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A crítica e o desenvolvimento do conhecimento: C951 quarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência, realizado em Londres em 1965 / organi- zado por Imre Lakatos e Alan Musgrave ; [traduzido por Octa- vio Mendes Cajado ; revisão técnica de Pablo Mariconda]. — São Paulo : Cultrix : Ed. da Universidade de São Paulo, 1979. Bibliografia. 1. Ciência — Filosofia I. Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência, Londres, 1965. II. Lakatos, Imre. III. Musgrave, Alan. 79-0113 CDD -501  A CRÍTICA E o DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO Quarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência, realizado em Londres em 1965 CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Câmara Brasileira do Livro, SP Indices para catálogo sistemático: 1. Ciência — Filosofia 501 2. Filosofia da ciência 501 EDITORACULTRIX São Paulo EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Organizado por I MRE LAKATOS Ex-professor de Lógica da Universidade de Londres e ALAN MUSGRAVE Professor de Filosofia da Universidade de Otago

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A crítica e o desenvolvimento do conhecimento:C951 quarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre

Filosofia da Ciência, realizado em Londres em 1965 / organi-

zado por Imre Lakatos e Alan Musgrave ; [traduzido por Octa-vio Mendes Cajado ; revisão técnica de Pablo Mariconda]. — São Paulo : Cultrix : Ed. da Universidade de São Paulo, 1979.

Bibliografia.

1. Ciência — Filosofia I. Colóquio Internacional sobreFilosofia da Ciência, Londres, 1965. II. Lakatos, Imre. III.Musgrave, Alan.

79-0113 CDD -501

 A CRÍTICA E o

DESENVOLVIMENTO DO

CONHECIMENTOQuarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia

da Ciência, realizado em Londres em 1965

CIP-Brasil. Catalogação-na-FonteCâmara Brasileira do Livro, SP

Indices para catálogo sistemático:1. Ciência — Filosofia 5012. Filosofia da ciência 501

EDITORACULTRIX

São PauloEDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Organizado por 

I MRE LAKATOS

Ex-professor de Lógica da Universidade de Londres

e

ALAN MUSGRAVE

Professor de Filosofia da Universidade de Otago

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Black [1962): Models and Metaphors, 1962.Brodbeck [1962): "Explanation, Prediction and Imperfect Knowledge' ", no

livro organizado por Feigl e Maxwell: Minnesota Studies in the Philo-

 sophy of Science, 3, pp. 231-72.Campbell [1920): Foundations of Science, 1920.Feyerabend [1962): "Explanation, Reduction and Empiricism", no livro orga-

nizado por Feigl e Maxwell: Minnesota Studies in the Philosophy of Science, 3, pp. 28-97.

Good [1965] : Speculations Concerning the First Ultra-Intelligent Machine, 1965.

Gregory [1966] : Eye and Brain, 1966.Hesse [1963): Models and Analogies in Science, 1963.Hesse [1964] : "The Explanatory Function of Metaphor", estampado no livro

organizado por Bar-Hillel: Logic, Methodology and Philosophy of Science,1966, pp. 249-59.

Jevons [18731: The Principles of Science, 1873.Kuhn [1962): The Structure of Scientific Revolutions, 1962.Lakatos [1963-64]: "Proofs and Refutations", nas pp. 1-25, 120-39, 221-43 e

296-342 da publicação The British Journal for the Philosophy of Science, 14.

 Needham [1961a]: "The Theory of Clumps, 11", trabalho estampado na pu- blicação Cambridge Language Research Unit Working Papers, 139.

 Needham [1961b]: "Research on Information Retrieval, Classification andClumping, 1957-61", tese de doutoramento em filosofia, apresentada naUniversidade de Cambridge em 1961.

 Needham [1963): "A Method for Using Computers in Information Classifica-tion", trabalho publicado no Information Process 62: Proceedings of the International Federation for Information Processing Congress, Amsterdã,

1962. Needham e Spãrck Jones [1964): "Keywords and Clumps", Journal of Do-

cumentation, 20, n.° 1. Needham [1965): "Applications of the Theory of Clumps", Mechanical Trans-

lation, 8, pp. 113-27.Parker-Rhodes e Needham [1960) : "The Theory of Clumps", Cambridge Lan-

 guage Research Unit Working Papers, 126.Parker-Rhodes [1961): "Contributions to the Theory of Clumps", Cambridge

 Language Research Unit Working Papers, 138.Popper [1963]: Conjectures and Refutations, 1963.Putnam [1962): "The Analytic and the Synthatic", ensaio incluído na obra

organizada por Feigl e Maxwell: Minnesota Studies in the Philosophy of Science, 3, pp. 358-97.

Sneath e Sokal [1963): Principles of Numerical Taxonomy, 1963.Tanimoto [1958): "An Elementary Mathematical Theory of Classification and

Prediction". I.B.M. Research, 1958.

O FALSEAMENTO E A METODOLOGIA DOSPROGRAMAS DE PESQUISA CIENTÍFICA '

IMRE LAKATOS London School of Economics

1 . Ciência: razão ou religião?

2. Falibilismo versus falseacionismo.

(a)  Falseacionismo dogmático (ou naturalista). A base em-

 pírica.(b)  Falseacionismo metodológico. A `base empírica'.

(c) Falseacionismo sofisticado versus falseacionismo ingê-nuo. Mudanças progressivas e degenerativas de proble-mas.

3.Uma metodologia dos programas de pesquisa científica.

(a)  Heurística negativa; o "núcleo" do programa.

(b)  Heurística positiva; a construção do "cinto de proteção" e a relativa autonomia da ciência teórica.

(c) Duas ilustrações: Prout e Bohr.

(cl) Prout: um programa de pesquisa que progride numoceano de anomalias.

1. Este ensaio é uma versão consideravelmente melhorada demeu tra-lho"Criticism and the Methodology of Scientific Research Programmes", de1968, e uma tosca versão demeu trabalho de1973. Algumas partes do pri-meiro foram aqui reproduzidas sem alteração com licença doorganizador das

 Proceedings of the Aristotelian Society.  Na preparação danova versão recebimuita ajuda de Tad Beckman, Colin Howson, Clive Kilmister, Larry Laudan,Eliot Leader, Alan Musgrave, Michael Sukale, John Watkins eJohn Worrall.

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(c2) Bohr: um programa de pesquisa que progride so-bre fundamentos inconsistentes.

(d) Um novo olhar dirigido a experiências cruciais: o fim da

racionalidade instantânea.(dl) A experiência Michelson-Morley.

(d2)  As experiências Lummer-Pringsheim.

(d3) Desintegração-beta versus leis da conservação.

(d4) Conclusão. O requisito do desenvolvimento contí-

nuo.

4.0 Programa de pesquisa popperiano versus o programa de pes-

quisa kuhniano.

 Apêndice: Popper, falseacionismo e a "tese Duhem-Quine".

1 . CIÊNCIA: RAZÃO OU RELIGIÃO?

Durante séculos o conhecimento significou conhecimento provado — provado pela força do intelecto ou pela prova dos sentidos. A sa- bedoria e a integridade intelectual exigiam que o homem abrisse mãodas afirmativas não-provadas e minimizasse, até em pensamento, ohiato existente entre a especulação e o conhecimento estabelecido. Aforça demonstrativa do intelecto ou dos sentidos foi posta em dúvida pelos céticos há mais de dois mil anos; mas eles foram intimidados econfundidos pela glória da física newtoniana. Os resultados de Einsteintornaram a virar a mesa e, agora, pouquíssimos filósofos ou cientis-tas ainda pensam que o conhecimento científico é, ou pode ser, o co-nhecimento demonstrado. Poucos compreendem, porém, que, comisso, toda a estrutura clássica dos valores intelectuais desmorona e precisa ser substituída: não se pode simplesmente jogar por terra oideal da verdade demonstrada — como fazem alguns empirist'as lógi-cos — reduzindo-o ao ideal da "verdade provável" 2 nem — como

fazem alguns sociólogos do conhecimento — à "verdade pelo consen-so [mutável] ".3

2. 0 principal protagonista contemporâneo do ideal da "verdade prová-vel" é Rudolf Carnap. Sobre os antecedentes históricos euma crítica dessa posição, cf. "Changes in the Problem of the Inductive Logic", de Lakatos,de 1968.

3. Os principais protagonistas contemporâneosdo ideal da "verdade por consenso" são Polanyi e Kuhn. Sobre os antecedentes históricos euma críticadessa posição, cf. Impersonal Knowledge, de Musgrave, 1969, e a crítica feita

 por Musgrave do trabalho de Ziman: "Public Knowledge: An Essay Concer-ning the Social Dimensions of Science", 1969.

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O mérito de Popper baseia-se principalmente no fato de haver ele compreendido todas as implicações do colapso da teoria científicamais bern corroborada de todos os tempos: a mecânica newtonianae a teoria newtoniana da gravitação. Na sua opinião, a virtude nãoestá na cautela em evitar erros, mas na implacabilidade com que seeliminam esses erros. Audácia nas conjeturas de um lado e austerida-de nas refutações de outro: essa é a receita de Popper. A honestidadeintelectual não consiste em tentar alguém entrincheirar-se ou firmar sua posição demonstrando-a (ou probabilizando-a) — a honestidadeintelectual consiste antes em especificar precisamente as condiçõesem que uma pessoa está disposta a renunciar à sua posição. Marxistase freudianos comprometidos recusam-se a especificar tais condições:essa é a marca distintiva da sua desonestidade intelectual. A crença pode ser uma fraqueza biológica lamentavelmente inevitável que deveser mantida sob o controle da crítica: mas o compromisso, para Pop-

 per, é um crime sem limites.

Kuhn já pensa de maneira diferente. Ele também rejeita a idéiade que a ciência cresce pela acumulação de verdades eternas. 4Tam- bém se inspira na derrubada da física newtoniana levada a cabo por Einstein. O seu principal problema também é a revolução científica.Mas ao passo que, de acordo com Popper, a ciência é "revolução per-manente" e a crítica é o cerne do empreendimento científico, de acor-do com Kuhn a revolução é excepcional e, na verdade, extracientífica,e a crítica, em épocas "normais", é maldição. Ao parecer de Kuhn,com efeito, a transição da crítica para o compromisso assinala o pontoem que o progresso — e a ciência "normal" — principia. Para ele, aidéia de que na "refutação" se pode exigir a rejeição (a eliminação deuma teoria) é falseacionismo "ingênuo". A crítica da teoria dominantee  propostas de novas teorias só são permitidas nos raros momentosde "crise". Esta última tese kuhniana tem sido amplamente criticada 5

4. Ele apresenta, com efeito, seu livro The Structure of Scientific Revo-lutions, de 1962, argumentando contra a idéia do "desenvolvimento por acumu-lação" do crescimento científico. Intelectualmente, porém, ele deve mais aKoyré do que a Popper. Koyré mostrou que o positivismo proporciona máorientação ao historiador da ciência, pois a história da física só pode ser com- preendida no contexto de uma sucessão de programas "metafísicos" de pes-quisa. Assim sendo, as mudanças científicas estão ligadas a vastas revoluçõesmetafísicas cataclísmicas. Kuhn desenvolve essa mensagem de Burtt e Koyrée o enorme êxito do seu livro deveu-se, em parte, à sua crítica objetiva e di-reta da historiografia justificacionista — que criou sensação entre os cientistase historiadores comuns da ciência, ainda não alcançados pela mensagem deBurtt, Koyré (nem pela de Popper). Infelizmente, porém, sua mensagem tinhai mplicações autoritárias e irracionalistas.

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e não a discutirei. O que me interessa é que Kuhn, tendo reconhecidoo fracasso do justificacionismo e do falseacionismo no proporcionar explicações racionais do desenvolvimento científico, parece agora re-cair no irracionalismo.

Para Popper a mudança científica é racional ou, pelo menos, pode ser racionalmente reconstruída e cai no domínio da lógica da

descoberta.Para Kuhn a mudança científica — de um "paradigma" a

outro — é uma conversão mística, que não é, nem pode ser, gover-nada por regras da razão e cai totalmente no reino da  psicologia (so-

cial) da descoberta. A mudança científica é uma espécie de mudançareligiosa.

O choque entre Popper e Kuhn não se verifica em torno de ummero ponto técnico de epistemologia. Refere-se aos nossos valoresintelectuais centrais, e tem implicações não só para a física teóricamas também para as ciências sociais subdesenvolvidas e até para afilosofia moral e política. Se nem mesmo na ciência há outro modo de

 julgar uma teo ri a senão calculando o número, a fé e a energia vocaldos seus apoiadores, isso terá de ocorrer principalmente nas ciênciassociais: a verdade está no poder. Assim a posição de Kuhn reivindica,

sem dúvida, não-intencionalmente, o credo político básico dos manía-cos religiosos contemporâneos ("estudantes-revolucionários") .

 Neste ensaio mostrarei primeiro que na lógica da descoberta cien-tífica de Popper se fundem duas posições diferentes. Kuhn só com- preende uma delas, o "falseacionismo ingênuo" (prefiro a expressão"falseacionismo metodológico ingênuo") ; entendo que a crítica que elefaz dele é correta, e até a reforçarei. Kuhn, no entanto, não compreen-de uma posição mais sofisticada cuja racionalidade não se baseie nofalseacionismo "ingênuo". Tentarei explicar — e reforçar ainda mais — a posição mais forte de Popper que, creio eu, escapa às críticasde Kuhn e apresenta as revoluções científicas não como se constituís-sem conversões religiosas, mas como progresso racional.

2. FALIBILISMO VERSUS FALSEACIONISMO.

Para ver com maior clareza as teses conflitantes, precisamos re-construir a situação do problema tal como se apresentava na filosofiada ciência após o colapso do "justificacionismo".

5. Cf., por exemplo, as contribuições de Watkins e Feyerabend para estevolume.

 De acordo com os "justificacionistas", o conhecimento científicoconsistia em proposições demonstradas. Tendo reconhecido que asdeduções estritamente lógicas nos permitem apenas infe rir (transmitir a verdade) mas não demonstrar (estabelecer a verdade), eles discor-davam em relação à natureza dessas proposições (axiomas) cuja ver-dade pode ser provada por meios extralógicos. Os intelectualistasclássicos (ou "racionalistas" no sentido estrito do termo) admitiam

espécies muito variadas — e poderosas — de "demonstrações" extra-lógicas pela revelação, intuição intelectual, experiência. Com a ajudada lógica, estas lhes permitiam provar toda a sorte de proposiçõescientíficas. Os empiristas clássicos só aceitaram como axiomas umconjunto relativamente pequeno de "proposições fatuais" que expres-savam os "fatos concretos". O seu valor de verdade foi estabelecido pela experiência e elas constituíram a base empírica da ciência. Para poder provar teoriascientíficas partindo apenas da rigorosa base em- pírica, eles precisavam de uma lógica muito mais poderosa do que alógica dedutiva dos intelectualistas clássicos: a "lógica indutiva". To-dos os justificacionistas, intelectualistas ou empiristas, concordavamem que uma afirmação singular que expressa um "fato concreto" pode

 provar a falsidadede uma teoria universal;6 mas poucos dentre eles julgaram que uma conjunção finita de proposições fatuais fosse sufi-ciente para provar "indutivamente" uma teoria universal.?

O justificacionismo, isto é, a identificação do conhecimento como conhecimento provado, foi a tradição dominante do pensamentoracional no correr dos séculos. O ceticismo não negou o justificacio-nismo: apenas asseverava que não havia (nem poderia haver) conhe-cimento provado e portanto qualquer espécie de conhecimento. Para

6. Os justificacionistas acentuaram repetidamente essa assimetria entre osenunciados fatuais singulares e as teorias universais. Cf. por exemplo a dis-cussão sobre Pascal no ensaio de Popkin, "Scepticism, Theology and the Scien-

tific Revolution in the Seventeenth Century", de 1968, p. 14, e o enunciadode Kant no mesmo sentido citado no novo moto da terceira edição alemã da Logik der Forschung de Popper, de 1969. (A escolha feita por Popper dessa pedra angular tradicional da lógica elementar como moto da nova edição dasua obra clássica demonstra sua preocupação principal: combater o  probabi-lismo, em que a assimetria se mostra irrelevante; pois as teorias probabilistas podem tornar-se quase tão bem estabelecidas quanto as proposições fatuais.)

7. Com efeito, até alguns desses poucos, seguindo Mill, passaram do pro- blema obviamente insolúvel da prova indutiva (de proposições universais a partir de proposições particulares) ao problema pouco menos obviamente in-solúvel de provar proposições fatuais particulares a partir de outras proposi-ções fatuais particulares.

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os céticos o "conhecimento" nada mais era do que a crença animal.Dessa maneira, o ceticismo justificacionista ridicularizou o pensamentoobjetivo e abriu as portas para o irracionalismo, o misticismo, a su-

 perstição.Essa situação explica o esforço enorme feito pelos racionalistas

clássicos na tentativa de salvar os princípios sintéticos a priori do in-telectualismo e pelos empiristas clássicos na tentativa de salvar acerteza de uma base empírica e a validade da inferência indutiva. Paratodos eles a honestidade científica exigia que não se afirmasse nada

que não estivesse provado. Ambos, contudo, foram derrotados: oskantianos pela geometria não-euclidiana e pela física não-newtoniana,e os empiristas pela impossibilidade lógica de estabelecer uma baseempírica (como os kantianos assinalaram, fatos não provam propo-sições) e de estabelecer uma lógica indutiva (nenhuma lógica podeaumentar o conteúdo infalivelmente). Verificou-se que todas as teo-

rias são igualmente indemonstráveis.

Os filósofos demoraram em reconhecê-lo, por motivos óbvios:

os justificacionistas clássicos temiam que, se admitissem a indemons-trabilidade da ciência teórica, teriam também de concluir que ela ésofisma e ilusão, uma fraude desonesta. A importância filosófica do

 probabilismo(ou "neojustificacionismo") está na negação da neces-sidade de uma conclusão dessa natureza.

O probabilismo foi elaborado por um grupo de filósofos de Cam- bridge em cujo entender, embora as teorias científicas sejam igual-mente improváveis, elas têm diferentes graus de probabilidade (nosentido do cálculo das probabilidades) relativos à evidência empíricadisponível.$ A honestidade científica, portanto, requer menos do que

 se havia suposto: ela consiste em proclamar apenas teorias altamente

 prováveis; ou até em especificar apenas, para cada teoria científica,

a evidência e a probabilidade da teoria à luz dessa evidência.

Está claro que a substituição da prova pela probabilidade foi umrecuo importante do pensamento justificacionista. Mas até esse recuose revelou insuficiente. Logo se evidenciou, graças sobretudo aos per-sistentes esforços de Popper, que em condições muito gerais todas as

8. Os fundadores do probabilismo eram intelectualistas; os últimos es-forços de Carnap para construir uma classe empirista de probabilismo malo-grou. Cf. meu ensaio "Changes in the Problem of Inductive Logic", de 1968.

 p. 367 e também p. 361, nota de rodapé n.° 2.

teorias têm uma probabilidade zero, seja qual for a evidência; todasas teorias não são apenas igualmente indemonstráveis mas tambémigualmente improváveis. 9

Muitos filósofos argumentam que a incapacidade de obter pelomenos uma solução probabilística do problema da indução significa

que nós "jogamos fora quase tudo que a ciência e o bom senso con-sideram conhecimento." 10É nesse contexto que precisamos apreciar a mudança dramática acarretada pelo falseacionismo na avaliação dasteorias e, em geral, nos padrões de honestidade intelectual. Em certosentido, o falseacionismo foi um novo e considerável recuo do pensa-mento racional. Mas, sendo um recuo de padrões utópicos, esclareceumuita hipocrisia e muito pensamento confuso, de modo que, na reali-dade, acabou representando um avanço.

(a) . Falseacionismo dogmático (ou naturalista). A base empírica.

Discutirei primeiro uma das classes mais importantes de falseacio-nismo: o falseacionismo dogmático (ou "nauralísta"). 11

O falseacio-nismo dogmático admite a fabilidade de todas as teorias científicassem qualificação, mas retém uma espécie de base empírica infalível.

estritamente empirista sem ser indutivista: nega que a certeza da base empírica pode ser transmitida a teorias.  Desse modo, o falsea-cionismo dogmático é a classe mais fraca de justifi'cacionismo.

 E extremamente importante sublinhar que a admissão de uma

contra-evidência empírica [fortificada] como árbitro final contra uma

teoria não faz de ninguém um falseacionista dogmático. Qualquer kantiano ou indutivista concordará com essa arbitração. Mas tanto okantiano quanto o indutivista, embora se curvem diante de uma expe-riência crucial negativa, também especificarão condições sobre como

estabelecer e fortificar, mais do que outra, uma teoria não refutada.Os kantianos sustentavam que a geometria euclidiana e a mecânicanewtoniana foram estabelecidas com certeza; os indutivistas susten-tavam que elas tinham probabilidade 1. Para o falseacionista dogmáti-

9. Sobre uma discussão pormenorizada, cf.meu ensaio "Changes in theProblem of Inductive Logic", de 1968, especialmente à p. 353 e seguintes.

10. "Reply to Critics", de Russell, de 1943, it p. 683. Sobre uma discussãodo justificacionismo de Russell, cf. meu ensaio de 1962, "Infinite Regress andthe Foundations of Mathematics", sobretudo à p. 167 e seguintes.

11. Sobre uma explicação desse termo, cf.mais adiante, à p. 116, notade péde página n.° 12.

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co, porém, a contra-evidência empírica é o único árbitro capaz de

 julgar uma teoria.

A marca distintiva do falseacionismo dogmático é, pois, o re-conhecimento de que todas as teorias são igualmente conjeturais. Aciência não pode provar teoria alguma. Mas se bem não possa  provar,

 pode refutar: ela "pode executar com certeza lógica completa [o ato

dej repúdio do que é falso",12isto é, há uma base empírica de fatosabsolutamente firme que se pode usar para refutar teorias. Os falsea-cionistas fornecem novos padrões — muito modestos — de honesti-dade científica: dispõem-se a considerar uma proposição como "cien-tífica" não só se for uma proposição fatual provada, mas também senão passar de uma proposição falseável, isto é, se houver técnicas ex- perimentais e matemáticas disponíveis na ocasião que designem certasafirmações como falseadores potenciais.' 3

 A honestidade científica, portanto, consiste em especificar, deantemão, uma experiência de tal natureza que, se o resultado contra-disser a teoria, a teoria terá de ser abandonada. 14Q falseacionista exi-ge que, uma vez refutada a proposição, não haja evasão da verdade:

a proposição tem de ser rejeitada incondicionalmente. O falseacionistadogmático executa sumariamente as proposições (não-tautológicas) :que não podem ser falseadas : classifica-as de "metafísicas" e nega-lhes uma posição científica.

Os falseacionistas dogmáticos traçam uma demarcação nítidaentre o teórico e o expe rimentador: o teórico propõe, o experimenta-dor — em nome da Natureza — dispõe. Como diz Weyl: "Desejoregistrar minha admiração sem limites pela obra do expe rimentador em sua luta para arrancar fatos interpretáveis de uma Natureza obsti-nada, que tão bem sabe enfrentar nossas teorias com um  Não decisivo

 — ou com umSim inaudível." 15Braithwaite apresenta uma exposição particularmente lúcida do falseacionismo dogmático. Ventila o proble-

12. The Art of the Soluble, de Medawar, 1967, p. 144. Veja tambémmais adiante, à p. 224, nota de pé de página n.° 341.

13. Essa discussão já indica a importância vital sobre o lslacionista dog-mático de uma demarcação entre proposições fatuais que se podem provar e proposições teóricas que não se podem provar.

14. "Os critérios de refutação têm de ser estabelecidos com antecedên-cia: é preciso que haja concordância sobre as situações observávikis que, sendorealmente observadas, significam que a teoria é refutada" (Popper, tonjectures

and Refutations, p.. 38, nota de rodapé n.° 3).15 . Citado na Logik der Forschung, de Popper, 1934, seção 85, com o

comentário de Popper: "Concordo plenamente".

ma da objetividade da ciência: "Até que ponto, portanto, deve umsistema científico dedutivo estabelecido ser considerado uma livrecriação da mente humana, e até que ponto deve ele ser consideradofornecedor de um relato objetivo dos fatos da natureza?" Sua respostaé a seguinte: "A forma do enunciado de uma hipótese científica eseu emprego para expressar uma proposição geral é um expediente

humano; o que se deve à Natureza são os fatos observáveis, que refu-tam ou não a hipótese científica ... [Na ciência] deixamos à Natu-reza a tarefa de decidir se algumas das conclusões contingentes denível mais baixo são falsas. Esse teste objetivo de falsidade é o quefaz o sistema dedutivo, em cuja constru ção temos grande liberdade,um sistema dedutivo de hipóteses científicas. O homem propõe umsistema de hipóteses: a Natureza dispõe da sua verdade ou falsidade.O homem inventa um sistema científico e depois descobre se o siste-ma se harmoniza ou não com o fato obse rvado." 16

 De acordo com a lógica do falseacionismo dogmático, a ciência

cresce mediante o repetido derrubamento de teorias com a ajuda de fatos concretos. Por exemplo, de acordo com essa concepção, a teo ri a

gravitatória dos vértices de Descartes foi refutada — e eliminada —  pelo fato de se moverem os planetas em elipses e não em círculoscartesianos; a teoria de Newton, contudo, explicava com êxito os fatosentão disponíveis, tanto os que tinham sido explicados pela teoria deDescartes quanto os que a haviam refutado. Por isso a teoria de New-ton substituiu a teoria de Descartes. De maneira semelhante, segundoos falseacionistas, a teoria de Newton, por sua vez, foi refutada — 

 provando-se que era falsa — pela anomalia do periélio de Mercúrio,que Einstein, por sua vez, explicou. Desse modo, a ciência avançaatravés de especulações ousadas, que nunca são demonstradas nemmesmo probalizadas mas algumas das quais, mais tarde, são elimina-das por refutações concretas e conclusivas e logo substituídas por no-

vas especulações ainda mais ousadas, e, pelo menos no início, não--refutadas.

16. Braithwaite, Scientific Explanation, 1953, pp. 367-8. Sobre a "incor-rigibilidade" dos fatos observados de Braithwaite, cf. o seu ensaio, "The Re-levance of Psychology to Logic", 1938. Embora no trecho citado Braithwaitedê uma resposta vigorosa ao problema da objetividade científica, em outro passo ele assinala que "excetuando- se as generalizações diretas de fatos obser-váveis... a refutação completa já é tão impossível quanto a prova completa"(Scientific Explanation, p. 19). Veja também mais adiante, à p. 138, nota derodapé n.° 86.

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O falseacionismo dogmático, no entanto, é insustentável. Repou-sa sobre duas suposições falsas e sobre um critério demasiado rigorosode demarcação entre o científico e o não-científico.

A primeira suposição é que há uma fronteira natural, psicológica,

entre as proposições teóricas ou especulativas de um lado e as propo-sições fatuais ou observacionais (ou básicas) de outro. (Isto, natural-

mente, faz parte do "enfoque naturalista" do método científico.17

A segunda suposição é que se uma proposição satisfaz ao critério psicológico de ser fatual ou observacional (ou básica), ela é verdadei-ra; é possível afirmar que foi demonstrada a partir dos fatos. (Cha-marei a esta a doutrina da prova observacional (ou experimental). 18

Essas duas suposições asseguram às contundentes refutações dosfalseacionistas dogmáticos uma base empírica a partir da qual a fal-sidade provada pode ser transferida, pela lógica dedutiva, à teoriaque está sendo testada.

Tais suposições são completadas por um critério de demarcação:

só são "científicas" as teorias que impedem certos estados de coisas

observáveis e, portanto, são fatualmente refutáveis. Ou, uma teoria será "científica" se tiver uma base empírica. 19

Mas as duas suposições são falsas. A psicologia depõe contra a primeira, a lógica contra a segunda e, finalmente, o julgamento meto-dológico depõe contra o critério de demarcação. Discutirei cada umdeles de per si.

(1) Um primeiro olhar endereçado a uns poucos exemplos ca-racterísticos solapa a primeira suposição. Galileu afirmava-se capazde "observar" montanhas na lua e manchas no sol, e que tais "obser-vações" refutavam a teoria tradicional de que os corpos celestes são

17. Cf. Logik der Forschung, 1934, de Popper, seção 10.18. Sobre essas suposições e sua crítica, cf. Popper, Logik der Forschung,

1934, seções 4 e 10. Ë por causa dessa suposição que — seguindo Popper — chamo a esta classe de falseacionismo naturalista. As "proposições básicas" dePopper não se devem confundir com as proposições básicas discutidas nestaseção; cf. mais adiante, à p. 129, nota de pé de página n.° 47.

Importa assinalar que essas duas suposições são também partilhadas por muitos justificacionistas que não são falseacionistas: eles podem acrescentar às provas experimentais "provas intuitivas" — como fez Kant — ou "provasindutivas" — como fez Mill. O nosso falseacionista sóaceita provas experi-mentais.

19. A base empírica de uma teoria é o conjunto dos seus falseadores potenciais: o conjunto das proposições observacionais que podem refutá-la.

 bolas impecáveis de cristal. Mas suas "observações" não eram "ob-servacionais" no sentido de serem observ adas unicamente pelos sen-tidos, a credibilidade delas dependia da credibilidade do telescópio doobservador — e da teoria ótica do telescópio — violentamente contes-tada pelos contemporâneos. Não forám as observações —  puras, não--teóricas — de Galileu que se defrontaram com a teoria aristotélica,senão as "observações" de Galileu à luz da sua teoria ótica que sedefrontaram com as "obsrevações dos aristotélicos à luz da teoriaaristotélica dos céus?° Isso nos deixa com duas teorias discrepantes,

 prima facie em igualdade de condições. Alguns empiristas podem con-ceder esse ponto e concordar em que as "obse rvações" de Galileu nãoeram observ ações genuínas; mas ainda sustentam que há uma "demar-cação natural" entre as afirmações impressas diretamente pelos sen-tidos numa mente vazia e passiva — só estas constituem "conheci-mento imediato" autêntico — e as afirmações sugeridas por sensaçõesimpuras, impregnadas de teorias. Com efeito, todas as classes de teo-rias justificacionistas do conhecimento que reconhecem os sentidos

 por origem (sejam eles uma origem, ou sejam a origem) do conheci-mento estão sujeitas a conter uma psicologia da observação. Tais psi-

cologias especificam o estado "correto", "normal", "saudável", "sem preconceitos", "cuidadoso" ou "científico" dos sentidos — ou melhor,o estado da mente como um todo — em que eles observam a verdadetal como ela é. Por exemplo, Aristóteles — e os estóicos — pensavamque a mente correta era a mente sadia do ponto de vista médico. Os

 pensadores modernos reconheceram que, para a mente ser correta, nãolhe basta ter "saúde". A mente correta de Descartes é temperada nofogo da dúvida cética, que não deixa nada a não ser a solidão finaldo cogito em que o ego pode ser restabelecido e, uma vez encontradaa mão orientadora de Deus, reconhecer a verdade. Todas as escolasdo moderno justificacionismo podem ser caracterizadas pela psicote-rapia particular com a qual se propõem preparar a mente para receber a graça da verdade provada no curso de uma comunhão mística. Para

os empiristas clássicos, em particular, a mente correta é uma tabularasa, esvaziada de todo conteúdo original, libertada de todos os pre-conceitos da teoria. Transpire, porém, da obra de Kant e Popper — e da obra dos psicólogos influenciados por eles — que essa psicote-rapia empirista nunca pode ter êxito. Pois não há, nem pode haver,sensações não-impregnada de expectativas e, portanto, não há de-

20. A propósito, Galileu também mostrou — com a ajuda da sua ótica — que, se fosse uma bola de cristal sem jaça, a lua seria invisível. Galileu, Dialogo dei Massimi Sistemi, 1632.

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marcação natural (isto é, psicológica) entre as proposições observa-

cionais e as teóricas.21

(2) Mas mesmo que houvesse uma demarcação natural dessaespécie, a lógica ainda assim destruiria a segunda suposição do falsea-cionismo dogmático. Pois o valor-de-verdade das proposições "obser-vacionais" não pode ser indubitavelmente decidido: nenhuma propo-

 sição fatual pode ser provada a partir de uma experiência. As proposições só se podem derivar de outras proposições, não se podemderivar de fatos: não se pode provar afirmações com experiências — "como não se podem provar dando murros na mesa." 22Este é umdos pontos básicos da lógica elementar, mas ainda hoje compreendidorelativamente por pouca gente? 3

Se não se podem provar, as proposições fatuais são falíveis. Sesão falíveis, os choques entre teorias e proposições f atuais não são"falseamentos" mas apenas discrepâncias. Nossa imaginação podedesempenhar um papel maior na formulação de "teorias" do que naformulação de "proposições fatuais",24mas ambas são falíveis. As-sim sendo, não podemos provar teorias e tampouco podemos ref u-

tá-las.

