi constante no exerccio de sua arte. Afora os poemas cannicos, chegaram at ns vrios outros, que o poeta no jul

    gou dignos de figurar entre aqueles, alm de textos emprosa artigos de jornal, anotaes de carter ntimo,

    7. Pub licado em 1963 em Atenas pela editora Ikaros, em dois volumes; uma edio criticamente cuidada, mas sem aparato, diz FilippoMaria Pontani na nota bibliogrfica da sua traduo (acompanhada do textogrego original) das Poesie de Kavfis (Roma, Mondadori, 1961). A edio

    princeps foi publicada em Alexandria em 1935. Em 1968, o prof. Yorgos

    Savdis, da Universidade de Tessalnica, publicou 75 poemas at entoinditos de Kavfis (Ankdota pomata, 1882-1923, Atenas, karos). EdmundKeeley estudou bem a importncia desses inditos relativamente obracannica em The New Poems of Cavafy, in Modem Greek Wrilers.Princeton Unversity Press, 1973, 2.a ed., pp. 123-143.

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    cartas8 , de inegvel interesse para o melhor conhecimento de sua personalidade e de sua biografia, mas quenada lhe acrescentam obra criativa.

    Conforme j se disse tambm, a poesia de Kavfisfoi toda ela escrita em neogrego, o grego coloquial denossos dias, herdeiro direto da koin ou lngua comumfalada em todo o Oriente helenizado da Antigidade edo Medievo e que, mantida em estado de hibernaodurante o longo domnio turco da Grcia continental einsular, ressurgiu como lngua oficial do pas quandoeste, conquistando a independncia a partir de 1823, proclamou-se novamente nao soberana. No mesmo neogrego, alis a despeito dos esforos dos partidrios dokatharevousa, variante purista entroncada na tradio dogrego clssico, de Homero a Plutarco, e inimiga ferrenhados estrangeirismos tanto quanto da simplificao gramatical da lngua popular , foi escrito o que de mais sig

    nificativo produziu a literatura grega moderna, a comeardos poemas patriticos e dos dramas em verso de Solo-ms, seu fundador. No lxico, o neogrego ou demticoconserva, a par de abundantes enxertos estrangeiros (doturco, do italiano, do francs e do ingls), o vocabulrioessencial do grego antigo. Conserva-lhe tambm, inalterado, o alfabeto, malgrado a fontica tenha sofrido al

    teraes, bem como complexidades da conjugao verbal, particularmente as da voz mdio-passiva; em compensao, eliminou numerosas outras dificuldades gramaticais, a comear do dual.

    Esse carter dplice do neogrego, onde as razeslxicas tradicionais convivem com os emprstimos de ln

    8. En tre eles figura inclusive um conto, A pleno sol (Cf. Quimera; revista de literatura, Barcelona, Montesinos, maio de 1981, n. 7, pp.57-60). Todo esse material constitui o chamado Arquivo Kavfis, hojeem mos do prof. Savdis.

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    guas modernas e onde a simplificao coloquial da gramtica no chega a desvirtuar as matrizes histricas doidioma, encontra, na poesia de Kavfis, sua mais bem

    lograda utilizao expressiva. Com efeito, nela, a obsesso do passado, que se compraz em superpor diferentespocas histricas para marcar, a um s tempo, a continuidade e o pluralismo da tradio helenstica, no excluiuma viva percepo do presente em que se nutre a sensualidade do poeta. E tal abrangncia, simultaneamentelivresca e sensvel, no fica adstrita ao nvel dos temas;

    manifesta-se, de igual modo, no nvel da lngua. Nesteltimo, ao lado do pendor arcaizante 9que seria de preverem quem ia buscar aos historiadores antigos e bizantinosa matria-prima de tantos poemas, h uma sensibilidadesempre alerta para os valores estilsticos do sermo vulga-ris, da fala de todo dia. Alis, o interesse pelo coloquialest na origem da prpria literatura da Grcia: foi napoesia oral do seu povo, sobretudo no rico acervo debaladas narrativas das ilhas e da pennsula, que Solomse seus psteros mais ou menos imediatos descobriram asrazes, tanto formais como temticas, de uma arte verdadeiramente nacional, tal como a queria o romantismo patritico a que o pas deveu sua libertao do jugo turco.Algumas dessas razes populares tambm esto presentes,por paradoxal que possa parecer, na arte aristocrtica

    e refinada de Kavfis. Quando mais no fosse, pelo seuuso do politiks sthos, o verso poltico, reconhecido

    9. Segundo C. M. Bowra (The Creative Experiment, cit., p. 30), Kavfis no escrevia nem em katharevousa, a lngua refinada, artificial, queos gregos cultos herdaram dos bizantinos ( . . . ) nem na lngua demticados gregos comuns ( . . . ) , Kavfis escrevia, e falava, uma lngua que temalgo em comum com ambas e que de fato o idioma dos gregos cultosde Alexandria. Lembra ainda o mesmo autor (ob. cit., p. 43) que Kavfispor vezes introduzia nos seus poemas, quase como entre aspas, frases quecheiravam a retrica clssica tardia ou a grego bizantino ou lngua daIgreja.

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    como o metro de eleio da poesia folclrica grega. Remontando, ao que parece, a Bizncio, onde, j por voltado sculo XII, se firmara como o veculo da literaturapopular ou low-brow, conforme diz dela pitorescamenteRoderick Beaton,10 um verso silbico-acentual de 15ps, com um andamento binrio predominantemente im-bico, " vale dizer: uma slaba ou p tono seguido deoutro tnico. Mas o importante do verso poltico a ce-sura fortemente marcada, que o biparte em dois hemis-tquios, um de oito e outro de sete slabas. A bipartioconfere a cada segmento de verso certa autonomia, sementretanto, desvincul-los entre si, quer quanto forma,quer quanto ao sentido: eles continuam correlacionadospor paralelismo (repetio de palavras ou de idias nume noutro hemistquio) ou por complementaridade (o segundo hemistquio completa o sentido do primeiro). Kavfis utiliza com freqncia um recurso de ordem grficapara melhor destacar o ponto de cesura e a autonomiarelativa dos hemistquios: distancia um do outro por umespao maior do que aquele que normalmente separa aspalavras entre si. Com isso, uma fissura, uma fenda mediana passa a cortar verticalmente o bloco da estrofe, talcomo se pode ver em Flores brancas e belas como tobem convinha, onde ela adquire inclusive valor semntico. O poema fala-nos de dois jovens amantes cuja uniose v ameaada pela pobreza em que vivem: seduzidopela promessa de boas roupas feita por algum que o querpara si, um dos amantes resolve separar-se do outro, maseste arranja pressa algum dinheiro emprestado e con

    10. Beaton, op. cit., pp. 75-77.11. Disse o prprio Kavfis certa ocasio: O que a maior parte

    do que falamos seno verso imbico? Observe e voc mesmo perceber.Por que, ento, no deveria eu preferir o imbico e exclusivamente o imbico? (Cit. por Robert Liddell, Cuvufy, Pocket Books, Nova York, 1978.)

