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LABOR 1 Trabalho Escravo um problema do brasil contemporâneo revista do Ministério Público do Trabalho • ano I • n o 1 • 2013 IssN 2317-2401 TraNsPorTE Motorista e cobrador sofrem com más condições de trabalho caIEIras Jandaíra produz cal e vidas sem futuro McDoNalD’s Direitos do trabalhador ignorados FuTEbol Times brasileiros precisam proteger jovens atletas

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  • LABOR 1

    Trabalho Escravo um problema

    do brasil contemporneo

    revista do Ministrio Pblico do Trabalho ano I no 1 2013IssN 2317-2401

    TraNsPorTEMotorista e cobradorsofrem com mscondies de trabalho

    caIEIrasJandara produzcal e vidassem futuro

    McDoNalDsDireitos dotrabalhador ignorados

    FuTEbolTimes brasileirosprecisam protegerjovens atletas

  • LABOR 32 LABOR

  • LABOR 54 LABOR

    o auditor fiscal do Trabalho Paulo csar lima fala sobre como resgatava trabalhadores no interior do brasil 8

    Trabalho escravo, problema antigo no brasil do sculo 21 14

    combate fraude no seguro-defeso 24

    Em Jandara, trabalhador tem somente um futuro: as caieiras 26

    Motoristas, cobradores e passageiros sofrem com transporte pblico nas cidades 32

    Equipamentos de proteo garantem melhores condies de vida a coletores de iscas no Pantanal 40

    Passado calcado na escravido e no machismo marca cotidiano de domsticos 44

    Jornada legal: motoristas correm contra o tempo e pem vidas em risco nas estradas 52

    longas jornadas, esforos repetitivos e ambientes inadequados resultam em

    adoecimento nos frigorficos 60

    MPT procura donos de r$ 600 milhes depositados em contas do FGTs

    66

    McDonalds usa jornada mvel varivel para reduzir custos, burlar direitos e

    desrespeitar trabalhadores 68

    cumprimento da lei 8.213/1991 depende de sensibilizao, fiscalizao e punio

    72

    setor sucroalcooleiro ainda mantm trabalho degradante em sergipe

    78

    MPT negocia com clubes proteo a adolescentes nas categorias de base

    82

    Procuradora do Trabalho Elaine Nassif escreve sobre histria da ao civil pblica

    e o futuro do MPT 88

  • LABOR 76 LABOR

    Labor - Revista anual do Ministrio Pblico do Trabalho

    Procurador-geral do Trabalho Lus Antnio Camargo de Melo

    Vice-procurador-geral do Trabalho Eduardo Antunes Parmeggiani

    Chefe de gabinete do Procurador-Geral do Trabalho Erlan Jos Peixoto do Prado

    Diretora-geralSandra Cristina de Arajo

    Labor foi produzida pela Assessoria de Comunicao Social do Ministrio Pblico do Trabalho

    Jornalista responsvelRodrigo Farhat (MTE 4139/MG)

    EditoresMarcela Rossetto e Rodrigo Farhat

    Textos Alessandro Soares, Ana Alves, Anucha Melo, Carolina Villaa, Dimas Ximenes, Elaine Nassif, Elton Viana, Ftima Reis, Fernanda Magalhes, Flvio Wornicov Portela, Gilberto Gatti, Gisele Rosso, Keyla Tormena, Lvia Vasconcelos, Ludmila Di Bernardo, Llia Gomes Ferreira, Maria Augusta Machado de Carvalho, Mariana Banja, Messias Carvalho, Paula Estrella, Rafael Almeida, , Rodrigo Farhat, Tamiles Costa, Vanessa Napoleo e Wanderson Lima

    RevisoMarcela Rossetto

    ImagensAna Alves, Arquivo Ascom/MPT, Braz Antnio, Carolina Villaa, Fernanda Magalhes, Heiler Ivens de Souza Natali, Keyla Tormena, Leonardo Sakamoto, Lvia Vasconcelos, Ludmila Di Bernardo, Marcelo Sadio/www.vasco.com.br, Mariana Banja, Messias Carvalho, Paula Estrella, Portal da Copa, Rafael Almeida, Raquel Rodrigues, Rodrigo Farhat, Sandro Sard, Stockphotos e www.sxc.hu

    Design, tratamento de imagens e arte-final Guilherme Monteiro e Smela Lemos

    Ilustraes Cyrano Vital

    Infogrficos Guilherme Monteiro

    Pesquisa Bruno Soares e Fabula Souza

    Diagramao Grfica Aquarela, Guilherme Monteiro e Smela Lemos

    Circulao Ana Paula Fayo, Cleanne Rosa e Evelize Vidal

    AdministraoKelma Barreto e Nathlia Teixeira

    Impresso Grfica Movimento

    Tiragem 5 mil exemplares

    Braslia, outono de 2013

    Vamos em frenteEsta a primeira edio de Labor, nova publicao do Ministrio Pblico do Trabalho. Ao longo de quase uma centena de pginas, esta revista rene histrias de homens e mulheres, de norte a sul do pas, que sofrem ou sofreram desrespeito aos seus diretos mais fundamentais no ambiente de trabalho e o enfrentamento a essa realidade realizado pelos procuradores do Trabalho.

    O tema de capa mostra o perfil do trabalho escravo contemporneo e reconstitui o vergonhoso caso da grife Zara, que escravizou bolivianos em oficinas txteis terceirizadas de So Paulo. Nenhum caso rendeu tanta repercusso, com destaque na imprensa de mais de 80 pases.

    O caso Zara figura entre os 3,3 mil estabelecimentos inspecionados, onde foram resgatados mais de 43 mil trabalhadores de 1995 a 2012, durante operaes no combate ao trabalho escravo contemporneo. O assunto tambm abordado na entrevista do auditor fiscal do Trabalho Paulo Csar Lima, o Curicaca, que conta como libertava trabalhadores em fazendas do interior do Par.

    Cadeia do Frio deixa em carne viva os efeitos nocivos da concorrncia nos frigorficos. a histria das catarinenses Zlia Machado, que perdeu os dedos da mo direita, e de Valdirene da Silva, que aps 11 anos desossando sete coxas de frango por minuto foi aposentada por invalidez e se tornou dependente de morfina. Ambas tinham jornadas de trabalho tpicas do incio do sculo passado.

    No Limite descreve a rotina dos caminhoneiros. Mais de um tero da categoria roda mais de 13 horas por dia. Quase 80% sentem o peso do sono ao volante e 64% conhecem colegas que se drogam para dirigir. um quadro que resulta em cerca de 4 mil mortes por ano nas rodovias federais envolvendo caminhes e nibus. A boa notcia a expectativa de fiscalizao com a Lei do Motorista.

    A cobertura abrange tambm diversas outras atividades profissionais, como os empregados do McDonalds, que sofrem jornada injusta e desrespeitosa. H ainda o retrato dos catadores de iscas no Pantanal, que depois de tantos anos correndo risco mergulhando em guas onde habitam arraias, sucuris, piranhas e jacars, agora se protegem com macaces impermeveis.

    So relatos de vida ignorados pelas discusses macroeconmicas. So histrias de vida dedicadas ao crescimento do pas, que voc encontra aqui, em textos e imagens assinados pelos jornalistas do MPT de todo o pas.

    Felicidades.

    Lus Camargo

    Procurador-geral do Trabalho

  • LABOR 98 LABOR

    O libertador de homens

    entrevista

    Auditor fiscal do Trabalho, Curicaca conta como resgatava trabalhadores em fazendas do Par

    Curicaca, o Paulo Csar Lima, nasceu na periferia de Parnaba (PI), no bairro de So Jos, o Cheira Mijo, segundo os prprios moradores. Terceiro de quatro filhos de um alfaiate com uma aplicadora de injeo na veia de rua, como descreve a ocupao da me, foi criado por uma tia, at se formar em engenharia civil. Ele tambm tinha como padrinho um mdico, que o mantinha na escola. Ganhava os livros e o uniforme se tirasse boas notas, a cada ano. Se rateasse na curva, me ferrava. Sempre deu certo e, em 1972, foi estudar no Maranho. Seu irmo mais velho j estava na faculdade. Em sua casa era assim: o irmo estudava, comeava a trabalhar e passava a cuidar do mais novo.

    Ele se formou em julho de 1978 e foi trabalhar em Rio Branco, na Companhia de Saneamento do Estado do Acre. Certa vez, foi apresentar um trabalho em Braslia e conheceu o prefeito de Parnaba, que o convidou para retornar cidade. Era o sonho de minha vida, voltar formado e ajudar minha famlia.

    Voltou como secretrio do prefeito, trabalhando no Programa de Cidades de Porte Mdio. Foi demitido na gesto seguinte. Passou apertado e no tinha dinheiro nem para consertar o pneu do carro. Ento, um amigo falou sobre o concurso do Ministrio do Trabalho. Paulo Csar fez a prova e passou. Era setembro de 1983.

    Aos 57 anos, como ex-coordenador de grupos mveis do Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE), tem muitas histrias para contar sobre o combate ao trabalho escravo contemporneo, apesar de no integrar grupos mveis desde 2006. Na Gerncia Regional de Trabalho e Emprego de Parnaba, hoje ele investiga acidentes de trabalho urbano e, vez por outra, participa de fiscalizaes rurais.

    Sua vida como Zumbi dos Palmares moderno comeou com uma operao do MTE que constatou haver trabalho escravo na usina de lcool e acar do empresrio Ari Magalhes. Ele era auditor fiscal e acompanhou a investigao, comandada pela auditora fiscal Cludia Mrcia Ribeiro Brito, do acidente em Teresina que matara e ferira grande nmero de trabalhadores. Mais tarde, o empresrio virou deputado federal e conseguiu trocar o comando da Delegacia de Trabalho. No lugar de Cludia Brito, indicou Audrei Magalhes, sua sobrinha. Curicaca, assim, ficou algum tempo no ostracismo.

    Mas era e irrequieto como a ave pernalta que d sentido ao apelido Curicaca. Um dia, de Braslia, Cludia Mrcia ligou para ele, convidando-o para trabalhar nos grupos mveis. Foi. Precisava ver se afinava com a ideia. Era 1994 e descobriu a vida. Vi os caras

    parecidos comigo. Todos da minha regio. Todos nordestinos. Tinha afinidade com a luta.

    Seu jeito facilitava o contato com os pees. Falavam a mesma lngua e no tinha dificuldade em compreender o que diziam. Era um homem realizado, pago para fazer o que gostava. Mas nem tudo era cor-de-rosa. Havia dificuldades internas e externas. As primeiras estavam relacionadas a pontos de vista, gesto das operaes de fiscalizao, e as segundas, aos parceiros, que no tinham o mesmo foco que os auditores fiscais. No acreditavam na existncia do trabalho escravo. Diziam: O cara veio pra c porque quis. Ele estava quieto l na casa dele. Por que no ficou no Nordeste?. Os principais problemas eram diferenas com policiais federais. Uma vez, um deles chegou a dizer: Se um peo der trabalho para voc, Curicaca, se ele se meter a besta, vai se ver comigo. Os anos 1990 chegavam ao fim.

    Mais tarde, passou a coordenar um dos grupos mveis. Os auditores fiscais Cludia Mrcia, Valderez Monte, Marinalva Dantas e Paulo Mendes comandavam os outros.

    A primeira operao foi no Xinguara, no sul do Par. Sa de Parnaba sozinho em direo a Caxias, no Maranho. L, encontrei a Cludia [Cludia Mrcia Ribeiro Brito] e ficamos esperando outro auditor, o Srgio Carvalho de Santana. De camionhete, fomos at Marab, conta.