5i2A demarcação entre as "teorias" francas, não-provadas, e

21. É verdade que a maioria dos psicólogos que se voltaram contra aidéia do sensacionalismo justificacionista o fizeram sob influência de filósofos

 pragmatistas, como William James, que negava a possibilidade de qualquer es- pécie de conhecimento objetivo. Mas, mesmo assim, a influência de Kant atra-vés de Oswald Külpe, Franz Brentano e a influência de Popper através deEgon Brunswick e Donald Campbell influíram na formação da psicologia mo-derna; e se a psicologia vier um dia a sobrepujar o psicologismo, isso se de-verá à maior compreensão da linha principal de filosofia objetivista de Kante Popper.

22. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 29.23. Parece que o primeiro filósofo a dar ênfase a isto foi Fries em 1837

(cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 29, nota de rodapé n.° 3). Tra-ta-se, naturalmente, de um caso especial da tese geral de que as relações ló-gicas, como a probabilidade ou a consistência, se referem a proposições. As-sim, por exemplo, a proposição "a natureza é consistente" é falsa (ou, se pre-ferirem, carente de significado), pois a natureza não é uma proposição (nemuma conjunção de proposições).

24. A propósito, até isso é duvidoso. Cf. mais adiante, pp. 155 e se-guintes.

25. Como diz Popper: "Nunca se poderá apresentar uma refutação con-clusiva de uma teoria"; os que esperam uma refutação infalível antes de eli-minar uma teoria terão de esperar para sempre e "nunca se beneficiarão daexperiência" (Logik der Forschung, 1934, seção 9).

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a `base empírica" forte, provada, não existe: todas as proposiçõesda ciência são teóricas e incuravelmente falíveis 2 6

(3) Finalmente, mesmo que houvesse uma demarcação naturalentre os enunciados da observação e as teorias, e mesmo que o valor--de-verdade dos enunciados da observação pudesse ver estabelecidode modo indubitável, o falseacionismo dogmático ainda assim seria

inútil para eliminar a classe mais importante das comumente con-sideradas teorias científicas. Pois mesmo que as experiências pudessem provar relatórios experimentais, o seu poder de refutação ainda assimseria miseravelmente restrito: são exatamente as teorias científicasmais admiradas que simplesmente falham em proibir qualquer esta-do observável de coisas.

Em apoio da última alegação, contarei primeiro uma históriacaracterística e, a seguir, proporei um argumento geral.

A história é a respeito de um caso imaginário de mau compor-tamento planetário. Valendo-se da mecânica de Newton, da sua leida gravitação, (  N), e das condições iniciais aceitas, I,um físico daera pré-einsteiniana calcula o caminho de um planetazinho re-

cém-descoberto, p.Mas o planeta se desvia da trajetória calculada.O nosso físico newtoniano considera, acaso, que o desvio era proibido pela teoria de Newton e, portanto, uma vez estabelecido, refuta ateoria N? Não. Sugere que deve existir um planeta p', até então des-conhecido, que perturba a trajetória de p. Calcula a massa, a órbita,etc., desse planeta hipotético e, em seguida, pede a um astrônomoexperimental que teste sua hipótese. O planeta p' é tão pequeno quenem o maior dos telescópios disponíveis pode observá-lo: o astrôno-mo experimental solicita uma verba de pesquisa a fim de construir um telescópio ainda maior.27Em três anos o novo telescópio fica

26. Tanto Kant quanto o seu seguidor inglês, Whewell, compreenderamque todas as proposições científicas, quer a priori, quer a posteriori, são igual-mente teóricas; mas ambos sustentavam que elas são igualmente demonstrá-veis. Os kantianos viam claramente que as proposições da ciência são teóri-cas no sentido de que não são escritas por sensações na tabula rasa de umamente vazia, nem induzidas ou deduzidas de tais proposições. Uma proposi-ção fatual é apenas um gênero especial de proposição teórica. Nisto Popper se colocou ao lado de Kant contra a versão empirista do dogmatismo. Popper,todavia, deu um passo à frente: em sua concepção, as proposições da ciên.:íanão são teóricas mas também falíveis, conjecturais para sempre.

27. Se o minúsculo planeta conjectural estivesse fora do alcance até dosmaiores telescópios óticos possíveis,ele poderia experimentar um instrumentototalmente novo (como um radiotelescópio) que lhe .permitisse "observá -lo",isto é, interrogar a Natureza a respeito dele, ainda que apenas de forma in-

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 pronto. Se o planeta desconhecido p' fosse descoberto seria saudadocomo uma nova vitória da ciência newtoniana. Mas não o é. Porven-tura o nosso cientista abandona a teoria de Newton e sua idéia do

 planeta perturbador? Não. Sugere que uma nuvem de poeira cós-mica esconde o planeta de nós. Calcula a localização e as proprieda-des dessa nuvem e solicita uma verba de pesquisa para enviar umsatélite ao espaço a fim de pôr à prova os seus cálculos. Se os instru-

mentos do satélite (possivelmente instrumentos novos, baseados nu-ma teoria pouco testada ainda) registrassem a existência da nuvemhipotética, o resultado se ria saudado como uma vitória extraordiná-ria da ciência newtoniana. Mas a nuvem não é encontrada. Por acasoo nosso cientista abandona a teoria de Newton, juntamente com aidéia do planeta perturbador e a idéia da nuvem que o esconde? Não.Sugere a existência de um campo magnético naquela região do uni-verso que perturbou os instrumentos do satélite. Um novo satéliteé enviado ao espaço. Se o campo magnético fosse encontrado, osnewtonianos comemorariam o encontro como uma vitória sensacional.Mas ninguém o encontra. Isso é considerado como uma refutação daciência newtoniana? Não. Ou se propõe outra engenhosa hipóteseauxiliar ou... toda a história é sepultada nos poentos volumes das

 publicações especializadas, e nunca mais se toca no assunto.28

Essa história dá a entender vigorosamente que até a mais res- peitada teoria científica, como a dinâmica e a teoria da gravitaçãode Newton, pode falhar em proibir qualquer estado observável decoisas 29 De fato, algumas teorias científicas só impedirão a ocorrên-

cia de um acontecimento em alguma região espaço-temporal finitaespecificada (ou, em poucas palavras, um "acontecimento singular")

 se nenhum outro fator (possivelmente escondido em algum cantoespaço- temporal distante e não-especificado do universo) tiver al- guma influência sobre ela. Mas, nesse caso, tais teorias nunca con-

tradizem sozinhas uma afirmação "básica"; cotradizem, quando mui-to, a conjunção de um enunciado básico que descreve um aconte-cimento espaço-temporalmente singular e de um enunciado universalde não-existência que afirma que nenhuma outra causa pertinente seencontra em ação em algum lugar do universo. E o falseacionistadogmático não pode afirmar, de maneira alguma, que tais enuncia-dos universais de não-existência pe rtencem à base empírita: que po-

dem ser observados e provados pela experiência.Outra maneira de dizer a mesma coisa é declarar que algumas

teorias científicas são normalmente interpretadas como se contives-sem uma cláusula ceteris paribus30: em tais casos é sempre uma teo-ria específica, juntamente com essa cláusula, que se pode refutar. Mastal refutação é irrelevante para a teoria específica que está sendo tes-tada porque, substituindo a cláusula ceteris paribus por outra dife-rente, a teoria específica poderá sempre ser mantida, digam o quedisserem os testes.

 Nessas condições, o processo de refutação "inexorável" do f  al-seacionismo dogmático deixa de funcionar em tais casos mesmo quehaja uma base empírica firmemente estabelecida para servir de pla-taforma de lançamento para a seta do modus tollens: o alvo principalcontinua irremediavelmente esquivo. 31 E o fato é que são exatamenteas teorias mais importantes, "maduras", da história da ciência quesão prima facie irrefutáveis dessa maneira. 32Ademais, pelos padrõesdo falseacionismo dogmático todas as teorias probabilísticas tambémfiguram nessa categoria: pois nenhuma amostra finita poderá jamaisrefutar uma teoria probabilística universal;33as teorias probabilísti-cas, como as teori as com uma cláusula ceteris paribus, não têm baseempírica. Mas então o falseacionista dogmático relega as teorias cien-tíficas mais importantes, como ele próprio o reconhece, à metafísica,onde a discussão racional — que consiste, de acordo com os seus

direta. (A nova teoria "observacional" talvez não fosse adequadamente 'inte-Rigtvel, .e muito menos severamente testada, mas ele não se importaria comisso, como Galileu não se importou.)

28. Pelo menos enquanto um novo programa de pesquisa não suplantar o programa de Newton, que explica este fenômeno, anteriormente recalcitrante. Nesse caso, o fenômeno será exumado e entronizado como "experiência c ru

mais adiante, pp. 190 e seguintes.29. Popper pergunta: "Que espécie de respostas clínicas refutaria, para

satisfação do analista, não só um diagnóstico particular mas a própria psica-nálise?" (Conjectureiand Refutations, p. 38, nota de rodapé n.° 3.) Mas queespécie de observação refutaria, para satisfação dos newtonianos, não só de-terminada versão mas também a própria teoria newtoniana?

30. [Acrescentada no prelo]: Essa cláusula "ceteris paribus" não precisaser normalmente interpretada como premissa separada. Sobre uma discussão,veja mais adiante, à p. 231.

31. A propósito, podemos persuadir o falseacionista dogmático de que oseu critério de demarcação foi um erro sumamente ingênuo. Se ele o aban-donar mas retiver suas duas suposições básicas, terá de eliminar da ciênciaas teorias e considerar o crescimento desta última como acumulação de enun-ciados básicos provados. Isso, com efeito, é a fase final do empirismo clássicodepois de evaporar-se a esperança de que os fatos podem provar ou, pelomenos, refutar teorias.

32. Isso não é coincidência; cf. mais adiante, pp. 217 e seguintes.33. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, capítulo VIII.

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 padrões, em provas e refutações — não tem lugar, visto que umateoria metafísica não pode ser provada nem refutada. O critério dedemarcação do falseacionismo dogmático, dessa maneira, é assimainda vigorosamente antiteórico.

( Além disso, pode argumentar-se facilmente que as cláusulas

ceteris paribus não são exceções, senão a regra na ciência. A ciência,

afinal de contas, precisa ser separada de uma loja de curiosidadesonde engraçadas singularidades locais — ou cósmicas — são coli-gidas e expostas. O enunciado "todos os britânicos morreram de cân-cer do pulmão entre 1950 e 1960" é logicamente possível, e podiaaté ter sido verdadeiro. Mas se foi apenas a ocorrência de um eventocom mínimas probabilidades, teria apenas um valor de curiosidade

 para o excêntrico coletor de fatos, seria um macabro valor de entre-tenimento, mas nenhum valor científico. Só se pode dizer que uma proposição é científica quando ela visa a expressar uma conexão cau-sal; essa conexão entre ser britânico e morrer de câncer do pulmão

 pode até nem ser tencionada. Semelhantemente, o enunciado "todosos cisnes são brancos", se fosse verdadeiro, seria uma simples curio-sidade, a não ser que afirmasse que o fato de ser um cisne causa a

 brancura. Mas nesse caso num cisne preto não refutaria essa pro- posição, visto que poderia apenas indicar outras causas operandosimultaneamente. Assim, "todos os cisnes são brancos" é uma sin-gularidade e facilmente refutável ou uma proposição científica comuma cláusula ceteris paribus e, portanto irrefutável. A tenacidade deuma teoria contra a evidência empírica seria então um argumentomais a favor do que contra a sua qualificação como "científica".ica". A"irrefutabilidade" tornar-se-ia uma marca distintiva da ciência.) 34

Resumindo: os justificacionistas clássicos só admitiam teorias provadas; os justificacionistas neoclássicos, teorias prováveis: os f  al-seacionistas dogmáticos compreenderam que em nenhum desses ca-sos eram admissíveis as teorias. Decidiram admitir teorias se fossem

refutáveis — refutáveis por um número finito de obse rvações. Masmesmo que existam tais teorias refutáveis — as que podem ser con-traditadas por um número finito de fatos observáveis — ainda estãologicamente demasiado próximas da base empírica. Por exemplo, nostermos do falseacionista dogmático, uma teoria como "Todos os pla-netas se movem em elipses" pode ser refutada por cinco observa-ções; por conseguinte, o falseacionista dogmático a considerará cien-tífica. Uma teoria como "Todos os planetas se movem em círculos"

34. Sobre um caso muito mais forte, cf. mais adiante, seção 3.

 pode ser refutada por quatro obse rvações; por conseguinte, o falsea-cionista dogmático a considerará mais científica ainda. A culminân-cia da cientificidade será uma teoria como "Todos os cisnes são bran-cos", que pode ser refutada por tema única observação. Por outrolado, ele rejeitará todas as teorias probabilísticas juntamente com asde Newton, Maxwell, Einstein, por não-científicas, uma vez que

nenhum número finito de observações poderá refutá-las.Se aceitarmos o critério de demarcação do falseacionismo dog-

mático, e também a idéia de que os fatos podem provar proposições"fatuais", teremos de declarar que as teorias mais importantes, se nãotodas elas, propostas na história da ciência são metafísicas, que amaior parte do progresso aceito, se não todo ele, é  pseudoprogresso,que quase todo, se não todo, o trabalho feito é irracional. Se, toda-via, ainda aceitando o critério de demarcação do falseacionismo dog-mático, negarmos que os fatos podem provar proposições, acabare-mos por certo no mais completo ceticismo: nesse caso, toda ciênciaserá, sem dúvida, metafísica irracional e deverá ser rejeitada.  Asteorias científicas não são apenas igualmente impossíveis de ser pro-vadas, e igualmente improváveis, mas também são igualmente irref u-táveis. Mas o reconhecimento de que não só as proposições teóricasmas todas as proposições em ciência são falíveis, significa o colapsototal de todas as formas de justificacionismo dogmático como teoriasda racionalidade científica.

(b) Falseacionismo metodológico. A"base empírica".

O colapso do falseacionismo dogmático sob o peso dos argu-mentos falibilísticos nos traz de volta ao início. Se todas as afirma-ções científicas são teo rias falíveis, só podemos criticá-las por sereminconsistentes. Mas nesse caso, em que sentido, se houver algum, aciência é empírica? Se as teo rias científicas não podem ser provadas,

nem probabilizadas, nem refutadas, os céticos parecem ter finalmen-te razão: a ciência não passa de uma vã especulação e não existe progresso no conhecimento científico. Ainda podemos opor-nos aoceticismo? Podemos salvar a crítica científica do falibilismo? É pos-sível ter uma teoria falibilística do progresso cientifico? Em particu-lar, se a crítica cientifica é falível, baseados em que poderemos algumdia eliminar uma teoria?

Uma resposta sumamente intrigante nos é fornecida pelo fal- seacionismo metodológico. O falseacionismo metodológico é umaclasse de convencionalismo; portanto, a fim de compreendê-lo, pre-cisamos primeiro discutir o convencionalismo em geral.

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Há uma demarcação importante entre as teorias "passivista" e

"ativista" do conhecimento. Sustentam os "passivistas" que o verda-deiro conhecimento é a marca impressa pela Natureza numa mente perfeitamente inerte: a atividade mental só pode resultar em parcia-lidade e distorção. A escola passivista mais influente é o empirismoclássico. Os "ativistas" sustentam que não podemos ler o livro da Natureza sem atividade mental, sem interpretá-lo à luz das nossasexpectativas ou teorias.35Agora os ativistas conservadores sustentamque nós nascemos, com nossas expectativas básicas; com elas trans-formamos o mundo no "nosso mundo" mas, depois, temos de viver  para sempre na prisão do nosso mundo. A idéia de que vivemos emorremos na prisão de nossos "referenciais conceituais" foi desen-volvida primeiramente por Kant; os kantianos pessimistas pensavamque o mundo real é para sempre incognoscível por causa dessa pri-são, ao passo que os kantianos otimistas pensavam que Deus criounosso referencial conceitual para ajustá-lo ao mundo. 36 Mas os ati-

vistas revolucionários acreditam que os referenciais conceituais po-dem ser desenvolvidos e também substituídos por novos e melhores

referenciais; somos nós que criamos nossas "prisões" e também po-

demos, com espírito crítico, demoli-las.37

 Novos passos do ativismo conservador para o ativismo revolu-cionário foram dados por Whewell e depois por Poincaré, Milhaude Le Roy. Whewell afirmava que as teorias são desenvolvidas por ensaio-e-erro — nos "prelúdios das épocas indutivas" — por umalonga consideração essencialmente a priori, que ele denominava "in-tuição progressiva". As "épocas indutivas" são seguidas por "seqüe-las das épocas indutivas": desenvolvimentos cumulativos de teorias

35. Essa demarcação — e terminologia — deve-se a Popper; cf. espe-cialmente sua Logik der Forschung,1934, seção 19, e seu The Open Societyand its Enemies, 1945, capítulo 23 e a nota de pé de página n.° 3 do capítulo 25.

36.  Nenhuma versão do ativismo conservador explicou por que a teoria gravitacional de Newton deveria ser invulnerável; os kantianos restringiam-seà explicação da tenacidade da geometria euclidiana e da mecânica newtoniana.A respeito da gravitação e da ótica newtonianas (ou outros ramos da ciência),assumiam uma posição ambígua e, ocasionalmente, indutivista.

37. Não incluo Hegel entre os "ativistas revolucionários". Para Hegel eseus seguidores, a mudança verificada nas referências conceptuais é um pro-cesso predeterminado, inevitável, em que a criatividade individual ou a crí-tica racional não desempenham um papel essencial. Os que correm na frenteestão tão errados quanto os que ficam atrás dessa "dialética". O homem inte-ligente não é o que cria uma "prisão" melhor, nem o que demole com espíritocrítico a prisão velha, mas o que está sempre em harmonia com a história.E assim que a dialética explica a mudança sem crítica.

auxiliares.38 Poincaré, Milhaud e Le Roy eram avessos à idéia de prova pela intuição progressiva e preferiam explicar o continuadoêxito histórico da mecânica newtoniana por uma decisão metodoló-

 gica tomada por cientistas: depois de um período considerável deêxito empírico inicial, os cientistas podem decidir não permitir quea teoria seja refutada. Uma vez tomada essa decisão, resolvem (oudissolvem) as aparentes anomalias por meio de hipóteses auxiliaresou outros "estratagemas convencionalistas".39 Esseconvencionalis-mo conservador, no entanto, tem a desvantagem de nos incapacitar 

 para sair das pri sões que nós mesmos nos impusemos, depois de sehaver escoado o primeiro período de ensaio-e-erro e de haver sidotomada a grande decisão. Ele não pode resolver o problema da eli-minação das teorias que triunfaram durante um longo período. Deacordo com o convencionalismo conse rvador, as experiêncais podemter força bastante para refutar teorias jovens, mas não têm força pararefutar teorias velhas, estabelecidas: à proporção que a ciência cres-ce, a força da evidência empírica diminui.

4o

Os críticos de Poincaré recusaram-se a aceitar sua idéia de que,embora os cientistas construam seus referenciais conceituais, chegauma ocasião em que esses referenciais se transformam em p risões quenão podem ser demolidas. Essa crítica deu origem a du as escolas rivais

38. Cf. Whewell, History of the Inductive Sciences, from the Eearliest to the Present Time, 1837; Philosophy of the Inductive Sciences, Founded uponthe History , 1840; e Novum Organum Renovatum, 1858.

39. Cf. especialmente Poincaré, "Les géometries non euclidiennes", 1891;e LaScience et l'Hypothèse, 1902; Milhaud, "La Science Rationelle", 1896; eLe Roy, "Science et Philosophie", 1889, e "Un Positivisme Nouveau", 1901.

Foi um dos principais méritos filosóficos dos convencionalistas dirigir os re-fletores para o fato de que qualquer teoria pode ser salva das refutações por "estratagemas convencionalistas". (A expressão "estratagema convencionalista"é de Popper, que discute com espírito crítico o convencionalismo de Poincaréem sua Logik der Forschung, especialmente nas seções 19 e 20.)

40. Poincaré elaborou primeiro o seu convencionalismo somente em re-lação à geometria (cf. o seu ensaio "Les géometries non euclidiennes"). De-

 pois Milhaud e Le Roy generalizaram a idéia de Poincaré para cobrir todosos ramos da teoria física aceita. La Science et l'Hypothèse de Poincaré começacom uma vigorosa crítica do bergsoniano Le Roy, contra o qual ele defendeo caráter empírico (falseável ou "indutivo") de toda a física, com exceção dageometria e da mecânica. Duhem, por seu turno, criticou Poincaré, em cujaconcepção havia uma possibilidade de derrubar até a mecânica newtoniana.

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de convencionalismo revolucionário: o simplicismo de Duhem e ofalseacionismo metodológico de Popper. 41

Duhem aceita a posição dos convencionalistas de que nenhumateoria física desmorona jamais sob o peso de "refutações", mas afian-ça que ela ainda pode desmoronar sob o peso de "reparos contínuose de inúmeros esteios emaranhados", quando as "colunas comidas

 pelos vermes" não podem suportar por mais tempo "o edifício vaci-lante";42a teoria perde sua simplicidade original e precisa ser subs-

tituída. Mas o falseamento é entregue então ao gosto subjetivo ou,na melhor das hipóteses, à moda científica, e deixa-se muita margemàadesão dogmática a uma teoria favorita. 43

Popper dispôs-se a encontrar um critério que fosse, ao mesmotempo, mais objetivo e mais agressivo. Ele não poderia aceitar adebilitação do empirismo, inerente até ao enfoque de Duhem, e pro- pôs uma metodologia que faculta às experiências serem poderosasaté na ciência "madura". O falseacionismo metodológico de Popper éconvencionalista e falseacionista a um tempo, mas ele "difere dosconvencionalistas [conservadores] por sustentar que os enunciadosdecididos por consenso não são [espaço-temporalmente] universaismas [espaço-temporalmente] singulares"44; e difere do falseacionistadogmático por sustentar que o valor-de-verdade de tais afirmações ,não pode ser provado por fatos mas, em alguns casos, pode ser deci-dido por consenso.45

41. Os loci classici são La Théorie Physique, Son Objet et Sa Structure,1905, de Duhem, e a Logik der Forschung de Popper. Duhem não era umconvencionalista revolucionário coerente. De maneira muito semelhante a Whe-well, achava que as mudanças conceptuais são apenas  preliminares da "classi-ficação natural" final — ainda que talvez distante: "Quanto mais se aperfeiçoauma teoria, tanto mais apreendemos que a ordem lógica em que ela arranja asleis experimentais é o reflexo de uma ordem ontológica." Em particular, re-cusou-se a ver a mecânica de Newton realmentedesmoronando e caracterizou

a teoria da relatividade de Einstein como a manifestação de uma "corridafrenética e febril no encalço de uma idéia nova", que "converteu a física numverdadeiro caos, onde a lógica se desgarra e o bom senso foge espavorido"(Prefácio — de 1914 — para a segunda edição de sua obra supracitada).

42. Duhem, La Théorie Physique, Son Objet et Sa Structure, 1905, ca- pítulo VI, seção 10.

43. Sobre uma discussão adicional do convencionalismo, veja mais adian-te, pp. 228-233.

44. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30.45. Nesta seção discuto a variante "ingênua" do falseacionismo metodo-

lógico de Popper. Desse modo, em todo o correr da seção, "falseacionismometodológico" quer dizer "falseacionismo metodológico ingênuo"; sobre essa"ingenuidade", cf. mais adiante, pp. 140-141.

128

Oconvencionalista conservador (ou "justificacionista metodo-lógico", se se quiser) torna não-falseáveis por decreto algumas teo-rias (espaço-temporalmente) universais, que se distinguem por seu poder explanatório, sua simplicidade ou sua beleza. O nosso conven-cionalista revolucionário popperiano (ou "falseacionista metodoló-gico") torna não-falseáveis por decretoalguns enunciados (espaço--temporalmente) singulares que se podem distinguir pelo fato deexistir na ocasião uma "técnica pertinente" tal que "quem quer quea tenha aprendido" será capaz de decidir que o enunciado é "aceitá-vel".46Um enunciado dessa ordem pode ser cognominado "observa-cional" ou "básico", mas apenas entre aspas. 47Com efeito, a própriaseleção de todos esses enunciados é uma questão de decisão, quenão se baseia em considerações exclusivamente psicológicas. Essadecisão é então seguida de uma segunda espécie de decisão relativaà separação do conjunto de enunciados básicos aceitos do resto.

Essas duas decisões correspondem às duas suposições do falsea-cionismo dogmático. Mas há diferenças importantes. Acima de tudo,o falseacionista metodológico não é um justificacionista, não tem ilu-sões a respeito de "provas experimentais" e tem plena consciência dafalibilidade das suas decisões e dos riscos que está assumindo.

O falseacionista metodológico compreende que nas "técnicas ex- perimentais" do cientista estão envolvidas teorias falíveis, 48à "luz"das quais ele interpreta os fatos. Apesar disso, "aplica" essas teorias,encara-as no contexto dado, não como teorias que estão sendo testa-das, mas como conhecimento não-problemático de fundo "que nósaceitamos (tentativamente) como não-problemático enquanto testa-mos a teoria".49Ele pode chamar a essas teorias — e as afirmaçõescujo valor-de-verdade decide à sua luz — "observacionais": mas istoé apenas um modo de falar que herdou do falseacionismo naturalis-ta.50O falseacionista metodológico usa nossas teorias mais bem suce-didas como extensões dos nossos sentidos e amplia a extensão das

46. Popper; Logik der Forschung, 1934, seção 27.47. Op. cit. seção 28. Sobre anão-basicidade desses enunciados metodo-

logicamente "básicos", cf. por exemplo Popper, Logik der Forschung, 1934, passimePopper, The Logic of Scientific Discovery, 1959, p. 35, nota de ro-dapé n.° 2.

48. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, fim da seção 26 e tambémseu ensaio "Remarks on the Problems of Demarcation and Rationality", pp.291-2.

49. Cf. Popper, Conjectures and Refutations, 1963, p. 390.50. Efetivamente, Popper, cauteloso, colocou "observacionais" entre as-

 pas; cf. sua Logik der Forschung, seção 28.

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teorias que podem ser aplicadas no procedimento de teste muito alémda gama de teorias estritamente observacionais do falseacionista dog-mático. Imaginemos, por exemplo, que se descubra uma grande ra-dioestrela com um sistema de radioestrelas satélites descrevendo órbi-tas ao seu redor. Gostaríamos de testar alguma teo ria gravitacionalnesse sistema planetário — assunto de considerável interesse. Imagi-nemos agora que Jodrell Bank consiga proporcionar um conjunto de

coordenadas espaço-temporais dos planetas que contradiga a teo ria.Tomaremos esses enunciados como falseadores potenciais. Está claroque tais enunciados básicos não são "observacionais" no sentidousual mas apenas "`observacionais". Eles descrevem planetas quenem o olho humano nem os instrumentos óticos podem alcançar.Chega-se ao seu valor-de-verdade por meio de uma "técnica expe ri

rimental" baseia-se na "aplicação" deuma teoria bem corroborada de radiótica. Chamar "observacionais"a essas afirmações outra coisa não é senão uni modo de dizer que, nocontexto do seu problema, isto é, no procedimento de teste de nossateoria gravitacional, o falseacionista metodológico usa a radióticasem espírito crítico, como "conhecimento de fundo". Anecessidadede decisões para demarcar a teoria que está sendo testada do conhe-cimento de fundo não-problemático é um traço característico dessaclasse de falseacionismo metodológico.51 (Esta situação, na verdade,não difere da "observação" de Galileu dós satélites de Júpiter: alémdisso, como assinalaram com razão alguns contemporâneos de Gali-leu, ele se apoiava numa teoria ótica vi rtualmente inexistente — en-tão menos corroborada e até menos bem expressa do que a radió-tica atual. Por outro lado, chamar "observacionais" aos relatos donosso olho humano só indica que nos "apoiamos" em alguma vagateoria fisiológica da visão humana. 52)

Essa consideração mostra o elemento convencional em conceder  — num dado contexto — um status (metodologicamente) "observa-cional" a uma teoria. 53De maneira semelhante, há um considerávelelemento convencional na decisão relativa ao valor-de-verdade realde um enunciado básico que fazemos depois de haver decidido que

"teoria observacional" aplicar. Uma única obse rvação pode ser oresultado fortuito de algum erro trivial; no intuito de reduzir taisriscos, os falseacionistas metodológicos prescrevem algum controlede segurança. O mais simples desses controles consiste em repetir aexperiência (o número de vezes é uma questão de convenção), forti-ficando assim o falseador potencial por meio de uma "hipótese fal-

seadora bem corroborada".5

'O falseacionista metodológico também assinala que, na realida-

de, essas convenções são institucionalizadas e endossadas pela comu-nidade científica; a lista de falseadores "aceitos" é fornecida peloveredito dos cientistas experimentadores.

55

E assim que o falseacionista metodológico estabelece sua "baseempírica". (Ele usa aspas a fim de "dar uma ênfase irônica" à ex- pressão.56) Essa "base" dificilmente poderá ser chamada de "base" pelos padrões justificacionistas: não há nada provado no que diz res- peito a ela — ela denota "estacas colocadas em um pântano'. 57Comefeito, se essa "base empírica" colide com uma teoria, a teoria podeser dita "falseada", mas não é falseada no sentido em que é refutada.

O "falseamento" metodológico é muito diferente do falseamento dog-mático. Se uma teoria for falseada provou-se que é falsa; se for "f al-sificada", ainda poderá ser verdadeira. Se seguirmos essa espécie de"falseamento" pela "eliminação" real de uma teo ri a, poderemos aca-

 bar eliminando uma teoria verdadeira e aceitando uma falsa (possibi-lidade totalmente repugnante ao justificacionista antiquado).

 Não obstante, é exatamente isso que o falseacionista metodo-lógico nos recomenda que façamos. O falseacionista metodológicocompreende que, se quisermos conciliar o falibilismo com a naciona-lidade (não-justificacionista), precisamosencontrar um jeito de eli-minar algumas teorias. Se não o conseguirmos, o crescimento daciência não será mais do que um caos cada vez maior.

Por conseguinte, o falseacionista metodológico sustenta que"[se quisermos] fazer funcionar o método de seleção por eliminação

51 . Essa demarcação desempenha um papel não só no primeiro mas tam- bém no quarto tipo de decisões do falseacionista metodológico. (Sobre a quartadecisão, veja mais adiante, p. 134.)

52 . Sobre uma discussão fascinante, veja Feyerabend, "Problems of Em- piricism II", 1969.

53. Ficamos a imaginar se não seria melhor acabar com a terminologiado falseacionismo naturalista e rebatizar as teorias observacionais com o nomede "teorias de pedra detoque" ("touchstone theories").

54 Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 22. passaram por alto a importante restrição de Popper segundociado básico não tem força para refutar coisa alguma semhipótese falseadora bem corroborada.

55. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30.56. Popper, Conjectures and Refutations, 1963, p. 387.57. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30; cf.

29: "A Relatividade dos Enunciados Básicos".

Muitos filósofosa qual um enun-o apoio de uma

também a seção

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e assegurar a sobrevivência apenas das teorias mais aptas, devemostornar severa sua luta pela vida". 58

Depois que uma teoria tiver sidofalseada a despeito do risco envolvido, precisa ser eliminada: "[cornas teorias só trabalhamos] enquanto elas suportam os testes". 59Aeliminação deve ser metodologicamente conclusiva: "Em geral en-caramos um falseamento intersubjetivamente testável como definiti-vo... Uma avaliação corroborativa feita em data ulterior... pode

substituir um grau positivo de corroboração por um negativo, mas nãovice-versa".60Essa é a explicação do falseacionista metodológico so- bre como sair de um atoleiro: "É sempre a experiência que nos impe-de de seguir um caminho que não conduz a pa rt e alguma." fi1

O falseacionista metodológico separa a rejeição da refutação,que o falseacionista dogmático havia fundido.62 É um falibilista, maso falibilismo não lhe enfraquece a posição crítica; converte propo-sições falíveis numa "base" para uma política de linha dura. Comesse pretexto, propõe um novo critério de demarcação: somente são"científicas" as teorias — isto é, proposições não-"observacionais"

 — que proíbem certos estados de coisas "observáveis" e, portanto, podem ser "falseadas" e rejeitadas; ou, em poucas, palavras, uma

teoria é "científica" (ou "aceitável") se tiver uma "base empírica".Esse critério põe de manifesto, com nitidez, a diferença entre o fal-seacjonismo dogmático e o metodológico. 63

58. Popper, The Poverty of Historicism, 1957, p. 134. Em outros luga-res, Popper enfatiza que esse método não "assegura" a sobrevivência do maisapto. A seleção natural pode desandar: é possível que os mais aptos pereçame monstros sobrevivam.

59. Popper, "Induktionslogik und Hypothesenwahrscheinlichkeit", 1935.60. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 82.61. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 82.62. Essa espécie de "falseamento" metodológico, à diferença do falsea-

mento dogmático (refutação), é uma idéia pragmática, metodológica. Mas en-tão que é o que devemos exatamente entender por ela? Responde Popper — 

que porei de lado — que o "falseamento" metodológico indica a "necessidadeurgente de substituir uma hipótese falseada por uma hipótese melhor" (Popper,The Logic of Scientific Discovery, 1959, p. 87, nota de rodapé n.° 1). Eis aíuma excelente ilustração do processo que descrevi em meu ensaio "Proofs andRefutations", de 1963-4, por cujo intermédio a discussão crítica transfere o

 problema original sem mudar necessariamente os velhos termos. Os subprodu-tos desses processos são transferências de significado. Sobre uma discussãoadicional, cf. mais adiante, à p. 149, nota de rodapé n.° 127, e p. 193, notade rodapé n.° 245.