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    segue ret-lo. Baldado esforo, porque, sorrateira e prematuramente, a morte vem roubar-lho para sempre:

    Mas agora ele no quer mais nada, nem os ternos,nem, de modo algum, os seus lenos d seda,

    nem suas vinte liras, nem mesmo vinte piastras.

    Na sexta o sepultaram, s dez horas da manh.

    Na sexta o sepultaram, faz quase uma semana.

    A bipartio do verso poltico, to tpico da poesia popular, adquire singular pertinncia neste poema cujo tomde sentimentalidade e cuja singeleza terra-a-terra fazemlembrar de perto as letras das canes populares, semelhana reforada pela referncia ao caf onde os amantes costumavam se encontrar, o caf ou bar que o locusamcenus da bomia tradicionalmente exaltada na msicaurbana:

    Quando de noite foi sobreveio um negcio,

    era o seu ganha-po quele caf

    aonde iam sempre juntos: um punhal no corao,

    o sombrio caf aonde iam sempre juntos.

    Atente-se, no ltimo verso, para um smile de carter hiperblico, corrente em demtico, e que se tornou lugar-comum nas letras das canes gregas atuais, como, porexemplo, em O ds Aristotlous, de Spans e Papadopou-los, onde se fala de uma lua verde a lembrar um amorde outrora, lembrana y na sou mahairni ti kardi, ouseja, literalmente, a esfaquear-te o corao. Mas o quesobressai mesmo, aqui, o valor semntico da fissuravisual entre os hemistquios, espelhando iconicamente, aolongo de todo o poema, o tema iterativo da separao,

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    a princpio virtual, por fim irremedivel, entre os doisamantes.

    Pelas duas breves citaes atrs, pode-se ainda perceber com clareza o carter paralelstico como que imposto dico pela fratura do verso em dois segmentossemi-autnomos: as repeties de idias e de palavras sofreqentes, tanto em nvel de literalidade (aonde iamsempre juntos) quanto de equivalncia (quele caf /o sombrio caf), assim como as simetrias por contraste:

    o sujeito no singular de quando de noite foi ope-sedramaticamente pluralidade de iam e de juntospara marcar a solido do amante sobrevivente. Mas exemplo ainda mais feliz de paralelismos enfatizados pela fissura mediana vamo-lo encontrar em Na Itlia, beira-mar. Trata-se de um poema de assunto histrico, cujoprotagonista Gimo de Menedoro um dos muitos perso

    nagens imaginrios criados por Kavfis. A ao transcorrena poca do domnio romano da Grcia e de todo o vastoimprio oriental de Alexandre, domnio que, pelo testemunho deste e de vrios outros pemas, Kavfis sempresentiu como particularmente humilhante. Cimo um jovem bem-nascido, de famlia grega, que leva uma vidade prazeres no litoral itlico, na ento Magna Grcia,

    entre os conquistadores da ptria de seus maiores, portanto. Contudo, nem o hedonismo nem a sua condiode italiota lhe obliteraram de todo o sentimento patritico: com tristeza e com pesar que v, no porto, osnavios descarregarem a rica presa trazida por Mummiusda pilhagem do Peloponeso em 146 a.C. O metro do poe

    ma no exatamente o verso poltico de quinze ps, masalgo que se lhe parece, uma espcie de alexandrino, comseus dois hemistquios de igual modo destacados pela fissura mediana. No h rimas regulares e ostensivas; h,

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    porm, uma rima em butida,12 nem por isso menos importante, que ocorre sobretudo no final dos hemistquiosda esquerda, destacando a fissura mediana e repercutindopor vezes nos hemistquios da direita. uma rima em

    -an, centrada na palavra-chave lean, presa, que serepete trs vezes e que vai rimar com outras palavras-chave: melagholan, melancolia ou pesar, paralan, litoral ou beira-mar e, derradeira palavra do poema,epithyman, desejo. Como se v, o paralelismo de sonsd suporte s conexes semnticas: a viso da presa deCorinto enche de melancolia o jovem italiota, roubando-lhe o desejo de divertir-se naquele litoral que ora selhe torna estrangeiro. E como no exemplo anterior, nestetambm a fissura mediai a imagem icnica da separao, j no mais de dois protagonistas, mas de um sprotagonista de si prprio: de sbito, ele se torna outro,alheia-se dolorosamente do mundo que lhe era natural(fysik).

    No tocante rima, convm notar que no muitofreqente na poesia de Kavfis, como no o na poesiagrega em geral, seja a da antigidade, a do perodo bizantino ou a da tradio popular. A rima adquire, porm,especial pertinncia em certas peas nas quais Kavfisadota o dstico rimado tradicional da poesia folclrica deseu pas ,13 onde ele serve de moldura para o vigor epi-gramtico dos versos improvisados. Epigramtico, na suaconciso e agudeza, Muros, formado de quatro dsticos de rimas alternadas, sendo homfonas todas as palavras que rimam entre si. A dico do poema est na pri

    12. N a poesia grega antiga, a rima interna era usada ocasionalmente,

    sobretudo para efeitos de humor e stira, observa Willis Barnstone numanota a um epigrama de Paliadas, poeta alexandrino do perodo bizantino,por ele traduzido (Greek Lyric Poetry, Nova York, Bantam, 1962, p. 235).

    13. Beaton, ob. cit., pp. 148-150.

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    meira pessoa do singular: o elocutor se queixa do seudestino, dos muros que lhe foram erguidos volta, sem

    ele ter prestado ateno, e que agora o isolam do mundol fora. A idia bsica do poema , pois, a de clausura,fechamento, idia acentuada pela homofonia das rimasa entrelaarem as palavras, criando um muro de simetriassonoras que fecham o poema em si mesmo. Como de hbito em Kavfis, a rima se estabelece entre palavras-chavedo ponto de vista semntico, sendo de notar, em especial,

    a que vincula tehi, muros, a tyhi, destino : comose os muros a aprisionarem o elocutor fossem uma fatalidade j implcita na prpria homofonia entre as duas palavras. Outrossim, por rimar com ho, fora, o verbo

    prosczo, prestar ateno, quase tem de ser lido comoprs+ho, ou seja, para fora, uma expresso adverbialde lugar corroborativa da oposio de base entre a inte-

    rioridade imposta ao elocutor e a exterioridade por queele inutilmente anseia.