    Uma operao de fiscalizao durava de 12 a 15 dias, naqueles anos. Hoje o tempo menor. H outras diferenas tambm, principalmente tecnolgicas. Naquele tempo, no havia telefone, nem notebook. Tudo era no brao. No havia nem cmara fotogrfica. Hoje, os integrantes de um grupo mvel tm telefone e sistemas de posicionamento por stelite. Tm

    computador, internet e bons carros para entrar no meio do mato.

    Curicaca andou em fazenda que tinha dez pees e at em algumas com 1,8 mil. A gravidade no est na quantidade de trabalhadores escravizados, mas na violncia envolvida. Ele explica que a escravido por dvida a mais palpvel, pois voc pega o caderno do gato e fica sabendo quem trouxe quem e como trouxe. um novelo, do qual s se sabe o comeo, mas no se conhece o fim.

    Para ele, se o governo no educar, no promover a reforma agrria e no fizer leis mais rgidas, nada ter adiantado. Esta a soluo: educar, criar empregos e resolver o problema da terra.

    A gravidade no est na quantidade de trabalhadores escravizados, mas na violncia envolvida

    Existem dez grupos mveis no MTE, dos quais quatro so de combate ao trabalho escravo. O MTE tem cerca de 40 auditores fiscais do Trabalho e outros cem treinados no tema. Cada grupo mvel tem de seis a dez auditores e igual nmero de policiais federais ou rodovirios, alm de juzes e procuradores. Cada operao custa, em mdia, R$ 60 mil, sem considerar manuteno de viaturas e equipamentos.

    Por rodrigo Farhat

  • LABOR 1110 LABOR

    Curicaca responde Quando e como comeou o enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil?

    Foi o bispo de So Flix do Araguaia, dom Pedro Casaldliga, quem primeiro falou sobre a existncia de trabalho escravo no Brasil. Eram os anos 1970. Mais tarde, Walter Barelli [ministro do Trabalho do governo Itamar Franco, 1992/94], declarou: Se tem trabalho escravo, vamos acabar com ele. E foi para Marab (PA), acompanhado da auditora Vera Jatob. L, eles criaram os grupos rurais de fiscalizao. Os grupos mveis nasceram no governo Fernando Henrique Cardoso.

    Como um homem se tornava escravo nos anos 1990?

    O cara pegava um nibus e chegava numa cidade podia ser em Barras de Maratau (PI) , e anunciava em uma rdio FM que tinha trabalho no Par. Ele, ento, escolhia os mais novos, os mais fortes ou ento aqueles que j tivessem trabalhado uma vez. De tanto o Ministrio do Trabalho, o Ministrio Pblico do Trabalho, a Polcia Federal e a Polcia Rodoviria Federal combaterem esse crime, eles mudaram a ttica.

    Como organizada uma operao de fiscalizao?

    tudo feito em sigilo. Na operao de Xinguara, por exemplo, no sabia o que ia ocorrer. Ento, antes, em Marab, encontramos os outros, Snia Nassar, Alrio e Raimundo Tadeu. Tambm encontramos os policiais federais. Naquele dia, senti o perfume da violncia na cidade. Eu me assustei. O X9 tambm estava com medo. Tanto que saiu correndo do carro, no meio da noite, depois de passar as informaes sobre o local da fazenda e o nome do gato.

    Chegamos ao amanhecer. Estava escuro. A polcia pegou Baiano Chapu Preto e ns fomos calcular o tempo de servio e o valor a que cada trabalhador tinha direito. Foi a primeira vez em que me deparei com a inteligncia dos pees. Faltou cola para fixar o retrato na carteira de trabalho e um peo, o Vampiro, pegou um pedao de isopor, um pouco de gasolina e fez a cola. Era assim que ele colava os bicos das botinas, no meio do mato. Encontrei aquele gato outras duas vezes, nas fazendas Brasil Verde e na Rio Vermelho, ambas no sul do Par.

    O tempo do planejamento depende de cada caso. Se for roo de juquira tem que ser rpido. Imagine um fazendeiro com 200 pees cortando juquira para limpar pasto. Em trs ou quatro dias, tudo estar terminado.

    Qual a dinmica atual do trabalho escravo? Depois do cerco aos fazendeiros, como eles agem para aliciar mo de obra?

    A dinmica hoje outra. O gato paga o dinheiro da passagem para o peo, at Miranda do Norte (MA). L, ele pega o trem da Vale do Rio Doce e vai at Marab (PA). um trem de carga e de passageiros. Em Marab, ele pega uma caminhonete garimpeira, uma D-20 coberta de lona com bancos de madeira e vai at Xinguara.

    L, ele fica em um hotel de pioneiro disposio do gato. A dona da penso nem se preocupa com o dinheiro das dirias, porque ela sabe que mais dia menos dia vai chegar um gato para assumir a dvida do peo e lev-lo para uma fazenda. Essa a dinmica de hoje.

    Os donos de hotis tambm so cmplices?

    Sim, eles fazem parte da teia e alguns j esto sendo processados.

    Quando o fazendeiro se torna cmplice?

    O grande patro somente entra nesse circuito quando ele chama o gato, o arregimentador da mo de obra, e diz: Eu quero tantos. Ele no quer saber se o trabalhador veio do Piau, do Cear ou do Maranho. A o gato chega e diz que tem 30 na penso da dona Lourdes. Paguei R$ 3 mil. Est aqui o caderno. O cara vai e paga o dinheiro para ele. A comea a histria.

    Qual a reao dos fazendeiros?

    O fazendeiro tem que pagar as rescises na ficha, na hora.

    Houve uma poca, no sul do Par, que eles fizeram uma caixinha. Sabiam que os grupos no davam conta de mais de duas fazendas. Ento, se um grupo est em uma fazenda e o fazendeiro no tem como pagar, esse grupo vai fiscalizando outras propriedades. Assim, eles se juntaram para pagar as dvidas rapidamente. Era uma forma de o grupo mvel ir embora logo.

    Como ocorrem as operaes?

    A denncia chega at a Comisso Pastoral da Terra (CPT) ou a um sindicato de trabalhadores, que a encaminha Secretaria de Inspeo do Trabalho. O MTE repassa os dados Polcia Federal e ao MPT. O planejamento de uma ao dura de um a trs dias. Geralmente, ocorrem em carvoarias, canaviais ou pastagens. A gente chega de surpresa. Eles no tm como saber que estamos indo. Chegamos nos hotis em carros descaracterizados. Os donos desses estabelecimentos tm ligaes estreitas com os fazendeiros, que no moram na regio. Ento, no dizemos quem somos. Quando eles vm de Goinia (GO), Araguana (TO), Araatuba (SP), ficam hospedados nos mesmos hotis que nossa equipe. Os gatos tambm ficam l. Ento, temos que ser cuidadosos. Dizemos que somos de uma universidade. Que estamos fazendo pesquisas.

    Como os procuradores do Trabalho entraram em cena?

    A primeira vez em que viajei com um procurador do Trabalho foi em uma operao de fiscalizao em 1998. Na cabea da gente, os procuradores do Trabalho estavam distantes. Quando o MPT entrou na luta, a coisa mudou, porque passamos a ter quem acionasse a Justica imediatamente. Ns lavrvamos autos de infrao, mas dez autos no tm a dimenso de um termo de ajustamento de conduta. At em relao Polcia, pois ficou mais fcil se entender com os policiais. Os fazendeiros ficaram mais acuados. A imprensa tambm passou a acompanhar as operaes e a questo ganhou visibilidade.

    Voc j deve ter vivido centenas de histrias...

    Em gua Azul do Norte, no Par, os pees achavam que eram bem tratados, pois o fazendeiro levava prostitutas ao acampamento. Em Itupiranga, no mesmo estado, o informante se enganou e deu o rumo errado da fazenda. Estvamos em trs carros. Dormimos em Quatro Bocas, em um hotel sobre palafitas. Samos cedo e paramos para comer ainda pela manh. Era a Copa do Mundo de 2002 e o Brasil jogava contra a China. Quando voltamos aos carros, tinha um cara com o rosto coberto na frente de um deles. Os 12 assaltantes entraram, quatro em cada caminhonete. Curicaca levou um tapa de um deles. No mexe com o motora, porque ele no tem nada a ver com isso, ouviu de outro. Fugiram em um nibus e um caminho de boiadeiro, levando armas, munio, notebooks e telefones. Eles sabiam quem ramos, eu tenho certeza.

    Qual a que voc sempre se lembra?

    Foi a do menino Abel. Tinha 12 anos e trabalhava em uma carvoaria na regio de Aailndia (MA). Fui conversando com ele. Como sua vida aqui? Acordo s 5h. Vou tomar banho, tomo o caf e comeo a bandeirar [colocar a madeira em condio de ser medida]. Depois, vou encher o forno e almoo. Paro s 16h. No brinca e no estuda? No tenho tempo disso, no. Uma criana de 12 anos desesperanada. Ele no tinha perspectiva de vida. Vivia juntando dinheiro para comprar uma casa para a me, que tinha problema nas pernas. Seu maior sonho era ter uma bicicleta. Foi libertado e recebeu um dinheiro. Nunca mais tive notcias de Abel.

  • LABOR 1312 LABOR

    Outras lnguasCuricaca tem um jeito diferente de falar. Suas expresses, s vezes, so de difcil compreenso para brasileiros de outras regies do pas. No convvio com esses homens, o auditor fiscal, o policial ou o procurador do Trabalho no pode subestimar a situao contada pelo trabalhador. Veja algumas dessas palavras, catalogadas pela auditora fiscal do Trabalho Marinalva Dantas.

    Apanhar de pano levar surra com o lado plano do faco

    Barriga peo inexperiente

    Cachorra rede de dormir

    Bate-pau informante da polcia

    Empreiteiro aliciador de mo de obra

    Emprestante agiota

    Fechar matar

    Gato intermediador de mo de obra

    Guaxeba pistoleiro

    Mtodo TV Se vira

    Pagar na ficha pagar na hora

    Peo trabalhador braal, urbano ou rural

    Peo trecheiro aquele que no consegue sair do crculo da escravido

    Peonagem escravido contempornea no Brasil

    Queixudo trabalhador que costuma se queixar

    Retagato fiscal do servio

    Salrio cativo quando o trabalhador paga pela alimentao

    Salrio livre a alimentao no cobrada do trabalhador, mas seu salrio menor

    Taca surra violenta

    Urutu peo experiente

    X9 informante

    Fonte: Diviso de Fiscalizao para Erradicao do Trabalho Escravo (Detrae/MTE)

    O trabalhador escravizadoSo migrantes, analfabetos, clandestinos, pessoas com deficincia, doentes, alcoolistas e pessoas que nunca tiveram um documento de identificao.

    Homens de 18 a 44 anos

    Analfabetos ou com at 2 anos de estudo

    85% dos resgatados haviam comeado a trabalhar com menos de 12 anos de idade

    Escravido Contempornea

    Art. 149 Reduzir algum condio anloga de escravo, submetendo-o a trabalhosforados ou jornada exaustiva, ousujeitando-o a condies degradantes detrabalho, restringindo sua locomoo em razo de dvida contrada com o empregador.

    Pena Recluso, de dois a oito anos, e multa, alm da pena correspondente violncia. A pena aumentada de metade, se o crime cometido contra criana ou adolescente.

    Aliciamento de trabalhadores

    Art. 207 Aliciar trabalhadores, com o fim de lev-los de uma para outra localidade do territrio nacional.

    Pena Deteno de um a trs anos e multa. Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execuo do trabalho, dentro do territrio nacional, mediante fraude ou cobrana de qualquer quantia do trabalhador, ou ainda, no assegurar condies do seu retorno ao local de origem.