63. 0 critério de demarcação do falseacionista dogmático era o seguinte:uma teoria será "científica" se tiver uma base empírica (veja mais acima, à p. 118).

132

Esse critério metodológico de demarcação é muito mais liberaldo que o dogmático. O falseacionismo metodológico abre novas ave-nidas para a crítica: um número muito maior de teorias pode ser qualificado de "científico". Já vimos que existem mais teo ri as "obser-vacionais" do que teorias observacionais 64e, portanto, há mais enun-ciados "básicos" do que enunciados básicos. 65Além disso, as teorias probabilísticas fazem jus agora â qualificação de "científicas"; em-

 bora não sejam falseáveis, podem facilmente tornar-se "falseáveis" por uma decisão adcional (de terceiro tipo) que o cientista pode to-mar especificando certas regras de rejeição capazes de tornar a evi-dência estatisticamente interpretada "inconsistente" com a teoria pro-

 babilística".66

Mas nem essas três decisões são suficientes para permitir-nos"falsear" uma teoria que não pode explicar nada "observável" semuma cláusula ceteris paribus.67 Nenhum número finito de "observa-ções" será bastante para "falsear" uma teoria nessas condições. En-tretanto, se for esse o caso, como se pode razoadamente defender uma metodologia que afirma "interpretar leis naturais ou teorias co-mo ... enunciados parcialmente decidíveis, isto é, que não são, por razões lógicas, verificáveis mas, de um modo assimétrico, falseá-veis..."? fi8 Como se podem interpretar teorias, como a teoria newto-

64. Veja mais acima, pp. 118-119,65. A propósito, em sua Logik der Forschung, 1934, Popper não parece

ter visto com clareza este ponto. Escreve ele: "E reconhecidamente possívelinterpretar o conceito de um evento observável num sentido psicologista. Em- prego-o, porém, num sentido tal que ele bem pode ser substituído por `umvento que envolve posição e movimento de corpos físicos macroscópicos' ".(Logik der Forschung, seção 28.) A luz da nossa discussão, por exemplo, po-demos considerar um positron que passa através de uma câmara de Wilsonno momento to como um evento "observável", a despeito do caráter não-ma-croscópico do positron.

66. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 68. Com efeito, esse falsea-cionismo metodológico é a base filosófica de alguns dos desenvolvimentos maisinteressantes da estatística moderna. Todo o enfoque Neyman-Pearson repousano falseacionismo metodológico. Cf. também Braithwaite, Scientific Explana-tion, 1953, capítulo VI, (Infelizmente, Braithwaite reinterpreta o critério dedemarcação de Popper como se este separasse proposições significativas de proposições carentes de significado, em lugar de separar proposiçôes cientí-ficas de proposições não-científicas.)

67. Cf. mais acima, pp. 122-4.68. Popper, "Ein Kriterium des empirischen Charakters theoretischer Sys-

teme", 1933.,

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-problemático."72) como, para o nosso selvagem falseacionista, osfalseamentos são metodologicamente conclusivos, 73 a decisão fatalequivale à eliminação metodológica da teoria de Newton, irraciona-lizando o trabalho subseqüente nela. Se o cientista fugir a essas deci-sões ousadas, "nunca se beneficiará da experiência", "acreditando,talvez, que é sua obrigação defender um sistema bem-sucedido con-tra a crítica enquanto não tiver sido conclusivamente refutado".

74

Degenerará num apologista que sempre proclamará que "as discre- pâncias que se afirmam existir entre os resultados experimentais e ateoria são apenas aparentes e desaparecerão com o avanço de nossoentendimento".75 Mas para o falseacionista isto é "exatamente o in-verso da atitude crítica própria do cientista", 76 e não é permissível.Para usar uma das expressões favoritas do falseacionista metodoló-gico, a teoria "precisa ser obrigada a deixar a cabeça de fora".

O falseacionista metodológico vê-se numa situação séria quandochega o momento de decidir onde traçar a demarcação, nem que se-

 ja apenas num contexto bem definido, entre o problemático e o não--problemático. A situação é mais dramática ainda quando ele temde tomar uma decisão sobre cláusulas ceteris paribus, quando lhe

cabe promover um dentre as centenas de "fenômenos anômalos" nu-ma "experiência crucial", e decidir que nesse caso a experiência foi"controlada".77

Assim, com a ajuda desse quarto tipo de decisão, 7S o nosso fal-seacionista metodológico conseguiu finalmente interpretar como"científicas" até teorias como a teoria de Newton. 79

72. Sobre uma "explicação" melhorada, veja mais adiante, p. 195. notade rodapé n.° 251.

73. Cf. mais acima, à p. 132, o texto correspondente às notas de pé de página n.°' 59 e 60.

74. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 9.75. Ibid.76.  Ibid.77. Pode dizer-se que o problema da "experiência controlada" nada mais

é que o problema de arranjar condições experimentais de maneira que reduzaao mínimo o risco envolvido nessas decisões.

78. Esse tipo de decisão pertence, num sentido importante, à mesma ca-tegoria a que pertence a primeira: separa, por decisão, o conhecimento pro- blemático do conhecimento não-problemático. Cf. mais acima, à p. 30, otexto correspondente à nota de rodapé n.° 51.

79.  Nossa exposição mostra claramente a complexidade das decisõesnecessárias à definição do "conteúdo empírico" de uma teoria — isto é, oconjunto dos seus falseadores potenciais. O "conteúdo empírico" depende danossa decisão sobre as "teorias observacionais" que são nossas e as anomalias

niana da dinâmica e da gravitação, de "unilateralmente decidíveis"? 69Como podemos fazer em casos assim genuínas "tentativas de supri-mir teorias falsas — de encontrar os pontos fracos de uma teo ria afi m de rejeitá-la se ela for falseada pelo teste"? 70Como podemoslevá-las ao domínio da discussão racional? O falseacionista metodo-lógico resolve o problema tomando mais uma decisão (de quarto ti-

 po):quando ele testa uma teoria juntamente com uma cláusula cete-

ris paribus e descobre que essa conjunção foi refutada, precisa decidir se deve tomar a refutação também como refutação da teo ri a especí-fica. Por exemplo, pode aceitar o periélio "anômalo" de Mercúriocomo refutação da tripla conjunção N3 da teoria de Newton, das con-dições iniciais conhecidas e da cláusula ceteris paribus. Em seguida,testa "severamente"71 as condições iniciais e pode decidir relegá-lasao "conhecimento de fundo não-problemático". Essa decisão implicana refutação da dupla conjunção N3da teoria de Newton e da cláu-sula ceteris paribus. Agora lhe cabe tomar a decisão crucial: se tam- bém relega a cláusula ceteris paribus ao fundo comum do "conheci-mento de fundo não-problemático". Será isso o que fará, se lhe pa-recer que a cláusula ceteris paribus está bem corroborada.

Como se pode testar severamente uma cláusula ceteris paribus?Pressupondo que há outros fatores influentes, especificando tais fato-res e testando as suposições específicas. Se muitas forem refutadas,a cláusula ceteris paribus será considerada bem corroborada.

A decisão, porém, de"aceitar" uma cláusula ceteris paribus é muito arriscada mercê das graves conseqüências que implica. Se sedecidir aceitá-la como parte desse conhecimento de fundo os enun-ciados que descrevem o periélio de Mercúrio desde a base empíricade N2 são convertidos na base empírica da teoria específica de New-ton N1 e o que era antes uma simples "anomalia" em relação a N 1 , passa a ser agora uma prova crucial contra ela, seu falseamento.(Podemos chamar a um acontecimento desc rito por um enunciado A

uma "anomalia em relação a uma teo riaT', se Afor um falseador  potencial da conjunção de T e uma cláusula ceteris paribus, mastorna-se um falseador potencial da própria T depois de haver decidi-do relegar a cláusula ceteris paribus ao "conhecimento de fundo não-

70. Popper, The Poverty of Historicism, 1957, p. 133.71. Sobre uma discussão desse importante conceito da metodologia pop-

 periana, cf. meu ensaio, "Changes in the Problem of Inductive Logic", 1968, pp. 397 e seguintes.

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Com efeito, não há razão para que ele não deva dar mais um passo. Por que não decidir que uma teoria — que nem essas quatrodecisões podem converter numa teoria empiricamente falseável — éfalseada se entra em conflito com outra teoria que é científica por alguns dos motivos anteriormente especificados e é igualmente bemcorroborada? 8° Afinal de contas, se rejeitamos uma teoria porque

verificamos que um dos seus falseadores potenciais é verdadeiro àluz de uma teoria observacional, por que não rejeitar outra teoria por completar diretamente com uma que pode ser relegada ao co-nhecimento de fundo não-problemático? Isso nos permiti ria, por umquinto tipo de decisão, eliminar até teorias "sintaticamente metafí-sicas", isto é, teorias que, como enunciados do tipo "todos-alguns"ou enunciados puramente existenciais,81 devido a sua forma lógica,não podem ter falseadores potenciais espaço-temporalmente singu-lares.

Resumindo: o falseacionista metodológico oferece uma soluçãointeressante ao problema de combinar a crítica vigorosa com o fali-

 bilismo. Não só oferece uma base filosófica para o falseamento de-

 pois que o falibilismo puxou o tapete debaixo dos pés do falseacio-nista dogmático, mas também amplia de modo considerável a exten-são dessa crítica. Colocando o falseamento num cenário novo, salvao atraente código de honra do falseacionista dogmático: que a ho-nestidade científica consiste em especificar, de antemão, uma expe-riência de tal ordem que, se o resultado contradisser a teoria, esta te-rá de ser abandonada. 82

que devem ser promovidas a exemplos contrários. Se tentarmos comparar oconteúdo empírico de diferentes teorias científicas a fim de verificar qual 6o "mais científico", ver-nos-emos envolvidos num sistema de decisões comple-xíssimo e, portanto, irremediavelmente arbitrário a respeito de suas classesrespectivas de "enunciados relativamente atômicos" e seus "campos de apli-cação". (Sobre o significado desses termos (muito) técnicos, cf. Popper, Logik der Forschung, seção 38.) Mas uma comparação dessa natureza só é possívelquando uma teoria suplanta outra (cf. Popper, The Logic of Scientific Disco-very, 1959, p. 401, nota de rodapé n.° 7). E mesmo assim pode haver difi-culdades (as quais, todavia, não se somariam à irremediável "incomensura-

 bilidade").80. Isto foi sugerido por J. D. Wisdom: cf. seu ensaio de 1963: "The

Refutability of 'Irrefutable' Laws".81. Por exemplo: "Todos os metais têm um solvente"; ou "Existe uma

substância que pode transformar todos os metais em ouro". Sobre discussõesdessas teorias, cf. especialmente Watkins, "Between Analytical and Empirical",1957, e Watkins, "When are Statements Empirical?", 1960. Mas cf. maisadiante, pp. 154-5 e pp. 227-8.

82. Veja mais acima, p. 116.

Ofalseacionismo metodológico representa um avanço conside-rável para além do falseacionismo dogmático e do convencionalismoconservador. Recomenda decisões arriscadas. Mas os riscos são tãoousados que atingem as raia da temeridade e a gente pergunta a simesmo se não haverá um meio de atenuá-los.

Examinemos primeiro, com mais atenção, os riscos envolvidos.

As decisões desempenham um papel crucial nessa metodologiacomo em qualquer classe de convencionalismo. As decisões,

todavia, podem levar-nos desastrosamente para o mau caminho. Ofalseacionista metodológico é o primeiro a admiti-lo. Mas isso, argu-menta ele, é o preço que temos de pagar pela possibilidade de pro-gresso.

Cumpre apreciar a atitude diabolicamente atrevida do nossofalseacionista metodológico. Ele se tem na conta de um herói que,defrontando-se com duas alternativas catastróficas, teve a coragemde refletir friamente sobre os méritos relativos de cada uma e esco-lheu o menor dos males. Uma das alternativas era o falibilismo céti-co, com sua atitude de "vale tudo", o abandono desesperado de

todos os padrões intelectuais, e com estes a idéia do progresso cientí-fico. Nada pode se restabelecido, nada pode ser rejeitado, nada se-quer pode ser comunicado: o crescimento da ciência é um cresci-mento do caos, uma verdadeira Babel. Durante dois mil anos, cientis-tas e filósofos de espírito científico escolheram ilusões justificacionistasde alguma espécie para escapar a esse pesadelo. Alguns afirmaramque temos de escolher entre o justificacionismo indutivista e o irra-cionalismo: "Não vejo nenhuma saída, fora a afirmação dogmáticade que conhecemos o princípio indutivo ou algum equivalente; a úni-ca alternativa é jogar fora quase tudo que a ciência e o bom sensoconsideram como conhecimento". 83

O nosso falseacionista metodológico rejeita orgulhosamente esse

escapismo: ousa medir todo o impacto do falibilismo e, ainda assim,escapar ao ceticismo através de uma atrevida e arriscada política con-vencionalista, sem dogmas. Tem plena consciência dos riscos masinsiste em que é preciso escolher entre uma espécie de falseacionis-mo metodológico e o irracionalismo. Oferece um jogo em que temos poucas esperanças de vencer, mas afirma que ainda é melhor jogar do que desistir.

84

83. Russell, "Reply to Critics", 1943, p. 683.84. Estou certo de que alguns acolherão o falseacionismo metodológico

como filosofia "existencialista" da ciência.

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Com efeito, esses críticos do falseacionismo ingênuo, que nãooferecem nenhum método alternativo de crítica, são inevitavelmenteimpelidos para o irracionalismo. Por exemplo, o argumento confusode Neurath de que o falseamento e a conseqüente eliminação de umahipótese podem resultar em "um obstáculo ao progresso da ciên-cia",

85não terá peso algum enquanto a única alternativa que ele pa-rece oferecer é o caos. Hempel, sem dúvida, está certo ao acentuar 

que a "ciência apresenta vários exemplos [quando] o conflito entreuma teoria altamente confirmada e uma sentença experimental recal-citrante ocasional puder ser resolvida pela anulação desta última emlugar de sacrificar a primeira" 8e;

não obstante, ele admite não po-der oferecer nenhum outro "padrão fundamental" além do falseacio-nismo ingênuo. 87Neurath — e, aparentemente, Hempel — rejeita ofalseacionismo como "pseudo-racionalismo" 85 ; mas onde está o"racionalismo"? Popper advertia já em 1934 que a metodologia per-missiva de Neurath (ou melhor, a sua falta de metodologia) torna-ria a ciência não-empírica e, portanto, irracional: "Precisamos deum conjunto de regras para limitar a arbitrari edade de "suprimir"(ou "aceitar") uma sentença protocolar. Neurath deixa de dar essasregras e, assim, inadvertidamente, atira o empirismo pela janela. . .

Todo sistema se torna defensável se nos for permitido (e toda agente tem essa permissão, no entender de Neurath) simplesmente"suprimir" uma sentença protocolar por ser inconveniente". 89Popper concorda com Neurath em que todas as proposições são falíveis;mas defende com vigor o ponto crucial de que não podemos fazer 

85.  Neurath, "Pseudorationalismus der Falsifikation", 1935, p. 356.86. Hempel, "Some Theses on Empirical Certainty", 1952, p. 621. Agassi,

em seu ensaio de 1966, "Sensationalism", segue Neurath e Hempel, sobretudoàs pp. 16 e seguintes. É divertido observar que Agassi, ao defender esse pontode vista, pense estar pegando em armas contra "toda a literatura relativa aosmétodos da ciência".

Com efeito, muitos cientistas tinham plena consciência das dificuldadesinerentes à "confrontação da teoria e dos fatos". (Cf. Einstein, "Autobiogra- phical Notes", 1949, p. 27.) Vários filósofos simpáticos ao falseacionismo en-fatizam que "o processo de refutação de uma hipótese cientifica é mais com-

 plicado do que parece à primeira vista" (Braithwaite, Scientific Explanation,1953, p. 20). Mas apenas Popper ofereceu uma solução construtiva, racional.

87. Hempel, "Some Theses on Empirical Certainty", 1952, p. 622. Asagudas "teses sobre a certeza empírica" de Hempel não fazem outra coisasenão tirar o pó dos velhos argumentos de Neurath — e alguns de Popper — (contra Carnap, creio eu); deploravelmente, contudo, ele não menciona seus

 predecessores nem seus adversários.88.  Neurath, "Pseudorationalismus der Falsifikation", 1935.89. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 26.

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 progresso sem uma estratégia ou método racional firme para guiar-nos quando elas colidem.so

Mas a estratégia firme da classe do falseacionismo metodoló-gico discutida até aqui não será' firme demais?As decisões que elaadvogada não estarão fadadas a ser demasiado arbitrárias? Alguns po-dem até sustentar que a única coisa que distingue o falseacionismometodológico do dogmático é que ele é falibilista da boca para fora!

Criticar uma teoria da crítica é quase sempre muito difícil. Ofalseacionismo naturalista era relativamente fácil de refutar, pois re- pousava numa psicologia empírica da percepção: bastava mostrar que ele era falso. Mas como se pode falsear um falseacionismo me-todológico? Nenhum desastre pode jamais refutar uma teoria não-jus-tificacionista da racionalidade. Ademais, como podemos reconhecer algum dia um desastre epistemológico? Não temos meios para julgar se a verossimilhança das nossas teorias sucessivas aumenta ou dimi-nui.91 Até o momento, ainda não desenvolvemos uma teoria geralda crítica nem mesmo para as teorias científicas, quanto mais paraas teorias da racionalidade 92; portanto, se quisermos falsear nosso

falseacionismo metodológico, teremos de pôr mãos à obra antes deter uma teoria sobre como fazê-lo.

Se observarmos a história da ciência, se tentarmos ver comoalguns dos falseamentos mais célebres aconteceram, teremos que che-gar à conclusão de que algumas delas ou são claramente irracionaisou se apóiam em princípios de racionalidade radicalmente diferentesdos princípios que acabamos de discutir. Primeiramente, o nosso f  al-seacionista deve deplorar o fato de que teóricos obstinados contestemcom freqüência vereditos experimentais e os invertam. Na concepçãofalseacionista da "lei e da ordem" científica que descrevemos não hálugar para tais apelos bem-sucedidos. Outras dificuldades surgem dofalseamento de teorias a que se acrescenta uma cláusula ceteris pa-

90. 0 ensaio de Neurath, "Pseudorationalismus der Falsifikation", 1935,mostra que ele jamais apreendeu o argumento simples de Popper.

91. Estou empregando aqui o termo "verossimilhança" no sentido dePopper: a diferença entre o conteúdo de verdade e o conteúdo de falsidadedeuma teoria. Sobre os riscos envolvidos na sua avaliação, cf. meu ensaio,"Changes in the Problem of Inductive Logic", 1968, especialmente as pp. 395e seguintes.

92. Tentei desenvolver uma teoria geral da crítica em meus trabalhos de1971 e 1972.

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ribus.93Seu falseamento, tal como ocorre na história real, é prima

 facie irracional segundo os padrões do nosso falseacionista. Segundoestes padrões os cientistas parecem ser com freqüência irracional-mente lentos: por exemplo, oitenta e cinco anos decorreram entre aaceitação do periélio de Mercúrio como anomalia e sua aceitaçãocomo falseamento da teoria de Newton, apesar de ser a cláusulaceteris paribus razoavelmente bem corroborada. Por outro lado, os

cientistas parecem, não raro, irracionalmente impetuosos: Galileu eseus discípulos, por exemplo, aceitaram a mecânica celeste helio-cêntrica de Copérnico apesar das abundantes evidências contra a ro-tação da Terra; e Bohr e seus discípulos aceitaram uma teoria deemissão da luz embora esta última contrariasse a bem corroboradateoria de Maxwell.

De fato, não é difícil ver pelo menos duas características cruciais,comuns ao falseacionismo dogmático e ao nosso falseacionismo me-todológico, que destoam claramente da verdadeira história da ciência:a saber (1) um teste é — ou deve-se fazer que seja — uma luta,de dois adversários, entre a teoria e a experiência de modo que, naconfrontação final, só as duas se defrontem; e (B) o único resultado

interessante dessa- confrontação é o falseamento (conclusivo): "[asúnicas genuínas] descobertas são refutações de hipóteses científi-cas." 

J4Entretanto, a história da ciência sugere que (1') os testes

são — pelo menos — lutas, de três adversários, entre as teorias ri-vais e a experiência e (2') algumas das experiências mais interessan-tes resultam, prima facie, antes em confirmação do que em falsea-mento.

Mas se a história da ciência como parece ser o caso — nãoconfirma nossa teoria da racionalidade científica, temos duas alter-nativas. Uma delas é abandonar os esforços para dar uma explicaçãoracional do êxito da ciência. O método científico (ou "lógica da des-

coberta"), concebido como disciplina da avaliação racional das teo-

93. 0 falseamento das teorias depende do alto grau de corroboraçãoda cláusula ceteris paribus. Tal corroboração, todavia, muitas vezes falta. Eisaí por que o falseacionismo metodológico pode aconselhar-nos a confiar emnosso "instinto científico" (Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 18, notade rodapé n.° 2) ou em nosso "palpite" (Braithwaite, Scientific Explanation,1953, p. 20).

94. Agassi, "How are Facts Discovered?" 1959, chama à idéia de ciên-cia de Popper "scientia negativa" (Agassi, "The Novelty of Popper's Philo-sophy of Science", 1968).

140

rias científicas — e dos critérios de progresso — desaparece. Estáclaro que ainda podemos tentar explicar mudanças em "paradigmas"em termos de psicologia social. 95 Esse é o caminho de Polanyi e deKuhn.96 A outra alternativa é tentar, ao menos, reduzir o elementoconvencional do falseacionismo (não podemos de maneira algumaeliminá-lo) e substituir as versões ingênuas do falseacionismo meto-dológico — caracterizadas pelas teses (1) e (2) acima — por uma

versão sofisticada que daria um novo fundamento lógico ao falsea-mento e, por esse modo, salvaria a metodologia e a idéia de progresso

científico. Este é o caminho de Popper, e o caminho que pretendoseguir.

(c) Falseacionismo metodológico sofisticado versus falseacionismometodológico ingênuo. Transferência progressiva e degenerati-

va de problemas.

O falseacionismo sofisticado difere do falseacionismo ingênuoassim nas regras de aceitação (ou "critério de demarcação") comonas regras de falseamento ou eliminação.

Para o falseacionista ingênuo qualquer teoria que se possa in-terpretar como experimentalmente falseável é "aceitável" ou "cien-tífica".97Para o sofisticado uma teori a só será "aceitável" ou "cien-tífica" se tiver um excesso corroborado de conteúdo empírico emrelação à sua predecessora (ou rival), isto é,se levar à descobert a

de fatos novos. Essa condição pode ser analisada em duas cláusulas:a nova teoria tem um excesso de conteúdo empírico ("aceitabilida-dei")e parte desse excesso de conteúdo é verificada (aceitabilida-

95. Dever-se-ia mencionar aqui que o cético kuhniano ainda fica como que eu denominaria o "dilema do cético científico": qualquer cético cien-tífico ainda tentará explicar mudanças em crenças e encarará sua própria teo-ria psicológica como uma teoria que, sendo mais que simples crença, em certo

sentido é "científica". Enquanto tentava apresentar a ciência como mero sis-tema de crenças com o auxílio da sua teoria da aprendizagem estímulo-resposta,Hume nunca ventilou o problema de saber se sua teoria da aprendizagemtambém se aplica a si própria. Em termos contemporâneos, podemos perguntar se a popularidade da filosofia de Kuhn indica que as pessoas lhe reconhecemaverdade. Nesse caso, ela seria refutada. Ou essa popularidade indica queas pessoas a consideravam como atraente moda nova? Nesse caso, ela seria"verificada". Mas gostaria Kuhn dessa "verificação"?

96. Feyerabend, que contribuiu provavelmente mais do que ninguém para a difusão das idéias de Popper, parece agora ter passado para o campoinimigo. Cf. o seu intrigante ensaio "Against Method", 1970.

97. Cf. mais acima, p. 132.

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científica precisa ser avaliada juntamente com suas hipóteses auxilia-res, condições iniciais, etc., e, sobretudo, com suas predecessoras pa-ra podermos ver a espécie de mudança que foi produzida. Está vistoque, nesse caso, avaliamos uma série de teorias e não teorias isoladas.

Agora nos é fácil compreender por que formulamos os critériosde aceitação e rejeição do falseacionismo metodológico como o fize-mos.108Mas talvez valha a pena reformulá-los um pouco, expressan-do-os explicitamente em termos de séries de teorias.

Tomemos uma série de teorias, T 1 , T2, T3...em que cada teo-ria subseqüente resulta da adição de cláusulas auxiliares à teoria an-terior (ou das reinterpretações semânticas da teoria anterior) a fimde acomodar alguma anomalia, tendo cada teoria pelo menos tantoconteúdo quanto o conteúdo não-refutado da sua predecessora. Di-gamos que uma série de teorias nessas condições será teoricamente

 progressiva (ou "constituirá uma transferência de problemas teori-camente progressiva") se cada nova teoria tiver algum excesso deconteúdo empírico em relação à sua predecessora, isto é, se ela pre-disser algum fato novo, até então inesperado. Digamos que uma série

teoricamente progressiva de teorias será também empiricamente pro- gressiva (ou "constituirá uma transferência de problemas empirica-mente progressiva") se parte desse conteúdo empírico excessivo for também corroborado, isto é, se cada teoria nova nos conduzir à des-coberta real de algum fato novo.

109

Finalmente, seja-nos permitidochamar  progressiva à transferência de problemas se ela for, ao mes-mo tempo, teórica e empiricamente progressiva, e degenerativa senão o for.110 Só"aceitamos" as transferências de problemas como"científicas" se elas forem pelo menos teoricamente progressivas; se

108. Cf. mais acima, p. 141.109. Se já conheço P, "O cisne A é branco",  P 6  )"Todos os cisnes

são brancos" não representa progresso porque só pode conduzir à descobertade outros fatos semelhantes, como P2: "O cisne Bé branco". As chamadas"generalizações empíricas" não constituem progresso. Um fato novo deveser improvável ou mesmo impossível à luz do conhecimento anterior. Cf. maisacima, p. 141, e mais adiante, pp. 191 e seguintes.

110. A propriedade da expressão "transferência de problemas" para umasérie de teorias, em lugar de problemas, pode ser contestada. Escolhi-a, em parte, por não haver encontrado alternativa mais apropriada — "transferênciade teorias" soa horrivelmente — e, em parte, porque as teorias são sempre

 problemáticas, nunca solucionam todos os problemas que se propõem solu-cionar. De qualquer maneira, na segunda metade do trabalho, a expressãomais natural "programa de pesquisa" susbstituirá "transferência de problemas"nos contextos mais importantes.

144

não o forem, "rejeitamo-las" como "pseudocientíficas". O progressomede-se pelo grau em que uma transferência de problemas é  progres-siva, pelo grau em que a série de teorias nos conduz à descoberta defatos novos. Consideramos "falseada uma teoria da série quandoela é suplantada por uma teoria com um conteúdo corroborado maiselevado.111

Essa demarcação entre as transferências progressvias e degene-rativas de problemas projeta nova luz sobre a avaliação de explica-

ções científicas — ou, melhor, progressivas. Se apresentarmos umateoria para resolver uma contradição entre uma teoria anterior e umexemplo contrário de tal maneira quê a nova teoria, em lugar deoferecer uma explicação (científica) que aumente o conteúdo, sóofereça uma reinterpretação(lingüística) que diminui o conteúdo, acontradição se resolverá de modo meramente semântico, não-cientí--fico. Um fato dado só será explicado cientificamente se um fato novotambém for explicado com ele.

112

Dessa maneira, o falseacionismo sofisticado transfere o proble-ma da avaliação de teorias para o problema da avaliação de séries

de teorias. Só de uma série de teorias se pode dizer que é científicaou não-científica, nunca de uma teoria isolada; aplicar o termo "cien-tífico" a ' ,ma única teoria é incorrer num erro de categoria. 113

111. Sobre "falseamento" de certas séries de teorias ("programas de pesquisa") em oposição ao "falseamento" de uma teoria no interior da série,veja mais adiante, pp. 191 e seguintes.

112. Com efeito, no manuscrito original do meu ensaio intitulado "Chan-ges in the Problem of Inductive Logic", de 1968, escrevi: "Uma teoria semexcesso de corroboração não tem excesso de poder explanatório; portanto, deacordo com Popper, não representa crescimento e não é "científica"; devemosdizer, pois que ela não tem poder explanatório" (p. 386). Suprimi a metadegrifada da sentença pressionado por meus colegas, para os quais ela soavamuito excêntrica. Agora me arrependo de tê-lo feito.

113. A fusão de "teorias" e "séries de teorias" de Popper impediu-ode comunicar com melhor êxito as idéias básicas do falseacionismo sofisticado.Seu emprego ambíguo redundou em formulações desconcertantes como "Omarxismo [como centro de uma série de teorias ou de um"programa de pes-quisa"] é irrefutável" e, ao mesmo tempo, "O marxismo [como conjunçãoespecial desse centro, de algumas hipóteses auxiliares, de condições iniciais ede uma cláusula ceteris paribus] foi refutado." (Cf. Popper, Conjectures and  Refutations, 1963.)

Claro está que não erramos no dizer que uma teoria isolada, singular, é"científica" quando representa um progresso sobre a sua predecessora, en-quanto compreendemos claramente que nessa formulação avaliamos a teoriacomo resultado de certo desenvolvimento histórico e no contexto desse de-senvolvimento.

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O tradicional critério empírico para julgar satisfatória urna teo-ria era a concordância com os fatos observados. Nosso critério em-

 pírico para uma série de teorias é a produção de fatos novos.  A idéiade crescimento e o conceito de caráter empírico estão soldadosnum só.

Essa forma revisada do falseacionismo metodológico tem muitostraços novos. Primeiro, nega que, "no caso de uma teoria científica,nossa decisão depende dos resultados dos experimentos. Se estesconfirmarem a teoria, poderemos aceitá-la até encontrar uma teoriamelhor. Se a contradisserem, rejeitá-la-emos." 114

Nega que "o quefinalmente decide o destino de uma teo ria é o resultado de um teste,isto é, uma concordância em torno de enunciados básicos". 115

Con-trariando o falseacionismo ingênuo, nenhuma experiência, nenhumrelato experimental, nenhum enunciado de observação ou hipótese

 falseadora de baixo nível bem corroborada pode levar sozinha ao falseamento."° Não há falseamento antes da emergência de uma teo-ria melhor.117 Mas nesse caso o caráter distintamente negativo dofalseacionismo ingênuo desaparece; a crítica torna-se mais difícil, etambém positiva, construtiva. Mas é claro que, se depender da emer-gência de teorias melhores, da invenção de teorias que antecipamfatos novos, o falseamento não será simplesmente uma relação entrea teoria e a base empírica, mas uma relação múltipla entre as teo riasconcorrentes, a "base empírica" original e o crescimento empíricoresultante da competição. Pode dizer-se assim que o falseamento tem"caráter histórico". 118Além disso, algumas teorias que dão origem

114. Popper, The Open Society and its Enemies, vol  II, p. 233. A ati-tude mais sofisticada de Popper vem à tona na observação de que "conse-qüências concretas e práticas podem ser mais diretamente testadas pela ex- periência" (ibid., o grifo é meu).

115. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30.116. Sobre o caráter  pragmáticodo `falseamento' metodológica, cf. mais

acima, p. 132, nota de pé de página n.° 62.

117.  Na maioria dos casos, antes de falsear uma hipótese, temos outrana manga do paletó (Popper, The Logic of Scientific Discovery ,1959, p. 87,nota de pé de página n.° *1). Como o demonstra nosso argumento,  precisamoster uma. Ou, como disse Feyerabend: "A melhor crítica é proporcionada pelasteorias que podem substituir as rivais por elas eliminadas" ("Reply to Cri-ticism", 1965, p. 227). Observa ele que, em alguns casos, "as alternativas serãoindispensáveis ao propósito da refutação" (ibid. p. 254). Mas de acordo como nosso argumento a refutação sem uma alternativa mostra apenas a pobrezada nossa imaginação no fornecer uma hipótese de salvamento. Veja tambémmais adiante, p. 148, nota de rodapé n.° 123.