    III

    A leitor brasileiro no h de- passar despercebida a seme

    lhana entre Muros, de Kavfis, e Emparedado, deCruz e Sousa: num e noutro poema se exprime a mesmaangstia perante a solido e o isolamento. A despeito desua marcada subjetividade, essa angstia tem, nos doiscasos, uma condicionante social. No caso do negro Cruze Sousa, foram os preconceitos raciais da sociedade ondeviveu e a cujo reconhecimento aspirava como poeta que

    o foraram a enclausurar-se ainda mais num dolorososubjetivismo; no caso do homossexual Kavfis, foi o rigorda moralidade pblica, de que temia as sanes mas acuja ortodoxia heterossexual jamais se curvou, o responsvel por aquele sentimento quase cristo de culpa que,

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    exacerbando paradoxalmente o prazer da transgresso edo pecado, lhe marca t o . caracteristicamente a poesiaamorosa. Mas o importante que essa angstia de empa-

    redamento existencial tivesse encontrado, no subjetivismode preceito da arte simbolista, as condies mais favorveis para resolver-se em sublimao esttica. Na obliqidade, que o princpio supremo do Simbolismo, ondeo gosto impressionista pela impreciso de contornos redime as coisas da nitidez do real para dar-lhes irisaes desonho e onde a subjetividade todo-poderosa faz do mundo

    objetivo no um limite exterior a conter-lhe os anseios,mas um espelho simblico que lhe abre ao infinito o campo da realizao imaginativa, pde tanto a sofrida negritude de Cruz e Sousa, quanto a no menos sofrida homossexualidade de Kavfis, reconciliar-se consigo prpriapela intermediao teraputica da arte, incorporandoassim estesia simbolista um lastro de experincia que

    lhe faltou amide.O gosto da vaguidade e do sonho, conquanto maisfreqente nos primeiros poemas, nunca desapareceu detodo da arte de Kavfis. Com o correr dos anos, foi estaadquirindo maior preciso de traos, sem com isso abandonar o pendor pela alusividade, outra variante da obliqidade simbolista, para a qual, segundo a regra de ouro

    mallarmaica, nomear um objeto suprimir trs quartosda fruio do poema, que feita da ventura de adivinharpouco a pouco; sugeri-lo, eis o sonho . 14

    A vaguidade ortodoxamente simbolista, aquela tcnica do smorzando e da ressonncia que tem nas reticncias, explcitas ou implcitas, sua representao grficapor excelncia, pode ser encontrada sobretudo nos poe

    14. Citado por Ro bert de Grve, Potes modernes, S. Paulo, Cupolo,s.d., p. 2.

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    mas anteriores a 1911.15 Como em Vozes, onde a indefinio se faz sentir desde o primeiro verso: ali, as vozes

    ideais dos mortos, idia-chave do poema, aparecem desacompanhadas do artigo definido, ausncia particularmente significativa em grego, que o usa com tamanhaabundncia, inclusive antes dos nomes prprios. Maisadiante, ocorre uma palavra tipicamente simbolista,sonho, e um travesso faz as vezes de reticncias paradestacar, com uma pausa ad libitum, a vaguidade da metfora final: as vozes so qual msica distante que seperde noite afora.

    Outro dos poemas anteriores a 1911 em que as vir-tualidades da palavra-ttulo so desenvolvidas ao longodas quatro estrofes, num simbolismo mais ou menos fcil tambm, Crios. Ao leitor se rouba a oportunidade de descobrir por si mesmo as equaes metafricas,explicitadas desde o incio: os crios acesos so os diasdo futuro; os apagados, os dias do passado. Felizmente,no se explicita o vnculo simblico entre a idia de progresso numrica e a aproximao da morte; com isso,o poema ainda guarda, no seu fecho, um resto de mistrio, que o leitor ter a ventura de adivinhar:

    No quero olhar para trs e, trmulo, notar

    como se alonga depressa a fileira sombria,como crescem depressa os crios apagados.

    J num dos poemas de 1920, Para que cheguem,o crio usado com propsitos expressivos bem maissutis. Em vez de ser apenas um smile unvoco, apareceagora, cmplice da treva e do devaneio, revestido da mes

    15. Muito em bora possa ser ainda eventualmente enco ntrada em poemas de data posterior, como por exemplo em O que eu trouxe Arte,de 1921, que uma verdadeira profisso de f simbolista.

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    ma aura de sugestividade que ajudou a criar dentro docontexto penumbrista dessa pea: sua luz frouxa noir assustar as Sombras do Amor invocadas, com asmaisculas simbolistas de praxe, pela imaginao dopoeta.

    bem de ver, porm, que as razes simbolistas 16 daarte de Kavfis so bem menos ostentivas e bem maiscomplexas do que o do a entender estes trs exemplos.Considere-se um poema como O sol da tarde, pertencente ao grupo cronolgico de 1919. Nele, no se usampalavras convencionalmente poticas como sonho, m

    sica distante, Sombras do Amor. O vocabulrio omais prosaico possvel, um mero catlogo de mveis div, tapete turco, estante, vasos amarelos, armrio comespelho, cadeiras de palha, leito , para no falar deuma expresso aparentemente to pouco potica comoescritrios de cmbio e vendas. Por outro lado, o registro do poema puramente descritivo, salvo por trs

    versos em que uma interjeio ou um vocativo traem ossentimentos do elocutor. Mas, merc de uma sbia dosagem de nfases, Kavfis alcana converter esse rol mo

    16. No se trata, claro, de um a adeso decla rada, epigonal, a um aescola literria , mas de inevitvel influxo de poca. A despeito da originalidade da obra de Kavfis, parece-me exagero dizer, como diz Bowra,

    que ele no usou nem modelos gregos nem da Europa ocidental (ob. cit.,p. 30). Quanto aos primeiros, mais sensata me parece Marguerite Yourcenar quando escreve: Um ensaio acerca da poesia amorosa de Cavafy levaria em conta os precedentes gregos, a Anto lo gia sobretudo, de que a suaobra o mais recente elo. (Prsentation critique de Constantin Cavafy, Paris, Gallimard, 1958, 2.a ed., p. 35.) Quanto aos segundos, Robert Lid-dell refere expressamente os parnasianos e simbolistas franceses (ob. cit.,p. 12). Sefris resumiu bem a questo ao escrever: Cavafy certamenterespirou a atmosfera da poesia europia contempornea tal como era quandoele contava entre 25 e 35 anos de idade. Isto , a atmosfera da escola doSimbolismo, de onde surgiram as figuras mais importantes e mais dissimi-

    lares da poesia de pr-guerra. Mas ele no mostra influncia de nenhumautor especfico; as marcas que ele conserva dessa escola so apenas ascaractersticas gerais da sua gerao. (On Greek Style, trad. Rex Warnere Th. Francopoulos, Boston, Atlantic-Little Brown, s.d., p. 122).