    O que diz o Cdigo Penal

    A primeira operao de resgate de trabalhadores de Curicaca foi em Xinguara, em vermelho, no mapa menor

  • LABOR 1514 LABOR

    Esta reportagem no necessitaria ser publicada aqui, pois o tema da escravido deveria ser exclusivo dos livros de histria. Em pleno sculo 21, no entanto, dados da Diviso de Fiscalizao para Erradicao do Trabalho Escravo do Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE) mostram que mais de 43 mil trabalhadores foram resgatados entre 1995 e 2012 em 3.353 estabelecimentos inspecionados durante as operaes de fiscalizao para erradicao do

    trabalho escravo moderno.O trabalho forado, a servido por dvida, a jornada exaustiva ou trabalho degradante, apesar de serem crimes tipificados no artigo 149 do Cdigo Penal, ainda so uma realidade no campo e nas cidades brasileiras.

    o que mostram as reportagens de Lvia Vasconcelos, Ludmila Di Bernardo, Rafael Almeida e Wanderson Lima, produzidas em Cuiab (MT), So Paulo, Campinas (SP) e Cod (MA).

    Por raFael almeida

    trabalho escravo

    Flagrante de trabalho escravo muda paradigma do setor txtil

    Trabalhadoresrecebem R$ 0,20por pea e costuram das 7h s 21h Em toda a histria do Ministrio Pblico do Trabalho (MPT), nenhum fato deu tanta

    repercusso quanto o caso Zara. Publicado pela imprensa em mais de 80 pases, o flagrante de trabalho escravo envolvendo a famosa grife espanhola chocou o mundo e trouxe tona uma discusso at ento encarcerada nos pores das oficinas clandestinas.

    A implicao do trabalho de procuradores e auditores fiscais neste episdio se deu nas searas social e econmica, trazendo consequncias inditas ao setor de confeces e vida de trabalhadores at ento alienados dos mais bsicos direitos.

    A escravido contempornea ou anloga, tema constante de debates promovidos por setores da sociedade civil, ganhou forma e

    revigorou-se em face da desvendada realidade de imigrantes achincalhados pela (i)lgica da cadeia produtiva txtil.

    Os desdobramentos do caso fora do Brasil dispararam aos agentes pblicos um alerta vermelho. Audincias na Assembleia Legislativa de So Paulo, pedidos de abertura de Comisso Parlamentar de Inqurito (CPI), reunies em Comisses do Congresso Nacional: todos os fatos advindos do caso Zara refletem a preocupao dos brasileiros para com a imagem de seu pas no exterior.

    Ponto de partidaNo curto espao de trs meses, perodo em que o trabalho de campo foi realizado, um desafio

    despontou s instituies: as mudanas devem vir em prol de todo um segmento econmico, no apenas dos empregados ou terceirizados de uma empresa, no sentido de atingir a qualidade de vida desses trabalhadores e dar cumprimento aos desgnios constitucionais, notadamente ao princpio da dignidade humana.

    Mas todo processo de transformao tem um ponto de partida. E foi pensando nisso que se chegou a um acordo com a Inditex, detentora da marca Zara, com a previso da responsabilidade trabalhista da marca sobre terceiros e subcontratados. Desde o incio, a postura dos procuradores, inconcilivel em relao s obrigaes pedidas, mostra uma tendncia em buscar a soluo definitiva, a se estender para toda a cadeia de confeces.

    Um problema do Brasil contemporneo

  • LABOR 1716 LABOR

    O casoEm maio de 2011, a Gerncia Regional do Trabalho de Campinas remeteu denncia ao MPT em Campinas, descrevendo com mincias o contedo de uma ligao efetuada ao posto de atendimento do Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE) de Americana de um telefone pblico. Um denunciante nervoso dava as coordenadas de uma oficina de costura onde aparentemente havia mo de obra escrava.

    A representao foi distribuda banca dos procuradores, que imediatamente designou diligncia ao local, acompanhados dos auditores fiscais do trabalho.

    Chegando ao endereo, um galpo mal acabado de dois andares se descortinava por detrs de um grande e enferrujado porto de ao. Podia-se ouvir o som barulhento e repetitivo das mquinas de costura a trabalhar incessantemente.

    Dentro da oficina, o impacto de mais de 50 pessoas trabalhando em meio a pilhas desorganizadas de tecidos, lado a lado com fios desencapados e extintores vazios. Esse lugar pode pegar fogo a qualquer momento, disse um dos auditores, observando a quantidade de improvisaes eltricas para suprir o funcionamento de tantas mquinas. O calor era insuportvel.

    Em depoimento, trabalhadores admitiram receber aproximadamente R$ 0,20 por pea produzida, o que resultava em jornadas exaustivas de at 14 horas. Comeamos a costurar s 7h e terminamos s 21h, disse um deles. Em sua maioria bolivianos 46 do total , os costureiros desconheciam a lei brasileira. Boa parte deles permanecia no pas de forma ilegal, sem visto de permanncia vlido.

    Os trabalhadores residiam no segundo andar do galpo junto com seus filhos pequenos. Em todos os quartos havia um botijo, o que aumentava significativamente os riscos de exploso e contaminao por vazamento de gs. A condio sanitria das moradias era muito ruim, com comida estocada irregularmente e falta de limpeza. A Vigilncia Sanitria da cidade de Americana interditou o local.

  • LABOR 1918 LABOR

    Em uma manh de 2012, um policial federal aguardava em frente ao porto azul de uma casa na tranquila Vila Maria, zona norte de So Paulo. Acompanhava grupo que apurava denncias de explorao de trabalhadores em condies de escravido contempornea feitas por bolivianos no portal do MPT. Foi a primeira diligncia acompanhada por membros do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) no programa Justia Itinerante, criado para combater o trabalho escravo.

    A ao conjunta, feita no mbito da Comisso Estadual para Erradicao do Trabalho Escravo (Coetrae), coordenada pela Secretaria da Justia e da Defesa da Cidadania do Estado de So Paulo, foi realizada por integrantes do MPT, representado pelas procuradoras Carolina Vieira Mercadante e Elisiane dos Santos; do MTE; da Secretaria da Justia; da Defensoria Pblica da Unio; do Conselho Tutelar; do Centro de Referncia Especializado de Assistncia Social (Creas); e do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2 Regio.

    A diligncia daquele dia autuou duas oficinas txteis por explorao de trabalhadores em condies anlogas escravido. No primeiro local visitado, dois adultos, Luiz e Maribel, um adolescente e duas crianas de origem boliviana foram encontrados. Eles viviam e trabalhavam no local, em situao de explorao de mo de obra pela Confeces Bylot, que tambm vende as peas produzidas na oficina.

    Diante do flagrante de trabalho irregular prestado pelos trs trabalhadores sem registro em carteira de trabalho, Elisiane dos Santos

    convocou os representantes da Bylot para uma audincia no MPT em So Paulo dias depois. No encontro, props um termo de ajustamento de conduta e exigiu a regularizao dos vnculos empregatcios dos trs trabalhadores e a resciso dos contratos de trabalho, alm do pagamento das dvidas trabalhistas.

    Insero no mercadoElisiane conseguiu ainda que a empresa se comprometesse a regularizar a situao dos trabalhadores vinculados a outras trs oficinas. O MPT tem trabalhado incansavelmente no combate ao trabalho escravo, mas preciso ir alm. preciso combater o trfico de pessoas, de forma a coibir o aliciamento e o deslocamento interno e internacional desses trabalhadores. Tambm necessrio pensar em formas de insero no mercado de trabalho ou em programas de gerao de renda para os resgatados e suas famlias.

    O segundo local fiscalizado pelo grupo foi interditado pelo MTE, pois a casa que servia de moradia e oficina de trabalho para um casal, Mario e Piedade, seus quatro filhos e um adolescente recm-chegado da Bolvia, estava em condies precrias de segurana e sade.

    Encontramos um meio ambiente de trabalho precrio e identificamos algumas irregularidades trabalhistas, explicou Carolina Mercadante. O prdio foi interditado pelo MTE por suas condies precrias, com risco iminente de incndio em razo da precariedade das instalaes eltricas, somada grande

    quantidade de produtos inflamveis, como panos, madeiras e botijes de gs espalhados pelo local, alm da presena de crianas, explicou a procuradora do Trabalho.

    Trabalhadores beneficiadosDepois de autuar e lacrar o local, o grupo dirigiu-se Factual Comrcio e Confeces, empresa que fornecia matria-prima ao casal para depois vend-la. Na presena da juza Patrcia Terezinha Toledo e da desembargadora Maria Isabel Cuevas, os proprietrios apresentaram a documentao exigida pelos auditores do MTE e assinaram um termo de ajustamento de conduta proposto pelas procuradoras do Trabalho Carolina e Elisiane. No documento, eles se comprometeram a registrar os contratos de trabalho e pagar as verbas rescisrias a Mario e Piedade, alm de no mais permitir menores de 16 anos no ambiente.

    A providncia j foi cumprida e a empresa agora est regularizando as condies de segurana e sade da casa em que funcionava a oficina, que continua fechada e fiscalizada por auditores do MTE.

    As procuradoras solicitaram a incluso na investigao da empresa Carina Coi e mais quatro confeces cujas etiquetas foram encontradas na oficina clandestina. Para combater esse tipo de trabalho irregular e degradante, preciso que toda a cadeia produtiva seja responsabilizada, explicou Elisiane.

    Ao em oficinas de costura tem participao do Poder JudicirioPor ludmila di BernardoResgate de trabalhadores

    A fiscalizao fez o resgate dos trabalhadores, enquadrando a situao como reduo de pessoas a condies anlogas escravido, conhecida como escravido moderna ou contempornea, com a emisso de guias de seguro-desemprego e pagamento de verbas rescisrias, efetuados pela Rhodes, prestadora da Zara que subcontratava a oficina.

    Os procuradores se reuniram com auditores da Superintendncia Regional do Trabalho em

    So Paulo na sede do MPT em Campinas, para ampliar a investigao e levantar outras etapas da cadeia produtiva, especialmente pelo fato de a Zara concentrar suas operaes na capital.

    Duas outras oficinas, que forneciam para a marca espanhola, foram encontradas, uma com seis trabalhadores bolivianos e outra com dez. A situao era bastante parecida com a de Americana, mas com um agravante: os bolivianos precisavam da autorizao do dono das oficinas para ter o direito de ir e vir atendido. Todos foram resgatados.

    Aps a instruo do processo por Campinas, os procuradores do municpio de Osasco instauraram inqurito contra a empresa, especialmente pelo fato de a Zara possuir pessoa jurdica registrada em Barueri.

    Aps investigao, o MPT props termo de ajustamento de conduta Zara, que o assinou em 19 de dezembro de 2011, incluindo a responsabilizao jurdica pela produo de roupas com a marca, pagamento de multa e investimentos sociais de apoio ao trabalhador.

  • LABOR 2120 LABOR

    Todos os domingos, centenas de imigrantes bolivianos se renem na praa Kantuta, zona norte de So Paulo, para jogar futebol, encontrar amigos e comer pratos tpicos de seu pas. Eles chegam da Bolvia com promessas de bom salrio, mas o que encontram no Brasil so longas jornadas de trabalho em oficinas de ambiente insalubre e inseguro, onde residem em condies degradantes e recebem alimentao insuficiente.

    Nanci, 23 anos, chegou a So Paulo h trs anos a convite de um amigo da famlia. A proposta era tentadora: emprego, salrio, casa e comida. Porm, depois de dois anos trabalhando mais de dez horas por dia, de segunda-feira a sbado, e sem receber sequer um real, ela finalmente conseguiu sair da casa e procurar ajuda. Ele no deixava a gente sair. Dizia que seramos presos por no ter documentos nem permisso de trabalho. Da, conheci meu marido, que j estava aqui h mais tempo. Ele me levou ao Centro de Apoio do Migrante (Cami) e foi l que recebi orientao sobre meus direitos, explica.