118. Cf. o meu ensaio "Changes in the Problem of Inductive Logic",1968, pp. 387, e seguintes.

146

ao falseamento são freqüentemente propostas depois da "evidênciacontrária". Isso pode parecer paradoxal a pessoas doutrinadas nofalseacionismo ingênuo. Na realidade, essa teoria epistemológica darelação entre a teoria e a experiência difere nitidamente da teoriaepistemológica do falseacionismo ingênuo. O próprio termo "evidên-cia contrária" tem de ser abandonado no sentido de que nenhum re-sultado experimental precisa ser interpretado diretamente como evi-

dência contrária. Se ainda quisermos conservar esse termo tradicional,teremos de redefini-lo do seguinte modo: "a evidência contrária deT 1 ' é um exemplo corroborante de T2 incompatível com T 1 ou inde-

 pendente de T 1 (corn a condição de que T 2 seja uma teoria que ex- plique satisfatoriamente o sucesso empírico de TO.. Isso mostra quea "evidência contrária crucial" — ou"experiências cruciais" —  podeser reconhecida como tal entre muitas anomalias, apenas mediante

 percepção tardia, à luz de alguma teoria que suplante a anterior.' 1 t

Desse modo, o elemento crucial no falseamento é saber se anova teoria oferece alguma informação nova, excedente, comparadacom sua predecessora, e se parte dessa informação excedente é cor-roborada. Os justificacionistas avaliaram os casos "confirmadores"de uma teoria; os falseacionistas ingênuos puseram em destaque oscasos "refutados"; para os falseacionistas metodológicos os casoscorroboralores — mais raros — de informação excedente é que sãoos cruciais e recebem toda a atenção. Já não nos interessam os mi-lhares de casos triviais de verificação nem as centenas de anomalias prontamente acessíveis: os poucos casos cruciais de verificação deexcedente são decisivos.120Essa consideração reabilita — e reinter-

 preta — o velho provérbio: Exemplum docet, exempla obscurant.

O "falseamento" no sentido do falseacionismo ingênuo (evidên-cia contrária corroborada) não é condição suficiente para eliminar 

119.  No espelho deformante do falseacionismo ingênuo, as novas teoriasque substituem as velhas teorias refutadas nascem não-refutadas. Por conse-

guinte, os falseacionistas ingênuos não acreditam que haja uma diferença im- portante entre anomalias e evidências contrárias cruciais. Para eles, anomaliaé um eufemismo desonesto de evidência contrária. Mas na história real novasteorias nascem refutadas: herdam muitas anomalias da teoria velha. Freqüen-temente, além disso, somentea nova teoria prediz dramaticamente o fato quefuncionará como evidência contrária crucial contra sua predecessora, ao pas-so que "velhas" anomalias podem continuar perfeitamente como "novas"anomalias.

Tudo isso ficará mais claro quando apresentarmos a idéia do "programade pesquisa": cf. mais adiante, pp. 166 e 218 e seguintes.

120. O falseacionismo sofisticado prenuncia uma nova teoria da aprendizagem; cf. mais adiante, p.

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uma teoria específica; apesar de centenas de anomalias conhecidas,não consideraremos que a teoria está falseada (isto é, eliminada)enquanto não tivermos outra melhor.

121Nem o "falseamento" nosentido ingênuo é necessário ao falseamento no sentido sofisticado:uma transferência progressiva de problema não precisa ser entremea-da de "refutações". A ciência pode crescer sem "refutações" que lhe

mostrem o caminho. Os falseacionistas ingênuos sugerem um cres-cimento linear da ciência, no sentido de que as teorias são seguidasde poderosas refutações, que as eliminam; tais refutações, por seuturno, são seguidas de novas teorias. 122

E perfeitamente possível queteorias sejam apresentadas "progressivamente" em tão rápida suces-são que a "refutação" da enésima surja apenas como corroboraçãoda enésima-primeira. A febre de problemas da ciência é muito maissuscitada pela proliferação de teorias rivais do que pela proliferaçãode exemplos contrários ou anomalias.

Isso mostra que o slogan da proliferação de teorias é muitomais importante para o falseacionismo sofisticado do que para o fal-seacionismo ingênuo. Para este último a ciência cresce através do

repetido derrubamento experimental de teorias; novas teorias rivais propostas antes de tais "derrubamentos" podem acelerar o cresci-mento mas não são absolutamente necessárias 123;

a proliferação

121. É claro que a teoriaT'  pode ter excesso de conteúdo empíricocorroborado em relação a outra teoria T,ainda que ambas, T eT' sejam re-futadas. O conteúdo empírico nada tem com a verdade nem com a falsidade.Conteúdos corroborados também podem ser comparados independentementedo conteúdo refutado. Assim podemos ver a racionalidade da eliminação dateoria de Newton em favor da teoria de Einstein, conquanto se possa dizer que a teoria de Einstein — como a de Newton — nasceu "refutada". Temosapenas de lembrar-nos de que "confirmação qualitativa" é um eufemismo de"desconfirmação quantitativa". (Cf. meu ensaio "Changes in the Problem of Inductive Logic", 1968, pp. 384-6.)

122. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 85, p. 279 de tradu-ção inglesa de 1959.123. E verdade que se permite que certo tipo de proliferação de teorias

rivais desempenhe um papel heurístico acidental no falseamento. Em muitoscasos o falseamento heuristicamente "depende da [condição] de que um nú-mero assaz grande e assaz diferente de teorias seja oferecido" (Popper, "Whatis Dialectic?" 1940). Por exemplo, podemos ter uma teoria T aparentementenão-refutada. Mas pode ser que se proponha uma nova teoria T', incompatívelcom T, que também se ajuste aos fatos disponíveis: as diferenças são menoresdo que a amplitude do erro observacional. Em tais casos a incompatibilidadenos incita a aprimorar nossas "técnicas experimentais" e, assim, a refinar a"base empírica", de sorte que tanto T quantoT' (ou incidentalmente as duas) podem ser falseadas: "Precisamos de uma nova teoria a fim de descobrir onde

148

constante de teorias é opcional, mas não é compulsória. Para o fal-seacionista sofisticado a proliferação de teorias não pode esperar queas teorias aceitas sejam "refutadas" (ou que os protagonistas passem

 por uma crise kuhniana de confiançá).124Ao passo que o falseacio-nismo ingênuo sublinha "a urgência de substituir uma hipótese fal-

 seada por outra melhor",125o falseacionismo sofisticado sublinha a

urgência de substituir qualquer hipótese por outra melhor. O falsea-mento não pode "compelir o teórico a procurar uma teoria me-lhor",126simplesmente porque o falseamento não pode preceder ateoria melhor.

A transferência de problema do falseacionismo ingênuo para ofalseacionismo sofisticado envolve uma dificuldade semântica. Parao falseacionista ingênuo a "refutação" é um resultado experimentalque, por força de suas decisões, é levado a conflitar com a teoria queestá sendo testada. Mas de acordo com o falseacionismo sofisticadonão se devem tomar tais decisões antes que o alegado "caso refuta-dor" se tenha transformado no caso confirmador de uma teoria novae melhor. Por conseguinte, sempre que toparmos com termos como"refutação", "falseamentck", "contra-exemplo", devemos verificar em

cada caso se esses termos são aplicados em virtude de decisões to-madas pelo falseacionista ingênuo ou pelo falseacionista sofisticado.127

O falseacionismo metodológico sofisticado oferece novos padrões para a honestidade intelectual. A honestidade justificacionista exigiaa aceitação apenas do que estava provado e a rejeição de tudo o quenão estivesse provado. A honestidade neojustificacionista exigia aespecificação da probabilidade de qualquer hipótese à luz da evidên-cia empírica disponível. A honestidade do falseacionismo ingênuo

era deficiente a teoria antiga" (Popper, Conjectures and Refutations, 1963, p.246). Mas o papel dessa proliferação é acidental no sentido de que, uma vezrefinada a base empírica, a luta se trava entre essa base empírica refinada ea teoria T que está sendo testada; a teoria rival T' agiu apenas como cata-

lisadora. (Veja também mais acima, p. 146, nota de rodapé n.° 117.)124. Cf. Também Feyerabend, "Reply to Criticism", 1965, pp. 254-5.125. Popper, The Logic of Scienti f ic Discovery, 1959, p. 87, nota de

 pé de página n.° *1.126. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30.127. Cf. também mais acima, p. 132, nota de pé de página n.° 62.

[Acrescentado no prelo:] Talvez fosse melhor no futuro abandonar de todoessas expressões, assim como abandonamos expressões como "prova indutiva(ou experimental)". Assim poderemos chamar às anomalias de "refutações"(ingênuas) e, de teorias "falseadas" (sofisticadamente) às teorias "suplantadas".

 Nossa linguagem comum está impregnada não só de dogmatismo "indutivista"mas também de dogmatismo falseacionista. Uma reforma nesse sentido já de-via ter sido feita.

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exigia o teste da teoria falseável e a rejeição das teorias não-falseá-veis e das falseadas. Finalmente, a honestidade do falseacionismo so-fisticado exigia que se tentasse olhar para as coisas de pontos devista diferentes, apresentando novas teorias que antecipassem fatosnovos, e rejeitando teorias que tivessem sido suplantadas por outras,mais vigorosas.

O falseacionismo metodológico sofisticado mistura várias tra-dições diferentes. Dos empiristas herdou a determinação de aprender 

 principalmente com a experiência. Dos kantianos tirou o enfoqueativista da teoria do conhecimento. Com os convencionalistas apren-deu a importância das decisões em metodologia.

Eu gostaria de pôr aqui em relevo mais um traço distintivo doempirismo metodológico sofisticado: o papel crucial do excedentede corroboração. Para o indutivista, aprender alguma coisa sobreuma nova teoria é aprender até que ponto a evidência confirmadaa sustenta; a respeito de teorias refutadas nada se aprende (aprender,afinal de contas, é edificar conhecimento provado ou provável) . Pa-ra o falseacionista dogmático, aprender alguma coisa acerca de umateoria é aprender se ela foi refutada ou não; em relação a teorias

confirmadas nada se aprende (não se pode provar nem probabilizar coisa alguma), a respeito de teorias refutadas aprende-sé que elassão refutadas.128Para o falseacionista sofisticado, aprender algumacoisa no tocante a uma teoria é aprender, em primeiro lugar, quenovos fatos foram por ela antecipados; com efeito, para a espéciede empirismo popperiano que advogo, a única evidência pertinenteé a antecipada por uma teoria, e a empiricidade (ou caráter científico)e o progresso teórico estão ligados inseparavelmente 1 29

A idéia não é inteiramente nova. Em sua famosa carta a Con-ring em 1678, por exemplo, Leibnitz escreveu: "A maior recomen-dação de uma hipótese (depois da verdade [provada]) é  poder fazer com sua ajuda predições até a respeito de fenômenos ou experiências

não-tentadas."130

A concepção de Leibnitz foi amplamente aceita128. Sobre uma defesa da teoria de "aprender com a experiência", cf.

Agassi, "Popper on Learning from Experience", 1969.129. Tais observações mostram que "aprender com a experiência" é

uma idéia normativa; portanto, todas as teorias puramente "empíricas" daaprendizagem não atinam com o âmago do problema.

130. Cf. Leibnitz, Carta a Conring, 1678. A expressão entre colchetesmostra que Leibnitz colocava esse critério em segundo lugar e entendia queas melhores teorias são as provadas. Desse modo, a posição de Leibnitz — como a de Whewell — está muito longe do falseacionismo sofisticado em

 pleno desenvolvimento.

150

 pelos cientistas. Mas como a avaliação de uma teoria científica, an-tes de Popper, significava avaliação de seu grau de justificação, essa

 posição foi considerada insustentável por alguns lógicos. Em 1843, por exemplo, Mill queixa-se, horrorizado: "parece que se pensa queuma hipótese... faz jus a uma recepção mais favorável se, alémde explicar todos os fatos anteriormente conhecidos, conduziu à an-tecipação e à predição de outros, que a experiência, mais tarde, ve-rificou".131Mill tinha um argumento importante; essa avaliaçãoconflitava não só com o justificacionismo mas também com o pro-

 babilismo; por que um acontecimento antecipado pela teoria  provo-caria mais do que se já fosse conhecido anteri ormente? Enquanto a

 prova fosse o único critério do caráter científico de uma teoria, ocritério de Leibnitz só poderia ser considerado como irrelevante.

132

Outrossim, a probabilidade de uma teoria dada a evidência não podesofrer a influência, como Keynes observou, do momentoem que aevidência foi produzida: a probabilidade de uma teoria dada a evi-dência só pode depender da teoria e da evidência,133

e não de ter sido esta produzida antes ou depois daquela.

Apesar dessa crítica justificacionista convincente, o critério per-

sistiu entre alguns dos melhores cientistas, visto que lhes expressavaa vigorosa aversão pelas explicações meramente ad hoc, que "emboraexpressem realmente os fatos [que se propõem explicar] não sãocorroboradas por quaisquer outros fenômenos". 134

Mas foi apenas Popper quem reconheceu que a incompatibili-dade prima facie entre as poucas observações estranhas e casuaiscontra as hipóteses ad hoc de um lado e o imenso edifício de filoso-fia justificacionista do conhecimento precisa ser solucionada demolin-

131. Mill, A System of Logic, Racionative and Inductive, Being a Con-nected View of the Principles of Evidence, and the Methods of Scientific In-vestigation, 1843, vol. II, p. 23.

132. Esse erao argumento deJ. S. Mill (ibid.). Ele dirigiu-o contraWhewell, segundo o qual "aconfluênciadeinduções" ou predição bem-suce-dida de acontecimentos improváveis verifica (isto é, prova) uma teoria. ( Whe-well, Novum Organum Renovatum, 1858, pp. 95-6.) Acontradição básica, semdúvida, da filosofia da ciência, tanto de Whewell quantode Duhem, é a fusãoque eles operam entre o poder de predição eaverdade provada. Popper se.

 parou os dois.133. Keynes. A Treatise on Probability, 1921, p. 305. Mas cf. o meu

ensaio, "Changes in the Problem of Inductive Logic", de 1968, p. 394.134. Este é o comentário crítico de Whewell sobre uma hipótese auxiliar 

ad hoc da teoria da luz de Newton (Whewell, Novum Organum Renovatum,vol. II, p. 317.)

151 

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do-se o justificacionismo e apresentando novos critérios não--justificacionistas para avaliar teorias científicas baseadas no caráter antiadhoc.

Atentemos para alguns exemplos. A teo ria de Einstein não émelhor que a de Newton porquea teoria de Newton foi "refutada"e a de Einstein não o foi; existem muitas "anomalias" conhecidasna teoria einsteiniana. A teoria de Einstein é melhor do que — isto

é, representa progresso quando comparada com — a teoria de New-ton anno 1916 (isto é, as leis da dinâmica, a lei da gravitação, oconjunto conhecido de condições iniciais; "menos" a lista de anoma-lias conhecidas, como o periélio de Mercúrio) porque explicava tudoque a teoria de Newton explicara com êxito, e explicava também,até certo ponto, algumas anomalias conhecidas e, além disso, proibiaacontecimentos como a transmissão da luz ao longo de linhas retas

 perto de grandes massas, a cujo respeito a teoria de Newton nadadissera, mas que haviam sido permitidos por outras teorias científicas bem corroboradas do tempo; ademais, pelo menos parte do inespe-rado excedente de conteúdo einsteiniano era de fato corroborada(por exemplo, pelas experiências do eclipse).

Por outro lado, de acordo com esses padrões sofisticados, a teo-ria de Galileu, segundo a qual o movimento natural dos objetos ter-restres era circular, não introduziu melhoramento algum visto quenão proibiu nada que não tinha sido proibido pelas teorias pertinentesque ele, Galileu, pretendia melhorar (isto é, pela física aristotélicae pela cinemática celeste coperniciana). Essa teoria era portanto ad hoc e portanto — do ponto de vista heurístico — sem valor. 135

Um belo exemplo de teoria que satisfazia apenas à p rimeira parte do critério de progresso de Popper (excedente de conteúdo),mas não à segunda parte (excedente corroborado de conteúdo) foidado pelo próprio Popper: a teoria de Bohr-Kramers-Slater de 1924,cujas novas predições foram todas refutadas.

136 

Consideremos finalmente quanto convencionalismo subsiste nofalseacionismo sofisticado. Menos, por certo, do que no falseacionis-mo ingênuo. Precisamos de menos decisões metodológicas. A "deci- são de quarto tipo", essencial à versão ingênua,' 37tornou-se comple-tamente redundante. Para mostrá-lo basta-nos compreender quequando uma teoria científica, que consiste em algumas "leis da natu-reza", condições iniciais, teorias auxiliares (mas sem cláusula ceteris

 paribus) conflita com algumas proposições fatuais, não precisamos

decidir que parte — explícita ou "oculta" — cumpre substituir. Po-demos tentar substituir qualquer  parte e só quando esbarramos numaexplicação da anomalia com a ajuda de alguma mudança aumenta-dora do conteúdo (ou hipótese auxiliar), e a natureza a corrobora,

 passamos a eliminar o complexo "refutado". Assim, o falseamentosofisticado é um processo mais lento, porém possivelmente mais se-guro, do que o falseamento ingênuo.

Tomemos um exemplo. Suponhamos que a trajetória de um planeta difira da trajetória prevista. Alguns concluem disso que ofato refuta a dinâmica e a teoria gravitacional aplicadas; as condiçõesiniciais e a cláusula ceteris paribus foram engenhosamente corrobo-radas. Outros concluem que o fato refuta as condições iniciais usadas

nos cálculos; a dinâmica e a teoria gravitacional têm sido soberba-mente corroboradas nos últimos duzentos anos e todas as sugestõesrelativas a fatores adicionais em jogo falharam. Outros, todavia, con-cluem que o fato refuta a suposição implícita de que não havia outrosfatores em jogo além dos uqe foram tomados em consideração: é pos-sível que essas pessoas sejam motivadas pelo princípio metafísico deque qualquer explicação é apenas aproximativa devido à infinitacomplexidade dos fatores envolvidos na determinação de um únicoacontecimento. Devemos, acaso, elogiar o primeiro tipo como "crí-tico", renegar o segundo como "mercenário" e condenar o terceiro por "apologético"? Não. Não precisamos concluir coisa alguma dessa"refutação". Nunca rejeitamos uma teoria específica simplesmente

 por decreto. Quando se nos depara uma incompatibilidade como amencionada, não precisamos decidir quais os ingredientes da teoriaque consideramos problemáticos nem os que consideramos não-pro-

 blemáticos: basta-nos considerar todos eles problemáticos à luz doenunciado básico aceito conflitante e tentar substituí-los. Conseguin-do substituir algum ingrediente de modo "progressivo" (isto é, demodo que o substituto tenha mais conteúdo empírico corroboradodo que o original) , diremos que está "falseado".

135.  Na terminologia do meu ensaio, "Changes in the Problem of InductiveLogic", de 1968, essa teoria era "ad hoc," (cf. op. cit., p. 389, nota de rodapé n.°1); o exemplo me foi originalmente sugerido por Paul Feyerabend como pa-radigma de uma valiosa teoria ad hoc. Mas cf. mais adiante, p. 174, especial-mente a nota de rodapé n.° 194.

136.  Na terminologia do meu ensaio "Changes in the Problem of InductiveLogic", de 1968, essa teoria não era "ad hocl ", mas"ad hoc2" (cf. op. cit., p.

389, nota de rodapé n.° 1). Sobre uma ilustração simples, porém artificial, vejaibid., p. 387, nota de pé de página n.° 3. (Sobre ad hoc,, cf. mais adiante, p.217, nota de pé de página n.° 323.) 137. Cf. mais acima, p. 133.

15 2 153

 

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Tampouco necessitamos da decisão de quinto tipo do falseacio-nista ingênuo.138A fim de mostrá-lo atentemos de novo para o pro-

 blema das teorias (sintaticamente) metafísicas — e para o problemade sua retenção e eliminação. A solução "sofisticada" é óbvia. Re-temos uma teoria sintaticamente metafísica enquanto os casos pro- blemáticos podem ser explicados por mudanças que aumentam oconteúdo nas hipóteses auxiliares associadas a ela. 139

Tomemos, por 

exemplo, a metafísica cartesiana C: "Em todos os processos naturaishá um mecanismo de relógio regulado por princípios (a priori) queo animam." Isso é sintaticamente irrefutável: não colide com nenhum"enunciado básico" espaço-temporalmente singular. Está claro que

 pode colidir com uma teoria refutável como N: "a gravitação é umaforça igual a fml m2/r 2que age a distância". Mas N só colidirá comC se a "ação a distância" for interpretada literalmente e talvez, alémdisso, como representando uma verdade final, irredutível a uma cau-sa mais profunda. (Popper a chamaria de interpretação "essencia-lista".) Alternativamente podemos considerar a "ação a distância"como causa indireta. Nesse caso, interpretamos "ação a distância"figurativamente, considerando-a como uma síntese para algum me-canismo oculto de ação por contato. (Podemos chamá-la de inter-

 pretação "nominalista".) Nessas condições, podemos tentar explicar  N  por C — o próprio Newton e diversos físicos franceses do séculoXVIII tentaram fazê-lo. Se uma teoria auxiliar que leva a cabo essaexplicação (ou, se quiserem, "redução") produz fatos novos ou seja,é "independentemente testável"), a metafísica cartesiana deve ser considerada boa, científica, empírica, geradora de uma transferência

 progressiva de problemas. Uma teoria metafísica (sintaticamente) progressiva produz uma transferência progressiva sustentada em seucinto protetor de teorias auxiliares. Se a redução da teoria à estrutura"metafísica" não produz um novo conteúdo empírico, e muito me-nos fatos novos, a redução representa uma transferência degene-rativa de problemas; é um mero exercício lingüístico. Os esforçoscartesianos para sustentar sua "metafísica" a fim de explicar a gra-

 

vitação newtoniana é um exemplo notável de uma redução meramentelingüística dessa natureza.

149

Assim, não eliminamos uma teoria (sintaticamente) metafísicase ela colidir com uma teoria científica bem corroborada, como su-gere o falseacionismo ingênuo. Eliminámo-la se ela produz uma trans-ferência regenerativa a longo prazo e quando há uma metafísica rival,melhor, para substituí-la. A metodologia de um programa de pesqui-sa com um núcleo "metafísico" não difere da metodologia de um

 programa de pesquisa com um núcleo "refutável", exceto, talvez, noque concerne ao nível lógico das incoerências que são a força con-dutora do programa.

141

(Cumpre acentuar, todavia, que a própria escolha da forma ló-gica em que se há de expressar a teoria depende, em grande parte,da nossa decisão metodológica. Por exemplo, em vez de formular ametafísica cartesiana como um enunciado do tipo todos-alguns", po-demos formulá-la como um enunciado do tipo "todos...": todos os

 processos naturais são mecanismos de relógios". Um "enunciado bá-sico" que o contradissesse seria: "a é um processo natural e não éum mecanismo de relógio". A questão é saber se, de acordo com as

"técnicas experimentais", ou melhor, com as teorias interpretativasdo momento, "xnão é um mecanismo de relógio" pode ou não ser "estabelecido". Assim a escolha racional da forma lógica de umateoria depende do estado do nosso conhecimento; por exemplo, oque hoje é um enunciado metafísico do tipo "todos-alguns" podetornar-se, amanhã, com a mudança do nível de teorias observacio-nais, um enunciado científico do tipo "todos...". Já afirmei quesomente séries de teorias e não teorias isoladas podem ser classifi-cadas como científicas ou não-científicas; agora indiquei que até aforma lógica de uma teori a só pode ser racionalmente escolhida com base numa avaliação crítica do estado do programa de pesquisa emque ela está encaixada.)

Entretanto, as decisões do primeiro, do segundo e do terceirotipos do falseacionismo ingênuo 142não podem ser evitadas mas,

 

137. Esse fenômeno foi descrito num belo trabalho de Whewell intitu-lado "On the Transformation of Hypotheses in the History of Science" (1851);mas ele não pôde explicá-lo metodologicamente. Em lugar de reconhecer avitória do programa newtoniano progressivo sobre o programa cartesiano dege-nerativo, entendeu ser essa a vitória da verdade provada sobre a falsidade.Acerca de uma discussão geral da demarcação entre a redução progressiva ea redução degenerativa, cf. Popper, "A Realist View of Logic, Physics andHistory", de 1969.

138. Cf. mais acima, p. , nota de rodapé n.°142. Cf. mais acima, pp. e

138. Cf. mais acima, p. 136.139. Só podemos formular essa condição com notável clareza em fun-

cão da metodologia dos programas de pesquisa que será explicada no § 3:conservamos uma teoria sintaticamente metafísica como "núcleo" de um pro-

 grama de pesquisa, enquanto a sua heurística positiva associada produz umatransferência progressiva de problema no "cinto protetor" das hipóteses auxi-liares. Cf. mais adiante, pp. 166-7.

15 4

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como veremos, o elemento convencional da segunda decisão — etambém da terceira — pode ser ligeiramente reduzido. Não pode-mos evitar a decisão sobre a espécie de proposições que deverão ser "observacionais" e as que deverão ser "teóricas". Tampouco pode-mos evitar a decisão acerca do valor-de-verdade de algumas "propo-sições observacionais". Tais decisões são vitais para a decisão sobrese uma transferência de problemas é empiricamente progressiva oudegenerativa.143Mas o falseacionista sofisticado pode ao menos mi-tigar o arbitrário da segunda decisão consentindo num processo deapelo.

Os falseacionistas ingênuos não formulam nenhum processo deapelo dessa natureza. Aceitam um enunciado básico se este for apoia-do por uma hipótese falseadora bem corroborada, 144

e deixam-noanular a teoria que está sendo testada — ainda que tenham plenaconsciência do risco. 145

Mas não há razão por que não devemos con-siderar uma hipótese falseadora — e o enunciado básico que elaapoia — tão problemática quanto uma hipótese falseada. Pois bem,como havemos de expor a problematicidade de um enunciado bási-co? Baseados em que podem os protagonistas da teoria "falseada"

apelar e vencer?Algumas pessoas talvez digam que podemos continuar testando

o enunciado básico (ou a hipótese falseadora) "pelas suas conse-qüências dedutivas" até alcançar finalmente a concordância. Nesse

 procedimento de teste deduzimos — no mesmo modelo dedutivo — novas conseqüências do enunciado básico com a ajuda da teoria queestá sendo testada ou de alguma outra teoria què consideramos não--problemática. Conquanto esse procedimento "não tenha um fim na-tural", sempre chegamos a um ponto em que não há discordância

 posterior. 14s

Mas quando o teórico apela contra o veredito do experimen-tador, o tribunal de apelação não costuma dividir diretamente em

grupos típicos o enunciado básico, mas discute a teoria interpretativaà luz daqual foi estabelecido o seu valor-verdade.

Um exemplo típico de unta série de apelos bem-sucedidos é aluta dos seguidores de Prout contra a prova experimental desfavorá-vel de 1815 a 1911. Dur ante décadas a teoria de Prout T ("de que

143. Cf. mais acima, p. 144.144. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 22.145. Cf., por exemplo, Popper, TheLogic of Scientific Discovery ,1959,

 p. 107, nota de pé de página n.° *2. Também cf. mais acima, pp. 136-38.146. Isto é argüido em Logik der Forschung, de Popper (1934), seção 29.

todos os átomos são compostos de átomos de hidrogênio e, assim, os"pesos atômicos" de todos os elementos químicos devem poder ser expressos em números inteiros") e hipóteses "observacionais" fal-seadoras, como "refutação" Rde Stas ("o peso atômico do cloro é35,5") , se defrontaram. No fim, como sabemos, T levou a melhor sobre R.147 

A primeira fase de qualquer crítica sérià de uma teoria cientí-fica é reconstruir, melhorar sua articulação lógico-dedutiva. Façamoso mesmo no caso da teoria de Prout visà vis da refutação de Stas.Primeiro que tudo, precisamos compreender que na formulação queacabamos de citar, T e R não eram incompatíveis. (Os físicos raroexpressam suas teorias suficientemente para serem definidas e apa-nhadas pelo crítico.) A fim de apresentá-las como incompatíveis te-mos de dispô-las da seguinte forma. T: "os pesos atômicos de todosos elementos químicos puros (homogêneos) são múltiplos do pesoatômico do hidrogênio", e R: "o cloro é um elemento químico pu-ro (homogêneo) e seu peso atômico é 35,5". 0 último enunciado tema forma de uma hipótese falseadora que, se for bem corroborada, nos

 permitirá utilizar enunciados básicos da forma B: "O cloro X é umelemento químico puro (homogêneo) e seu peso atômico é 35,5" — em que X é o nome próprio de um ;pedaço" de cloro determinado,digamos, por suas coordenadas espaço-temporais.

Mas até que ponto R é  bem corroborada? Seu primeiro compo-nente depende de R1 : "O cloro X é um elemento químico puro." Foiesse o veredito do químico experimental depois de rigorosa aplicaçãodas "técnicas experimentais" do momento.

Observemos com mais atenção a fina estrutura de R 1 . De fato,R 1 representa uma conjunção de dois enunciados mais longos T 1 eT2. O primeiro enunciado, T1 , poderia ser este: "Se dezessete proces-sos químicos purificadores p 1 , p2... p1 , são aplicados a um gás, oque resta será cloro puro." T2é portanto: "X foi submetido a dezes-sete processos pi , • p2... p17." 0 cuidadoso "experimentador" aplicoucuidadosamente os dezessete processos: T2deve ser aceito. Mas aconclusão de que, portanto, o que restou deve ser cloro puro só é um"fato concreto" em virtude de T i. O experimentador, enquanto tes-

147. Agassi afirma que este exemplo mostra que podemos "aferrar-nosàhipótese em face dos fatos conhecidos na esperança de que os fatos se ajus-tem à teoria em lugar de ocorrer o movimento inverso" ("Sensationalism",1966, p. 18). Mas como podem os fatos ajustar-se? Em que condições  particu-lares venceria a teoria? Agassi não responde.

156 

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tava T, aplicou T1 . Interpretou o que viu à luz de T 1 : e o resultadofoi R 1. No entanto, no modelo monoteórico da teoria explicativa submetida a teste essa teoria interpretativa não aparece.

E se T 1 , a teoria interpretativa, for falsa? Por que não "aplicar"T em lugar de T1

e sustentar que os pesos atômicos precisam ser números inteiros? Nesse caso, este será um "fato concreto" à luz de

T, e T1 será derrubada. Talvez no os processos purificadores adicio-nais devam ser inventados e aplicados.

O problema, portanto, não é quando devemos aferrar-nos a uma"teoria" diante de "fatos conhecidos" e quando não devemos. O

 problema não é o que fazer quando "teorias" colidem com "fatos".Uma "colisão" dessa natureza só é sugerida pelo "modelo dedutivo

monoteórico". O fato de uma proposição ser um "fato" ou uma"teoria" no contexto de uma situação de teste depende da nossa de-cisão metodológica. A "base empírica de uma teoria" é uma noçãomonoteórica, é relativa a uma estrutura dedutiva monoteórica. Pode-mos empregá-la como primeira aproximação; mas em caso de "ape-lo" feito pelo teórico, precisamos usar um modelo pluralístico. No

modelo pluralístico a colisão não se verifica "entre teorias e fatos"mas entre duas teorias de alto nível: entre uma teoria interpretativa

 para fornecer os fatos e uma teoria explanatória, para explicá-los; ea teoria interpretativa pode estar num nível tão elevado quanto ateoria explanatória. O choque, portanto, já não se verifica entre umateoria de nível logicamente mais elevado e uma hipótese falseadorade nível inferior. O problema não deveria ser colocado em termosde se saber se uma "refutação" é real ou não. O problema é comoreparar uma contradição entre a "teoria explanatória" que está sendotestada e as teorias. "interpretativas" — explícitas ou ocultas; ou, sequiserem, o problema é saber que teoria considerar como a teoriainterpretativa, que fornece os fatos "concretos" e que teoria consi-derar como a teoria explanatória, que "tentativamente" os explica.

 Num modelo monoteórico consideramos a teoria de nível mais ele-vado como uma teoria explanatória que será julgada pelos "fatos" obtidos de fora (pelo experimentador autorizado); no caso de con-flito rejeitamos a explicação.148Num modelo pluralístico podemos

148. A decisão de usar um modelo monoteórico é claramente vital parao falseacionista ingênuo, pois lhe permite rejeitar uma teoria sob o único pretexto da evidência experimental. Está de acordo com a necessidade queele tem de dividir nitidamente, pelo menos numa situação de teste, o corpoda ciência em dois: o problemático e o não-problemático (Cf. mais acima,

 p. 130.) S6 a teoria que ele decide considerar problemática é por ele arti-culada em seu modelo dedutivo de crítica.

15 8

decidir, alternativamente, considerar a teoria de nível mais elevadocomo teoria interpretativa para julgar os "fatos" obtidos de fora; emcaso de conflito podemos rejeitar os "fatos" como "monstros". Nummodelo pluralístico de teste, várias teorias — mais ou menos deduti-vamente organizadas — estão soldadas umas nas outras.