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    bilirio naquilo que Eliot chamava de correlativo objetivo, ou seja, um conjunto de objetos servindo de frmula para exprimir determinada emoo. No se trata,veja-se bem, de uma metfora, da operao conceituaide substittir uma palavra por outra com base nalgumarelao de semelhana entre ambas. Trata-se, como dizo mesmo Eliot, de articular uma experincia sensorial aum estado emotivo, de forma a uma evocar o outro. Nopoema de Kavfis, a evocao de segundo grau, porassim dizer. Num primeiro grau, temos o elocutor a descrever, com o auxlio da memria, os mveis outrora existentes no quarto agora impessoalmente ocupado por umafirma comercial. Quando a descrio se detm no leito,pessoaliza-se:

    Debaixo da janela estava o leito

    onde tantas vezes no amamos.

    A partir deste ponto, objetivo e subjetivo se mesclaminextricavelmente e aquele passa a ser a frmula ousigno deste. No frmula traduzvel pelo sinal de igualdade com que, em Crios, se podia representar o vnculometafrico elementar deles com o passado e o futuro, mas

    antes uma complexa relao de contigidade espcio-tem-poral em que o mundo dos objetos e o mundo das emoes se associam de maneira ocasional, sem assemelhar-se, mantendo cada qual sua inteira autonomia, ainda quepaream confundir-se. Da o relevo do adjetivo pobrescom que se inicia o verso seguinte, enfaticamente isoladoem estrofe:

    Pobres mveis, ho de ainda existir nalgum lugar.

    Nesse adjetivo se traduz um sentimento de comiseraopelo desamparo dos mveis que, embora subsistentes

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    alhures, voltaram sua condio andina de objetos porno mais co-participarem dos atos de amor outrora cumpridos no quarto cujos ocupantes, pobres deles tambm,

    se separaram para sempre:

    Foi de tarde, s quatro horas, que ns dois nos "despedimospor uma semana s. . . uma semana,ai de mim, que se fez eternidade.

    Esta estrofe final do poema mostra ser o tempo o ele

    mento fundamental de sua semntica. J o registro evocativo, onde o presente verbal da visita do elocutor aoquarto contrastava com o pretrito de suas lembranas,dava a entender a importncia da temporalidade implcitano prprio ttulo do poema, de que a penltima estrofedestaca a alusividade:

    Debaixo da janela estava o leito;o sol da tarde lhe chegava at a metade.

    A repetio, aqui, do verso debaixo da janela estava oleito com que termina a estrofe central, exatamenteaquela onde se descreve o quarto tal como ele era outrora, d a esta pea de mobilirio a nfase a que faz jus

    por sua condio de locus do ato amoroso. O sol da tardea ilumin-la tambm uma espcie de spotlight enftico.Ademais, o fato de a sua luz chegar-lhe, de tarde, s ato meio, e de ter sido de tarde que os dois amantes sesepararam definitivamente, faz do leito uma espcie derelgio solar a marcar, pressago, a .hora da separao: omeio a linha de ruptura, o um desfeito em dois.

    Demorei-me um pouco mais na anlise de O sol datarde porque o tenho por particularmente ilustrativo dafinura, da naturalidade, da propriedade e, acima de tudo,da ocasionalidade com que, nos seus melhores momentos,

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    Kavfis trabalha o nvel simblico. Neste poema, colocado sob o signo, de resto eminentemente kavafiano, da

    transitoriedade, os laos simblicos entre o mundo exterior e o mundo interior so de igual modo transitrios ouocasionais: nem o sol da tarde nem os mveis do quartoso smbolos permanentes da separao ou do amor; fo-ram-no em certo lugar e a certo momento por fora desua contigidade com eles, donde serem a sua frmulasimblica especfica. No tm a generalidade nem a per-

    petuidade metafrica dos crios acesos ou apagados; emcompensao, s eles podem evocar com absoluta justezaaquela separao e aquele amor.

    Seria tolice negligenciar, em nome de algum preconceito imanentista no tocante anlise do texto literrio,a ntima relao deste tipo de simbolismo ad hoc com aexperincia de vida do poeta. Mas, para estabelec-la,

    no preciso recorrer, em cada caso, a material biogrfico especfico: um conhecimento mesmo superficial dapersonalidade de Kavfis e dos ambientes onde viveu quanto basta para no-lo dar a perceber. O seu nunca desmentido apego a Alexandria, por exemplo to bemmarcado no Quarteto de Alexandria, o romance-rio deLawrence Durrel que pela primeira vez tornou conhecidado grande pblico a figura do velho poeta como encarnao do genius loci da refinada, corrupta e milenar capitaldos Ptolomeus , transparece a cada momento nos seusversos. Como Baudelaire, em quem o Simbolismo dosculo XX, tanto quanto o do sculo XIX, teve o maisgenial dos iniciadores, Kavfis tambm , a despeito desua obsesso com o passado, um poeta eminentemente dacidade, um pintor da vida moderna, como o foram outros

    simbolistas, Verhaeren frente com seu Les Villes Ten- taculaires. Ele mesmo deixou dito, num dos primeirospoemas em que fala da impossibilidade de fuga ou derecomeo, que Alexandria era o seu mundo:

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    A cidade h de seguir-te. As ruas por onde andares

    sero as mesmas. Os mesmos os bairros, os andaresdas casas onde iro encanecer os teus cabelos.

    A esta cidade sempre chegars. Os teus anelos

    so vos, de para outra encontrar um barco ou um caminho.

    A vida, pois, que dissipaste aqui, neste cantinho do mundo, no mundo inteiro que a foste dissipar.

    a cidade, sobretudo a cidade noite, que lhe fornece

    os cenrios mais representativos. A comear das casascorruptas e do quarto vulgar e miservel onde se desfruta, s escondidas, o prazer ilegal. Depois, as taver-nas freqentadas por efebos desconhecidos e suspeitose os cafs, revestidos de particular significncia. Na poesia de Kavfis, o caf o lugar purgatorial aonde se vaientorpecer ou esconder o tdio, quando no o desespero

    de viver; onde se espera horas a fio por algum que novem; onde se tm encontros fortuitos e fugazes, de queresultaro amores, ou melhor, ligaes igualmente fugazes para a pacificao de um desejo de si insacivel, porque fadado a jamais encontrar a plenitude a que aspira.O caf , antes e acima de tudo, o lugar onde tristementese envelhece, e eis-nos diante de um dos motivos prefe

    ridos do poeta, cujos ancios patticos fazem lembrar osdos Tableaux Parisiens de Baudelaire, mas cuja dodaconscincia da velhice parece remontar mais longe, aoVillon de Les regrets de la belle Heaulmire, ou, maislonge ainda, a Simonides e outros lricos da Antologia Grega. Num dos poemas anteriores a 1911, A alma dosvelhos, o pattico no exclui o irnico: um e outro se

    fundem no adjetivo tragicmico com que Kavfis caracteriza o sofrimento de almas que, por habitarem velhos corpos perecveis, incapazes das alegrias da carnee s lhe experimentando agora os achaques, vem-se con