    Hoje, Nanci tem sua documentao regularizada e um contrato de trabalho de acordo com as leis brasileiras. Ela passadeira e empacotadora em uma pequena empresa de distribuio de roupas.

    J Virgnia, 32 anos, ainda deve trilhar um longo caminho at um final feliz. Ela, o marido e uma irm trabalham em uma oficina clandestina,

    Praa Kantuta aproxima naes

    Entre janeiro e novembro de 2012, o MPT em So Paulo recebeu quase uma centena de denncias de trabalho anlogo ao de escravo, a maioria em oficinas de costura. Uma parte significativa tambm foi registrada na construo civil.

    Em So Paulo, observamos que casos de trabalhadores da construo civil flagrados em situao de escravido contempornea vm aumentando nos ltimos anos, explica a procuradora-chefe do MPT-SP, Ana Elisa Alves Brito Segatti. Ela v positivamente a recente participao dos juzes nas diligncias de combate ao trabalho escravo contemporneo. A presena dos juzes nas diligncias soma esforos e acelera a adoo de eventuais medidas judiciais, quando necessrias, explica.

    Para combater o trabalho escravo urbano, o procurador do Trabalho Luiz Carlos Michele Fabre defende uma agenda baseada na uniformizao do entendimento da Polcia Federal em relao aos trabalhadores imigrantes legais, no melhor aparelhamento dos rgos de fiscalizao da rea trabalhista e maior responsabilidade das grandes corporaes sobre a cadeia produtiva.

    Geralmente as empresas se utilizam de mo de obra terceirizada para no arcar com os gastos trabalhistas, estimulando uma forma de servio sem vnculo algum e propiciando o trabalho anlogo ao de escravo. Fabre explica: Alm da sonegao de impostos, essas empresas atuam no mercado em

    situao de concorrncia desleal e nivelam o setor por baixo.

    Dumping socialO ganho de mercado custa de recursos pouco ticos como explorao de mo de obra irregular ganhou o nome de dumping social sonegao de direitos trabalhistas para aumentar o lucro e promover concorrncia desleal.

    O pagamento de indenizao por empresas acusadas de praticar o chamado dumping social foi admitido pela primeira vez na segunda instncia da Justia do Trabalho em 2009. No incio de outubro daquele ano, a 4 Turma do TRT de Minas Gerais aplicou multa ao grupo JBS-Friboi por reiteradas tentativas de descumprir a Consolidao das Leis do Trabalho (CLT). At ento, apenas decises de primeira instncia continham condenaes desse tipo. Antes, o dumping era restrito rea comercial, porm, a Justia do Trabalho demonstrou que o conceito pode ser estendido ao direito laboral, dando a possibilidade para a reparao de erros contra os empregados, penalizando empresas que obtenham vantagem indevida no seu mercado de atuao por conta dos danos causados aos colaboradores, explica Ana Elisa Alves Brito Segatti. O dumping social ocorre na maioria dos setores, mas especialmente nas reas que demandam mo de obra com baixa qualificao, como o varejo e a construo civil. LB

    So Paulo teve 75 denncias de trabalho escravo urbano em 2012

    Consulado e polcia ajudam bolivianosa obter documentos

    O Consulado da Bolvia e a Polcia Federal tm ajudado milhares de cidados bolivianos. No escritrio consular no Brs, no centro de So Paulo, alm de acesso internet, a programas de crdito e informaes para obter a legalizao no pas e ser includo em programas sociais, um posto da Polcia Federal agiliza a obteno e renovao da carteira de identidade para estrangeiro.

    Segundo o cnsul-geral da Bolvia no Brasil, Jaime Valdivia, entre 300 mil e 350 mil bolivianos vivem em So Paulo, 90% deles trabalhando no setor de confeces. Apenas 35% tm documentos, o que facilita a ao de exploradores de mo de obra escrava. A documentao o principal caminho para a obteno da cidadania pelo imigrante. Estamos trabalhando em um programa de conscientizao para esclarecer os bolivianos

    que vivem em So Paulo sobre direitos trabalhistas. Alm disso, h o Programa de Apoio ao Cidado Boliviano no Exterior e uma lei para classificar a explorao do trabalho escravo como crime hediondo tramita no congresso da Bolvia.

    Segundo dados da Polcia Federal em So Paulo, os bolivianos representam 50% do movimento de estrangeiros que chegam capital. Para Valdivia, esse fluxo se deve ao fato de os cidados terem trnsito livre nos pases do Mercosul e o Brasil oferecer oportunidades de emprego no ramo de servios gerais. Nosso desafio fazer com que os bolivianos no sejam iludidos pelos exploradores. Tirar documento fcil e um direito do cidado. Documentados, eles podem procurar uma condio de trabalho e de vida mais dignas e no depender de quem os explora. LB

    onde moram com mais 20 adultos e cinco crianas, das quais duas delas so seus filhos, de 9 e 3 anos. Trabalhamos das 7h s 22h, de segunda a sexta-feira. Em uma semana, ns trs costuramos umas 300 peas. Por pea, recebemos de R$ 2 a R$ 5, conta. Questionada se sabia que poderia trabalhar em melhores condies, com carteira de trabalho e benefcios, ela afirma que prefere assim: Fazemos mais dinheiro se trabalhamos mais, da podemos voltar para a Bolvia.

    Filhos brasileirosO jovem casal Dalia e Hitler (foto menor) no pretende voltar Bolvia. No Brasil h dois anos, os dois trabalham em uma oficina na Freguesia do com familiares. A situao j esteve pior, mas agora moram em um terreno grande, onde h um galpo para a atividade de costura e vrios quartos para alojamento das famlias. Estamos

    bem, trabalhamos de segunda a sexta-feira, cerca de 10 horas por dia. Temos comida, no pagamos aluguel nem temos nosso salrio descontado. Ganhamos de R$ 1 a R$ 3,50 por pea costurada, conta Dalia. Queremos guardar dinheiro, ajudar a famlia na Bolvia e poder ir l a passeio. Tambm queremos ter nossos filhos aqui, conta Hitler. LB

  • LABOR 2322 LABOR

    Uma ocorrncia de trabalho degradante foi flagrada por ms em canteiros de obra no interior de So Paulo, nos ltimos anos, a maioria em empreendimentos beneficirios dos recursos federais do programa Minha Casa, Minha Vida. Centenas de trabalhadores, em grande parte originria de estados do Norte e Nordeste, tiveram sua dignidade resgatada por fiscais e procuradores do Trabalho em canteiros subsidiados por dinheiro pblico da Caixa Econmica Federal.

    A conta que se faz simples como a soma de um mais um: quanto mais precrio o ambiente de trabalho e os alojamentos, maiores so a terceirizao de servios e a mera intermediao de mo de obra, praticadas por gatos ou empresa de fundo de quintal.

    Em muitos empreendimentos participantes do Minha Casa, Minha Vida fiscalizados pelos rgos de apoio ao trabalhador, esse foi o triste cenrio apresentado sociedade.

    Uma das maiores construtoras do pas, a MRV Engenharia uma das principais parceiras da Caixa e a maior repassadora de recursos do programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, cuja segunda fase prev 2,6 milhes de moradias contratadas at 2014. A fiscalizao constatou que a construtora utiliza-se de empreiteiras para realizar mera intermediao de mo de obra.

    Com isso, tenta-se a transferncia da responsabilidade trabalhista para as pequenas empresas criadas por ex-operrios, que no possuem capacidade econmico-financeira para mant-las, o que resulta em no pagamento de salrios, alojamentos e moradias fora dos padres legais, aliciamento de trabalhadores, entre outras irregularidades.

    Em 2 de janeiro de 2013, a Caixa suspendeu a concesso de novos financiamentos MRV Engenharia aps uma das filiais da construtora mineira ter sido includa no cadastro do Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE) de empregadores que tenham submetido funcionrios a condies anlogas escravido.

    Fiscalizao do MTE resgatou 11 trabalhadores que atuavam na obra do edifcio Spazio Cosmopolitan, em Curitiba (PR). A construtora havia contratado parte dos trabalhadores por intermdio de empresas empreiteiras fornecedoras de mo de obra, dentre as quais a V3 Construes, flagrada no incio de 2011, mantendo trabalhadores em regime de escravido contempornea.

    Os autos de infrao contra a MRV incluem ausncia de registro dos trabalhadores, alojamento sem condies adequadas de conservao, higiene e limpeza, e ausncia de local para refeies no canteiro de obras e de instalaes sanitrias.

    Ave Maria, mudou 100% a minha vida. Hoje sou qualificado e posso trabalhar em qualquer empreiteira. com esse entusiasmo que Carlito da Silva Leite, 26 anos, fala sobre o Programa de Qualificao Ao Integrada e sobre as mudanas ocorridas aps a participao no curso de eletricista de distribuio. Carlito pode, de fato, trabalhar no lugar que quiser, mas j tem um emprego garantido na empresa Atenas Energia desde que se formou, em 2009, no Servio Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) de Vrzea Grande (MT).

    Ele um dos 387 trabalhadores qualificados no programa desenvolvido pelo MPT em Mato Grosso desde 2008, em parceria com a Superintendncia Regional do Trabalho em Mato Grosso, a Universidade Federal de Mato Grosso, a Fundao Uniselva, a Pastoral do Migrante, a Secretaria de Estado de Trabalho e Assistncia Social (Setas/MT) e o Sistema S.

    Em Cuiab, 25 trabalhadores resgatados em Pocon e Primavera do Leste (MT) esto trabalhando na construo da Arena Pantanal, estdio que sediar jogos da Copa do Mundo de 2014.

    Aps o resgate, eles foram avaliados por profissionais da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Tambm foram cadastrados na Superintendncia Regional de Trabalho e Emprego (SRTE). Depois, foram inseridos em um programa de qualificao profissional e de elevao do nvel escolar.

    Ao IntegradaAgora, j contam com a segurana da carteira de trabalho assinada por empresas que integram o consrcio Santa Barbara/Mendes Jnior, responsvel pela construo do novo estdio.

    As obras da Arena Pantanal tm encontrado nesses grupos de trabalhadores soluo para a falta de mo de obra no estado, o que tem motivado a migrao de pessoas do Nordeste e Norte do pas, segundo o Sindicato dos Trabalhadores na Indstria da Construo Civil de Cuiab e Municpios (Sintraicccm).

    Na aula inaugural dos cursos, realizada no canteiro de obras, os trabalhadores receberam a carteira de trabalho assinada, os uniformes e as garantias de alojamento e de trs refeies por dia. Os benefcios continuaro sendo fornecidos at o trmino da construo e, ao final do projeto, os 25 trabalhadores estaro no mercado, pois receberam treinamento, ganharam experincia e tiveram a carteira de trabalho assinada, garante o gerente de contrato do consrcio, Eymard Frana.

    No perodo colonial, Cod, municpio distante 300 km de So Lus, era conhecido por ser um dos maiores produtores de algodo do Maranho e por explorar o trabalho escravo. Hoje, as fbricas txteis esto desativadas e a produo algodoeira caiu drasticamente. No entanto, Cod continua com um triste ttulo: uma das cidades maranhenses que mais fornecem mo de obra escrava para outras regies do pas.

    Para romper o ciclo, o MPT no Maranho, em parceria com o Tribunal Regional do Trabalho (TRT-MA) e outras 20 instituies, organizou, no final de 2012, a Caravana da Liberdade. Alm do combate ao trabalho escravo contemporneo, a iniciativa teve como foco outro problema: o trabalho infantojuvenil. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) mostram que a explorao j atingiu 6,5% das crianas e adolescentes entre 10 e 14 anos de Cod. Municpios prximos, como Timbiras e So Mateus, possuem ndices ainda mais alarmantes: 8,9% e 6,9%, respectivamente.