Só esse argumento bastaria para mostrar a correção da conclu-são, extraída de um argumento ante

rior diferente, de que as experiên-cias simplesmente não derrubam teorias, de que nenhuma teoria proí- be um estado de coisas especificável de antemão. 14

s Não se trata de propormos uma teoria e a Natureza poder gri tar NÃO; trata-se de propormos um emaranhado de teorias, e a Natureza poder gritar INCOMPATIVEIS.15o

O problema é então transferidodo velho problema de substi-tuir uma teoria refutada por "fatos" para o novo problema de comoresolver incompatibilidades entre teorias intimamente associadas.Qual das teori as mutuamente incompatíveis deve ser eliminada? Ofalseacionista sofisticado pode responder com facilidade à pergunta:

 precisamos tentar substituir p rimeiro uma, depois a outra, depois

talvez as duas, e optar pela nova organização, que proporciona omaior aumento de conteúdo corroborado, que proporciona a trans-ferência mais progressiva de problemas. 151

Estabelecemos assim um processo de apelo para o caso de que-rer o teórico contestar a sentença negativa do experimentador. O teó-rico pode exigir que o experimentador especifique sua "teoria inter-

149. Cf. mais acima, p. 120.150. Seja-me aqui permitido responder a uma possível objeção: "Por 

certo não precisamos de que a Natureza nos diga que um conjunto de teoriasé inconsistente. A inconsistência — à diferença da falsidade — pode ser de-terminada sem a ajuda da Natureza". Mas o "NAO" real da Natureza numa

metodologia monoteórica assume a forma de um "falseador potencial" forti-ficado, isto é, uma sentença que, nessa maneira de falar, afirmamos ter sido proferida pela Natureza e que é a negação da nossa teoria. A "INCONSISTEN-CIA" real da Natureza numa metodogia pluralística assume a forma de umenunciado "fatual" expresso à luz de uma das teorias envolvidas, que procla-mamos ter sido proferida pela Natureza e que, acrescentada às nossas teorias

 propostas, produz um sistema inconsistente.

151. Por exemplo, em nosso exemplo anterior (cf. mais acima, p. 129e seguintes) alguns podem tentar substituir a teoria gravitacional por umanova e outros podem tentar substituir a radiótica por uma nova: escolhemoso processo que oferece o crescimento mais espetacular, a transferência mais progressiva de problemas.

159 

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 pretativa",152, podendo então substituí-la — para contrariedade doexperimentador — por outra melhor, a cuja luz sua teoria original-mente "refutada" recebe uma avaliação positiva.

153

Mesmo esse apelo, porém, não pode fazer mais do que adiar a decisão convencional. Pois a sentença do tribunal de apelação tam-

 bém não é infalível. Quando decidimos se é a substituição da teoria

"interpretativa" ou a substituição da teoria "explanatória" que pro-duz fatos novos, precisamos decidir outra vez acerca da aceitaçãoou rejeição de enunciados básicos. Nesse caso, porém, teremos ape-nas adiado — e possivelmente melhorado — a decisão; não a tere-mos evitado.

154As dificuldades que dizem respeito à base empírica

com as quais se defrontou o falseacionismo "ingênuo" também não podem ser evitadas pelo falseacionismo "sofisticado". Mesmo queconsideremos "fatual" uma teoria, isto é, se a nossa imaginação limi-tada, de movimentos lentos, não puder oferecer uma alternativa paraela (como Feyerabend costumava dizê-lo), precisamos tomar, pelomenos ocasional e temporariamente, decisões a respeito do seu valor--de-verdade. Mesmo assim, a experiência continua sendo, num senti-do importante, o "árbitro imparcial" 

155

da controvérsia científica.

152. A crítica não presume uma estrutura dedutiva plenamente inteli-gível: cria-a. (A propósito, esta é a tese principal do meu ensaio de 1963-4,"Proofs and Refutations")

153. Um exemplo clássico desse modelo é a relação entre Newton eFlamsteed, o primeiro astrônomo real. Newton, por exemplo, visitou Flamsteedno dia 1.° de setembro de 1694, quando trabalhava o dia inteiro em sua teorialunar; pediu-lhe que reinterpretasse alguns dos seus dados, que lhe contra-diziam a própria teoria; e explicou-lhe exatamente como deveria proceder.Flamsteed obedeceu e escreveu a Newton no dia 7 de outubro: "Depois queo senhor foi para casa, examinei minhas observações para determinar as maio-res equações da órbita da terra e considerar os lugares da lua nessas oca-siões... Verifico que (se, como o senhor afirma, a terra se inclina para o ladoem que está a lua) o senhor pode descontar cerca de 20" dela..." Assim

 Newton criticava e corrigia constantemente as teorias observacionais deFlamsteed. Newton ensinou-lhe, por exemplo, uma teoria melhor do poder derefração da atmosfera; Flamsteed aceitou-o e corrigiu seus "dados" originais.Pode compreender-se a constante humilhação e a fúria crescente desse grande e

observador ao ver seus dados criticados e aprimorados por um homem que,como ele mesmo confessava, não fazia observações por si próprio: e desconfiomuito de que foi esse sentimento a origem de uma rancorosa controvérsiaentre ambos.

154. 0 mesmo se aplica ao terceiro tipo de decisão. Se só rejeitarmosuma hipótese aleatória por outra que, ao nosso entender, a suplanta, a formaexata das "regras de rejeição" se tornará menos importante.

155. Popper, The Open Society and Its Enemies, 1945, vol. II, capítulo23, p. 218.

16 0

 Não poderemos livrar-nos do problema da "base empírica", se qui-sermos aprender com a experiência 156;mas podemos tornar nossoaprendizado menos dogmático — mas também menos rápido e me-nos dramático. Encarando como problemáticas algumas teorias obser-vacionais podemos tornar mais flêxível nossa metodologia, mas não podemos expressar e incluir todo o "conhecimento de fundo" (ou"ignorância de fundo"?) em nosso modelo dedutivo crítico. Esse

 processo está fadado a realizar-se aos poucos e é preciso traçar umalinha convencional a qualquer tempo dado.

Há uma objeção até para a versão sofisticada do falseacionismometodológico à qual não se pode responder sem fazer uma conces-são ao "simplismo" duhemiano. A objeção é o chamado "paradoxode rodeios" ("tacking paradox") . De acordo com nossas definições,acrescentar hipóteses de baixo nível completamente desconexas a umateoria dada pode constituir uma "transferência progressiva". É difícileliminar tais transferências provisórias sem exigir que as asserçõesadicionais devam ser ligadas à asserção original mais intimamente

do que por simples conjunção. Claro está que isso é uma espécie derequisito de simplicidade que asseguraria a continuidade na série deteorias que, segundo se pode dizer, constitui uma transferência de problemas.

Isso nos conduz a novos problemas. Pois um dos traços cruciaisdo falseacionismo sofisticado é substituir o conceito de teoria, comoconceito da descoberta, pelo da série de teorias. E uma sucessão deteorias e não uma teoria determinada que se avalia como científicaou pseudocientífica.ica. Mas os elementos dessa série de teo rias costu-mam estar ligados por notável continuidade,que os solda em progra-

mas de pesquisa. Essa continuir '1de — que lembra a "ciência nor-mal" kuhniana — desempenha gim papel vital na história da ciência;os principais problemas da lógica da descoberta só podem ser satis-fatoriamente discutidos na estrutura de uma metodologia dos pro-

 gramas de pesquisa.

3. UMA METODOLOGIA DOS PROGRAMAS DEPESQUISA CIENTÍFICA

Discuti o problema da avaliação objetiva do crescimento cientí-fico em termos de transferências progressivas e degenerativas de pro-

156. Agassi, portanto, está errado em sua tese de que "os relatos deobservação podem ser aceitos como falsos e, por conseguinte, assim se eliminao problema da base empírica" (Agassi, "Sensationalism", 1966, p. 20).

161 

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 pesquisa cartesiano, cf. Popper, "Philoso-"Influential and Confirmable Metaphysics",

dos conceitos de "exemplo contrário" ee sobretudo mais adiante, p. 195, o texto

i^

 blemas em séries de teorias científicas. As mais importantes dessasséries no crescimento da ciência caracterizam-se por certa continui-dade que liga seus elementos. Essa continuidade se desenvolve deum autêntico programa de pesquisa esboçado a princípio. O progra-ma consiste em regras metodológicas; algumas nos dizem quais sãoos caminhos de pesquisa que devem ser evitados (heurística negati-va), outras nos dizem quais são os caminhos que devem ser palmi-

lhados (heurística positiva).

157 

A própria ciência como um todo pode ser considerada um imen-so programa de pesquisa com a suprema regra heurística de Popper:"arquitetar conjeturas que tenham maior conteúdo empírico do queas predecessoras." Essas regras metodológicas podem ser formuladas,como Popper assinalou, como princípios metafísicos.158Por exemplo,a regra anticonvencionalista úniversal contra a exclusão da exceção

 pode ser formulada como o princípio metafísico: "A natureza nãoadmite exceções". Por isso é que Watkins chamava a tais regras"metafísica influente".159

Mas o que tenho sobretudo em mente não é a ciência como umtodo, senão programas particulares de pesquisa, como o conhecido

 por "metafísica cartesiana". A metafísica cartesiana, isto é, a teo ri amecanicista do universo — de acordo com a qual o universo é umimenso mecanismo de relógio (e um sistema de vórtices) que tem oimpulso como única causa do movimento — funcionou como pode-roso princípio heurístico. Desestimulava o trabalho em teorias cien-tíficas que — como [a versão "essencialista" da] teo ria de Newtonde ação a distância — fossem incompatíveis com ela (heurística ne-

 gativa)e, de outro lado, estimulava o trabalho sobre hipóteses auxi-

157. Pode-se assinalar que a heurística negativa e a positiva dão umadefinição tosca (implícita) do "referencial conceptual" (e conseqüentementeda linguagem) O reconhecimento de que a história da ciência é 

a história dos programas de pesquisa mais do que das teorias pode, portanto, ser vistocomo uma justificação parcial do ponto de vista de que a história da ciênciaé a história de estruturas conceptuais ou das linguagens científicas.

158. Popper, Logik der Forschung, 1934, seções 11 e 70. Uso "metafí-sicos" como termo técnico do falseacionismo ingênuo: uma proposição contin-gente será "metafísica" se não tiver "falseadores potenciais".

159. Watkins, "Influential and Confirmable Metaphysics", 1958. Watkinsadverte que "a lacuna lógica entre os enunciados e as prescrições no campometafísico-metodológico é ilustrado pelo fato de poder uma pessoa rejeitar uma doutrina [metafísica] em sua forma de exposição de fatos enquanto lhesubscreve a versão prescritiva" (Ibid., pp. 356-7).

162

'fiares que poderiam tê-la salvo da aparente evidência contrária — como as elipses keplerianas (heurística positiva).

160

(a) Heurística negativa: o "núcleo" do programa.

Todos os programas de pesquisa científica podem ser caracte-rizados pelo "núcleo". A heurística negativa do programa nos proibedirigir o modus tollens para esse "núcleo". Ao invés disso, precisa-mos utilizar nosso engenho para articular ou mesmo inventar "hipó-

teses auxiliares", que formam um cinto de proteção em torno do nú-cleo, e precisamos redirigir o modus tollens paraelas. E esse cintode proteção de hipóteses auxiliares que tem de suportar o impactodos testes e ir se ajustando e reajusando, ou mesmo ser completa-mente substituído, para defender o núcleo assim fortalecido. O pro-grama de pesquisa será bem-sucedido se tudo isso conduzir a umatransferência progressiva de problemas, porém mal sucedido se con-duzir a uma transferência degenerativa de problemas.

O exemplo clássico de programa de pesquisa bem-sucedido é ateoria gravitacional de Newton; talvez seja até o mais bem-sucedido

 programa de pesquisa já levado a cabo. Quando foi produzido pela primeira vez, viu-se submerso num oceano de "anomalias" (ou,se quiserem, de "contra-exemplos"

) ,161

e enfrentou a oposição dasteorias observacionais que sustentavam tais anomalias. Os newtonia-nos, contudo, transformaram, com tenacidade e engenho brilhantes,um contra-exemplo depois do outro em exemplos corroborativos,

 principalmente derrubando as teorias observacionais originais a cujaluz essa "evidência contrária" foi estabelecida. No processo, eles mes-mos produziram novos contra-exemplos, que novamente resolviam."Converteram cada nova dificuldade numa nova vitória do seu pro-grama".

162

 No programa de Newton a heurística negativa nos sugere quedesviemos o modus tvl ens das três leis da dinâmica e da lei de gravi-

tação de Newton. Esse "núcleo" é. "irrefutável" por decisão tr;etodo-

160. Sobre esse programa de phy and Physics", 1958, e Watkins, pp. 350-1.

161. Sobre o esclarecimento"anomalia", cf. mais acima, p. 133,correspondente à nota de pé de página n.° 251.

162. Laplace, Exposition du Système du Monde, 1796,tufo ii.

163

livro IV, capí-

 

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lógica de seus protagonistas: as anomalias só devem conduzir a mu-danças no cinto "protetor" da hipótese auxiliar, "observacional" edas condições iniciais.

163

Dei um microexemplo inventado de uma transferência progres-siva newtoniana, de problemas. 164Se o analisarmos, veremos quecada elo sucessivo nesse exercício prediz um fato novo; cada passorepresenta um aumento do conteúdo empírico: o exemplo constitui

uma transferência teórica coerentemente progressiva. Outrossim, ca-da predição se verifica no fim; embora em três ocasiões subseqüen-tes as predições pareçam ter sido momentaneamente "refutadas".165

Ao passo que o "progresso teórico" (no sentido aqui descrito) podeser verificado imediatamente,

166o "progresso empírico" não pode, e

num programa de pesquisa somos, às vezes, frustrados por uma lon-ga série de "refutações" antes que hipóteses auxiliares, engenhosase felizes, capazes de aumentar o conteúdo, convertam — retrospec-tivamente — uma cadeia de derrotas numa ressoante história de su-cesso, quer revendo alguns "fatos" falsos, quer acrescentando novashipóteses auxiliares. Podemos dizer então que precisamos exigir decada passo de um programa de pesquisa que aumente consistente-mente o conteúdo: que cada passo constitua uma transferência teó-

rica consistentemente progressiva de problemas. Além disso, só pre-cisamos, pelo menos de vez em quando, que se veja que o aumentode conteúdo foi retrospectivamente corroborado; o programa comoum todo deve também exibir uma transferência empírica intermiten-temente progressiva. Não exigimos que cada passo produza ime-diatamente um fato novo observado. Nosso termo "intermitentemen-te" dá suficiente amplitude racional  para a adesão dogmática a um

 programa em face de "refutações" prima facie.

A idéia da "heurística negativa" de um programa de pesquisacientífica racionaliza de forma considerável o convencionalismo clás-sico. Podemos decidir racionalmente não permitir que "refutações"transmitam falsidade ao núcleo enquanto aumenta o conteúdo empí-

rico corroborado do cinto protetor de hipóteses auxiliares. Nossa

163. 0 núcleo real de um programa não emerge, na realidade, comple-tamente armado — como Atenas da cabeça de Zeus. Desenvolve-se aos pou-cos, por um longo processo preliminar de ensaio-e-erro. Neste ensaio não sediscute o citado processo.

164. Cf. mais acima, pp. 120-1.165. A "refutação" foi, todas as vezes, desviada com êxito para "lemas

ocultos"; isto é, para lemas que emergem, por assim dizer, da cláusula ceteris paribus.

166. Mvs cf. mais adiante, pp. 190-2.

16 4

abordagem, porém, difere do convencionalismo justificacionista dePoincaré no sentido de que, à diferença de Poincaré, sustentamos quena hipótese de o programa deixar de antecipar fatos novos, e quandoisso acontecer, o seu núcleo talvez tenha de ser abandonado; isto é,onosso núcleo, à diferença do de Poincaré, pode desintegrar-se emcertas condições. Nesse sentido estamos com Duhem, segundo o qualera preciso tomar em consideração essa possibilidade; 167mas para

Duhem a razão da desintegração é puramente estética,

168

ao passoque para nós ela é sobretudo lógica e empírica.

(b) Heurística positiva: a construção do "cinto de proteção" e arelativa autonomia da ciência teórica.

Os programas de pesquisa, além da sua heurística negativa, ca-racterizam-se também pela sua heurística positiva.

Até os programas mais rápida e coerentemente progressivos de pesquisa só podem digerir sua "evidência contrária" aos poucos: asanomalias nunca se esgotam de todo. Não se deve pensar, porém, queanomalias ainda não-explicadas — "quebra-cabeças" como Kuhn

lhes poderia chamar — são compreendidas ao acaso, e o cinto de proteção construído de maneira eclética, sem nenhuma ordem pre-concebida. A ordem costuma ser decidida no gabinete do teórico, in-dependentemente das anomalias conhecidas. Poucos cientistas teóri-cos empenhados num programa de pesquisa dão indevida atenção a"refutações". Eles têm uma política de pesquisa a longo prazo queas antecipa. Essa política, ou ordem, de pesquisa é exposta — commaiores ou menores minúcias — na heurística positiva do programade pesquisa. A heurística negativa especifica o "núcleo" do progra-ma, que é "irrefutável" por decisão metodológica dos seus protago-nistas; a heurística positiva consiste num conjunto parcialmente arti-culado de sugestões ou palpites sobre como mudar e desenvolver as"vari antes refutáveis" do programa de pesquisa, e sobre como modi-

ficar e sofisticar o cinto de proteção "refutável".A heurística positiva do programa impede que o cientista se

confunda no oceano de anomalias. A heurística positiva apresentaum programa que inclui uma cadeia de modelos, cada vez mais com- plicados, que simulam a realidade: a atenção do cientista focaliza-sena construção dos modelos de acordo com as instruções que figuram

167. Cf. mais acima, p. 127.168. Ibid.

165 

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na parte positiva do programa. Ele ignora os contra-exemplos reais,os "dados" disponíveis.169Newton elaborou primeiro o seu progra-ma para um sistema planetário com um ponto fixo como sol e umúnico ponto como planeta. Desse modelo, derivou sua lei do inversodo quadrado para a elipse de Kepler. Mas esse modelo foi proibido

 pela própria terceira lei da dinâmica de Newton e, portanto, precisouser substituído por outro em que tanto o sol quanto o planeta gira-vam em torno do seu centro comum de gravidade. A mudança não

foi motivada por nenhuma observação (os dados não sugeriram aqui'"anomalia" alguma) mas por uma dificuldade teórica no desenvol-vimento do programa. Em seguida, Newton desenvolveu o programa

 para um número maior de planetas, como se houvesse apenas forçasheliocêntricas mas não houvesse forças interplanetárias. Ato contí-nuo, desenvolveu a hipótese de não serem o sol e os planetas pontos--massa, mas bolas-massa. E para essa mudança tampouco preci-

 sou da observação de uma anomalia; a densidade infinita era proi- bida por uma teoria (não-expressa) que servia de critério e, por con-seguinte, os planetas tinham que ter extensão. A mudança supunhaconsideráveis dificuldades matemáticas, retardou o trabalho de New-ton — e atrasou a publicação dos  Principia por mais de um decênio.Tendo solucionado esse "enigma", ele pôs-se a trabalhar em esferas

 giratórias e suas oscilações. A seguir, admitiu a existência 'de forçasinterplanetárias e começou a trabalhar em perturbações. Nesse ponto principiou a olhar com maior ansiedade para os fatos. Muitos erammagnificamente explicados (qualitativamente) pelo modelo, muitosnão o eram. Foi então que começou a trabalhar com planetas irregu-lares, em lugar de planetas redondos, etc.

 Newton desprezava as pessoas que, à semelhança de Hooke,tropeçavam num primeiro modelo ingênuo mas não tinham a tenaci-dade nem capacidade para desenvolvê-lo e transformá-lo num pro-grama de pesquisa, e encaravam uma primeira versão, um meroaparte, como uma "descoberta". Sustou a publicação até que o seu

 programa logrou uma notável transferência progressiva. 170

169. Quando um cientista (ou matemático) tem uma heurística positiva,recusa-se a ser atraído para a observação. "Deita-se em seu sofá, fecha osolhos e esquece-se dos dados". (Cf. meu ensaio, "Proofs and Refutations",1963-4, especialmente às pp. 300 e seguintes, onde se encontra um estudocircunstanciado de um programa dessa natureza.). Ocasionalmente, é claro,ele fará à Natureza uma pergunta ladina, e sentir-se-á animado pelo SIM da

 Natureza, mas não se sentirá desanimado pelo seu NAO.170. Seguindo Cajori, Reichenbach dá uma explicação diferente do atra-

so da publicação dos Principia de Newton: "Para seu desapontamento eledescobriu que os resultados observacionais não concordavam com os seus

166

A maioria, se não todos, os "enigmas" newtonianos, que con-duziram a uma série de novas variantes que se sucediam umas àsoutras era previsível ao tempo do primeiro modelo ingênuo de New-ton, que sem dúvida os previu, como os devem ter previstos os seuscolegas; Newton deve ter tido plena consciência da falsidade berrantede suas primeiras variantes. Nada mostra com maior clareza a exis-tência de uma heurística positiva num programa de pesquisa do queeste fato; por isso se fala em "modelos", em programas de pesquisa.Um "modelo" é um conjunto de condições iniciais (possivelmente

 junto com algumas teorias observacionais) que se sabe condenado aser substitíudo durante o subseqüente desenvolvimento do programa,e que até se sabe, mais ou menos, como o será. Isso mostra maisuma vez o quanto são irrelevantes as "refutações" de qualquer va-riante específica num programa de pesquisa. A existência delas é plenamente esperada, a heurística positiva lá está como estratégianão só para as predizer (produzir) mas também para as digerir. Comefeito, se se expuser claramente a heurística positiva, as dificuldadesdo programa serão muito mais matemáticas do que empíricas.171

Pode formular-se a "heurística positiva" de um programa de

 pesquisa como um princípio "metafísico". Pode formular-se, por exemplo, da seguinte maneira o programa de Newton: "os planetassão essencialmente piões giratórios de forma aproximadamente esfé-rica e dotados de gravitação". Essa idéia nunca foi rigidamenteman-tida: os planetas não são apenas gravitacionais, possuem também,

 por exemplo, características eletromagnéticas que podem influenciar-lhes o movimento. Desse modo, a heurística positiva, em geral, émais flexível do que a negativa. Além disso, acontece ocasionalmenteque, quando um programa de pesquisa entra numa fase degenerativa,uma revoluçãozinha ou uma transferência criativa em sua heurística

cálculos. Entretanto, em lugar de propor uma teoria qualquer, por mais bo-

nita que fosse, antes dos fatos, Newton engavetou o manuscrito da sua teoria.Uns vinte anos mais tarde, depois que uma expedição francesa realizou novasmedições da circunferência da terra, Newton constatou que as cifras em que baseara o seu teste eram falsas e que os novos resultados concordavam comseus cálculos teóricos. Só depois disso publicou sua lei... A história de New-ton é uma das mais notáveis ilustrações do método da ciência moderna" (Rei-chenbach, The Rise of Scientific Philosophy, 1951, pp. 101-2). Feyerabendcrtica o relato de Reichenbach (Feyerabend, "Reply to Criticism", 1965, p.229), mas não apresenta um fundamento lógico alternativo.

171. Sobre esse ponto cf. Truesdell, "The Program toward Rediscove-ring the Rational Mechanics in the Age of Reason", 1960.

167

 

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 positiva pode empurrá-lo de novo para a frente. 172É melhor, por-tanto, separar o "núcleo" dos princípios metafísicos mais flexíveisque expressam a heurística positiva.

Das nossas considerações se depreende que a heurística positivaavança aos poucos, com dificuldade, e com descaso quase completodas "refutações"; pode parecer que as "verificações",

173mais do que

as refutações, fornecem os pontos de contato com a realidade. Con-quanto se deve assinalar que qualquer "verificação" da enésima-pri-meira versão do programa é uma refutação da enésima versão, não

 podemos negar que sempre se prevêem algumas derrotas das versõessubseqüentes: são as "verificações" que mantêm o programa em an-damento, apesar dos casos recalcitrantes.

Podemos avaliar os programas de pesquisa, mesmo depois dasua "eliminação", pela sua força heurística; quantos fatos novos pro-duziram, até onde ia "a capacidade deles para explicar suas refutaçõesno decorrer do crescimento"? 174

(Podemos avaliá-los também pelo estímulo que dão à matemá-tica. As dificuldades reais para o cientista teórico nascem mais das

dificuldades matemáticas do programa do que das anomalias. A gran-deza do programa newtoniano procede, em parte, do desenvolvi-mento — por newtonianos — da análise infinitesimal clássica, pré--condição crucial do seu bom êxito.)

De modo que a metodologia dos programas de pesquisa cientí-fica explica a relativa autonomia da ciência teórica: fato históricocuja racionalidade não pode ser explicada pelos primeiros falseacio-nistas. Os problemas racionalmente escolhidos por cientistas que tra- balham em poderosos programas de pesquisa são determinados pelaheurística positiva do programa, muito mais do que pelas anomalias

 psicologicamente preocupantes (ou tecnologicamente urgentes). Em- bora arroladas, as anomalias são postas de lado na esperança de que

se transformem, com o tempo, em corroborações do programa. Só

172. A contribuição de Soddy para o programa de Prout ou a contri- buição de Pauli para o programa de Bohr (a antiga teoria quântica) são exem- plos típicos dessas transferências criativas.

173. Uma "verificação" é uma corroboração do excesso de conteúdo no programa em expansão. Mas uma "verificação", naturalmente, não verificaum programa: apenas lhe mostra a força heurística.

174. Cf. meu ensaio "Proofs and Refutations", 19634, pp. 324-30. In-felizmente, em 1963-4 eu ainda não fizera uma clara distinção terminológicaentre teorias e programas de pesquisa, o que me prejudicou a exposição deum programa de pesquisa da matemática informal, quase empírica.

168

 precisam concentrar sua atenção em anomalias os cientistas empe-nhados em exercícios de ensaio-e-erro

175ou que trabalham numa

fase degenerativa de um programa de pesquisa quando a heurística positiva perde o gás. (1 claro que' tudo isso há de parecer repugnanteaos falseacionistas ingênuos, segundo os quais, depois que uma teoriaé "refutada" pela experiência (segundo o livro de regras deles), é irracional (e desonesto) continuar a desenvolvê-la: cumpre substi-

tuir a velha teoria "refutada" por uma teoria nova, não-refutada.)

(c) Duas ilustrações: Prout e Bohr.

A dialética da heurística positiva e negativa num programa de pesquisa pode ser melhor esclarecida por meio de exemplos. Esbo-çarei, portanto, alguns aspectos de dois programas de pesquisa espe-tacularmente bem-sucedidos: o programa de Prout 175

,  baseado naidéia de que todos os átomos são compostos de átomos de hidrogênio,e o programa de Bohr, baseado na idéia de que a emissão da luz sedeve a elétrons que saltam de uma órbita para outra no interior dosátomos.

(Ao redigir o estudo de um caso histórico deve-se, creio eu,adotar o seguinte procedimento: (1) faz-se uma reconstrução racio-nal; (2) tenta-se cotejar essa reconstrução racional com a históriareal e criticar tanto a reconstrução racional por falta de historicidade

quanto a história real por falta de racionalidade. Dessa maneira, to-do estudo histórico deve ser precedido de um estudo heurístico: ahistória da ciência sem a filosofia da ciência é cega. Neste estudonão é minha intenção entrar seriamente na segunda fase.)

(c 1) Prout: um programa de pesquisa que avança numoceano de anomalias.

 Num ensaio anônimo de 1815, Prout afirmou que os pesos atô-

micos de todos os elementos químicos puros eram números inteiros.Ele sabia muito bem que as anomalias eram abundantes, mas disseque elas surgiam porque as substâncias químicas tal como costuma-vam se apresentar eram impuras: isto é, as "técnicas experimentais" pertinentes que existiam nessa época não mereciam confiança ou,em outras palavras, as teorias "observacionais" contemporâneas, acuja luz foram estabelecidos os valores-de-verdade dos enunciados

175. Cf. mais adiante, p. 216.176. Já mencionado mais acima, pp. 156-8.

I /.O

 

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 básicos de sua teoria, eram falsas.177Os defensores da teoria deProut lançaram-se, portanto, numa grande aventura: derrubar as teo-rias que proporcionavam a evidência contrária à sua tese. Para issoera-lhes preciso revolucionar a química analítica estabelecida na-quela época e, correspondentemente, revisar as técnicas experimen-tais com que se haviam de separar os elementos puros.

178A teoriade Prout, na realidade, derrotou as teorias ante riormente aplicadas

na purificação de substâncias químicas, uma depois da outra. Mes-

mo assim, os químicos cansaram-se do programa de pesquisas e re-nunciaram a ele, visto que os sucessos ainda estavam longe de indi-car uma vitória final. Stas, por exemplo, frustrado por alguns casosobstinados e recalcitrantes, concluiu em 1860 que a teoria de Prout"não tinha fundamentos". 170Outros, porém, se sentiram mais ani-mados pelo progresso do que desanimados pela falta de sucesso com- pleto. Marignac, por exemplo, retrucou imediatamente que "embo-ra [ele estivesse convencido de que] as experiências de Monsieur Stas são perfeitamente exatas, [não há prova] de que as diferençasobservadas entre seus resultados e os requeridos pela lei de Proutnão podem ser explicadas pelo caráter imperfeito dos métodos expe-rimentais".180Como disse Crookes em 1886: "Não poucos químicos

de reconhecida eminência consideram que temos aqui [na teoria deProut] uma expressão da verdade, mascarada por alguns fenômenosresiduais ou colaterais que ainda não conseguimos eliminar.

"181Isto

177. Tudo isso, infelizmente, é mais reconstrução racional do que his-tória verdadeira. Prout negou a existência de quaisquer anomalias. Ele afir-mava, por exemplo, que o peso atômico do cloro era exatamente 36.

178. Prout estava ciente de alguns traços metodológicos básicos do seu programa. Permitam-nos citar as primeiras linhas do seu ensaio de 1815, "Onthe Relation between the Specific Gravities of Bodies in their Gaseous Stateand the Weights of their Atoms": "O autor do ensaio que se segue submete-oà apreciação do público com a maior desconfiança... Ele se fia, contudo, deque sua importância será percebida e de que alguém lhe empreenderá o examee, assim, verificará ou refutará suas conclusões. Se estas se revelarem errôneas,novos fatos ainda poderão ser trazidos à luz, ou velhos fatos poderão ser me-

lhor estabelecidos, mas se elas vierem a verificar-se, uma luz nova e inte-ressante se projetará sobre toda a ciência da química."179. Clerk Maxwell estava do lado de Stas: ele acreditava ser impossí-

vel que houvesse dois tipos de hidrogênio, "pois se algumàs [moléculas] fos-sem de massa ligeiramente maior do que outras, temos meios de separar asmoléculas de massas diferentes, uma das quais seria um pouco mais densa doque a outra. Como isso não pode ser feito, temos de admitir [que todas sãoiguais] " (Maxwel, Theory of Heat, 1871).

180. Marignac, "Commentary on Stas' Researches on the Mutual Rela-tions of Atomic Weights", 1860.

181. Crooks, Discurso Presidencial Dirigido à Seção de Química daBritish Association, 1886.

170

é,devia haver alguma falsa suposição oculta adicional nas teorias"observacionais" em que se baseavam as "técnicas experimentais" para a purificação química e com cuja ajuda foram calculados os pesos atômicos; no entender de Crookes mesmo em 1886 "alguns pesos atômicos atuais representavam tão-somente um valor mé-dio".182Com efeito, Crookes prosseguiu no afã de dar a essa idéiauma forma científica (aumentadora de conteúdo): propôs novas teo-rias concretas de "fracionamento", um novo "Demônio classifica-

dor".183

Infelizmente, todavia, suas novas teorias observacionais re-velaram-se tão falsas quanto ousadas e, sendo incapazes de antecipar um fato novo sequer, foram eliminadas da história da ciência (ra-cionalmente construída). Como se verificou uma geração depois,uma suposição oculta básica escapou aos pesquisadores: a de quedois elementos puros devem ser separáveis por métodos químicos. Aidéia de que dois elementos puros diferentes podem comportar-se demaneira idêntica em todas as reações químicas mas podem ser sepa-rados por métodos físicosexigia uma mudança, uma "extensão" doconceito de "elemento puro" que constituía uma mudança — umaexpansão da extensão do conceito — do próprio programa de pes-quisa.

184Essa transferência revolucionária, altamente criativa, foi to-

mada apenas pela escola de Rutherford 185;

e então, "depois de inú-

meras vicissitudes e das mais convincentes refutações aparentes, ahipótese levantada tão ligeiramente por Prout, médico de Edimbur-go, em 1815, tornou-se, um século mais tarde, a pedra angular dasmodernas teorias da estrutura dos átomos".186Esse passo criativo,no entanto, foi, de fato, apenas um resultado colateral do progressonum programa de pesquisa diferente e, com efeito, distante; care-cendo desse estímulo externo, os proutianos nunca pensaram emtentar, por exemplo, construir máquinas centrífugas poderosas paraseparar elementos.

(Quando se elimina uma teoria "observacional" ou "interpre-tativa", as mensurações "precisas" levadas a cabo no interior do re-

182.  Ibid.183. Ibid., p. 491.184. Sobre "estiramento de conceito", cf. meu ensaio, "Proofs and Re-

futations", 1963-4, parte IV.185. A transferência é antecipada no fascinante Relatório Apresentado

àReunião Geral Anual da Chemical Society, em 1888, por Crookes, onde eleindica que a solução deveria ser buscada numa nova demarcação entre o "fí-sico" e o "químico". Mas a antecipação permaneceu filosófica; coube a Ru-therford e a Soddy o desenvolvimento dela e sua transformação, depois de1919, em teoria científica.