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    denadas ao tdio, sem por isso se apegarem menos s velhas carcaas. Mas para os sofrimentos da velhice existemos remdios temporrios da Poesia, capazes de embotar

    a dor com Fantasia e Verbo, a que recorre o protagonista de Melancolia de Jaso, filho de Cleandro, umdos muitos poetas histricos ou no inventados por Kavfis para lhe servirem de alter ego. Como, por exemplo,o ancio de Coisa rara que, enquanto atravessa as ruaspara recolher-se casa onde esconde a runa e a velhice,se consola com a idia de as carnes firmes, bem talha

    das dos adolescentes fremirem de emoo e de volpiaao lerem-lhe agora os versos. Essa misteriosa chama dacarne, cujo calor s a poesia alcana preservar das injrias do tempo, a luz que arde no recesso mais ntimoda obra kavafiana. Di-lo, entre muitos outros, um poemade 1918, Diante da casa, em que o carter confessional desde logo marcado pela elocuo na primeira pes

    soa do singular. Durante um passeio, o elocutor depara,num bairro afastado, com uma casa que costumava freqentar quando era muito jovem e esta indicao jdeixa entrever a sua idade bem mais avanada no hicet nunc do poema. Foi nessa mesma casa que, com suafora maravilhosa, o Amor (Eros em grego, com maiscula, a paixo humana feita deus) se apoderara muitas

    vezes do seu corpo. Agora, ao rev-la, no s experimenta de novo, por um instante, as emoes voluptuosasde antigamente,' como elas lhe extravasam do ser paraimpregnar o mundo sua volta:

    e ontem,

    enquanto eu percorria o caminho de outrora,

    eis que se revestiram do encanto do amoras lojas, as caladas, cada pedra,

    e os muros, e as janelas, e os balces;

    nada, nada de mau ali ficara.

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    Em escala bem mais ampla, repete-se aqui t mesmo processo de simbolizao ad hoc que pudemos ver em curson0 sol da tarde. Ento, haviam sido os mveis do

    quarto e o sol a ilumin-lo os elementos circunstanciaisaliciados para se constituir em correlativo objetivo, emfrmula especfica de emoes especficas; agora, a paisagem l fora convocada para fim semelhante. Mas ofundamental, num e noutro caso, est em o processo tera memria como faculdade geratriz. No pretrito tema-tizado em ambos os poemas, a vida se cumpre por si mes

    ma, em primeira instncia, se assim se pode dizer; porm,no depois em que so escritos, torna-se necessrio o suporte simblico para que a emoo possa ser fugazmenterevivida na segunda instncia da memria. De igual modofundamental o fato de o suporte simblico servir menospara evocar a emoo pretrita do que para corrigi-la;melhor dizendo, para dar-lhe um sentido que teria sido

    impossvel descobrir-lhe no prprio ato de fru-la. Ento,a volpia estivera inquinada por um sentimento parasitrio de culpa; agora, ainda que s vicariamente fruda porvia simblica, ela ressurge ntegra e pura, pureza que aomesmo tempo lhe redime a circunstncia-smbolo: nada,nada de mau ali ficara. A intermediao teraputica daarte, a que j se fez referncia por ocasio do breve para

    lelo entre a homossexualidade de Kavfis e a negritudede Cruz e Sousa, avulta precisamente nesse vis corretivoou semntico com que a memria do poeta recupera opassado. Para citar mais uma vez Fernando Pessoa, atente-se, em Pobre velha msica, poema onde ele se indagase havia sido mesmo feliz na infncia, ao ouvir uma msica que o fez record-la, para o verso admirvel Fui-ooutrora agora, do qual se pode encontrar um equivalenteem Lembra, corpo. uma das pedras de toque daobra de Kavfis. Esse poema, cuja elocuo se processana segunda pessoa do singular, em timbre imperativo,

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    faz lembrar o Villon de Le dbat du coeur et du corps;nele tambm a conscincia se separa do corpo e adquirevoz distinta para ordenar-lhe recorde os desejos que des

    pertara outrora e aos quais ele no pudera entregar-sedevido a algum obstculo casual. Vm ento os versosem que, semelhana do Fui-o outrora agora, o passado corrigido pelo presente e aquela vida que poderiater sido e que no foi melancolicamente referida porManuel Bandeira passa a s-lo post factum por via da memria compensativa:

    Agora que tudo isso perdeu-se no passado, quase como se a tais desejos

    te entregaras ( . . . )

    Num outro poema mais ou menos da mesma poca,Ao fim da tarde, de registro igualmente confessionalpor sua elocuo na primeira pessoa do singular, o poetamaduro, ao reler algumas cartas, lembra um amor dejuventude que a Sorte (em grego Moira, com a maisculapersonificando o destino em divindade) no permitiu durasse muito. O poema termina com esta estrofe:

    E sa para o balco melancolicamente

    sa para distrair os pensamentos, ver ao menos

    um pouco da cidade bem-amada,um pouco do movimento de suas ruas e lojas.

    muito importante, aqui, a locuo ao menos (emgrego toulhiston), em que se exprime a mesma idiade compensao do quase como se na passagem deLembra, corpo... h pouco citada: no podendo o

    elocutor reatar o perdido amor de juventude, seja-lhe aomenos dado contemplar de novo as ruas e lojas da cidadeonde ele transcorreu e que, por ter-lhe sobrevivido, ser

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    vem-lhe bem de frmula simblico-compensativa. A idiade compensao est, pois, implcita no prprio processode simbolizao ad hoc to freqente na obra de Kavfis

    e por via do qual se vinculam aposteriori a emoo vividano passado, ou seja, a vida em estado bruto, e a emoorevivida no presente, na atualidade do poema, ou seja, avida filtrada corretiva e semanticamente pela memria.J vimos dois graus sucessivos dessa semantizao topo-lgica: primeiro, o quarto com seus mveis; depois, apaisagem logo alm de sua janela; agora, grau superla

    tivo, a prpria cidade de Alexandria que se torna ocorrelativo objetivo de toda a vida do poeta; a cidadedele bem-amada, com suas ruas, lojas, casas de rendez-vous, tavemas e cafs; a cidade com o seu passado maisou menos prximo, coevo de amores juvenis revividos empoesia, e com o seu passado helenstico, no qual o poetase projeta imaginativamente para reviver a histria de suaraa.