    Denncias de explorao do trabalho infantil em Cod, como crianas e adolescentes trabalhando em oficinas mecnicas, borracharias e lava-jatos, inclusive noite, feitas por lideranas comunitrias, comearam a ser apuradas pelo MPT no Maranho e pela Promotoria da Infncia.

    Procuradores do Trabalho tambm visitaram comunidades rurais, cujos moradores estariam sendo aliciados para trabalhar em outras regies. preciso criar polticas pblicas que garantam a permanncia do trabalhador em sua cidade natal e fomentem a gerao de emprego e renda, avalia o procurador do Trabalho Maurcio Lima.

    Trabalho degradante constatado em obras do Minha Casa, Minha Vida

    Ao insere trabalhadores resgatados em Mato GrossoPor lvia vasconcelos

    Cod quer se livrar de triste ttuloPor Wanderson lima

    Entre os casos mais emblemticos de trabalho degradante na construo civil no interior de So Paulo est um que envolve justamente a construtora MRV. A construo do condomnio residencial Beach Park, em Americana (SP), foi includa na lista do MTE em agosto de 2012.

    O MPT est processando a empresa em R$ 10 milhes por reduzir 63 trabalhadores condio anloga escravido, com o fundamento de que h responsabilidade direta da construtora na ocorrncia do delito praticado por prestadores de servio.

    O caso mostrou a verdadeira dimenso da precariedade instalada pelo sistema de terceirizao da atividade-fim no Brasil.

    O inqurito instaurado pelo MPT, com a incumbncia inicial de investigar as condies de alojamento de migrantes nordestinos, acabou por descortinar o esquema de intermediao de trabalhadores por meio de prestadoras de servios com absoluta ausncia de austeridade tcnica, administrativa e econmica.

    Os migrantes dos estados de Alagoas, Bahia e Maranho, contratados diretamente pelas prestadoras M.A Construes e Cardoso e Xavier Construo Civil, dividiam-se em duas moradias extremamente precrias. Ao estilo geminado, as casas encontravam-se superlotadas e sem qualquer ventilao. Trabalhadores dormiam no cho, inclusive na cozinha. A falta de higiene era notvel. RA

    Em Americana, 63 operrios so resgatados de obra

    Por raFael almeida

  • LABOR 2524 LABOR

    seguro-defeso

    O dia ainda nem raiou e Jonas do Nascimento est de p para comear sua jornada de trabalho. Cumprimenta a esposa e segue para o mar. A rotina do pescador, que j dura 40 anos, a mesma de milhares de outros trabalhadores que vivem da pesca em todo o Cear. pesado, mas o que fao desde quando ainda era menino, conta.

    O dia a dia de Jonas interrompido somente nos perodos conhecidos como defeso, quando a pesca proibida. O Programa Seguro-Desemprego Pescador Artesanal, criado pelo governo federal pela Lei 8.287, de 20 de dezembro de 1991, alm de garantir financeiramente o pescador por ocasio do defeso, preserva as espcies. Durante esse perodo, os trabalhadores tm direito ao benefcio de um salrio-mnimo por ms.

    O Cear o quarto estado produtor de pescado no pas. Apesar disso, detm somente 1,9% dos habilitados do seguro-defeso no territrio nacional. A aparente desproporo fruto de um rigoroso trabalho de combate s fraudes no processo de habilitao dos pescadores artesanais para o recebimento do seguro-desemprego.

    Para preservar a evaso de recursos pblicos e valorizar a categoria profissional, o Ministrio Pblico do Trabalho (MPT), o Estadual (MPE),

    a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS), o Sistema Nacional de Emprego (Sine) e o Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (IDT) fizeram uma parceria indita no pas. Passaram a atuar de forma conjunta na habilitao do seguro-desemprego pescador artesanal. No Cear, a economia com o no pagamento de benefcios indevidos de seguro-desemprego ultrapassou a cifra de R$ 1,4 milho em 2011.

    Bem coletivo Iniciado em 2010, o acordo faz com que todo o processo de habilitao dos pescadores artesanais da lagosta e piracema seja acompanhado. Assim, evita-se a habilitao de pessoas que no atuaram na captura das espcies protegidas pelo defeso. A inteno resgatar o prestgio dos pescadores artesanais e fazer com que os recursos pblicos cheguem efetivamente a quem de direito, explica o procurador-chefe do MPT no Cear, Nicodemos Fabrcio Maia. As aes tm sido eficientes para prevenir, educar e reprimir. A sociedade deseja canalizar os recursos pblicos para o bem coletivo, afirma o procurador-geral do MPE, Ricardo Machado.

    Havia gente que recebia sem nunca ter molhado os ps no mar e ainda tirava o direito de quem realmente trabalhava, reclama Jonas do Nascimento. A opinio dele confirmada por Raimundo Nonato da Silva: Antes, qualquer um recebia, hoje est muito diferente.

    Ao final de 2012, o MPT no Cear recebeu pescadores e donos de embarcaes com permisso de pesca para captura da lagosta em Fortaleza. A ideia era fazer os trabalhadores assinarem termo de compromisso assegurando serem proprietrios de barcos e indicando os nomes dos pescadores que atuam em suas embarcaes. Com o documento em mos, os trabalhadores do mar podem dar entrada no pedido do seguro-desemprego. Queremos assegurar que somente os verdadeiros pescadores artesanais recebero o benefcio, explica a procuradora do Trabalho Juliana Sombra.

    Quem recebe o seguro?O seguro concedido aos pescadores artesanais, durante o perodo do defeso, para garantir seu sustento. O pagamento pode variar de trs a seis parcelas, conforme seja piracema ou lagosta. As espcies protegidas no defeso da piracema so branquinha/beiru, curimat comum, piaba/lambari, piau comum, piau verdadeiro, sardinha e tambaqui.

    O Cear possui 570 quilmetros de costa e cerca de 140 audes.

    Requisitos do seguro-defeso Ter registro como pescador profissional, categoria artesanal

    Possuir inscrio no INSS como segurado especial

    Ter nota fiscal de venda do pescado ou guia de recolhimento da previdncia

    No receber nenhum benefcio previdencirio (exceto auxlio acidente, auxlio recluso e penso por morte)

    No ter vnculo de emprego, outra relao de trabalho ou fonte de renda

    Irregularidades na habilitao Embarcaes com permisso de pesca de lagosta, mas que no pescaram a espcie no exerccio

    Utilizao de vagas com pescadores que

    no pertencem tripulao da embarcao

    Venda de vagas para cidados que no fazem da pesca seu meio de vida principal (outros profissionais)

    Venda de vagas para pescadores que exercem a atividade em embarcaes no permissionadas

    Cobrana de parcelas do benefcio da prpria tripulao

    Motivos de cancelamento Existncia de vnculo de emprego ou de outra relao de trabalho

    Desrespeito ao perodo de defeso

    Obteno de renda da pesca de espcies alternativas no contempladas pelo defeso

    Recebimento de benefcio previdencirio de prestao continuada, exceto auxlios acidente e recluso e penso por morte

    Declarao falsa

    Fraude

    Combate eficiente fraude

    Bloqueio de pagamento indevido ultrapassa R$ 1,4 mi no CearPor elton viana

    Havia quem recebesse sem nunca ter molhado os ps no mar

  • LABOR 2726 LABOR

    A cidade leva o nome de uma abelha, mas uma das principais atividades econmicas de Jandara (RN) a produo da cal. Quando o homem precisa trabalhar aqui ou vai para a produo de cal ou tem que sair da cidade, diz Jssica Fernanda da Costa Silva, 18 anos, filha de Jos Gilson Pereira da Silva, que trabalhou mais de dez anos em uma caieira.

    Jssica conta que o pai j sofreu um grave acidente. Ele caiu dentro do forno onde feita a queima do calcrio. Em atividade, a temperatura chega a atingir 1.000 C. Apesar de Glson ter ficado com os ps totalmente queimados, voltou ao trabalho na caieira assim que se recuperou, pois no havia alternativa poca.

    Uma equipe de integrantes do Ministrio Pblico do Trabalho no Rio Grande do Norte (MPT-RN) e do Centro Estadual de Referncia em Sade do Trabalhador (Cerest/RN) comprovou, em visita s caieiras, as condies adversas do trabalho no setor. A realidade

    encontrada foi de trabalho precrio, quer pela ausncia de resguardo de direitos mnimos trabalhistas, quer pela total desconsiderao da proteo da sade dos trabalhadores expostos a altas temperaturas dos fornos e a constante poeira de cal gerada durante o processo produtivo, conta a procuradora do Trabalho Marcela de Almeida Maia sfora, que participou da visita.

    Alm das condies insalubres, foi apurado que o trabalhador recebe por produtividade, com jornadas excessivas para aumentar a remunerao. Assim, prevalece a atividade informal, sem assinatura de carteira de trabalho e previdncia social, nem garantias trabalhistas, como frias, 13 salrio, recolhimento de contribuies previdencirias ou do Fundo de Garantia por Tempo de Servio (FGTS). Diante das irregularidades, o MPT-RN abriu procedimento para atuar como rgo de transformao social e tornar possvel a

    execuo da atividade econmica, desde que observada a legislao, em especial as normas de sade e segurana do trabalho.

    O coordenador do Cerest/RN, Mrio Soares de Oliveira, que tambm visitou o municpio, determinou a realizao de exames mdicos por amostragem. Oito trabalhadores j fizeram Raios X e colheram sangue para avaliar as clulas sanguneas. Os resultados podem servir de base para uma avaliao mais profunda dos eventuais prejuzos causados sade dos trabalhadores, explicou Oliveira.

    Quem cedo madruga O sol ainda nem nasceu, quando Antnio Francisco da Silva, 61 anos, acorda, por volta das 4h. Ele liga a televiso, na sala de casa, antes de sair para o trabalho. Despede-se da mulher, enquanto as crianas ainda dormem. Sai sem tomar caf. muito cedo. Volto mais tarde, s 7h, para tomar caf, promete esposa. Numa

    motocicleta, segue por dois quilmetros at o local onde trs empregados j o aguardam. Depois de 23 anos atuando na produo da cal, Antnio acaba de arrendar a caieira em que trabalhava, tornando-se empregador dos companheiros.

    No muito longe dali, Francisco Givanilson, 29 anos, aguarda a esposa preparar o tradicional cuscuz com ovo, colocando o alimento na marmita que ele leva para tomar caf no trabalho. Trabalha em caieira h apenas trs anos, como empregado. D um beijo nos filhos, uma menina de 3 e um menino de 8 anos. Diz, com orgulho, que o mais velho j estuda e explica que sai de casa sem que tenham acordado, mas retorna por volta das 11h, para apanhar o de 8 anos na escola e almoar em famlia, costume que faz questo de manter.

    Ao raiar da manh, o irmo de Givanilson passa em frente da casa, caminhando. Ele tambm trabalhava em caieira, mas pegou muito peso. Est com hrnia de disco, comenta, ao

    cumprimentar o irmo. Em seguida, pedala a bicicleta a caminho do estabelecimento de Jos da Silva, para quem trabalha (foto superior da pgina 29).

    Conhecido como Do, Jos da Silva tambm quem negocia a venda da produo de cal at para clientes de fora do estado. Ele admite que dura a realidade do trabalho, mas assegura: J foi pior, quando at trabalho infantil existia. Tem gente que comeou a trabalhar em caieira com 13 anos ou 14 anos, o que no ocorre mais. Do tambm destaca que a gua oferecida hoje aos trabalhadores de garrafo, no mais de cisterna. Na propriedade dele no feita a queima da pedra, somente a hidratao e a moagem para que a substncia seja armazenada em sacos de 25 quilos.