186. Soddy, The Interpretation of the Atom, 1932, p. 50.

17 1

 

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ferencial desprezado podem parecer — considerando-as retrospecti-vamente — um tanto tolas. Soddy ridicularizou a "precisão experi-mental" a suas próprias custas: "Há, sem dúvida, algo semelhante auma tragédia, ou capaz de transcendê-la, no destino que se abateude repente sobre a obra a que dedicou sua vida a distinta galáxia dequímicos do século XIX, reverenciados com razão pelos seus con-temporâneos como representando o cúmulo da perfeição da mensu-

ração científica exata. Os resultados que conseguiram com tanto es-forço parecem, pelo menos por enquanto, tão despidos de interesse ede importância quanto a determinação do peso médio de uma cole-ção de garrafas, algumas cheias e algumas mais ou menos vazias." 187

Acentuemos que, à luz da metodologia dos programas de pes-quisa aqui proposta, nunca houve uma razão racional para eliminar 

o programa de Prout. O programa, com efeito, produzia uma bela e progressiva transferência, ainda que, nos inte rvalos, surgissem consi-deráveis transtornos. 188Nosso esboço mostra como um programa de pesquisa pode desafiar um volume considerável de conhecimentocientífico aceito; plantado, por assim dizer, num ambiente hostil, pouco a pouco o sujeito se transformou.

Outrossim, a história real do programa de Prout ilustra bemdemais até que ponto o justificacionismo e o falseacionismo ingênuoestorvaram e retardaram o progresso da ciência. (A oposição à teo-ria atômica no século XIX foi fomentada por' ambos.) Uma elabo-ração da influência da má metodologia sobre a ciência pode ser um

 programa de pesquisa recompensador para o historiador da ciência.

(c 2) Bohr: um programa de pesquisa que progride sobre  fundamentos inconsistentes.

Um rápido resumo do programa de pesquisa de Bohr sobre aemisão da luz (no princípio da física quântica) ilustrará ainda mais — e até expandirá — nossa tese.

18s

187.  Ibid.188. Esses transtornos induzem inevitavelmente muitos cientistas indivi-

duais a arquivar ou a jogar fora o programa e a participar de outros progra-mas de pesquisa em que acontece a heurística positiva oferecer, na ocasião,êxitos mais fáceis: a história da ciência não pode ser cabalmente compreendi-da sem a psicologia das multidões. (Cf. mais abaixo, pp. 219-22.)

189. Esta seção pode impressionar novamente o historiador menos comoesboço do que como caricatura; mas espero que sirva ao seu propósito (Cf.mais acima, p. 169). Alguns enunciados não devem ser tomados com uma pitada,senão com toneladas de sal.

172

A história do programa de pesquisa de Bohr pode ser caracteri-zada por (1) seu problema inicial; (2) sua heurística negativa e suaheurística positiva; (3) os problemas que ele tentou resolver no de-curso do seu desenvolvimento; e (4) seu ponto de degeneração (ou,se quiserem, seu "ponto de saturação") e, finalmente, (5) o progra-ma pelo qual foi ultrapassado.

O problema básico era o enigma de como os átomos de Ruther-

ford (isto é, minúsculos sistemas planetários com elétrons que des-crevem órbitas em torno de um núcleo positivo) podem permanecer estáveis; pois, de acordo com a teoria bem corroborada de Mawell-Lorentz do eletromagnetismo, eles deviam desintegrar-se. Mas a teo-ria de Rutherford também era bem corroborada. A sugestão de Bohr consistia em ignorar por ora a incongruência e desenvolver conscien-temente um programa de pesquisa cujas versões "refutáveis" fossemincompatíveis com a teoria de Maxwell-Lorentz.t"" Ele propôs cinco

 postulados comonúcleo do seu programa: "(1) que a radiação deenergia [no interior do átomo) não é emitida (nem absorvida) damaneira contínua presumida na eletrodinâmica comum, mas apenasdurante a passagem dos sistemas entre diferentes estados "estacio-nários". (2) Que o equilíbrio dinâmico dos sistemas nos estados esta-

cionários é governado pelas leis ordinárias da mecânica, ao passoque essas leis não vigem em relação à passagem dos sistemas entre osdiferentes estados. (3) Que a radiação emitida durante a transiçãode um sistema entre dois estados estacionários é homogênea, e quea relação entre a freqüência v e a quantidade total de energia emi-tida E é dada por  E = iiv, sendo lt a constante de Planck. (4) Queos diferentes estados estacionários de um sistema simples, compostode um elétron que gira em torno de um núcleo positivo, sãodetermi-nados por uma condição: que o quociente entre a energia total, emi-tida durante a formação da configuração, e a freqüência da revoluçãodo elétron seja um múltiplo inteiro de 1/2h. Presumindo-se que aórbita do elétron é circular, essa suposição equivale à suposição de

que o momento angular do elétron em torno do núcleo é igual a ummúltiplo inteiro de h/2 . (5) Que o estado "permanente" de qual-quer sistema atômico, isto é, o estado de máxima energia emitida, é

190. Isto, naturalmente, é mais umargumento contra a tese de J. O.Wisdom de que as teorias metafísicas podem ser refutadas por uma confli-tante e bem corroborada teoria científica (Wisdom, "The Refutability of 'Irre-futable' Laws", 1963). Cf. tambémmais acima, p. 136, texto correspondenteànota de rodapé n.° 80, e pp. 154-55.

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determinado por urna condição: que o momento angular de cadaelétron em torno do centro de sua órbita seja igual a h/27r

Temos de avaliar a diferença metodológica crucial entre a in-compatibilidade introduzida pelo programa de Prout e a incompati- bilidade introduzida pelo programa de Bohr. O programa de pesquisade Prout declarou guerra à química analítica do seu tempo: suaheurística positiva destinava-se a derrubá-la e a substituí-la. Mas

o programa de pesquisa de Bohr não continha uma intenção seme-lhante: sua heurística positiva, ainda que fosse totalmente bem-suce-dida, teria deixado sem solução a incompatibilidade com a teoria deMaxwell-Lorentz.192

Para sugerir uma idéia dessa natureza fazia-se mister uma cora-gem maior que a de Prout; a idéia cruzou a mente de Einstein maseste a achou inaceitável e rejeitou-a. 1 "" De fato, alguns dos mais

importantes programas de pesquisa da história da ciência enxerta-

vam-se em programas mais antigos com os quais eram francamente

incompatíveis. Por exemplo, a astronomia coperniciana foi "enxer-tada" na física aristotélica; o programa de Bohr foi enxertado no programa de Maxwell. Tais "enxertos" são irracionais para o justi-

ficacionista e para o falseacionista ingênuo, nenhum dos quais aprovao crescimento sobre fundamentos incompatíveis. Por isso são habitual-mente escondidos por estratagemas ad hoc — como a teoria de Ga-lileu da inércia circular ou a correspondência de Bohr e, mais tarde,o princípio da complementaridade — cujo único propósito era escon-der a "deficiência". 19t À medida que o jovem programa enxertadose fortalece, a coexistência pacífica chega ao fim, a simbiose torna-secompetitiva e os defensores do novo programa tentam substituir com- pletamente o velho programa.

Talvez tenha sido o sucesso do seu "programa enxertado" quemais tarde induziu erroneamente Bohr a acreditar que tais incompa-

tibilidades fundamentais em programas de pesquisa podem e devem

191. Bohr, "On the Constitution of Atoms and Molecules", 1913, p. 874.192. Bohr sustentava nessa ocasião que a teoria de Maxwell e Lorentz

 finalmenteteria de ser substituída (a teoria do fóton de Einstein já indicaraessa necessidade).

193. Hevesy, "Carta a Rutherford em14.10.1913"; cf. tambémmaisacima, p. 166, texto correspondente à nota de rodapé n." 170.

194. Em nossa metodologia não há necessidade de tais estratagemas pro.tetores ad hoc. Por outro lado, eles serão inofensivos enquanto forem clara-mente vistos como problemas e não como soluções.

174

ser tolerados em princípio, que não apresentam nenhum problemasério e que basta a gente acostumar-se com elas. Bohr tentou, em1922, abaixar os padrões da crítica científica; argumentava ele que"o máximo que se pode exigir de -uma teoria [isto é, programa] éque a classificação [que ela estabelece] seja empurrada tão longeque possa contri buir para o desenvolvimento do campo de observa-ção pela predição de novos fenômenos." 195

(Esse enunciado de Bohr é semelhante ao de d'Alembert quandose lhe deparou a incompatibilidade nos fundamentos da teoria infi-nitesimal: "Allez en avant et la foi vous viendra."  De acordo comMaigenau, "é compreensível que, na excitação provocada pelo êxito,os homens passassem por alto uma malformação na arquitetura dateoria; pois o átomo de Bohr se apoia como uma torre barroca na

 base gótica da eletrodinâmica clássica." 196Na realidade, porém, a

"malformação" não foi "passada por alto": todos tinham consciên-cia dela, e apenas a ignoraram — mais ou menos — durante a fase

 progressiva do programa.197Nossa metologia de programas de pes-quisa mostra a racionalidade dessa atitude, mas também mostra airracionalidade da defesa de tais "malformações" depois de encerradaa fase progressiva.

 Nesse ponto, deve-se ressaltar que nas décadas de 30 e 40 Bohr abandonou a exigência de "novos fenômenos" e preparou-se para"proceder à tarefa imediata de coordenar as multiplas evidências re-lativas aos fenômenos atômicos, que se acumulavam dia a dia naexploração desse novo campo de conhecimento". 198Isso indica queBohr, a esse tempo, voltara a "salvar os fenômenos", ao passo queEinstein insistia, sarcástico, em que "toda teo riaé verdadeira con-tanto que se associem adequadamente seus símbolos com quantida-des observadas".199)

Mas a compatibilidade — num sentido forte do termo 200 — 

deve continuar a ser um princípio regulador importante (acima do

195. Bohr, "The Structure of the Atom", 1922; o grifo é meu.196. Margenau, The Nature of Physical Reality, 1950, p. 311.197. Sommerfeld ignorou-o mais do queBohr: cf. mais adiante, p. 185,

nota de rodapé n.° 227.198. Bohr, "Discussion with Einstein on Epistemological Problems in

Atomic Physics", 1949, p. 206.199. Citado em Schrõdinger, "Might perhaps Energy be merely aStatis-

tical Concept?", 1958, p. 170.200. Duas proposições serão inconsistentes sesua conjunção não tiver 

modelo, isto é, se não houver interpretação dos seus termos descritivos emqueaconjunção é verdadeira. Mas nodiscurso informal empregamos maior 

175 

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requisito da transferência progressiva de problemas); e as inconsis-tências (incluindo anomalias) devemser vistas como problemas. Arazão é simples. Se a ciência visa à verdade, deve visar à consistên-cia; se ela renuncia à consistência, renuncia à verdade. Afirmar que"devemos ser modestos em nossas exigências", 201que devemos resig-nar-nos às inconsistências — fracas ou fortes — continua a ser umvício metodológico. Por outro lado, isso não quer dizer que a desco-

 berta de uma inconsistência — ou de uma anomalia — precisa deter imediatamente o desenvolvimento de um programa: pode ser racionalcolocar a inconsistência em quarentena temporária, ad hoc, e prosse-guir com a heurística positiva do programa. Isso tem sido feito atéem matemática, como o revelam os exemplos dos primórdios do cál-culo infinitesimal e da teoria ingênua de conjuntos 2°2

número de termos formativos do que no discurso formal: a alguns termos des-critivos se dá uma interpretação fixa. Nesse sentido informal duas proposições podem ser (fracamente) inconsistentes em face das interpretações comuns dealguns termos característicos ainda que formalmente, numa interpretação não--tencionada, elas possam ser consistentes. Por exemplo, as primeiras teorias do

 spin eletrônico eram inconsistentes com a teoria especial da relatividade se

se desse a "spin" sua interpretação comum ("forte") e ele fosse, por essemodo, tratado como um termo formativo; mas a incompatibilidade desaparecequando "spin" é tratado como um termo descritivo não-interpretado. A razão

 por que não devemos renunciar com demasiada facilidade às interpretaçõescomuns é porque essa emasculação de significados pode emascular a heurís-tica positiva do programa. (Por outro lado, tais transferências de significado podem ser progressivas em alguns casos: cf. mais acima, p. 154.)

Sobre a demarcação progressiva entre os termos formativos e descritivosno discurso informal, cf. meu ensaio, "Proofs and Refutations", 1963-4, 9(b),especialmente p. 335, nota de pé de página n.° 1.

201. Bohr, "The Structure of the Atom", 1922, último parágrafo.202. Os falseacionistas ingênuos tendem a considerar esse liberalismo c o-

mo um crime contra a razão. O seu principal argumento reza deste teor: "Setivéssemos de aceitar contradições, teríamos de abrir mão de toda a espécie deatividade científica: o que significaria um colapso total da ciência. Isso podemostrar-se provando que se se admitirem dois enunciados contraditórios, qual-

quer tipo de enunciado terá de ser admitido;  pois de um par de enunciadoscontraditórios se poderá inferir validamente qualquer enunciado, seja ele qualfor... Uma teoria que envolve uma contradição, por conseguinte, é inteira-mente inútil como teoria" (Popper, "What is Dialectic?", 1940). Manda a jus-tiça que se frise que Popper, aqui, está argumentando contra a dialética hege-liana, em que a inconsistência se torna uma virtude; e está absolutamente certoquando lhe assinala os perigos. Mas Popper nunca analisou padrões de pro-gresso empírico (ou não-empírico) sobre fundamentos inconsistentes; com efei-to, na seção 24 da sua Logik der Forschung (1934), ele faz da consistência eda falseabilidade requisitos obrigatórios de qualquer teoria científica. Discutoesse problema mais circunstanciadamente em meu ensaio intitulado "Historyof Science and its Rational Reconstructions", de 1970.

(Desse ponto de vista, o "princípio de correspondência" de Bohr desempenhou interessante papel duplo em seu programa. De um lado,funcionou como princípio heurístico importante, que sugeriu inúme-ras hipóteses científicas, as quais, pôr seu turno, conduziram a fatosnovos, mormente no campo da intensidade das linhas do espectro 2 03

De outro lado, funcionou também como mecanismo de defesa, que"tentou utilizar na máxima extensão os conceitos das teorias clássicas

da mecânica e da eletrodinâmica, a despeito do contraste entre essasteori as e o quantum de ação",204em lugar de enfatizar a urgência deum programa unificado. Nesse segundo papel reduziu o grau de pro- blematicidade do programa 2°5)

 Não há dúvida de que o programa de pesquisa da teoria quân-tica como um todo foi um "programa enxe rtado" e, por conseguinte,repugnante aos físicos de concepções profundamente conservadoras,como Planck. Existem duas posições extremas e igualmente irracio-nais em relação ao programa enxertado.

A posição conservadora consiste em sustar o novo programa atéque a incompatibilidade básica com o velho tenha sido, de um modo

ou de outro, reparada: é irracional trabalhar sobre fundamentos in-compatíveis. Os "conservadores" concentrarão seus esforços em eli-minar a Incompatibilidade explicando (aproximadamente) o postu-lado do novo programa em termos do velho: parece-lhes irracionalcontinuar com o novo programa sem uma redução bem-sucedida dogênero mencionado. O próprio Planck escolheu esse caminho. Nãoteve êxito, apesar da década de trabalho intenso que lhe dedicou.

206

Por conseguinte, a observação de Laue, segundo a qual sua palestrado dia 14 de dezembro de 1900 foi "a data do nascimento da teoriaquântica" não é totalmente exata: essa foi a data do nascimento do

203. Cf., por exemplo, Kramers, "Das Korrespondenzprinzip und der Schalenbau des Atoms", de 1923.

204. Bohr, "Light and Life", 1933.205. Em seu ensaio de 1954, "The Statistical Interpretation of QuantumMechanics", Born apresenta um vigoroso relato do princípio de correspon-dência que sustenta robustamente essa dupla avaliação: "A arte de adivinhar fórmulas corretas, que se apartam das clássicas e que, no entanto, as contêmcomo um caso- li mite... foi levada a um alto grau de perfeição."

206. Sobre a história fascinante dessa longa série de malogros frustran-tes, cf. Whittaker, History of the Theories of Aether and Electricity (1953),vol. II, pp. 103-4.0 próprio Planck dá uma dramática descrição desses anos:"Minhas fúteis tentativas de enquadrar o quantum elementar de ação na teo-ria clássica continuaram por alguns anos e me custaram grande soma de es-forços. Muitos dos meus colegas viram nisso algo que beirava a tragédia..."(Planck, Scientific Autobiography, 1947).

J76 177 

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 programa de redução de Planck. A decisão de prosseguir com fun-damentos temporariamente incompatíveis tomou-a Einstein em 1905,mas até ele hesitou em 1913, quando Bohr voltou a fazer progressos.

A posição anárquica em relação a programas enxertados é lou-var a anarquia nos fundamentos como virtude e considerar a incom-

 patibilidade [fraca] propriedade básica da natureza ou limitação finaldo conhecimento humano, como o fizeram alguns seguidores de Bohr.

A posição racional é melhor caracterizada pela posição de New-ton, que enfrentou uma situação até ce rto ponto semelhante à situaçãodiscutida. A mecânica cartesiana da impulso, em que foi original-mente enxertado o programa de Newton, era (fracamente) incom-

 patível com a teoria newtoniana da gravitação. Newton trabalhavanão só em sua heurística positiva (com êxito) mas também num

 programa reducionista (sem êxito), e desaprovou tanto os carte-sianos que, como Huyghens, entendiam não valer a pena perder tempo com um programa "ininteligível", quanto alguns dos seus dis-cípulos temerários que, como Cotes, entendiam que a incompatibili-dade não apresentava problema algum207

A posição racional em relação a programas "enxertados" é, pois,explorar-lhes a força heurística sem se resignar ao caos fundamentalem que ela está crescendo. De um modo geral, essa atitude dominoua velha teoria quântica de antes de 1925. Na nova teoria quântica,

 pós-1925, a posição "anarquista" passou a dominar e a física quân-tica moderna, em sua "interpretação de Copenhague", tornou-se umdos principais porta-estandartes do obscurantismo filosófico. Na novateoria, o notório "princípio de complementa ridade" de Bohr entro-nizou a incompatibilidade [fraca] como um traço básico e final danatureza, e fundiu o positivismo subjetivista, dialética antilógica eaté a filosofia da linguagem comum numa aliança ímpia. Depois de1925, Bohr e seus colaboradores introduziram uma nova e sem pre-cedentes diminuição dos padrões críticos para teorias científicas. Isto

Ievou a uma derrota da razão dentro da física moderna e a um culto

207. Está visto que um programa reducionista só é científico quandoexplica mais do que se propunha explicar; a não ser assim, a redução não é científica (cf. Popper, "A Realist View of Logic, Physics and History", 1969).Quando a redução não produz um novo conteúdo empírico e muito menosfatos novos, a redução representa uma transferência degenerativa de problema

 — é um mero exercício lingüístico. Os esforços cartesianos para apoiar suametafísica a fim de poder interpretar a gravitação newtoniana em seus termos,representam um exemplo notável de uma redução dessa natureza puramentelingüística. Cf. mais acima, p. 155, nota de rodapé n.° 140.

178

anarquista do caos incompreensível. Einstein protestou: "A tranqüi-lizante filosofia — ou religião? — de Heisenberg-Bohr é tão delica-damente planejada que, por ora, fornece um macio travesseiro parao verdadeiro crente" 208Por outro lado, os padrões demasiado altosde Einstein podem muito bem ter sido a razão que o impediu dedescobrir (ou talvez apenas de publicar) o modelo de Bohr e amecânica ondulatória.

Einstein e seus aliados não venceram a batalha. Os compêndiosde física, hoje em dia, estão cheios de enunciados como este: "Osdois pontos de vista, a força quântica e a força do campo eletro-magnético são complementares no sentido de Bohr. Essa comple-mentaridade é uma das grandes consecuções da filosofia natural emque a interpretação de Copenhague da epistemologia da teoria quân-tica resolveu o conflito secular entre as duas teorias da luz, a teoriacorpuscular e a teoria ondulatória. Desde as propriedades de reflexãoe de propagação retilínea de Hero de Alexandria no primeiro séculode nossa era, diretamente através das propriedades interferenciais ee ondulatórias de Young e Maxwell no século XIX, essa controvérsiaestendeu-se violenta. A eoria çuântica da radiação, durante o últi-

mo meio século, de uma forma notavelmente hegeliana, solucionoucompletamentea dicotomia".209

208. Einstein, Carta a Schrõdinger de 31.5.1928. Entre os críticos do"anarquismo" de Copenhague deveríamos mencionar — além de Einstein — Popper, Landé, Schródinger, Margenau, Blokhinzev, Bohm, Fényes e Jánossy.Sobre uma defesa da interpretação de Copenhague, cf. Heisenberg, "The De-velopment of the Interpretation of Quantum Theory", 1955; sobre uma críticaenérgica e recente, cf. Popper, "Quantum Mechanics without 'The Observer"',1967. Em seu ensaio de 1968-9, "On a Recent Critique of Complementarity",Feyerabend se utiliza de algumas inconsistências e vacilações da posição deBohr para um tosco falseamento apologético da filosofia de Bohr. Feyerabenddesfigura a atitude crítica de Popper, Landé e Margenau em relação a Bohr,não dá ênfase suficiente à oposição de Einstein e parece ter-se esquecido com-

 pletamente de que, em alguns dos seus primeiros trabalhos, ele era mais poppe-riano do que o próprio Popper acerca dessa questão.209. Power, Introductory Quantum Electrodynamics, 1964, p. 31 (o grifo

é meu). "Completamente" é tomado aqui de forma literal. Como lemos em Nature (222, 1969, pp. 1034-5): "E absurdo pensar que qualquer elementofundamental da teoria [quântica] pode ser falso... Os argumentos de que osresultados científicos são sempre temporários não procedem. Temporárias sãoas concepções dos filósofos sobre a física moderna, porque eles ainda não com- preenderam quão profundamente os descobrimentos da física quântica influemem toda a epistemologia... A afirmativa de que a linguagem comum é a últi-ma fonte da não-ambigüidade da descrição física verifica-se da maneira maisconvincente pelas condições observacionais da física quântica."

179 

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Voltemos agora à lógica da descoberta da velha teo ria quânticae, em particular, concentremo-nos em sua heurística positiva. O planode Bohr era descobrir primeiro a teoria do átomo de hidrogênio. Seu

 primeiro modelo devia basear-se num núcleo fixo de próton com uméletron numa orbita circular; em seu segundo modelo ele quis calcu-lar uma órbita elíptica num plano fixo; depois, pretendeu eliminar as

restrições claramente artificiais do núcleo fixo e do plano fixo; depois, pretendeu eliminar as restrições claramente artificiais do núcleo fixoe do plano fixo; em seguida, pensou em tomar em consideração o

 possível giro do elétron 210e, por fim, esperou estender o seu pro-grama à estrutura de átomos e moléculas complicadas e ao efeitode campos eletromagnéticos sobre eles, etc., etc. Tudo isso estava

 planejado desde o princípio: a idéia de que os átomos eram análogosa sistemas planetários prenunciou um longo, difícil mas otimista pro-grama e indicou claramente a política de pesquisa 2 11"Dir-se-ia nessaocasião — no ano de 1913 — que a chave autêntica dos espectrosfora finalmente encontrada, como se apenas fossem necessários tempoe  paciência para resolver completamente os seus enigmas. "212

O famoso primeiro ensaio de Bohr, em 1913, continha o passoinicial do programa de pesquisa. Continha o seu primeiro modelo(chamar-lhe-ei M 1 )que já predizia fatos até então não-preditos por nenhuma teoria anterior: os comprimentos de onda das linhas doespectro de emissão do hidrogênio. Conquanto alguns desses compri-mentos de ondas fossem conhecidos antes de 1913 — a série deBalmer (1885) e a série de Paschen (1908) — a teo ria de Bohr  predizia muito mais do que as duas séries conhecidas. E os testes

210. Isso é reconstrução racional. Em realidade, Bohr só aceitou essaidéia em sua Carta a Nature de 1926.

211. Além dessa analogia, havia outra idéia básica na heurística positivade Bohr: o "princípio da correspondência", que ele já indicava em 1913 (cf.o segundo dos seus cinco postulados citados acima, à p. 173), mas que só de-senvolveu mais tarde, quando passou a usá-lo como princípio orientador nasolução de alguns problemas dos modelos sofisticados mais recentes (como asintensidades e os estados de polarização). Uma singularidade dessa segunda parte da sua heurística positiva era que Bohr não acreditava na sua versãometafísica: supunha tratar-se de uma regra temporária até a substituição doeletromagnetismo clássico (e possivelmente da mecânica).

212. Davisson, "The Discovery of Electron Waves", 1937. Euforia seme-lhante foi experimentada por MacLaurin em 1748 diante do programa de Newton: "fundando-se na experimentação e na demonstração, a filosofia [de Newton] não falhará enquanto a razão ou a natureza das coisas não tiveremmudado... [Newton] deixou à posteridade pouco mais para fazer além deobservar o céu e computar de acordo com os seus modelos" (MacLaurin, Account of Sir Isaac Newton's Philosophical Discoveries, 1748, p. 8).

1 R D

logo corroboraram o seu novo conteúdo: uma série adicional de Bohr foi descoberta por Lyman em 1914, outra por Brackett em 1922 euma terceira por Pfund em 1924.

Visto que as séries de Balmer e Paschen eram conhecidas antesde 1913, alguns historiadores apresentam a história como exemplode "ascensão indutiva" baconiana: (1) o caos das linhas do espectro,

(2) uma "lei empírica" (Balmer), (3) a explicação teórica (Bohr).Isto se parece, sem dúvida, com os três "pavimentos" ("floors") deWhewell. Mas o progresso da ciência pouco se teria atrasado se nosfaltassem os louváveis ensaios e erros do engenhoso mestre-escolasuíço: a linha principal especulativa da ciência, levada adiante pelasousadas especulações de Planck, Rutherford, Einstein e Bohr teriam

 produzido dedutivamente os resultados de Balmer, como enunciados--testes de sua teoria, sem o chamado "pioneirismo" de Balmer. Nareconstrução racional da ciência há escassa recompensa para os tra-

 balhos dos descobridores de "conjeturas ingênuas". 213

 Na verdade, o problema de Bohr não consistia em explicar asséries de Balmer e Paschen, mas em explicar a estabilidade paradoxaldo átomo de Rutherford. Além disso, Bohr nem sequer ouvira falar nessas fórmulas antes de escrever a primeira versão do seu traba-lho 214

 Nem todo o conteúdo novo do p rimeiro modelo M, de Bohr foicorroborado. O M, de Bohr, por exemplo, afirmava predizer todasas linhas do espectro de emissão do hidrogênio. Mas havia uma provaexpe rimental da existência de uma série de hidrogênio, ao passo que,de acordo com a M1 de Bohr, não deveria haver nenhuma. A sérieanômala era a série ultravioleta de Pickering-Fowler.

213. Uso aqui "conjectura ingênua" como termo técnico no sentido domeu ensaio "Proofs and Refutations", de 1963-4. Sobre o estudo de um casoe uma crítica minuciosa do mito da "base indutiva" da ciência (natural oumatemática) cf. ibid., seção 7, especialmente pp. 298-307, onde mostro que a"conjectura ingênua" de Descartes e Euler de que para todos os poliedrosV—E+F=2 era irrelevante e supérflua para o desenvolvimento ulterior; comoexemplos adicionais podemos mencionar que os esforços de Boyle e seus su-cessores para estabelecer  pv = RT não influíram no desenvolvimento teóricoulterior (a não ser para desenvolver algumas técnicas experimentais), assimcomo as três leis de Kepler podem ter sido supérfluas para a teoria newtonia-na da gravitação.

Sobre uma discussão adicional desse ponto, cf. mais adiante, p. 216.214. Cf. Jammer, The Conceptual Development of Quantum Mechanics,

1966 .

181 

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Pickering descobriu essa série em 1896 no espectro da estrelaPuppis. Fowler, depois de haver descoberto sua primeira linha tam-

 bém no sol em 1898, produziu toda a série num tubo de descargaque continha hidrogênio e hélio. E verdade que se poderia argu-mentar que a linha-monstro nada tinha que ver com o hidrogênio — afinal de contas, o sol e Puppis contêm muitos gases e o tubode descarga também continha hélio. Efetivamente, a linha não pode-ria ter sido produzida num tubo de hidrogênio puro. Mas a "técnicaexperimental" de Pickering e Fowler, que conduziu a uma hipótesefalseadora da lei de Balmer, possuía uma base teórica plausível,embora nunca severamente testada: (a)a série deles tinha o mesmonúmero de convergência da série de Balmer e, po rtanto, foi conside-rada como uma série de hidrogênio e (b)Fowler deu uma explica-ção plausível da razão por que o hélio não poderia ser responsável

 pela produção das séries 215

Bohr, todavia, não ficou muito impressionado com os físicosexperimentais "autorizados". Não lhes contestou a "precisão experi-mental" nem a "fidedignidade das observações", mas contestou-lhesa teoria observacional. Na verdade, propôs uma alternativa. Primeiro,elaborou um novo modelo ( M 2 ) do seu programa de pesquisa: omodelo do hélio ionizado, com um próton duplo a cuja volta .umelétron descrevia uma órbita. Ora, esse modelo prediz uma sérieultravioleta no espectro do hélio ionizado que coincide com a sériede Pickering-Fowler. Isso constituía uma teoria rival. Bohr suge riu,então, uma "experiência crucial": predisse que a série de Fowler 

 pode ser produzida, possivelmente com linhas até mais fo rtes, numtubo cheio de uma mistura de hélio e cloro. Ademais, explicou aos

215. Fowler, "Observations of the Principal and Other Series of Linesin the Spectrum of Hydrogen", 1912. Incidentemente, sua teo ri a "observacio-nal" foi propiciada pelas "investigações teóricas de Rydberg", que, "na ausên-cia de uma prova experimental rigorosa, [ele] considerava como justificativade [sua] conclusão [experimental] " (p. 65). Mas seu colega teórico, o Profes-sor Nicholson, referiu-se três meses depois aos achados de Fowler como "con-firmações de laboratório da dedução teórica de Rydberg" (Nicholson, "A Po-ssible Extension of the Spectrum of Hydrogen", 1913). Essa historieta, creioeu, corrobora minha tese favorita de que a maioria dos cientistas tende aentender um pouco mais de ciência do que os peixes de hidrodinâmica.

 No Relatório do Conselho Endereçado à Nonagésima Terceira ReuniãoGeral Anual da Royal Astronomical Society, a "observação [de Fowler] emexperiências de laboratório" de novas "linhas de hidrogênio que durante tan-to tempo se furtaram aos esforços dos físicos" é descrita como "um progressode grande interesse" e como "um triunfo do trabalho experimental bem diri-gido".

182

experimentadores, sem sequer olhar para o aparelhamento deles, o papel catalisador do hidrogênio na experiência de Fowler e de clorona experiência por ele sugerida 216Em realidade, ele estava certo?"Dessa maneira, a primeira derrota aparente do programa de pesquisaconverteu-se numa vitória retumbante.

A vitória, contudo, foi imediatamente posta em dúvida. Fowler reconheceu que sua série não era uma série de hidrogênio, mas umasérie de hélio. Assinalou, porém, que o ajustamento-monstro de

Bohr 218

ainda falhava: os comprimentos de ondas na série de Fowler diferem significativamente dos valores preditos pela M2de Bohr.Desse modo, a série, embora não refute M 1 , ainda refuta M2 e, mercêda íntima conexão entre M 1 e M2, solapa M1! 21 9

Bohr rejeitou o argumento de Fowler: é claro que ele nunca pretendera que M2fosse levado muito a sério. Seus valores tinham por base um cálculo tosco, baseado no elétron que descrevia umaórbita em torno de um núcleo fixo; é claro que essa órbita , se des-creve em torno do centro comum de gravidade; é claro que cumpresubstituir, como acontece quando se enfrentam problemas de doiscorpos, a massa por massa reduzida: m' e = m e / [1 -1- (m / emn)]220Esse modelo modificado era o M3de Bohr. E o próprio

Fowler precisou admitir que Bohr tinha razão outra vez.221

A aparente refutação de M2 converteu-se numa vitória para M3;

e era claro que M2 e M3 teriam sido desenvolvidos dentro do progra-

216. Bohr, Carta a Rutherford de 6.3.1913.217. Evans, "The Spectra of Helium and Hydrogen", 1913. Sobre um

exemplo semelhante de um físico teórico que ensina um experimentador aman-te de refutações o que ele — experimentador — realmente observara, cf. maisacima, p. 160, nota de pé de página n.° 153.

218. Ajustamento-monstro: transformar um exemplo contrário, à luz deuma nova teoria, em um exemplo. Cf. meu ensaio. "Proofs and Refutations",de 1963-4, pp. 127 e seguintes. Mas o "ajustamento-monstro" de Bohr era em-

 piricamente "progressivo": predizia um fato novo (o aparecimento da linha4686 em tubos que não continham hidrogênio).