    IV

    Este exame sumrio das razes simbolistas da poesia deKavfis, que espero tenha bastado para mostrar o prismamarcadamente pessoal com que nela se refrataram os procedimentos caractersticos da escola e ao qual ela devea sua inegvel modernidade, tocou-lhe de passagem, maisde uma vez, um dos pontos capitais, a saber o homosse-xualismo. Capital no tanto porque, pedra de escndalo,tivesse servido para tornar conhecido o seu autor como opoeta por excelncia daquele amor h at bem pouco tidopor maldito, mas antes porque sua luz que melhor

    se pode entender a significao profunda da arte kava-fiana. Antes de mais nada, cumpre dizer que, ao contrrio de Gide, cujo Corydon bem lhe patenteava a condi

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    o de idelogo, ou melhor, de evangelista do uranismo,nada existe de evanglico em Kavfis. Na sua obra, ahomossexualidade uma experincia humana vivida com

    toda a intensidade, mas sem nunca descair para o campoda prdica, mesmo subliminar. O poeta se entrega decorpo e alma ao seu demnio; no busca, todavia, ali-ciar-lhe novas vtimas. Uso a palavra vtima de casopensado. Embora numas anotaes em prosa,17 de ndoleconfessional e significativamente redigidas em ingls a mesma lngua secreta em que Pessoa vasou a parte

    obscena de sua poesia , afirme Kavfis ter-se libertado dos preconceitos contra o homossexualismo, nempor isso deixou jamais de sentir-lhes a opresso nem desofrer o difuso, sentimento de culpa por eles diretamentegerado.

    A intensidade desse sentimento era proporcional aovigor do senso moral de quem o experimentava. Mais

    uma vez em oposio a Gide, que deu o ttulo reveladorde O Imoralista a um dos seus romances mais pessoaise em outro fez a apologia do ato gratuito nietzschea-namente acima do bem e do mal, Kavfis nunca deixou,a despeito de todo o seu esteticismo, de ser um moralista. Nisto, alis, ele se afirmava um verdadeiro grego:desde os tempos homricos, tica e esttica andaram jun

    tas na tradio helnica, a ponto de uma mesma palavra,t kaln, servir para; designar simultaneamente a belezae a virtude. No seu caso, porm, no se tratava de sensomoral como faculdade abstrata de distinguir valores ticos no menos abstratos, e sim no sentido de comprometimento imediato com os padres de conduta da comunidade onde vivia. Ainda que contra esses padres se

    17. Liddeli, ob. cit., p. 63.

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    rebelassem as inclinaes mais fundas de sua natureza,o poeta no se colocava olimpicamente acima deles, comoo imoralista gideano; reconhecia-lhes o poder de coero,capaz de impor, a quantos os ousassem enfrentar, a alternativa de igual modo aviltante da clandestinidade ouda degradao. No primeiro caso, o aviltamento vinha daduplicidade a que obrigava o transgressor, o qual passava desde ento a viver num doloroso estado de mentira.E se, para conservar-se fiel a si mesmo, ele se recusassea esse estado dbio, tinha de agentar as represlias dachamada gente de bem, a comear da perda do res

    peito pblico, que lhe iria tornar cada vez mais difcilganhar a subsistncia e que o acabaria degradando parao submundo equvoco da bomia e da prostituio, quando no do crime.

    A danao, tanto quanto a exaltao, dos amoresanmalos esto celebradas na poesia de Kavfis com amesma fora lrica e a mesma pungncia humana daquela

    dialtica do pecado e da graa celebrada nAs Flores doMal. Sem nada ter da religiosidade s avessas de Baude-laire, Kavfis partilhava com ele, no obstante, a psicologia contraditria do pecador. Contraditria porque aprpria agudez da conscincia do pecado, encarecendo aum s tempo o remorso de o cometer e a magnitude daexpiao capaz de redimi-lo, que aumenta o sabor de

    pecar, de transgredir. Essa alternncia de transgresses eexpiaes a se emularem permanentemente entre si, Kavfis a exprimiu, com sua conciso lapidar, em Jura:

    A cada pouco jura comear vida nova.

    Mas quando a noite vem com seus conselhos, seus compromissos, com suas promessas;

    mas quando a noite vem com sua fora(o corpo quer e pede), ele de novo sai,

    perdido, atrs da mesma alegria fatal.

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    instrutivo comparar as conotaes assumidas pornoite no contexto desta pea com as que a mesma palavra assume em outras, como, por exemplo, em Paraque cheguem, a que j se fez referncia. Neste ltimopoema, de ndole eminentemente penumbrista, as trevas da noite, que a frouxa luz de uma vela mal serviapara abrandar, constituam o clima simbolista de impreciso mais favorvel aos exerccios de devaneio, entresensual e afetivo, a que o poeta ama entregar-se. J nos

    poemas em que, longe de aparecer como mera sombrado corpo e, como tal, devidamente purificado do travode culpa pela imaginao compensativa, o amor aparececomo carnalidade imediata e imperiosa, a ser fruda aqualquer preo o corpo quer e pede , a noiteadquire, correspondentemente, outro significado: passa aser a prpria atmosfera clandestina dos vcios em cujo

    nmero a moral burguesa inclui preeminentemente aqueleprazer to ilegal, poly nomi idon, referido num poema de 1916, Na rua, ou essa mesma alegria fatal(fatal por levar perdio) do poema h pouco transcrito, Jura. Expresses semelhantes, acentuando o carter anmalo (na acepo etimolgica de fora da lei),proibido, ilegal, do homossexualismo, repetem-se nos ver

    sos de Kavfis: ele a ilcita ebriez ertica a que oadolescente de Passagem se atira para gozar enfimtudo quanto, tmido escolar, sonhou, assim como oilegal desejo da carne experimentado pelos dois protagonistas de A vitrina da tabacaria, poema onde estbem ilustrado um certo carter por assim dizer esotricodo homossexualismo. A cena nele descrita a de um

    grupo de pessoas postadas diante da vitrina iluminada deuma tabacaria, a admirar-lhe as mercadorias expostas.Possivelmente refletidos no vidro, os olhares de duas de-

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    Ias se encontram e h o pronto reconhecimento do desejoque neles arde, timidamente, irresolutamente. Afastam-se da vitrina, fazem um leve aceno de anuncia

    E ento, dentro da carruagem fechada,

    e sensual aproximao dos corpos;

    as mos unidas, os dois lbios unidos.