    Dia branco A paisagem esbranquiada ofusca a viso ao menor contato com o sol. Givanilson chega

    Mos brancas

    Trabalhar com cal ou sair da cidade

    Conhea a rotina do trabalhador que atua na extrao e produo da cal hidratada no interior do Rio Grande do Norte

    Por carolina villaa

    A paisagem esbranquiada ofusca a viso ao menor contato com o sol

  • LABOR 2928 LABOR

    ao trabalho e senta ao redor de uma mesa de madeira improvisada, ao ar livre, para tomar caf. Naquele dia, ficar responsvel por ensacar e empilhar os sacos de cal. Terminado o caf, veste cala jeans e casaco por cima da roupa que est usando. Outra camisa amarrada cabea serve para se proteger da poeira. Coloca culos de sol comum (sem proteo

    contra radiao ultravioleta), cala botas e mesmo sem luvas considera estar pronto para o trabalho. Complementa a proteo enrolando faixas nos pulsos at alcanar volume suficiente para preencher os espaos deixados pelas mangas, com receio de a cal entrar por debaixo da roupa. Em contato com o suor, a cal pode provocar feridas na pele.

    s 5h30, chega o primeiro caminho, carregando o calcrio que j passou pela etapa da queima. Apesar do intenso calor a que foram submetidas, as rochas no esto quentes por fora, sendo possvel apanh-las com as mos sem qualquer proteo. O calor fica retido dentro da pedra. Por isso, ao entrar em contato com a gua, durante a hidratao, tem incio

    quando preciso trocar a gua necessria ao funcionamento do motor do triturador, que realiza a moagem, ou quando os sacos acabam, obrigando-o a providenciar mais unidades. Por volta das 11h, os trabalhadores fazem uma pausa para o almoo. Givanilson retira a indumentria e segue de bicicleta em direo escola do filho.

    O filho admira o trabalho na caieira, mas Givanilson no quer o mesmo futuro para as crianas. Quero que eles estudem, porque s fiz at a quinta srie e j perdi muita oportunidade de emprego. Agora, penso em montar um comrcio, para deixar de trabalhar em caieira um dia. Aps o almoo, os trabalhadores voltam atividade. O dia termina s 18h, hora que faz Givanilson pensar em voltar para casa e descansar. Chego to cansado que vou logo tomar um banho e comer alguma coisa. Durmo muito cedo, antes da novela.

    Aos sbados, o horrio mais flexvel, para quem acorda cedo. Se for trabalhar s 4h, posso terminar at 8h. tambm nesse dia que o pagamento feito. O valor pago aos trabalhadores pelo saco de cal de R$ 0,25. Ao final de cada semana, a produtividade obtida somada e o rateio entre os trabalhadores feito. Semanalmente, o ganho pode ser de R$ 200 a R$ 350.

    O trabalhador que virou donoO local arrendado por Antnio Francisco vizinho ao de Do. Apesar de tambm queimar o calcrio, a atividade desenvolvida diariamente na caieira de Antnio semelhante que ocorre no estabelecimento de Do. O recm-patro conta com a fora de trs trabalhadores. Arrendei porque o proprietrio queria fechar. Foi uma maneira de no deixar os colegas desempregados, comenta. L, o improviso

    reao qumica que termina por fragment-la. Os pedaos ainda precisam ser modos e peneirados, para obter o p fino da cal. Alm do barulho e da poeira alcalina que o triturador produz, no h proteo adequada contra as pedras que escapam dele, chegando a atingir os trabalhadores que ficam nas proximidades.

    Futuro diferente Em parceria com Givanilson, h outros cinco trabalhadores que atuam nas diferentes etapas de produo. Munido de um carrinho de mo, Givanilson repete o movimento de ensacar e empilhar os sacos de cal, cerca de cem vezes por hora, sendo interrompido apenas

  • LABOR 3130 LABOR

    parece ser ainda maior, pois chegam a trabalhar de chinelos, sofrendo as consequncias do contato direto com a substncia corrosiva.

    Enquanto os trabalhadores permanecem em atividade, Antnio vai tomar o caf em casa. Ele conta que, para tornar o sonho possvel, foi atrs da aposentadoria e fez um emprstimo. A esposa, Maria Rosenilda de Melo, reafirma o esforo de Antnio para arrendar a caieira e comemora sua nova condio. O marido trabalhava tanto que, s vezes, deixava de comer. Ele termina o caf rapidamente e retorna para coordenar o trabalho do novo negcio.

    s 10h, vai ao encontro dos demais donos de caieiras de Jandara, em reunio convocada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiento e dos Recursos Naturais Renovveis (Ibama), na Cmara dos Vereadores da cidade. Aps a reunio, almoa em casa e retorna caieira. So 13h.

    Quando o sol baixa um pouco mais, o trabalho recomea. Ele diz que os empregados podem parar quando quiserem, pois recebem por produtividade. Normalmente, costumam parar por volta das 10h, por causa do sol forte, retornando depois do almoo. O dia termina, geralmente, s 17h.

    Atividade requer licenciamento ambiental

    Na reunio com o Ibama, os proprietrios de caieiras de Jandara foram alertados quanto necessidade de regularizao da atividade, considerada potencialmente poluidora. No encontro, eles foram notificados para providenciar o licenciamento junto aos rgos de proteo ao meio ambiente. Dentre as preocupaes do Ibama, a proibio legal de

    utilizar a mata nativa para a queima do calcrio foi enfatizada. Alm disso, foram transmitidas orientaes referentes s adequaes exigidas pela legislao ambiental, que podem minimizar os impactos causados pela atividade na regio.

    A Cmara dos Vereadores assumiu o compromisso de cadastrar os proprietrios e reunir documentos necessrios para ingressar com os pedidos de licenciamento.

    Solues antigas

    Os trabalhadores das caieiras conhecem algumas solues para as irregularidades ambientais e trabalhistas da atividade. Cogitam se organizar em cooperativa para reivindicar um gasoduto que passe prximo cidade. Assim, podero fazer a queima de pedra utilizando gs no lugar de lenha. Essas alternativas foram apontadas em 1999, em estudo que traou a caracterizao dos

    produtores de cal de Jandara, apresentado no 43 Congresso Brasileiro de Cermica, realizado em Florianpolis (SC).

    O trabalho resulta de parceria do Instituto Federal (IFRN), da Universidade Federal (UFRN) e da Secretaria de Estado da Indstria, Comrcio, Cincia e Tecnologia do Rio Grande do Norte. De acordo com a anlise, uma alternativa ao processo usado atualmente seria a associao dos produtores em um sistema cooperativo. Alm disso, ressalta que deve ser estimulada a substituio dos fornos descontnuos e queimados a lenha por fornos contnuos e a gs. Esta alternativa minimizaria

    a degradao ambiental e aumentaria a produtividade e produo de cal na regio.

    A procuradora do Trabalho Marcela sfora considera importante o envolvimento do Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) na cadeia produtiva para transmitir orientaes quanto ao gerenciamento do negcio. Para o coordenador de projetos de Desenvolvimento Territorial do Sebrae/RN, Angelo Baeta, o trabalho que precisa ser realizado em Jandara vai alm da busca pela formalizao das caieiras como pequenos empreendedores ou mesmo de eventual organizao dos trabalhadores em

    cooperativas. necessrio que os rgos ambientais, a Prefeitura e o MPT atuem em conjunto para regularizar o negcio e minimizar os impactos da atividade, uma vez que se trata de uma das principais fontes de renda do municpio.

    Marcela sfora destaca, ainda, a importncia da formao de parcerias para alertar trabalhadores e donos de caieiras sobre as doenas que podem decorrer da atividade, apresentando meios de neutralizar ou eliminar os agentes insalubres. preciso adotar providncias para regularizar a conduta dos proprietrios de caieiras e defender os direitos dos trabalhadores.

  • LABOR 3332 LABOR

    transPorte Pblico

    Entre semelhanas e diferenas, a maioria das cidades brasileiras compartilha o drama da precariedade do transporte pblico, em especial dos nibus. Alta tarifa e baixa qualidade. O binmio esconde a sutileza e a chave para o desafio da melhoria do servio. que nos longos engarrafamentos, nas muitas horas perdidas no trfego, nos calorentos e desconfortveis veculos, os consumidores, ou melhor, os cidados, no sofrem sozinhos. Antes deles, esto aqueles que fazem o setor funcionar, os motoristas e os cobradores.

    Atento s condies laborais desses profissionais em todo o Brasil, o Ministrio Pblico do Trabalho (MPT) tem feito diversas aes, contribuindo no s para a regularizao dos postos de trabalho, como, em sentindo amplo, para a construo de cidades melhores.

    Leia as reportagens de Gilberto Gatti, Messias Carvalho, Mariana Banja, Maria Augusta Carvalho, Paula Estrella e Vanessa Napoleo produzidas no Distrito Federal e nos estados de Pernambuco, Rio de Janeiro e Alagoas.

    Em Pernambuco, a mxima se for bom para o motorista e cobrador, ser bom para o usurio tem motivado projeto para os profissionais do ramo. Tudo surgiu em meio aos vrios procedimentos em andamento no MPT para quantificar os incmodos de trabalho relatados, considerando as informaes de tempo mdio de jornada de 16 horas por dia. Nos inquritos que versam sobre problemas de meio ambiente de trabalho, h depoimentos sobre o calor nos nibus, dores no corpo e desconfortos de modo geral. Evidentemente, eles so vlidos, no entanto, caem num lugar de bastante subjetividade. Ora, o que calor? So 20 graus, 30 graus, 40 graus centgrados? Qual a repercusso disso na sade do trabalho numa jornada de trabalho ilegal e inegocivel?, pergunta a procuradora do Trabalho Vanessa Patriota da Fonseca, que, junto a Adriana Gondim e Leonardo Osrio Mendona, tambm procuradores, atualmente conduz o trabalho no MPT em Pernambuco.

    Diante da necessidade de quantificar e criar parmetros, um projeto comeou a ser desenhado. Foi-se em busca de equipamentos

    e de peritos para serem feitas medies apenas de temperatura. Tentativa falha, mas que no desmotivou o grupo. Logo na sequncia surgiu a possibilidade de parceria com as universidades de Pernambuco e Federal de Pernambuco, por meio dos Laboratrios de Segurana e Higiene do Trabalho (UPE/LSHT) e de Ergonomia e Design Universal (UFPE/Labergodesign). Com a equipe afinada, nasceu o projeto Condies de trabalho no setor de transporte urbano de passageiros da Regio Metropolitana do Recife: anlise dos riscos dos postos de trabalho do motorista e do cobrador.

    O cronograma do estudo prev dois anos de pesquisa, conciliando as atividades acadmicas e as jurdicas por parte do MPT. Nessas duas frentes, em pouco mais de seis meses, foram definidas a metodologia, a compra e o ajuste de equipamentos, a elaborao de questionrio e feito o primeiro levantamento das condies dos postos de trabalho do motorista e do cobrador. Foram tambm verificados o ambiente do nibus, como as funes em situao real de trabalho, e realizadas as medies dos riscos fsicos (rudo, vibrao e

    calor), qumicos (poeira total, oxignio e gs carbnico) e ergonmicos.

    Audincia pblica Para o doutor em engenharia Bda Bakokbas, que est frente das verificaes de campo, apesar das conquistas trabalhistas obtidas ao longo da histria, esses profissionais ainda so submetidos a um trabalho sacrificante, com a presena de rudos acima do limite, sobrecarga do sistema musculoesqueltico, devido a movimentos repetitivos e a manuteno da postura sentada por longos perodos, altas temperaturas e vibrao do veculo. O que pode levar a algum tipo de disfuno do organismo.