219. Fowler, "The Spectra of Helium and Hydrogen", 1913.220. Bohr, "The Spectra of Helium and Hydrogen", 1913. Esse ajusta-

mento-monstro também era "progressivo": Bohr predisse que as observaçõesde Fowler deviam ser ligeiramente imprecisas e que a "constante" de Rydbergdevia ter uma est rutura fina.

221. Fowler, "The Spectre of Helium and Hydrogen", 1913. Mas ele no-tou, cético, que o programa de Bohr ainda não explicara as linhas do espectrodo hélio comum, não-ionizado. Entretanto, logo abandonou o seu ceticismo eentrou a participar do programa de pesquisa de Bohr (Fowler, "Se ries - Lines inSpark Spectra", 1914).

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ma de pesquisa — talvez até M17 ou M20 — sem nenhum estímuloda observação ou da experiência. Foi nessa fase que Einstein disseda teoria de Bohr: "É uma das maiores descobertas."

222

O programa de pesquisa de Bohr continuou, então, como fora planejado. O passo seguinte consistia em calcular órbitas elípticas. Issofoi feito por Sommerfeld em 1915, mas com um resultado inespe-rado: o número aumentado de possíveis órbitas regulares não aumen-

tou o número de possíveis níveis de energia, de modo que parecianão haver possibilidade de uma experiência crucial entre a teoriaelíptica e a circular. Entretanto, os elétrons descrevem órbitas em tornodo núcleo com altíssima velocidade de sorte que, ao acelerarem seumovimento, sua massa deve mudar de maneira notável, se a mecâ-nica einsteiniana for exata. Com efeito, calculando tais correçõesrelativistas, Sommerfeld conseguiu um novo conjunto de níveis deenergia e, assim, a "estrutura fina" do espectro.

A transferência para o novo modelo relativista exigia muitomaior habilidade matemática e muito mais talento do que o desen-volvimento . dos primeiros modelos. A realização de Sommerfeld foi principalmente matemática.

223

Por curioso que pareça, as duplicações do espectro de hidrogênio já tinham sido descobertas em 1891 por Michelson.

224

Moseley assi-nalou imediatamente após a primeira publicação de Bohr que "ela nãoexplica a segunda linha mais fraca encontrada em cada espectro". 225

Bohr não se deixou impressionar, convencido que estava de que aheurística positiva do seu programa de pesquisa, a seu tempo, expli-caria e até corrigiria as obse rvações de Michelson 226E foi o queaconteceu. A teoria de Sommerfeld, naturalmente, era incompatívelcom as primeiras versões de Bohr; as experiências da estrutura fina

 — com as velhas observações corrigidas! — forneceram a prova cru-cial em seu favor. Inúmeras derrotas dos primeiros modelos de Bohr 

222. Cf. Hevesy, "Carta a Rutherford de 14.10.1913". "Quando eu lhefalei do espectro de Fowler, os grandes olhos de Einstein pareceram maioresainda e ele me disse: "Nesse caso é uma das maiores descobertas."

223. Sobre os aspectos matemáticos vitais dos programas de pesquisa,veja mais acima, p. 168.

224. Michelson, "On the Application of Interference Methods to Spec-troscopic Measurements, I-II", 1891-2, especialmente as pp. 287-9. Michelsonnem sequer menciona Balmer.

225. Moseley, "Letter to Nature", 1914.226. Sommerfeld, "Zur Quantentheorie der Spektrallinien", 1916, p. 68 .

184

foram convertidas por Sommerfeld e sua escola de Munique em vitó-rias do programa de pesquisa de Bohr.

É interessante notar que, assim como Einstein se aborreceu emoderou sua marcha no meio do prógresso espetacular da física quân-tica por volta de 1913, Bohr se aborreceu e moderou sua marcha por volta de 1916; e assim como Bohr, em 1913, tomara a iniciativa de

Einstein, assim Sommerfeld tomou a iniciativa de Bohr em 1916. A di-ferença entre a atmosfera da escola de Copenhague de Bohr e a daescola de Munique de Sommerfeld era notável: "A [escola de] Muni-que usava formulações mais concretas e era, portanto, compreendidacom maior facilidade; fora bem sucedida na sistematização dos espec-tros e no emprego do modelo vetorial. [A escola de] Copenhague,no entanto, acreditava que ainda não se descobrira uma linguagemadequada para os novos [fenômenos], mostrava-se reticente em facede formulações demasiado definidas, expressava-se com maior cautelae em termos mais gerais e era, portanto, muito mais difícil de com- preender." 227

 Nosso esboço mostra que uma transferência progressiva pode

emprestar credibilidade — e uma base lógica — a um programa in-consistente. Em seu necrológio de Planck, Bo rn descreve com vigor esse processo: "Claro está que a mera introdução do quantum de açãonão significa ainda que se estabeleceu uma verdadeira Teoria Quân-tica ... Já aludimos às dificuldades que a introdução do quantum deação na teoria clássica solidamente estabelecida encontrou desde o princípio. Elas têm aumentado gradativamente em vez de diminuir; econquanto a pesquisa em sua marcha, tenha passado por cima dealgumas, as lacunas restantes na teoria são as que mais consternamo físico teórico consciencioso. Com efeito, o que na teoria de Bohr se rviu como base das leis de ação foram hipóteses que todo físico dageração anterior, teria sem dúvida, categoricamente rejeitado. Poder-

227. Hund, "Gottingen, Copenhagen, Leipzig im Riickblick", 1961. Istoé discutido com alguns pormenores no ensaio de Feyerabend intitulado "Ona Recent Critique of Complementarity", de 1968-9, pp. 83-7. Mas o trabalhode Feyerabend é pesadamente preconceituoso. O objetivo principal da suaanálise é passar por alto o anarquismo metodológico de Bohr e mostrar queBohr  se opunha à interpretação de Copenhague do novo (depois de 1925) pro-grama quântico. A fim de fazê-lo, Feyerabend, de um lado, dá uma ênfaseexagerada à infelicidade de Bohr no que concerne à inconsistência do velho(anterior a 1925) programa quântico e, de outro lado, empresta demasiadaimportância ao fato de Sommerfeld preocupar-se menos do que Bohr coma problematicidade dos fundamentos inconsistentes do velho programa.

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se-ia conceder perfeitamente que, dentro do átomo, certas órbitas quan-tizadas (istoé, escolhidas pelo princípio quântico) desempenhassemum papel especial; mas algo menos fácil de aceitar era a suposiçãoadicional de que os elétrons que se movem nessas órbitas curvilínease, portanto, acelerados, não irradiam energia. Mas um teórico quetivesse sido educado na escola clássica teria considerado monstruosoe quase inconcebível que a freqüência do quantum de luz emitida fossediferente da freqüência do quatum emissor. Mas como são os núme-ros [ou melhor, as transferências progressivas de problemas] que deci-dem, viraram-se as mesas. Embora no princípio fosse uma questão deajustar com o menor esforço possível um elemento novo e estranhonum sistema existente geralmente considerado estabelecido, o intruso,

depois de haver conquistado uma posição segura, assumiu a ofensiva;e agora parece estar a pique de mandar pelos ares o velho sistema emalgum ponto. A única pergunta que se pode fazer é esta: em que ponto,e até que ponto, isso acontecerá? 228

Uma das coisas mais impo rtantes que se aprendem estudando os programas de pesquisa é que relativamente poucas experiências são defato import antes. A orientação heurística que o físico teórico recebede testes e "refutações" é de ordinário tão trivial que o procedimento

de teste em larga escala — ou até uma excessiva preocupação com osdados já disponíveis — pode ser uma perda de tempo. Na maioriados casos dispensamos refutações que nos digam que a teoria estáurgentemente necessitada de substituição: a heurística positiva do pro-grama nos impele para a frente de qualquer maneira. De mais a mais,dar uma severa "interpretação refutável" à versão incipiente de um programa é uma perigosa crueldade metodológica. As primeiras ver-sões podem até "aplicar-se" somente a casos "ideais" não-existentes; pode-se levar decênios de trabalho teórico para chegar aos primeirosfatos novos e mais tempo ainda para chegar a versões interessante-mente testáveis dos programas de pesquisa, na fase em que as refuta-ções já não são previsíveis à luz do próprio programa.

A dialética dos programas de pesquisa, portanto, não é necessaria-mente uma série alternada de conjecturas especulativas e refutaçõesempíricas. A interação entre o desenvolvimento do programa e asverificações empíricas pode ser muito variada — o modelo realmenterealizado depende apenas do acidente histórico. Permitam-nos men-cionar três variantes típicas.

(1) Imaginemos que cada uma das três primeiras versões con-secutivas, H,, H2, H3 prediz alguns fatos novos com êxito mas outrossem êxito, isto é, cada versão é corroborada e, por seu turno, refutada.Finalmente se propõe H4, que prediz alguns fatos novos mas resisteaos testes mais severos. A transferência de problemas é progressiva etambém temos um excelente exemplo em que se alternam popperiana-mente conjecturas e refutações 239As pessoas admirarão esse fato

como um exemplo clássico de trabalho teórico e expe rimental quecaminha de mãos dadas.

(2) Outro modelo poderi a ter sido um Bohr solitário (possivel-mente sem que Balmer o precedesse), elaborando H,, H2, H3, H4 mas, por uma questão de autocrítica, retendo a publicação até H4. Depois

H4 é testado: todas as evidências se revelam corroborações de H4, a primeira (e única) hipótese publicada. O teórico — sentado à suamesa — é visto aqui trabalhando à frente do experimentador: temosum período de relativa autonomia do progresso teórico.

(3) Imaginemos agora que todas as evidências empíricas men-cionadas nesses três modelos já estão ali ao tempo da invenção de

H,, H2, H3, H4. Nesse caso, H,, H2, H3e H4não representarão umatransferência de problemas empiricamente progressiva e, portanto,embora todas as evidências lhe apoiem as teo ri as, o cientista precisacontinuar a trabalhar para provar o valor científico do seu progra-ma. 230Tal estado de coisas pode ser provocado por já ter um pro-grama de pesquisa mais antigo (desafiado pelo que conduziu a H,, H2,

H3, H4) produzido todos esses fatos — ou por haver dinheiro emdemasia, do gove rno, destinado à obtenção de dados acerca das linhasdo espectro, tendo as tentativas tropeçado com todos os dados. O últi-mo caso, todavia, é muito pouco provável pois, como Cullen costu-mava dizer, "o número de fatos falsos, à solta pelo mundo, excede infi-nitamente o das teorias falsas"

231;na maioria desses casos o progra-ma de pesquisa colidirá com os "fatos" disponíveis, o teórico exami-

229.  Nos três primeiros modelos não envolvemos complicações tais comoapelos bem-sucedidos contra o veredito dos cientistas experimentais.

230. Isso mostra que se as mesmas teorias e a mesma evidência foremracionalmente reconstruídas em diferentes ordens de tempo, poderão constituir uma transferência progressiva ou uma transferência degenerativa. Cf. tambémmeu ensaio "Changes in the Problem of Inductive Logic", de 1968, p. 387.

231.Cf. McCulloch, The Principles of Political Economy: With a Sketchof the Rise and Progress of the Science, 1825, p. 21. Sobre um vigoroso argu-mento acerca da extrema improbabilidade de um modelo dessa natureza, vejamais abaixo, pp. 156-7.

228. Born, "Max Karl Ernst Ludwig Planck", 1948, p. 180; os grifos sãomeus.

186187

 

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nará as "técnicas experimentais" do experi mentador e, tendo derru- bado e substituído suas teorias observacionais, corrigirá seus fatos produzindo, por essa meneira, fatos novos 232

Concluída essa excursão metodológica, voltemos ao programade Bohr. Nem todos os desenvolvimentos do programa foram previstose planejados no esboçar-se pela primeira vez a heurística positiva.Quando algumas lacunas cu riosas apareceram nos modelos sofistica-

dos de Sommerfeld (algumas linhas perdidas nunca apareceram),Paulo propôs uma hipótese auxiliar profunda (o seu "princípio deexclusão") que não só explicou as lacunas conhecidas mas tambémremodelou a teoria incipiente do sistema periódico de elementos eantecipou fatos então desconhecidos.

 Não é minha intenção apresentar aqui um relato circunstanciadodo desenvolvimento do programa de Bohr. Mas o seu estudo porme-norizado do ponto de vista metodológico é uma verdadeira mina deouro: seu progresso maravilhosamente rápido — sobre fundamentosinconsistentes! — foi emocionante, a beleza, a originalidade e o suces-so empírico de suas hipóteses auxiliares, propostas por cientistas bri-

lhantes e até geniais, não tiveram precedente na história da física.233

De vez em quando, a versão seguinte do programa exigia apenas umamelhoria trivial, como a substituição da massa péla massa reduzida.De vez em quando, entretanto, para chegar à versão seguinte, fazia-semister uma nova matemática sofisticada, como a matemática do pro-

 blema de n-corpos, ou novas teorias auxiliares físicas sofisticadas. Amatemática ou a física adicionais eram tiradas de alguma pa rte doconhecimento existente (como a teoria da relatividade) ou inventadas

232. Talvez se deva mencionar que a mania da coleção de dadoseda "exagerada" precisão também — impede até a formação de hipóteses "empí-ricas" ingênuas como a de Balmer. Se Balmer tivesse tido conhecimento dosespectros finos de Michelson, teria acaso encontrado sua fórmula? Ou, se os

dados de Tycho Brahe tivessem sido mais precisos, a lei elíptica de Kepler teria sido algum dia apresentada? O mesmo se aplica à primeira versão ingê-nua da lei geral dos gases, etc. A conjectura de Descartes e Euler sobre os poliedros talvez nunca tivesse sido feita não fora a escassez de dados; cf. meuensaio de 19634, intitulado "Proofs and Refutations", pp. 298 e seguintes.

233. "Entre o aparecimento da grande trilogia de Bohr em 1913 e o adven-to da mecânica ondulatória em 1925, surgiu grande número de estudos quedesenvolviam as idéias de Bohr numa impressionante teoria de fenômenos atô-micos. Foi um esforço coletivo e os nomes dos físicos que contribuíram paraisso constituem uma lista imponente: Bohr, Born, Epstein, Debye, Schwarz-schild, Wilson..." (Ter Haar, The Old Quantum Theory , 1967, p. 43).

188

(como o princípio de exclusão de Pauli) . No último caso temos uma"transferência criativa" da heurística positiva.

Mas até esse grande programa chegou a um ponto em que suaforça heurística se esgotou. Multiplicaram-se as hipóteses ad hoc e não puderam ser substituídas por explicações aumentadoras de conteúdo.Por exemplo, a teoria dos espectros (faixa) moleculares de Bohr  predisseram a seguinte fórmula para as moléculas diatômicas:

hv=  Hui + 1) 2 — m2 )

8 N2 I 

Mas a fórmula foi refutada. Os adeptos de Bohr substituíram otermo m2por m(m + 1) : este se ajustava aos fatos mas era triste-mente ad hoc.

Veio depois o problema de alguns desdobramentos não explicadosnos espectros de álcalis. Landé explicou-os em 1924 por uma "regradivisória relativista" ad hoc; Goudsmit e Uhlenbeck em 1925, pelo giro

do elétron. Se a explicação de Landé era ad hoc, a de Goudsmit eUhlenbeck também se revelou inconsistente com a teoria especial darelatividade: pontos de superfície no elétron aumentado tinham deviajar mais depressa do que a luz, e o elétron tinha até de ser maior do que o átomo todo.

234Fazia-se mister muita coragem para propô-lo(Kronig teve a idéia primeiro, mas absteve-se de publicá-la por supô-la inadmissível 235)

Mas a temeridade em se propor veementes inconsistências nãocolheu novas recompensas. O programa ficou para trás da descobertade "fatos". Anomalias não-digeridas inundavam o campo. Com incon-sistências cada vez mais estéreis e hipóteses cada vez mais ad hoc,

começara a fase degenerativa do programa de pesquisa: este princi- paira — para usarmos uma das frases favoritas de Popper — "a perder 

234. Uma nota de rodapé no trabalho deles diz o seguinte: "Deveriaobservar-se que [de acordo com a nossa teoria) a velocidade periférica doeléctron excederia de maneira considerável a velocidade da luz" ((Jhlenbeck e Goudsmit, "Ersetzung der Hypothese von unmechanischen Zwang durch eineForderung bezüglich des inneren Verhaltens jedes einzelnen Electrons", 1925).

235. Jammer, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, 1966, pp. 146-8 e 151.

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seu caráter empírico".236

Tampouco se poderia esperar que muitos pro- blemas, como a teoria das perturbações, fossem resolvidos dentro dele.Logo apareceu um programa de pesquisa rival: a mecânica ondula-tória. Não somente o nova programa, até em sua primeira versão (deBroglie, 1924), explicava as condições quânticas de Planck e de Bohr;mas também conduzia a um fato novo emocionante, a experiência deDavisson-Germer. Em suas versões ulteriores, ainda mais sofisticadas,

oferecia soluções para problemas que tinham estado completamentefora do alcance do programa de pesquisa de Bohr, e explicava asteorias ad hoc subseqüentes do citado programa por teorias que satis-faziam a elevados padrões metodológicos. A mecânica ondulatória nãotardou a alcançar, vencer e substituir o programa de Bohr.

O trabalho de Broglie surgiu na ocasião em que o programade Bohr estava degenerando. Mas isso não passou de coincidência.Ficamos a perguntar-nos o que teria acontecido se de Broglie tivesseesc rito e publicado seu estudo em 1914 em lugar de fazê-lo em 1924.

(d) Um novo olhar dirigido a experiências cruciais: o fim daracionalidade instantânea.

Se ri a um erro supor que precisamos conse rvar um programa de pesquisa até que se tenha esgotado toda a sua força heurística, quenão devemos apresentar um programa rival antes de haverem todosconcordado em que foi provavelmente atingido o ponto de degenera-ção. (Embora se possa compreender a irritação do físico quando, nomeio da fase progressiva de um programa de pesquisa, se lhe deparauma proliferação de vagas teorias metafísicas que não estimulam ne-nhum progresso empírico 237) Nunca devemos permitir que um pro-grama de pesquisa se converta numWeltanschauung,ou numa espéciederigor científico, arvorando-se em árbitro entre a explicação e a não--explicação, como o rigor matemático se arvora em árbitro entre a prova e a não-prova. Esta, infelizmente,

é a posição que Kuhn tende236. Sobre uma excelente descrição dessa fase degenerativa do programa

de Bohr, cf. Margenau, The Nature of Physical Reality, 1950, pp. 311-3. Na fase progressiva de um programa o principal estímulo heurístico pr o-

vém da heurística positiva: as anomalias são largamente ignoradas. Na fasedegenerativa a força heurística do F )grama some aos poucos. Na ausênciade um programa rival essa situação pede refletir-se na psicologia dos cientistas por uma hipersensibilidade inusitada às anomalias e por uma sensação de"crise" kuhniana.

237. Isto é oque mais deve ter irritado Newton na "cética proliferaçãode teorias" pelos cartesianos.

190

a advogar: na verdade, o que ele denomina "ciência normal" nadamais é que um programa de pesquisa que logrou monopólio. Mas, emrealidade, os programas de pesquisa só lograram monopólio completoem raras ocasiões e, mesmo assim, por períodos relativamente curtos,a despeito dos esforços de alguns cartesianos, newtonianos e bohria-nos. Ahistória da ciência tem sido, e deve ser, uma história de pro-

 gramas de pesquisa competitivos (ou, se quiserem, de "paradigmas"),

mas não tem sido, nem deve vir a ser, uma sucessão de períodos deciência normal: quanto antes se iniciar a competição, tanto melhor 

 para o progresso. O "pluralismo teórico" é preferível qo "monismoteórico": nesse ponto Popper e Feyerabend estão certos e Kuhn estáerrado2s

8

A idéia de programas de pesquisa científica concorrentes conduz-nos ao problema: como são eliminados os programas de pesquisa?Transpirou de nossas considerações anteriores que uma transferênciadegenerativa de problemas não é uma razão mais forte para eliminar um programa de pesquisa do que uma "refutação" antiquada ou uma"crise" kuhniana. Pode haver alguma razão objetiva (em oposição àsrazões sociopsicológicas) para rejeitar On programa, isto é, para eli-minar-lhe o núcleo e o programa ctfr cintos protetores?

 Nossa resposta, em linhas gerais, resume-se nisto: uma razão objetivadessa natureza é  proporcionada por um programa de pesquisa rivalque explica o êxito anterior de seu rival e o suplanta por uma demons-tração adicional de força heurística.2t 9

O critério da "força heurística", no entanto, depende muito decomo interpretamos a "novidade fatual". Até agora temos presumidoque se pode imediatamente determinar se uma nova teoria prediz ou

238.  Não obstante, há qualquer coisa para ser dita ao menos a respeitodealgumas pessoas que se aferram a um programa de pesquisa até que eleatinge seu "ponto de saturação"; desafia-se então um novo programa a respon-der pelo pleno sucesso do velho. O fato de um argumento rival ter podido,

ao ser proposto pela primeira vez, explicar todo o sucesso do primeiro pro-grama; não constitui argumento contra isso; não se pode predizer o cresci-mento de um programa de pesquisa — capaz de estimular importantes teoriasauxiliares próprias imprevisíveis. Outrossim, se uma versão A nde um pro-grama de pesquisa P t é matematicamente equivalente a uma versão A mdeum rival P2 devemos desenvolver os dois: a força heurística deles ainda podeser multo diferente.

239. Emprego aqui "força heurística" como termo técnico a fim decaracterizar a força de um programa de pesquisa para antecipar teoricamentefatos novos em seu crescimento. Eu poderia empregar, naturalmente, "poder explanetório": cf. mais acima, p. 145, nota de pé de página n.° 112.

01.e.cotvira-. Ai.0 e t  Z- - • 19 1

 

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não um fato novo 240Mas a novidade de uma proposição fatual muitas

vezes só pode ser vista depois da passagem de um longo período.

A fim de mostrá-lo, começarei com um exemplo.

A teoria de Bohr implicava logicamente a fórmula de Balmer paraas linhas de hidrogênio como conseqüência.

241

Tratava-se de um fatonovo? Poderíamos sentir-nos tentados a negá-lo, uma vez que a fórmu-

la de Balmer, afinal de contas, era bem conhecida. Mas esta é umameia verdade. Balmer apenas "observou" B 1 : que as linhas de hidrogê-

nio obedecem à fórmula de Balmer. Bohr predisse B2: queas dif eren-ças nos níveis de energia em diferentes órbitas do elétron de hidro-

 gênio obedecem à fórmula de Balmer. Agora podemos dizer que B 1 jáencerra todo o conteúdo puramente "observacional" de B2. Mas dizê-lo pressupõe que pode haver um "nível observacional" puro, não conta-minado pela teoria, e impermeável à mudança teórica. Com efeito, B1

só foi aceito porque as teorias óticas, químicas e outras aplicadas por Balmer foram bem corroboradas e aceitas como teorias interpretati-vas, sempre passíveis de ser postas em dúvida. Talvez fosse possívelargumentar que podemos "purgar" até B 1 de suas pressuposições teóri-cas, e chegar ao que Balmer realmente "obse rvou", que poderia ser 

expresso num asserção mais modesta, B0: que as linhas emitidas emcertos tubos em determinadas circunstâncias bem especificadas (ou nocorrer de uma "experiência controlada" 

242)

obedecem à fórmula de Rainier. Ora, alguns argumentos de Popper mostram que nunca che-garemos, dessa maneira, a nenhum mínimo "obse rvacional" concreto;

 pode mostrar-se facilmente que teorias "observacionais" estão envol-vidas em B0 .

243Por outro lado, como o programa de Bohr, depois deum longo desenvolvimento progressivo, havia mostrado sua força heu-

240. Cf.mais acima, p. 142, texto correspondente à nota de pé de páginan.° 98, e p. 164, texto correspondente à nota de pé de página n.° 166.

241. Cf. mais acima, p. 180.242. Cf. mais acima, p. 135, nota de pé de página n.° 77.

243. Um dos argumentos de Popper é particularmente importante: "Háuma crença generalizada de que o enunciado 'Vejo que esta mesa aqui é bran-ca' possui alguma profunda vantagem sobre o enunciado 'Esta mesa aqui é

 branca', do ponto de vista da epistemologia. Mas do ponto de vista da ava-liação dos seus possíveis testes objetivos, o primeiro enunciado, ao falar sobremim, não parece mais seguro do que o segundo, que fala a respeito da mesaaqui" (Logik der Forschung, 1934, seção 27). Neurath faz um comentário carac-teristicamente estúpido acerca desse trecho: "Para nós esses enunciados proto-colares têm a vantagem de ter maior estabilidade. Podemos conservar o enun-ciado 'As pessoas no século XVI viram espadas de fogo no céu' ao mesmotempo que riscamos 'Havia espadas de fogo no céu'" (Neurath, "Pseudoratio-nalismus der Falsifikation", 1935, p. 362).

192

rística, o próprio núcleo se teria tornado bem corroborado244

e, por-tanto, qualificado como teoria "obse rvacional" ou interpretativa. Masnesse caso B2não será visto como mera reinterpretação teórica de B 1 ,

e sim como um fato novo por méritos próprios.

Tais considerações emprestam nova ênfase ao elemento retros- pectivo de nossas avaliações e conduzem a uma liberalização subse-

qüente de nossos padrões. Um novo programa de pesquisa queacabasse de entrar na competição poderia começar explicando "fatosantigos" de um modo novo, mas poderia levar muito tempo para pro-duzir fatos "genuinamente novos". Por exemplo, a teoria cinética docalor pareceu ir, durante décadas, a reboque dos resultados da teoriafenomenológica antes de alcançá-la finalmente com a teo ri a de Eins-tein-Smoluchowski do movimento browniano, em 1905. Depois disso,o que antes parecera uma reinterpretação especulativa de fatos velhos(acerca do calor, etc.) revelou-se uma descobe rta de fatos novos(acerca de átomos).

Tudo isso dá a entender que não devemos pôr de lado um pro- grama de pesquisa incipiente só porque não conseguiu, até esse mo-

mento, alcançar poderoso rival. Não devemos abandoná-lo se ele, supondo-se que o rival não estivesse presente, constituísse uma trans-

 ferência progressiva de problemas245

E devemos, por certo, considerar 

um fato recém-interpretado como um fato novo, ignorando as inso-lentes pretensões à prioridade de coletores amadores de fatos. Enquan-

to um programa incipiente de pesquisa puder ser racionalmentereconstruído como transferência progressiva de problemas, deverá ser resguardado durante algum tempo de um poderoso rival estabelecido.

246 

Tais considerações, de um modo geral, ressaltam a importânciada tolerância metodológica, e deixam ainda sem resposta a perguntasobre como são eliminados os programas de pesquisa. O leitor pode

244.  Esta observação, a propósito, define um `grau de corroboração' paraos núcleos irrefutáveis' dos programas de pesquisa. A teoria de Newton (iso-lada) não tinha conteúdo empírico e, no entanto, nesse sentido era altamentecorroborada.

245. A propósito, na metodologia dos programas de pesquisa, o signifi-cado pragmático de "rejeição" [de um programa] torna-se cristalinamenteclaro: significa a decisão de parar de trabalhar nele.

246. Alguns podem considerar — cautelosamente — esse período abri-gado de desenvolvimento como "pré-científico" (ou "teórico"); e só estão pre-

 parados para reconhecer-lhe o caráter verdadeiramente científico (ou "empí-rico") quando ele começa a produzir fatos "genuinamente novos" — mas, nessecaso, o seu reconhecimento terá de ser retroativo.

193 

é d fi d d d d à f libilid d lib lique ele precisa para reabilitar-se é produzir uma enésima-primeira

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até desconfiar de que tanto destaque dado à falibilidade liberaliza, oumelhor, abranda nossos padrões a ponto de imbuir-nos de ceticismoradical. Até as célebres "experiências cruciais", nesse caso, não terãoforça para derrubar um programa de pesquisa; tudo vale 2 47

Mas essa desconfiança é infundada. Dentro de um programa de pesquisa as "experiências cruciais menores" entre versões subseqüentessão muito comuns. As experiências "decidem" facilmente entre enési-ma e enésima-primeira versão científica, visto que a enésima-primeiranão somente é inconsistente com a enésima, mas também a suplanta.Se a enésima-primeira versão possui mais conteúdo corroborado à luzdo mesmo programa e à luz das mesmas teo rias observacionais bemcorroboradas, a eliminação é um assunto relativamente de rotina (sórelativamente, pois mesmo aqui a decisão pode estar sujeita a umaapelação). Os processos de apelação também são ocasionalmente fá-ceis: em muitos casos a teoria observacional contestada, longe de ser 

 bem corroborada, é de fato uma suposição mal expressa, ingênua,"escondida"; só a contestação revela a existência da suposição oculta,e lhe provoca a expressão, o teste e a queda. Vez por outra, contudo,as próprias teorias observacionais estão inseridas em algum programade pesquisa e, nesse caso, o processo de apelação conduz um choque

entre dois programas: em tais circunstâncias podemos precisar deuma "experiência crucial importante".

Quando dois programas de pesquisa competem entre si, seus primeiros modelos "ideais" geralmente tratam de diferentes aspectosda questão (assim, por exemplo, o primeiro modelo da ótica simicor-

 puscúlar de Newton descrevia a refração da luz, o primeiro modeloda ótica ondulatória de Huyghens descrevia a interferência luminosa).À medida que se expandem, os programas de pesquisa rivais invadem, pouco a pouco, o território uns dos outros e a enésima versão do pri-meiro será flagrantemente, dramaticamente incompatível com a enési-ma versão do segundo 2 48 Realiza-se repetidamente uma experiência e,como resultado, enquanto o primeiro é derrotado nessa batalha, o se-

gundo vence. Mas a guerra não acabou: a qualquer programa de pesquisa é lícito sofrer algumas derrotas dessa natureza. A ú ni ca deC.olsd 

247. Incidentalmente, pode dizer-se com razão que o conflito entre a fali- bilidade e a crítica é o problema principal — e a força propulsora — do pr o-grama da pesquisa popperiano na teoria do conhecimento.

248. Um caso especialmente interessante de competição dessa naturezaé a simbiose competitiva, quando se enxerta um programa novo num progra-ma velho, incompatível com ele; cf. mais acima, p. 174.

194

q p p p pversão (ou n + k) aumentadora de conteúdo e uma verificação de

 parte do seu novo conteúdo.Se a reabilitação, depois de um esforço sustentado, não se ve-

rificar, a guerra estará perdida e. a experiência original será vista,retrospectivamente, como tendo sido "crucial". Mas se o programaderrotado for um programa jovem, que se desenvolve depressa, e sedecidirmos dar suficiente crédito aos seus êxitos pré-científicos, expe-riências pretensamente cruciais dissolver-se-ão uma depois da outrana esteira da sua investida. Mesmo que seja um programa velho, es-tabelecido e "cansado", perto do seu "ponto natural de saturação",249

o programa derrotado pode continuar a resistir por muito tempo e amanter-se com engenhosas inovações aumentadoras de conteúdo, aindaque estas não sejam com o sucesso empírico. E muito difícil derrotar um programa de pesquisa sustentado por cientistas talentosos e ima-ginativos. Alternativamente, defensores teimosos do programa derro-tado podem oferecer explicações ad hoc das experiências ou uma"redução" ad hoc do programa vitorioso ao programa derrotado. Masdevemos rejeitar tais esforços comoLnão-científicos.25o

 Nossas considerações explicam por que experiências cruciais só são vistas como cruciais décadas mais tarde. De um modo geral, as

elipses de Kepler só foram admitidas como prova crucial a favor de Newton e contra Descartes uns cem anos depois da reivindicação de Newton. O comportamento anômalo do periélio de Mercúrio foi co-nhecido, durante decênios, como uma das muitas dificuldades aindanão resolvidas do programa de Newton; mas só o fato de que a teoriade Einstein o explicava melhor transformou uma aborrecida anomalianuma brilhante "refutação" do programa de pesquisa de Newton2

51

249.  Não existe essa coisa que se poderia denominar "ponto natural desaturação"; em meu ensaio, "Proofs and Refutations", 1963-4, sobretudo nas

 páginas 327-8, eu era mais hegeliano e supunha que existisse; agora uso aexpressão com ênfase irônica. Não há uma limitação predizível nem determi-nável que se possa impor à imaginação humana na invenção de novas teorias

aumentadoras de conteúdo, nem à "astúcia da razão" (List der Vernunft) norecompensá-las com algum sucesso empírico ainda que elas sejam falsas ouainda que a nova teoria tenha menos verossimilhança — no sentido de Popper 

 — do que a sua predecessora. (Provavelmente todas as teorias científicas já proclamadas pelos homens são falsas: ainda assim poderão ser recompensadas pelo sucesso empírico e até apresentar uma crescente verossimilhança.)