    Digno de nota, aqui, no s o mtuo reconhecimentodos protagonistas, por via de sinais imperceptveis aos demais, como sres parte do grupo e compelidos ocul-tao, donde o vnculo esotrico a uni-los numa espciede tcita confraria, mas, principalmente, a ausncia, notexto, de qualquer marca gramatical denunciando-lhes osexo. Essa indefinio muito comum na poesia amorosade Kavfis e decorre de uma particularidade da sintaxegrega, qual seja a sistemtica omisso do pronome-su-

    jeito, que nem mesmo existe no idioma para a terceirapessoa, fazendo-lhe as vezes o pronome demonstrativoafts, aft, afto, afts (este, esta, estes, estas), de restos usado quando absolutamente necessrio. Na maiorparte dos casos, a flexo verbal e o sentido do contextoso quanto basta para identificar o agente. Evidentemente, o sexo deste poderia ser denunciado pelo gnero dos

    adjetivos, mas o poeta ou cuida de evit-los ou os usado tipo dito uniforme, isto , com uma mesma forma parao masculino e o feminino. Quis-se ver, nessa ambigidadeou indefinio, um recurso usado, por Kavfis para evitarcomprometer-se publicamente. Em apoio dessa interpretao, h uma passagem do prprio Kavfis, num de seuspoemas metalingsticos poemas sobre a poesia, so

    bremaneira importantes para o melhor entendimento deseu projeto criativo , em que ele se recomenda a se-mi-ocultao de suas vises erticas:

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    Esfora-te, poeta, por ret-las todas,

    embora sejam poucas as que se detm.

    As fantasias do teu erotismo.

    Pe-nas, semi-ocultas, em meio s tuas frases.

    Contudo, em face de outros poemas, onde o carter homossexual do amor que celebram ostensivamente declarado, parece-me mais avisado ver nessa ambigidadeou indefinio um trao estilstico tipicamente simbolista,cujo propsito seria menos o de evitar o comprometimento

    do poeta do que infundir no leitor a noo de ser o amoruma experincia de tal modo total que se coloca acimadas prprias distines de sexo. a experincia inefvelde receber Eros, a volpia feito deus e que nos versosde Kavfis ora aparece grafado com maiscula ora comminscula, a hesitar entre o cu e a terra. A partir domomento em que Eros vem habitar o ser humano, este

    se torna possesso dele; sua vontade deixa de estar sob oimprio da razo ou da prudncia para ser joguete dosinstintos e da loucura. Tal como acontece com Iasis, umdos muitos efebos histricos criados por Kavfis, quepara ele escreveu um auto-epitfio a fim de louvar-lhe abeleza, comparvel de Narciso ou de Hermes, e paracontar ter-se ele deixado matar ainda jovem pelo ardor,

    pela febre e pela volpia suprema da vida de Alexandria.A esse efebo por assim dizer herico, no qual se encarnao ideal kavafiano da plenitude do prazer, ope-se o medroso protagonista de Um velho, um dos poemas iniciais do cnon: sentado sozinho diante de um jornal, nofundo de um caf, recorda ele amargamente os temposde juventude, os dias de vigor, eloqncia, beleza, mas

    quando, iludido pelos ditames do bom senso ou sabedoria, sacrificou e adiou para mais tarde, em nome da cautela, o desfrute ds prazeres da vida, agora irremediavelmente perdidos. oposio jovem/velho corresponde

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    simetricamente, na poesia de Kavfis, a oposio loucura/bom senso, com a positividade recaindo sempre no primeiro dos termos opositivos, como seria de esperar emalgum to apegado tradio clssica. Pois no traouAristteles, no captulo XIII de sua Arte Retrica, umimpiedoso retrato do Carter dos velhos, denunciando-lhes a prudncia, a irresoluo, a mesquinhez, o egosmo,a frouxido, o cinismo, a pusilanimidade e o calculismo,enquanto num captulo anterior, ao tratar dos Caracteres dos jovens, destacava-lhes o vigor, a fogosidade, a

    ndole naturalmente boa, a coragem, o gosto da beleza,a compassividade, a candidez? Assim tambm, na lricade Kavfis, os valores exaltados situam-se todos na esferada espontaneidade juvenil, do mesmo passo em que areflexividade da idade madura e da velhice vista comouma instncia de vicariedade, isto , de nostlgica revi-vescncia das galas da mocidade por via da memria. A

    pusilanimidade, por exemplo, condenada, atravs deum smile ou correlativo mobilirio, em Candelabro,onde se descreve um candelabro cuja luz intensa e voluptuosa, a iluminar o pequeno quarto de paredes verdes,no foi feita para os corpos tmidos; em contraposio,o jovem escolar de Passagem merece acolhida no AltoMundo da Poesia exatamente porque no temeu deixar-se

    levar pelas incitaes do sangue moo cheio de calor ese entregou por inteiro ilcita ebriez ertica. Se nestecaso a entrega foi feita com a irreflexo e a espontaneidade da adolescncia, no o foi no caso do protagonistade No 25. ano de sua vida: cnscio embora do riscode degradao social, do escndalo funesto de ligar-seabertamente a um dos muitos jovens desconhecidos e sus

    peitos que freqentavam as tavernas, continuava a l irprocur-lo toda noite, possudo que estava da loucura deEros Sua mente enfermou-se de lascvia. Mas oestigma social do homossexualismo est fixado com por

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    menorizada e inexcedvel dramaticidade em Dias de1896, poema que vale a pena citar na ntegra:

    Aviltou-se por completo. Um seu pendor ertico,de todo interdito, de todo desprezado(embora fosse inato), o levou runa:a sociedade se mostrou muito pudica.Aos poucos foi perdendo os seus modestos haveres;

    depois a posio e por fim o prestgio.Estava perto dos trinta e jamais por um ano

    conservara um emprego, ao menos conhecido.

    Por vezes, o sustento seu ele o ganhava

    atravs de negcios tidos por vergonhosos.Tornou-se um desses tipos em cuja companhiaera arriscado andar-se porque comprometia.

    Mas no seria justo ficar somente nisso.

    Melhor recordar, antes, a sua beleza.

    H uma outra maneira de v-lo, na qual

    aparecer simptico, uma simples, autntica,

    criatura do amor, que acima da honra

    e da reputao, punha sem mais refletir,

    de sua carne pura a pura volpia.

    Da sua reputao? A sociedade, que erapudica ao extremo, comparava . tolamente.