    A pesquisa identificou, ainda, a incidncia de variveis externas, como o trnsito intenso e a falta de pavimentao das ruas e de via exclusivas. Sobre o assunto, os rgos competentes revelaram a dificuldade de cuidar de um trnsito que envolve quase um milho de carros. A expectativa que os novos corredores exclusivos para os coletivos ajudem.

    Todos sofrem com o sistema

    Alta tarifa e baixa qualidade escondem a sutileza e a chave para melhorar o servio dos nibus

    Motoristas e cobradores: cotidiano marcado por acidentes de trnsito, doenas crnicas e neuroses

    Aes de procuradores do Trabalho buscam construir cidades melhoresPor mariana Banja

  • LABOR 3534 LABOR

    Segundo a Empresa de Manuteno e Limpeza Urbana, responsvel pela pavimentao, drenagem, iluminao, coleta de lixo e varrio das vias pblicas da cidade, o servio feito por firmas terceirizadas e todos os corredores principais da cidade, em especial, os de trfego de coletivos, so priorizados.

    Com dados em mos, o MPT convocou audincia pblica com representantes do setor, em setembro de 2012. Na ocasio, foram mostrados os dados das medies e apresentada uma proposta de ajustamento de conduta. O documento prev que as empresas de nibus assumam o compromisso de respeitar a durao da jornada laboral de, no mximo, oito horas, com duas horas de prorrogao, se for o caso; de conceder os intervalos intrajornada de acordo com a Consolidao das Leis do Trabalho (CLT); o intervalo entre jornadas de, pelo menos, 11 horas; e o controle manual, mecnico ou eletrnico da jornada dos funcionrios.

    Novos veculos

    Os nibus tambm devem ser modificados. Os veculos devero ter ar-condicionado,

    motor na parte traseira, cmbio automtico, bancos ergonmicos, cintos de segurana com trs pontos de ancoragem e porta--objetos. Nos nibus atuais, medidas de controle de engenharia, como silenciadores, enclausuramento do motor e reduo da vibrao das estruturas devero ser criados. Nos terminais de passageiros e finais de linha, as empresas precisariam, ainda, fornecer gua potvel e manter banheiros em condies adequadas de higiene e limpeza.

    Por meio do acordo, as empresas se comprometeriam tambm a criar um Programa de Preveno de Riscos Ambientais para analisar e identificar os principais riscos a que motoristas e cobradores de nibus esto expostos. Outra novidade seria a realizao de exames mdicos e diagnsticos precoces de doenas relacionadas ao trabalho e a criao de um Programa de Conservao Auditiva para monitorar todos os trabalhadores expostos a rudos.

    A iniciativa beneficiar um universo de 4 mil a 5 mil trabalhadores, dentre eles Andr Lus de Melo Torres, motorista h sete anos, que, por conta do trabalho, sente dores na coluna. Ele j foi afastado 23 vezes. Tudo aqui movimento, tem impacto. As cadeiras no ajudam, disse.

    Trabalho com qualidade Na avaliao da mdica do Trabalho da Fundao Oswaldo Gruz Ide Gurgel, um conjunto de situaes torna vulnerveis motoristas e cobradores: desde as de trnsito s doenas crnicas e s neuroses.

    Alm da tentativa de solucionar os problemas do setor por meio de termo de ajustamento de conduta, o MPT tambm emitiu notificao recomendatria ao Grande Recife Consrcio de Transporte, do governo do estado, durante a divulgao do processo de licitao das novas linhas de transporte na cidade, buscando garantir melhores condies de trabalho aos empregados do setor.

    A audincia pblica foi a primeira fase da regulamentao da prestao dos servios pela iniciativa privada. O sistema funciona por meio de permisses fornecidas a 18 empresas, que operam 385 linhas e 3 mil nibus.

    O edital de licitao do Sistema de Transporte Pblico de Passageiro da Regio Metropolitana do Recife, a primeira do setor em mbito metropolitano, foi divulgado em 16 de janeiro.

    Estudos epidemiolgicos revelam ser elevado o nmero de motoristas e cobradores do servio de transporte pblico urbano que sofrem com doenas relacionadas audio. Nesse segmento, 48% deles so vtimas de perda auditiva induzida por rudo. A doena causada pelo meio ambiente de trabalho, que propicia diminuio gradual da capacidade de audio decorrente da exposio continuada a nveis elevados de presso sonora. Dados previdencirios tambm demonstram que grande o nmero de afastamentos dos rodovirios por razes de adoecimento no trabalho.

    O procurador do Trabalho Alessandro Santos de Miranda, do MPT no Distrito Federal, requereu Justia do Trabalho, em ao civil pblica, que as empresas do transporte pblico urbano do Distrito Federal utilizem nibus com motor traseiro. So sete as aes civis pblicas ajuizadas, alm de seis inquritos civis em andamento.

    Motorista h cinco anos da Viao Pioneira, Moiss Pereira da Silva, 45 anos, j no identifica sons em tonalidades baixas. Para o rodovirio, o tempo de trabalho nessa profisso acarretou consequncias irreversveis na sua audio. No ouo o som emitido pela cigarra do nibus ou rudos menores. Nem o som da tev em minha casa estou ouvindo direito, completa.

    Atividade arriscada Para o procurador Alessandro de Miranda, o motor dianteiro causador direto de graves sequelas ocupacionais. Como a exposio diria desses trabalhadores superior a oito horas, as atividades desenvolvidas pelos motoristas e cobradores so caracterizadas como labor insalubre de grau mdio e alto, indicando que existe risco grave e iminente desses trabalhadores sofrerem com problemas relativos audio, afirma. Em sua avaliao, a atividade de conduzir nibus urbanos uma das mais arriscadas do ponto de vista auditivo em razo das condies de trabalho impostas aos motoristas e cobradores, como a posio habitual do motor, o elevado nvel de rudo do ambiente urbano, a vibrao, o tempo de exposio e a precria manuteno dos veculos.

    Francisco Bento, 40 anos, motorista da Viao Pioneira h 19, sai de casa todos os dias ainda de madrugada para iniciar sua jornada de trabalho, que pode chegar a nove horas. Ele teve quase toda sua audio comprometida aps anos de trabalho como rodovirio. Como

    chefe de famlia, teme que esse problema o prejudique quando quiser trocar de emprego. A profisso de rodovirio muito difcil. Enfrentamos diversos problemas de sade e a perda da audio a pior delas.

    Requisitos seguros Para o Sindicato dos Trabalhadores do Transporte Rodovirio do Distrito Federal (Sittrater), a discusso oportuna. A Secretaria de Estado e Transportes do Distrito Federal lanou, recentemente, licitao pblica para substituir as empresas e os nibus que operam o transporte coletivo. Hoje, 2.975 nibus urbanos transitam na capital do pas. Destes, 2.897 veculos (quase 98%) possuem motor dianteiro e apenas 78 nibus (pouco mais de 2%) trafegam com motor traseiro. Todas as empresas fabricantes de nibus no Brasil produzem veculos de acordo com as exigncias do MPT, sendo possvel a aquisio de nibus com motor traseiro com pequeno custo adicional.

    O Distrito Federal no a primeira Unidade da Federao a tratar do posicionamento do motor. Lei municipal da cidade de So Paulo probe aquisio de novos nibus com motor dianteiro para operar seu sistema de transporte coletivo. Tramita na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro projeto de lei semelhante, obrigando as

    concessionrias a adquirirem apenas nibus com motor traseiro.

    O Conselho Nacional de Trnsito (Contran) estabelece requisitos de segurana para veculos de transporte coletivo de passageiros de fabricao nacional e estrangeira. Resoluo do Contran determina que o compartilhamento do motor, independentemente de sua localizao, deve possuir isolamento termo acstico.

    Problema tem soluoA advogada do Sittrater, Alessandra Camarano Martins, explica que o adicional de insalubridade no resolve o problema causado pela intensidade sonora produzida pelos motores dos nibus. No adianta monetizar a sade do trabalhador. O importante extinguir o problema de rudos que causam surdez nos rodovirios, afirma.

    Para o procurador Alessandro de Miranda, somente a adoo de veculos com motores unicamente traseiros pode prevenir o adoecimento definitivo dos motoristas e cobradores. O isolamento acstico e trmico no interior do nibus, teto e nas paredes lateral, frontal e traseira necessrio para que o volume, a vibrao, a temperatura e o rudo dentro do nibus possam estar de acordo com os limites de segurana, higiene e sade do trabalhador permitidos pela legislao.

    Rudo e vibrao comprometem capacidade auditivaPor gilBerto gatti e messias carvalho

  • LABOR 3736 LABOR

    Em Alagoas, em virtude do desrespeito acintoso s leis trabalhistas, aes civis pblicas contra quatro empresas de transporte coletivo de Macei Real Alagoas, Cidade de Macei, Piedade, Massayo foram ajuizadas. Elas condicionavam seus motoristas e cobradores a longas jornadas e manipulavam os controles de frequncia, descumprindo a normas de segurana do trabalho. Com as aes, o MPT requereu multa no valor de R$ 2 milhes.

    Inspees realizadas pela Superintendncia Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) de Alagoas e pelo MPT, na Real Alagoas, constataram que os empregados dos chamados carros extras tinham uma jornada de at 14 horas.

    J as empresas Piedade e Massayo foram denunciadas por exigir um cumprimento de jornada superior ao permitido por lei, por no conceder horrio de almoo, bem como pela prtica de descontos irregulares nos salrios dos empregados. Em fiscalizao, a SRTE constatou distoro no extrato de ponto referente aos horrios de entrada e sada dos funcionrios.

    Todo dia Segundo a procuradora do Trabalho Virginia Ferreira, autora das aes, durante inspeo feita pelo MPT, foram encontradas irregularidades gritantes, como a pr-anotao dos horrios assinalados, com incios e trminos de jornadas variados. Tambm foram apreendidos controles de jornada que comprovaram que motoristas e cobradores trabalhavam das 5h30 s 21h45, das 6h15 s 22h40, das 6h30 s 23h10, e das 5h40 s 23h25, numa clara demonstrao de que esses documentos seriam utilizados para ludibriar a legislao trabalhista e os magistrados, quando apresentados em processos judiciais.

    A procuradora destacou, ainda, a situao imposta aos trabalhadores por essas empresas. Imagine passar 14 horas dirigindo um veculo, em meio ao trnsito catico da cidade, com pedestres, motociclistas e ciclistas atravessando frente, sem climatizao, sob o calor tropical, sem proteo acstica, com o motor aos ps do motorista, cmbio manual, com a populao que reclama do pssimo servio de transporte oferecido e com risco de assaltos, cada vez mais constantes? Ainda tem a presso para chegar a tempo nos terminais de passageiros e cumprir com as rotas num prazo preestabelecido.

    Acordo judicial As empresas de transportes Real Alagoas, Piedade, Massayo e Cidade de Macei firmaram acordo judicial com o MPT assumindo alguns compromissos, como a no exigncia de jornada de trabalho superior a dez horas dirias e a concesso de intervalo entre uma jornada e outra no inferior a 11 horas.

    O acordo determinou, ainda, que as empresas criassem um programa de qualidade de vida para seus empregados, contemplando os problemas mais recorrentes entre os trabalhadores, como tabagismo, alcoolismo, drogas e controle do oramento familiar. Em caso de descumprimento, pagaro uma multa de R$ 250 mil.