    Nas duas tradues que pude consultar deste poema, afrancesa de Marguerite Yourcenar e Constantin Dima-ra s ,18 e a italiana de Filippo Maria P ontani,19 o verbosishtize,que aparece no ltimo verso e que os dicionrios

    18. Ob. cit., p. 223.19. Pontani, ob. cit., p. 176.

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    registram com a acepo de relacionar, correlacionar,comparar, pr lado a lado, aproximar, foi traduzido umtanto livremente. No texto francs, aparece como opi-

    naient e, no italiano, como commentava. A mim me parece mais avisado traduzi-lo por comparar, tendo emvista a semntica do poema. Pois o que neste se estabelece um paralelo e/ou contraste entre a moralidadedo grupo e a conduta do indivduo; do conflito entreambas resulta a rejeio, e a degradao progressiva, doprotagonista, com o que, mais uma vez, adquire valor

    icnico a fenda mediana a cortar sistematicamente todosos versos. Todos menos um: no verso onde se diz ter sidoa sociedade muito pudica, inexiste a fenda, figurandoessa ausncia, implicitamente, a coeso do grupo, fechadona sua intolerncia para expulsar de si o transgressor. Porcndido demais, no soube este recorrer s tcnicas damentira para salvar as aparncias; deixou-se arrastar inteiramente pela volpia e com isso teve de expiar o crimeda candidez, cumprir a via crucis da degradao: a runaeconmica, a desonra pblica, e at mesmo o comprometimento com o submundo do crime os negcios tidospor vergonhosos. A comparao de valores que se fazno poema , evidentemente, a mesma dO Contrato Social:indivduo x sociedade. Tanto quanto Rousseau, Kavfisse alinha sempre em favor do primeiro termo dessa eternaoposio, o termo polarizador dos valores naturais e,como tais, positivos. Lembre-se que o pendor ertico doprotagonista, interditado pela pudiccia da sociedade emque vive, descrito como inato, o que desde logo lhetira o carter de anormalidade: como pode ser anmaloalgo provindo da prpria natureza? Na mesma instnciade bondade natural se incluem os prazeres d amor e a

    carne atravs da qual eles se cumprem, cumprimento aque invariavelmente se associa, na poesia de Kavfis,outro valor no menos positivo a beleza. Da os atri

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    butos do protagonista: tanto a sua carne quanto a volpiapor ela reclamada so significativamente ditas puras, eentre as provas de defesa arroladas, em nome da justia,

    para contrapor condenao social de que foi vtima,figura, em primeiro lugar, a beleza.Em numerosos outros poemas vamos encontrar idn

    tico alinhamento em prol da espontaneidade e da irreflexo da juventude (com o que faz pendant, as mais dasvezes, a reflexividade impotente da velhice), de sua plenae pronta entrega s compulses do prazer. Esses poemas

    compem uma somatria dos traos do efebo kavafianoarquetpico, traos que o definem como uma espcie deatleta da volpia, cujo retrato foi pintado pelo aquare-lista do poema Num velho livro com o ttulo de Apresentao do Amor, a que o poeta se apressou a acrescentar um subttulo, do amor dos sensuais extremados,certamente para distingui-lo do outro amor, o mediano,

    comum, heterossexual:Pois era manifesto, ao contemplar-se o quadro

    (e facilmente se entendia o propsito do artista)

    que no era os que amam de modo salutar,

    restringindo-se assim ao permitido,

    que estava destinado aquele efebo

    do quadro com os seus olhos de um castanho escuro

    e a requintada beleza do seu rosto,

    beleza dos pendores anmalos;

    com os seus lbios ideais que levam

    a volpia ao corpo amado;

    com os seus membros ideais, criados para leitos

    que a moralidade vulgar tem por infames.

    Criados, no penltimo verso, traduz plasmenos, adjetivo derivado do verbo plsso ou pltto, criar, fazer, afei-oar, moldar e 'onde no difcil reconhecer a raiz de

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    plstico e de plasmar: esse verbo tem, pois, em grego,conotaes sobretudo tcteis, escultricas, com o que semarca o carter igualmente plstico e sensual da beleza

    do arqutipo kavafiano. Alis, beleza diz-se em gregoemorfi, palavra nucleada em morf, forma, e que esttambm umbilicalmente ligada ao aspecto material dascoisas. Isto em nada contradiz a idealidade platnica desseefebo-modelo, desde logo acentuada pelo adjetivo idealcom que lhe so louvados os lbios e os membros. Idealidade, aqui (como de resto em todo o pensamento gre

    go), no se ope a materialidade, mas designa-lhe anteso grau mximo, a perfeio. Importa sempre acentuar esteponto em Kavfis, que foi um poeta muito mais do corpoque do esprito. E essa palavra-chave que aparece noverso onde se define a beleza do efebo arquetpico nocomo a beleza tout court, mas, especificamente, como abeleza dos pendores anmalos e cuja funo menos

    a de encantar a faculdade contemplativa do que levara volpia ao corpo amado. Trata-se ento, por assimdizer, de uma beleza instrumental, a servio dessa instncia suprema da ars potica kavafiana que o corpo. Tudoexiste para servir ao corpo: a volpia com que se deleita,ele no a busca ativamente; ela lhe levada pela prpriabeleza por que anseia e com que se encanta. Em nenhum

    outro lugar essa passividade ativa se me permitem oparadoxo est mais bem expressa do que em Lembra, corpo... , poema a cuja importncia j tive ocasiode aludir de passagem. A expressividade decorre, no caso,da perfeita adequao entre o que se diz e o modo dediz-lo. Para figurar o estado de deleite passivo ou depassividade deleitosa em que se centram os devaneios doeros homossexual, vale-se o poeta, com admirvel propriedade, de um recurso de ordem gramatical da lnguagrega, qual seja o chamado verbo mdio-passivo, cujaconjugao difere da do verbo ativo; o mdio-passivo faz,

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    a um s tempo, as vezes da voz passiva e da voz reflexa.J nessa duplicidade de funes espelha-se, em nvel gramatical, o estado de receptividade do corpo e, mais do

    que isso, o jogo reflexo entre atividade e passividade: odesejo por ele tivamente despertado em outro corpo o mesmo desejo por ele passivamente experimentado e acuja satisfao aspira:

    Lembra, corpo, no s o quanto foste amado, no s os leitos onde repousaste,mas tambm os desejos que brilharampor ti em outros olhos, claramente,

    e que tornaram a voz trmula e que algumobstculo casual fez malograr.

    A idia central do verso de abertura ser amado ,que em portugus se exprime pela voz passiva analtica, expressa em grego por uma forma sinttica, agapimai,que virtualmente significaria tanto sou amado comoamo-me, duplicidade onde se espelha o narcisismo docorpo que, mesmo quando amad por outro corpo, es-t-se amando a si prprio.

    Tanto o corpo a instncia suprema para Kavfisque ele o coloca acima do esprito, da alma ou da conscincia, como se queira chamar-lhe; vale dizer, acima daprpria individualidad