    Como indenizao por dano moral coletivo, as empresas Massayo, Piedade e Cidade de Macei tiveram de conceder uma cesta bsica com 12 itens a cerca de 840 motoristas e cobradores, por oito meses. No caso de descumprimento dessa clusula, as empresas pagaro multa de R$ 250 mil. Ficou pactuado pagamento de multa de R$ 5 mil por trabalhador prejudicado, caso ocorra descumprimento do acordo, que ser revertida ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) ou a uma entidade sem fins lucrativos indicada pelo MPT.

    O Rio de Janeiro, apesar da visibilidade mundial, ainda deixa a desejar no quesito da mobilidade urbana. A volta para casa depois de um dia de trabalho cada vez mais desagradvel em meio ao caos do trnsito. Uma onda de preocupao com a questo tem provocado debates intensos, em razo da proximidade de grandes eventos que o estado vai receber em 2014 e 2016.

    De acordo com o Sistema de Informaes sobre Mortalidade (SIM) do Sistema nico de Sade (SUS), o perodo de 1996 a 2010 registrou 518 mil mortos vitimados por acidentes de trnsito, boa parte deles de motoristas profissionais em jornada de trabalho. Cerca de 60 mil acidentes de trnsito ocorrem por ano na cidade do

    Rio de Janeiro. O pas teve 40.989 mortes no trnsito, em 2010, nmero provavelmente maior, se levado em considerao que as estatsticas revelam somente as mortes no local do acidente.

    Na Baixada Fluminense, o aumento no nmero de denncias levou o MPT em Nova Iguau a desenvolver uma estratgia de combate s irregularidades em empresas de nibus, por meio do ajuizamento de uma srie de aes civis pblicas (ACP) e da pactuao de termos de ajustamento de conduta (TACs), por parte dos empregadores.

    De acordo com procuradores do Trabalho lotados na regio, os motoristas sofrem com

    MPT em Alagoas garante direitos de profissionais

    Por vanessa naPoleo

    Empresas acionadas judicialmente na Baixada Fluminense

    Por maria augusta carvalho*

  • LABOR 3938 LABOR

    descontos de salrios, devido a assaltos e acidentes sem apurao de culpa. A prtica dos ganchos tambm corriqueira. Nela, o profissional advertido e suspenso de sua atividade e tem dois dias descontados a cada dia de suspenso. Ou seja, a medida interrompe, temporariamente, a atividade do empregado at o pagamento do prejuzo, sem o pagamento de salrios. comum tambm, como forma de punio, a alterao de linhas para outras consideradas piores, alm da forte ocorrncia de jornadas de trabalho dobradas, com o pagamento por fora, o trabalho em dias de folgas, jornadas que chegam a 14 horas dirias e assdio moral.

    Quem se importa? Os motoristas da Baixada Fluminense queixam-se da dupla funo. Trabalham dirigindo e cobrando as passagens. A prtica comum com a gradativa reduo do efetivo de

    cobradores que auxiliavam no transporte coletivo. No incio de 2012, o MPT em Nova Iguau obteve liminar favorvel obrigando uma das transportadoras da regio a cumprir mais de 20 obrigaes trabalhistas. Foram proibidos o transporte dos valores das passagens at a agncia bancria por motoristas e cobradores e o desconto no salrio de valores subtrados em assaltos e por avarias nos veculos. A empresa foi obrigada, ainda, a proporcionar um ambiente de trabalho saudvel e digno.

    A empresa possua 356 motoristas e apenas 105 cobradores, quando o correto deveria ser o mesmo nmero de profissionais. O que deixa mais estressado dirigir e cobrar, mas eu pedi e agora trabalho com um cobrador. Temos 50 minutos: voc chega ao ponto e j tem passageiro, ento, no tem condies de descer do veculo e ir ao banheiro, pois tem de fazer o horrio da empresa organizado pelo despachante. Eles pem 5 minutos em cada ponto, mas, dependendo do trnsito, a gente j chega atrasado e fica sem direito a essa pausa por conta da fila, afirma M.D.X., 29 anos, motorista h seis.

    O gancho O profissional disse ser comum a prtica conhecida como gancho e que j levou advertncia por estar se hidratando em horrio de trabalho, dentro do veculo. Um dia, estava sem tempo de beber gua, pois dirigia e cobrava. No dia seguinte, eu estava impedido de trabalhar e no sabia o porqu, pois no tinha avanado sinal, nem deixado nenhum passageiro a p, tendo embarcado e desembarcado normalmente os passageiros. A me falaram que a cmera havia me filmado e que o problema foi o fato de estar bebendo gua e dirigindo, com o carro em movimento. As cmeras foram instaladas para filmar os roubos, no? Fui impedido de trabalhar, tomei um gancho de trs dias. A cada dia de gancho que fico sem trabalhar perco dois dias de salrio, levo duas faltas e fico sem a cesta bsica inteira. A nossa diria de R$ 54, a gente perde R$ 108, mais R$ 100 do vale-alimentao. Voc perde R$ 208 em um dia de suspenso, explica o motorista. Na outra vez, fui afastado

    por doena, justamente uma infeco nos rins, porque, no expediente, evitava beber gua.S no MPT em Nova Iguau, mais de dez aes civis pblicas foram ajuizadas e mais de seis empresas de nibus assinaram TACs.

    Afastamentos A pesquisadora associada do Departamento de Sade Coletiva da Universidade de Braslia (UnB) Anadergh Barbosa-Branco revela que o transporte terrestre a 16 classe de atividade mais prevalente em afastamentos de trabalhadores. Se levarmos em conta somente o transporte rodovirio de passageiros, comparados com outros ramos da Classificao Nacional de Atividades Econmicas (CNAE), a atividade sobe para a sexta posio no ranking de afastamento por alguma incapacidade para o trabalho, aponta a professora. Segundo ela,

    dos benefcios de auxlio-doena concedidos em 2009, 71.852 foram destinados ao ramo de transporte terrestre, sendo 597,8 benefcios para cada grupo de 10 mil trabalhadores. Em se tratando de transporte rodovirio coletivo de passageiros, com itinerrio fixo, municipal e de regio metropolitana, a prevalncia foi de 692 para 10 mil. Em relao aos trabalhadores dos transportes de carga, a classe vem em seguida, com 510,9 trabalhadores para o mesmo grupo.

    O anurio estatstico de acidentes de trabalho do Ministrio da Previdncia e Assistncia Social tambm aponta, com destaque, 1.190 acidentes, na atividade, em 2010. De acordo com os dados, as doenas que prevalecem na lista da atividade, cujos trabalhadores so, majoritariamente, do sexo masculino (predomnio de 86,7%, em 2009), so a depresso e as dorsopatias. No conjunto transportes terrestres, a depresso ocupa o

    terceiro lugar como causa de incapacidade. J entre os trabalhadores do transporte rodovirio coletivo de passageiros, com itinerrio fixo, municipal e em regio metropolitana, essa causa foi a segunda, ficando atrs apenas das dores nas costas.

    Nova legislaoSobre o afastamento de M.D.X., a pesquisadora faz uma anlise. Se comparados com motoristas rodovirios de txi, a probabilidade do aparecimento de clculo renal 4,6 vezes maior no transporte rodovirio coletivo. A probabilidade de agravo da prevalncia dessa doena nos motoristas de coletivos 70% superior do que no de cargas, destacou. Segundo ela, o rodovirio coletivo de passageiros, com itinerrio fixo, municipal e em regio metropolitana, quando comparado com o transporte de cargas, revela maior incidncia de transtornos afetivos 70% a 80% mais de depresso , seis vezes mais transtornos neurticos e relacionados com estresse, como a sndrome do pnico. Por outro lado, o transporte de cargas apresenta maior prevalncia de leses, como traumatismos de pernas e braos.

    Para combater esse cenrio, legislaes mais especficas tm sido estabelecidas, como o caso da Lei 12.619/2012 (leia reportagem s pginas 52 a 59). No Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Transportes (Setrans) criou algumas polticas. Uma TV via web foi lanada para incentivar a integrao e a educao de profissionais do setor. O estado possui, ainda, programas como o Rodovirio Cidado, realizado em parceria com a Fundao Getlio Vargas. Estes programas, segundo o secretrio Jlio Lopes, foram planejados para oferecer aos rodovirios ferramentas para potencializar sua capacidade no exerccio da profisso. O secretrio reconhece o potencial do setor para o quesito desenvolvimento urbano e afirma o empenho na melhoria das condies de trabalho dos profissionais que atuam no setor de mobilidade urbana. De forma integrada, estamos trabalhando com as prefeituras e com as empresas, para intensificar os avanos em curso, como a construo dos Bus Rapit Transit (BRTs), corredores expressos de nibus, e a modernizao da frota operacional, afirma. Lopes destaca, tambm, as fiscalizaes do Departamento de Transportes Rodovirios do Estado do Rio de Janeiro (Detro), que averiguam as condies da frota regular, confirmando a melhora das condies de trabalho dos motoristas.

    * Com Paula EstrellaEstagiria de Comunicao do MPT no Rio de Janeiro

  • LABOR 4140 LABOR

    Pantanal

    O cenrio a vila de casas de palafitas s margens do Rio Paraguai, no Porto da Manga, por onde passa a Estrada Parque do Pantanal de Mato Grosso do Sul. A personagem Maria do Carmo de Souza (foto da pgina 42), catadora de iscas. Com 76 anos, vive na comunidade desde 1938.

    Em 1971, quando o turismo comeou a se expandir na regio, ela passou a coletar iscas na beira do rio. A atividade arriscada: preciso mergulhar em guas onde convivem arraias, sucuris, piranhas e jacars. Mas assim que Maria do Carmo garante sua subsistncia e a de sua famlia.

    No Porto da Manga, a coleta de iscas desenvolvida predominantemente por mulheres e elas so as mais atingidas por doenas decorrentes do trabalho submerso. As mais comuns so doenas de pele, pneumonias, alergias e os problemas ginecolgicos.

    A catadora de iscas Jane da Silva, 40 anos, mora na comunidade do Paraguai-Mirim. Ela tem nos ps, pernas e braos as marcas da micose contrada h trs anos. J foi ao mdico, em Corumb, e tem tratado as feridas camadas escuras e espessas com gua boricada. As famlias pedem posto mdico, pois falta acesso a servios de sade na regio e h muitas crianas. O isolamento mais um risco para a sade.

    Mudana A realidade de Maria do Carmo e Jane comeou a mudar quando o Ministrio Pblico do Trabalho (MPT) entregou, no fim de 2012, 120 macaces impermeveis s comunidades da regio do Porto da Manga, Paraguai-Mirim e da Barra do So Loureno, onde esto concentradas as famlias de isqueiros do pantanal sul-mato-grossense.

    Os equipamentos, no valor aproximado de R$ 24 mil, foram adquiridos com recursos de multas trabalhistas, por meio de acordo judicial. A ao foi movida pelo MPT em Corumb contra a Jlio Simes Transportes e Servios, por incentivar os empregados a acionarem o Judicirio indevidamente para receber verbas trabalhistas. Com a ao, a transportadora se comprometeu a pagar indenizao por danos morais coletivos, no valor de R$ 50 mil, e parte desse recurso foi destinada aquisio dos macaces.

    A reverso dos recursos em favor dos trabalhadores isqueiros de Corumb resulta de parceria com a organizao Ecologia e Ao (Ecoa), que desenvolve projeto com as famlias ribeirinhas coletoras de iscas vivas.

    Os macaces doados so vulcanizados e impermeveis, equipamentos de proteo individual (EPIs) de uso obrigatrio para o desempenho da atividade. A destinao social das roupas de proteo vai contribuir para a melhoria da qualidade de trabalho dos isqueiros, com reduo das condies de insalubridade, explica o procurador do Trabalho Rafael Salgado.

    Para entregar os equipamentos, a Prefeitura de Corumb colocou disposio do MPT uma embarcao e um pi