250. Sobre um exemplo, cf. mais acima, p. 155, nota de rodapé n.° 140.251. Dessa maneira, uma anomalia num programa de pesquisa é um

fenômeno que consideramos como algo que deve ser explicado em função do programa. De um modo mais geral, podemos falar, seguindo Kuhn, acerca de

19 5

 

Young afirmou que sua experiência da dupla fenda em 1802 constituiu f i tit t d H l h lt B li d 1881 D d

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Young afirmou que sua experiência da dupla fenda em 1802 constituiuuma experiência crucial entre o programa corpuscular e o programaondulatório da ótica; sua afirmação, todavia, só foi reconhecida muitomais tarde, depois que Fresnel desenvolveu o programa ondulatóriomuito mais "progressivamente" e se tornou claro que os newtonianosnão poderiam igualar-lhe a força heurística. A anomalia, já conhecidahavia décadas, só recebeu o título honorífico de refutação, e a expe-riência o de"experiência crucial", depois de um longo período de

desenvolvimento desigual dos dois programas rivais. O movimento browniano esteve, durante quase um século, bem no meio do campode batalha antes de ser visto derrotando o programa de pesquisa fe-nomenológica e fazendo pender a balança da guerra em favor dosatomistas. A "refutação" da série de Balmer feita por Michelson foiignorada por toda uma geração até que o triunfante programa de pes-quisa de Bohr passou a dar-lhe o necessário apoio.

Talvez valha a pena esmiuçar alguns exemplos de experiênciascujo caráter "crucial" só se tornou manifesto a posteriori. Examinarei primeiro a célebre experiência de Michelson e Morley em 1887, que,segundo se diz, falseou a teoria do éter e "conduziu à teo ri a da relati-vidade"; depois, as experiências de Lummer e Pringsheim, as quais,

afirma-se, falsearam a teoria clássica da radiação e "conduziram àteoria quântica".252

Finalmente, discutirei uma experiência que muitosfísicos imaginaram que se revela ria contrária às leis da conse rv açãomas que, na verdade, acabou sendo sua mais triunfante corroboração.

(d 1) Aexperiência de Michelson e Morley

Michelson foi o primeiro a idear uma experiência no intuito de pôr à prova as teorias contraditórias de Fresnel e Stokes acerca dainfluência do movimento da terra sobre o éter,

253durante a visita que

"enigmas": um "enigma" num programa é um problema que encaramos comoum desafio a esse programa. Um "enigma" pode ser resolvido de três maneiras:

 solucionando-o dentro do programa original (a anomalia transforma-se em exem- plo); neutralizando-o, isto é, solucionando-o dentro de um programa indepen-dente, indiferente (a anomalia desaparece); ou, por mim, solucionando-o dentrode um programa rival (a anomalia converte-se num exemplo contrário).

252. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30.253. Cf. Fresnel, "Lettre à François Arago sur l'Influence du Mouve-

ment Terrestre dans quelques Phénomènes Optiques", 1818; Stokes, "On theAberration of Light", 1845, e "On Fresnel's Theory of the Aberration of Light",1846. Sobre uma excelente e breve expor cão cf. Lorentz, Versuch einer Theo-rie der electrischen und optischen Ers inungen in bewegten Kárpen, 1895.

196

fez ao instituto de Helmholtz em Berlim no ano de 1881. De acordocom a teoria de Fresnel, a terra se move através de um éter em repou-so, mas o éter dentro da terra é parcialmente carregado com ela; ateoria de Fresnel, por conseguinte, exigia que a velocidade do éter fora da terra em relação à terrà fosse positiva (isto é, supunha aexistência de um "vento de éter"). De acordo com a teoria de Stokes,a terra arrastava o éter e imediatamente sobre a sua superfície a ve-locidade do éter era zero (isto é, não havia vento de éter na super-

fície). Stokes julgou, a princípio, que as duas teo ri as eram observacio-nalmente equivalentes; com adequadas suposições auxiliares, por exemplo, ambas explicavam a aberração da luz. Michelson, porém,

 proclamava que sua experiência de 1881, experiência c rucial entreas duas, provava a teoria de Stokes 2 54Sustentava ele que a velocidadeda terra em relação ao éter era muito menor do que a supunha ateoria de Fresnel. Na realidade, concluía que de sua experiência "seinfere a conclusão necessária de que a hipótese [de um éter estacio-nário] é errôneo. Essa conclusão contradiz frontalmente a explicaçãodo fenômeno da aberração, o qual... pressupõe que a terra se moveatravés do éter, permanecendo este em repouso"255Como acontecefreqüentemente, Michelson, o experimentador, recebeu uma lição deum teórico. Lorentz, o principal físico teórico do período, no queMichelson descreveu mais tarde como "uma análise muito circuns-tanciada... de toda a experiência", 256

mostrou que Michelson "in-terpretou erroneamente" os fatos e que o que ele observara, com efeito,não contrariava a hipótese do éter estacionário. Lorentz demonstrouque os cálculos de Michelson estavam errados; a teo ri a de FresneI predizia apenas a metade do efeito que Michelson calculara. Lorentzconcluiu que a experiência de Michelson não refutava a teoria deFresnel e tampouco provava a de Stokes. Lorentz prosseguiu mostran-do que a teoria de Stokes era inconsistente: presumia que o éter àsuperfície da terra estava em repouso em relação a esta última e exi-gia que a velocidade relativa tivesse um potencial; mas as duas condi-ções são incompatíveis. Entretanto, ainda que Michelson tivesse

refutado uma teoria do éter estacionário, o programa continua ria in-tocado: podem-se imaginar facilmente várias outras versões do pro-grama do éter, que predizem valores muito pequenos para os ventos

254. Isso transpira, obliquamente, da seção final do seu ensaio de 1881intitulado, "The Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether".

255. Michelson, "The Relative Motion of the Earth and the Luminife-rous Ether", 1881, p. 128. 0 grifo é meu.

256. Michelson e Morley, "On the Relative Motion of the Earth andthe Luminiferous Ether", 1887, p. 335.

197

 

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de éter e ele, Lorentz, imediatamente produziu a sua. A teoria testávele Lorentz submeteu-a, orgulhosamente, ao veredito da experiência.

257

Michelson, juntamente com Morley, aceitou o desafio. A velocidaderelativa da terra no tocante ao éter pareceu de novo ser zero, contra-riando a teoria de Lorentz. Desta vez, porém, mais cauteloso na in-terpretação dos seus dados, Michelson até pensou na possibilidade deque o sistema solar pudesse ter-se movido como um todo na direçãooposta à da terra; portanto, decidiu repetir a experiência "a interv alosde três meses e, assim, evitar toda e qualquer incerteza" 2 58Em seusegundo trabalho, Michelson já não fala em "conclusões necessárias"nem em "contradições diretas". Apenas é de opinião que, da sua ex- periência, "parece, de tudo o que precede, razoadamente certo que,se houver algum movimento relativo entre a terra e o éter luminífero,este terá de ser  pequeno; suficientemente pequeno para refutar detodo a explicação de Fresnel da aberração"259Assim, nesse trabalho,Michelson ainda afirma ter refutado a teoria de Fresnel (e também anova teoria de Lorentz); mas nele não se lê uma única palavra acer-ca de sua velha afirmativa, feita em 1881, de que refutara "a teo ri ado éter estacionário" em geral. (Pois acreditava que, para poder fazê-lo, ser-lhe-ia preciso testar o vento do éter também em grandes altitu-

des, "no pico de uma montanha isolada, por exemplo".

260

Ao passo que alguns teóricos do éter -- como Kelvin — nãose fiavam da "habilidade experimental",261de Michelson, Lorentzassinalou que, apesar da afirmativa ingênua de Michelson, nem a sua

257. Lorentz, "De 1'lnfiuence du Mouvement de la Terra sur les Phéno-mènes Lumineux", 1886. Sobre aincompatibilidade da teoria de Stokes, cf.também o ensaio de Lorentz de 1892 intitulado, "Stokes' Theory of Aberra-tion".

258. MichelsoneMorley, "On the Relative Motion of the Earth andthe Luminiferous Ether", 1887, p. 341. Mas Pearce Williams assinala que elenunca o fez. (Pearce Williams, Relativity Theory: Its Origins and Impact onModern Thought, 1968, p. 34.)

259.  Ibid. p. 341. 0grifo é meu.260. MichelsoneMorley, "On the Relative Motion of the Earth and

the Luminiferous Ether", 1887. Como se depreende desse reparo, Michelsoncompreendia que sua experiência de1887 era perfeitamente compatível comumventodeéter mais alto. Em seu trabalho de1920, isto é, trinta e trêsanos mais tarde, Max Born afirmou que da experiência de1887 "precisamosconcluir que o vento deéter não existe". ( O grifo é meu.)

261. Kelvin dissenoCongresso Internacional deFísicade1900 que "aúnica nuvem [existente] nocéu claro da teoria ,[do éter] era oresultado nuloda experiência Michelson-Morley" (cf. Miller, "Ether-Drift Experiments at MountWilson", 1925) e imediatamente persuadiu Morley eMiller, que ali estavam,arepetir aexperiência.

19 8

nova experiência "fornece subsídios para a questão pela qual foi em- preendida".262Pode considerar-se a teoria de Fresnel perfeitamentecomo uma teoriainterpretativa, que interpreta os fatos, em lugar deser refutável por eles e, como Lorentz mostrou, "a importância daexperiência de Michelson e Morley reside antes no fato de poder elaensinar-nos alguma coisa sobre as mudanças das dimensões" 

263:asdimensões dos corpos são afetadas pelo seu movimento através doéter. Lorentz elaborou essa "transferência criativa" dentro do progra-ma de Fresnel com grande engenho e por essa maneira afirmou haver "afastado a contradição entre a teoria de Fresnel e o resultado deMichelson".264Mas admitiu que, "sendo a natureza das forças mo-leculares inteiramente desconhecidas para nós, é impossível testar ahipótese"; 265 pelo menos por enquanto ela não pode predizer fatosnovos.

266

262. Lorentz, "The Relative Motion of the Earth and the Ether", 1892.263.  Ibid. O grifo é meu.264. Lorentz, Versuch einer Theorie der electrischen and optischen Ers•

cheinungen in bewegten Kõrpern, 1895.265. Lorentz, "Stokes' Theory of Aberration", 1892.266. Ao mesmo tempo,

independentemente de Lorentz, Fitzgerald pro-duziu uma versão testável dessa "transferência criativa" que foi logo refutada pelas experiências de Trouton, Rayleigh eBrace: era teórica mas não empi-ricamente progressiva. Cf. Whittaker, From Euclid to Eddington, 1947, p. 53 eWhittaker, History of the Theories of Aether and Electricity, vol. II, 1953,

 pp. 28-30.Existe uma concepção amplamente difundida da "ad hocidade" da teoria

de Fitzgerald. Mas os físicos contemporâneos queriam dizer que a teoria eraad hoc, (cf. mais acima, p. 152, nota derodapé n.° 136): que não havia "evidên-cia independente [positivo] " dela. (Cf. por exemplo, Larmor "On the Ascer-tained Absence of Effects of Motion through the Aether, in Relation to theConstitution of Matter, and on the Fitzgerald-Lorentz Hypothesis", 1904, p.624.) Mais tarde, sob ainfluência de Popper, o termo "ad hoc" foi principal-mente usado nosentido de ad hoc,, quenão havia teste independente possível

 para ele. Mas, como mostramas experiências refutantes, éumerro proclamar,como faz Popper, que ateoria de Fitzgerald era ad hoc, (cf. Popper, Logik 

der Forschung, 1934, seção 20). Isso mostra mais uma vez ai mportância deseparar ad hoc, dead hoc,.Quando Grünbaum, em seu ensaio de 1959, "The Falsifiability of the

Lorentz-Fitzgerald Contraction Hypothesis", mostrou o erro de Popper, esteo reconheceu, mas replicou que a teoria de Fitzgerald era, sem dúvida, maisad hoc doquea de Einstein (Popper, "Testability and 'ad-Hocness' of theContraction Hypothesis", 1959), e que isso proporciona outro " .excelenteexemplo de`graus dead hocidade' e deuma das principais teses do[seu] livro

 — que os graus dead hocidade se relacionam (inversamente) com os grausde testabilidade e importância". Adiferença, porém, não é simplesmente umaquestão degraus dead hocidade, única que pode ser medida pela testabilidade.Cf. tambémmais adiante, p. 216.

199 

N i t l 1897 Mi h l l b iê i l t t h i f t d t i d F l é ifi d

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 Nesse intervalo, em 1897, Michelson levou a cabo a experiêncialongamente planejada de medir a velocidade do vento do éter no topodas montanhas. Não encontrou nenhum. Como supusera haver provadoa teoria de Stokes que predizia um vento de éter a uma altitude maior,sentiu-se perplexo. Se a teoria de Stokes continuasse correta, o gra-diente da velocidade do éter teria de ser muito reduzido. Michelsonteve de concluir que "a influência da terra sobre o éter se estendiaa distâncias da ordem do diâmetro da terra" 267Supôs que este fosse

um resultado "improvável" e concluiu que, em 1887, obtivera a con-clusão errada da sua experiência: era a teoria de Stokes que deviade ser rejeitada e a de Fresnel que devia de ser aceita; e decidiuaceitar qualquer hipótese auxiliar razoável para salvá-la, incluindo ateoria de Lorentz de 1892. 268Agora parecia preferir a contração Fitz-gerald-Lorentz e, por volta de 1904, seus colegas em Case estavamtentando descob rir se essa contração varia com materiais diferentes 269

Enquanto a maioria dos físicos tentava interpretar as experiên-cias de Michelson dentro da estrutura do programa do éter, Einstein,sem tomar conhecimento de Michelson, Fitzgerald e Lorentz, mas es-ti mulado sobretudo pela crítica de Mach dirigida à mecânica newto-niana, chegou a um novo e progressivo programa de pesquisa. 270Esse

novo programa não só "predisse" e explicou o resultado da experiênciade Michelson e Morley mas também vaticinou uma série imensa defatos com os quais até então ninguém sonhara e que obtiveram dra-máticas corroborações. Só então, vinte e cinco anos depois, veio aexperiência de Michelson e Morley a ser encarada como "a maior experiência negativa da história da ciência".27Mas isso não poderiaser visto instantaneamente. Ainda que a experiência fosse negativa,uma coisa não ficara muito clara: negativa exatamente em relação aoquê? Além disso, em 1881, Michelson também a julgava positiva:

ele sustentava que havia refutado a teoria de Fresnel, porém verificado

a de Stokes. O próprio Michelson e depois Fitzgerald e Lorentz ex- plicaram o resultado positivamente dentro do programa do éter. 272

Como se dá com todos os resultados experimentais, sua negatividadeem relação ao programa velho só mats tarde foi estabelecida, pela lentaacumulação de tentativas ad hoc para explicá-la dentro do velho pro-grama em fase de degeneração e pelo gradativo estabelecimento deum novo e vitorioso programa progressivoem que ela se tornou um

caso positivo. Mas a possibilidade de reabilitação de alguma pa rte do programa velho "que degenerava" nunca poderia ser excluída ra-cionalmente.

Só um processo extremamente difícil e indefinidamente longo pode estabelecer um programa de pesquisa capaz de suplantar o seurival; e não convém empregar a expressão "experiência crucial" comexcessiva precipitação. Mesmo quando se vê eliminado pelo seu pre-decessor, um programa de pesquisa não é eliminado por uma expe-riência "crucial"; e ainda que uma experiência crucial desse gêneroseja mais tarde posta em dúvida, o novo programa de pesquisa não

 pode ser sustado sem uma vigorosa e progressiva ascensão do velho programa

273

A negatividade e a importância da experiência de Mi-

chelson e Morley residem sobretudo na transferência progressiva nonovo programa de pesquisa a que ele veio emprestar poderoso apoio,e sua "grandeza" é apenas um reflexo da grandeza dos dois  programas

envolvidos.Seria interessante fazer uma análise minuciosa das transferências

rivais envolvidas nas fortunas declinantes da teoria do éter. Mas soba influência do falseacionismo ingênuo, a fase degenerativa mais inte-ressante da teoria do éter, depois da "experiência crucial" de Michel-

272. De fato, o excelente compêndio de física de Chwolson dizia, em1902, que a probabilidade da hipótese do éter estava à beira da certeza. (Cf.Einstein, "Ober die Entwicklung unserer Anschauungen über das Wesen unddie Konstitution der Strahlung", 1909, p. 817.)

273. Polanyi conta-nos, com gusto, que, em 1925, em seu discurso pre-sidencial pronunciado perante a American Physical Society, Miller anunciou possuir, a despeito dos relatórios de Michelson e Morley, "esmagadora evi-dência" de um redemoinho de éter; apesar de tudo, o público se manteve fielà teoria de Einstein. Polanyi tira disso a conclusão de que nenhuma "estru-tura objetivista"' pode ser responsabilizada pela aceitação ou rejeição de teo-rias por parte do cientista (Polanyi,  Personal Knowledge, Towards a Post-critical Philosophy, 1958, pp. 12-14). Minha reconstrução, todavia, faz da tena-cidade do programa de pesquisa einsteiniano, em face da pretensa evidênciacontrária, um fenômeno completamente racional e por esse modo solapa amensagem mística e "pós-crítica" de Polanyi.

267. Michelson, "On the Relative Motion of the Earth and the Ether",1897, P. 478.

268. Lorentz, com efeito, comentou de pronto: "Embora [Michelson]considere improvável uma influência de tão longo alcance da terra, eu, aocontrário, aesperaria" (Lorentz, "Concerning the Problem of the DraggingAlong of the Ether by the Earth"; o grifo émeu).

269. Morley e Miller, Carta e Kelvin, 1904.270. Houve considerável controvérsiaarespeitodos antecedenteshistó-

rico-heurísticos da teoria de Einstein, à luz da qual este enunciado pode reve-lar-se falso.

271. Bernal, Science in History, 1965, p. 530. Para Kelvin, em 1905, foiapenas uma "nuvem nocéu claro"; cf. mais acima, p. 198,notade pé de

 página, 261.

200 201

 

O fato de avaliarmos retrospectivamente as experiências explica

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son, é simplesmente ignorada pela maioria dos einsteinianos. Acre-ditam eles que a experiência de Michelson e Morley, sozinha, derrotoua teoria do éter, cuja tenacidade se deveu exclusivamente ao conserva-cionismo obscurantista. Por outro lado, o período pós-Michelson dateo ria do éter é examinado com espírito crítico pelos antieinsteinianos,

 para os quais a teoria do éter não sofreu revés algum: o que é bomna teoria de Einstein estava essencialmente na teoria do éter de Lorentz

e a vitória de Einstein só se deve à moda positivista. Na realidade, porém, a longa série de experiências de Michelson de 1881 a 1935,realizadas com a finalidade de pôr à prova versões subseqüentes do

 programa do éter, fornece um exemplo fascinante de transferênciadegenerativa de problemas.274(Mas os programas de pesquisa podemsair de depressões degenerativas. Todos sabem que a teoria do éter de Lorentz pode ser facilmente fortalecida de maneira que se torna,nurn sentido interessante, equivalente à teoria do não-éter de Eins-tein.275No contexto de uma "transferência criativa" importante oéter ainda pode voltar.276)

274. Um sinal típico da degeneração de um programa, não discutidoneste ensaio, é a prolifera0o de "fatos" contraditórios. Usando uma teoria

 falsa como teoria interpretativa, podem conseguir-se — sem comentar nenhum"equívoco experimental" — proposições fatuais contraditórias, resultados expe-rimentais incongruentes. Michelson, que se manteve fiel ao éter até o fim,viu-se principalmente frustrado pela incompatibilidade dos fatos que obteve

 por intermédio das suas mensurações ultraprecisas. Sua experiência de 1887"mostrou" que não havia vento de éter sobre a superfície da terra. Mas aaberração "mostrou" que havia. Ademais, sua própria experiência de 1925 (oununca mencionada ou, como no trabalho de Jaffe em 1960, Michelson and theSpeed of Light, apresentada incorretamente) também "provou" que havia (cf.Michelson e Gale, "The Effect of the Earth's Rotation on the Veloci ty of Light", 1925, e, sobre uma crítica aguda, Runge, "Ather und Relativitãtstheo-rie", 1925).

275. Cf. por exemplo Ehrenfest, "Zur Krise der Lichtãther-Hypothese",1913, pp. 17-18, citado e discutido por Dorling em seu ensaio de 1968, "LenghtContraction and Clock Synchronisation: The Er Tirical Equivalence of the

Einsteinan aü Lorentzian Theories". Não se deve esquecer, contudo, que duasteorias específicas, embora matemática (e observacionalmente) equivalentes, po-dem estar engastadas em diferentes programas de pesquisa rivais, e a força daheurística positiva desses programas pode ser diferente. Esse ponto foi passado por alto pelos que propuseram tais provas de equivalência (um bom exemploé a prova de equivalência entre o enfoque da física quântica de Schrõdinger eo de Heisenberg). Cf. também mais acima, p. , nota de pé de página n"

276. Cf. por exemplo Dirac, "Is there an Aether?", 1951: "Se reexami-namos a questão à luz do conhecimento atual, descobriremos que o éter já nãoé excluído pela relatividade, podemos agora apresentar boas razões para pos-tular um éter." Cf. também o parágrafo final de Rabi, "Atomic St ructure",1961, e Prokhovnik, The Logic of Special Relativity, 1967.

202

p p p por que, entre 1881 e 1886, a experiência de Michelson não foi sequer mencionada na literatura. Com efeito, quando um físico francês, Po-tier, mostrou a Michelson o seu erro de 1881, Michelson decidiu não publicar uma nota de correção. Ele explica o motivo dessa decisãonuma carta a Rayleigh em março de 1887: "Tenho tentado repetida-mente, mas debalde, interessar meus amigos científicos nessa experiên-cia, e nunca publiquei a correção (envergonho-me de confessá-lo)

 por sentir-me desanimado pela pouca atenção que o trabalho recebia,e não achar que valesse a pena." 27Essa carta, a propósito, foi aresposta a uma carta de Rayleigh chamando a atenção de Michelson

 para o trabalho de Lorentz, que desencadeou a experiência de 1887.Mas mesmo depois de 1887, e até depois de 1905, não se consideravaa experiência de Michelson e Morley, de um modo geral, como ref u-tação da existência do éter, e com muita razão. Isso talvez explique

 por que Michelson não recebeu o seu Prêmio Nobel (em 1907), por "refutar a teoria do éter", mas "por seus instrumentos óticos de pre-cisão e pelas investigações espectroscópicas e metodológicas levadasa efeito com a ajuda deles"

278;e por que a experiência de Michelsone Morley não foi sequer mencionada nos discursos de apresentação.Em sua Nobel Lecture,Michelson não fez alusão a ela; e calou o

fato de que, embora pudesse haver originalmente ideado seus instru-mentos para medir com precisão a velocidade da luz, viu-se compe-lido a aprimorá-los para testar algumas teorias específicas do éter,tendo sido a "precisão" da sua experiência de 1887 motivada, emgrande parte, pela crítica teórica de Lorentz: fato que a literaturacontemporânea clássica nunca menciona.

276

Finalmente, tendemos a esquecer que, ainda que a experiênciade Michelson e Morley tivesse mostrado a existência de um "vento

277. Shankland, "Michelson-Morley Experiment", 1964, p. 29.278. 0 grifo é meu.279. 0 próprio Einstein tendia a acreditar que Michelson inventara o

seu interferômetro com a finalidade de testar a teoria de Fresnel. (Cf. Einstein,"Gedenkworte auf Albert A. Michelson", 1931.) A propósito, as primeirasexperiências de Michelson acerca das linhas do espectro — como o seu ensaio"On the Application of Interference Methods to Spectroscopic Measurements,I-II", 1891-2 — foram também importantes para as teorias do éter do seutempo. Michelson só superenfatizava o seu sucesso em "mensurações precisas"quando se via frustrado pela falta de êxito no avaliar-lhes a importância paraas teorias. Einstein, que não gostava da precisão por amor da precisão, per-guntou-lhe por que dedicava a ela tanta energia. A resposta de Michelson foi"porque a achava divertida". (Cf. Einstein, Carta a Shreidinger de 31 .5. 1928.)

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clássicas da fórm la de Planck Na re nião de 1913 da Associação

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de éter", o programa de Einstein poderia ter sido vitorioso. QuandoMiller, ardente defensor do clássico programa do éter, publicou suasensacional afirmação de que a experiência de Michelson e Morleyestava sendo feita com desleixo e que de fato havia um vento de éter,o noticiarista de Science escreveu, jubiloso, que "os resultados doProfessor Miller derrubam radicalmente a teoria da relatividade" 2 70

 No entender de Einstein, contudo, ainda que Miller tivesse relatadoo verdadeiro estado de coisas " [só] a forma atual da teoria da relati-vidade" teria de ser abandonada 2 81 Com efeito, Synge assinalou queos resultados de Miller, mesmo tomados pelo seu valor aparente, nãoconflitam com a teoria de Einstein: o que conflita é a explicação deMiller. Pode substituir-se com facilidade a teoria auxiliar de corposrígidos existente por uma teoria nova, de Gardner e Synge e, nessecaso, os resultados de Miller serão totalmente digeridos pelo programade Einstein.282

(d 2) As experiências de Lummer e Pringsheim

Discutamos outra chamada experiência crucial. Planck afirmavaque as experiências de Lummer e Pringsheim, que "refutavam" asleis da radiação de Wien, Rayleigh e Jeans no princípio do século"conduziram" — ou "até deram origem" — à teoria quântica. 288Maisuma vez, porém, o papel dessas experiências é muito mais complicadoe está perfeitamente de acordo com o nosso enfoque. Não se tratasimplesmente de que as experiências de Lummer e Pringsheim puseramfi m ao enfoque clássico, mas que também foram muito bem explica-das pela física quântica. De um lado, algumas versões primitivas dateoria quântica de Einstein exigema lei de Wein e, portanto, não forammenos refutadas pelas experiências de Lummer e Pringsheim do quea teoria clássica284Por outro lado se ofereceram várias explicações

280. Science, 1925.281. Einstein, "Neue Experimenteüber den Einfluss der Erdbewegung

auf die Lichtgeschwindigkeit relativ zur Erde", 1927. 0 grifoémeu.

282. Synge, "Effects of Acceleration in the Michelson-Morley Experi-ment", 1952-4.283. Planck, "Zwanzig Jahre Arbeit am Physikalischen Weltbilt", 1929.

 Na seção30 de sua Logik der Forschung, 1934, e à p. 37 do seu Thirty Yearsthat Shook Physics, 1966, Popper e Gamow, respectivamente, utilizam-se dessalocução. Éevidente que os enunciadosdeobservação não "conduzem" aumateoria unicamente determinada.

284. Cf. Ter Haar, The Old Quantum Theory, 1967, p. 18. Um programade pesquisa quese desenvolve geralmente começa explicando "leis empíricas"

 já refutadas — e isso, à luz domeu enfoque, pode ser racionalmenteencaradocomo umsucesso.

clássicas da fórmula de Planck. Na reunião de 1913 da AssociaçãoBritânica para o Progresso da Ciência, por exemplo, houve uma reu-nião especial sobre radiação, à qual assistiram, entre outros, JeansRayleigh, J. J. Thompson, Larmor, Rutherford, Bragg, Poynting, Lo-rentz, Pringsheim e Bohr. Pringsheim e Rayleigh mantiveram-se estu-dadamente neutros em relação às especulações quânticas teóricas,mas o Professor Love "representava os pontos de vista mais velhos esustentava a possibilidade de explicar os fatos da radiação sem adotar 

a teoria dos quanta. Criticou a aplicação da teoria da eqüipartiçãoda energia, sobre a qual repousa parte da teoria quântica. A evidênciamáxima para a teoria quântica é a concordância com a experiênciada fórmula de Planck relativa à emissividade de um corpo negro. Do

 ponto de vista matemático pode haver muitas outras fórmulas queconcordariam igualmente com as experiências. Ventilou-se uma fór-mula devida a A. Korn, que deu resultados numa ampla esfera emostrou concordar tão bem com a experiência quanto a fórmula dePlanck. Numa afirmação adicional de que os recursos da teoria comum

não estão esgotados, ele mostrou que pode ser possível estender aoutros casos o cálculo, devido a Lorentz, da emissividade de uma cha-

 pa fina. Para esse cálculo nenhuma expressão analítica simples re-

 presenta os resultados em toda a série de comprimentos de ondas, e pode ser que, no caso geral, não exista nenhuma fórmula simplesaplicável a todos os comprimentos de ondas. A fórmula de Planck,com efeito, pode não ser nada mais que uma fórmula empírica." 285

Um exemplo de explicações clássicas deveu-se a Callendar: "A dis-cordância entre a conhecida fórmula de Wien e a experiência no to-cante à partição da energia em plena radiação explicar-se-á pronta-mente se supusermos que ela representa apenas a energia intrínseca.O valor correspondente da pressão deduz-se com muita facilidademediante referência ao princípio de Carnot, como Lorde Rayleighindicou. A fórmula que propus (Phil. Mag., outubro de 1913) é sim-

 plesmente a soma da pressão e da densidade da energia assim obtidas,

e concorda de modo muito satisfatório com a experiência, tanto noque concerne à radiação quanto no que concerne ao calor específico.Prefiro-a à fórmula de Planck (entre outras razões) por não se poder conciliar esta última com a termodinâmica clássica e envolver a con-cepção de um quantum, ou unidade indivisível de ação, que é inad-missível. Em minha teoria, a magnitude física correspondente, que

285. Nature, "Physics at the British Association", 1913-14.

204 205

 

denominei em outro lugar molécula de calórico, não é necessariamenteindivisível mas tem uma relação muito simples com a energia intrín- Bose-Einstein.289 A progressividade do novo desenvolvimento foi cla-

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indivisível, mas tem uma relação muito simples com a energia intrínseca do átomo, que é tudo o que se requer para explicar o fato de

 poder a radiação, em casos especiais, ser emitida em unidades atômi-cas, que são múltiplos de uma magnitude determinada." 286

É possível que estas citações tenham sido tediosamente longasmas, pelo menos, tornam a mostrar, de forma convincente, a ausênciade experiências cruciais instantâneas. As refutações de Lummer e

Pringsheim não eliminaram a abordagem clássica do problema daradiação. A situação pode ser melhor descrita se assinalarmos que afórmula "ad hoc" o riginal de Planck 287— que se ajustou aos dadosde Lummer e Pringsheim (e os corrigiu) — poderia ser explicada

 progressivamente pelo novo programa quântico teórico, 288ao passo

que nem sua fórmula "ad hoc", nem seus rivais "semi-empíricos" po-deriam ser explicados pelo programa clássico, exceto à custa de umatransferência degenerativa de problemas. A propósito, o desenvolvi-mento "progressivo" dependia de uma "transferência criativa": a subs-tituição (por Einstein) da estatística de Boltzman-Maxwell pela de

286. Callendar, "The Pressure of Radiation and Carnot's Principle", 1914.287. Estou-me referindo à fórmula de Planck tal como foi dada em seutrabalho de 1900, "Ober eine Verbesserung der Wienschen Spektralgleichung",em que ele admitiu que depois de haver tentado provar durante muito tempoque "a lei de Wien deve ser necessariamente verdadeira", a "lei" foi re futada.Por isso ele deixou de provar leis eternas sublimes para "construir expressõescompletamente arbitrárias". Claro está, todavia, que toda teoria física se revela"completamente arbitrária" pelos padrões justificacionistas. Com efeito, a fór-mula arbitrária de Planck contou essa parte da história em sua autobiografiacientífica.) E claro que, num sentido importante, a fórmula original da radiaçãode Planck era "arbitrária", "formal", "ad hoc": mais uma fórmula isolada quenão fazia parte do programa de pesquisa. (Cf. adiante, P. 217, nota de pé de

 página n.° 323.) Como ele mesmo o disse: "Ainda que se presuma a validadeabsolutamente precisa da fórmula da radiação, enquanto ela ocupar a posi-ção de uma lei descoberta por uma intuição feliz, não se poderá esperar que

 possua mais que uma importância formal. Por essa razão, no mesmo dia emque a formulei, principiei a dedicar-me à tarefa de conferir-lhe um verdadei-ro sentido físico" (Scientific Biography, p. 41). Mas a importância principal de"conferir à fórmula um sentido físico" — e não necessariamente um"verda-deiro sentido físico" — é que uma interpretação dessa natureza conduz comfreqüência a um programa sugestivo de pesquisa e ao crescimento.

288. Primeiro pelo próprio Planck, em seu ensaio de 1900, "Zur Theoriedes Gesetzes der Energieverteilung im Normalspektrum", que "fundou" o programa de pesquisa da teoria quântica.

206

p gríssima: na versão de Planck ele predizia corretamente o valor daconstante de Boltzman-Planck e na versão de Einstein predizia umasérie estonteante de fatos novos adicionais 290Mas antes da invençãodas novas hipóteses auxiliares do programa velho — novas, porémtristemente ad hoc —, antes do desenrolar do programa novo, e antesda descoberta dos novos fatos que indicavam uma transferência pro-gressiva de problemas neste último, a importância objetiva das expe-

riências de Lummer-Pringsheim era muito limitada.

(d 3 ) Desintegração beta versus leis da conservação.

Finalmente, contarei a história de uma experiência que quase setornou "a maior experiência negativa na história da ciência". A his-tória também ilustra as supremas dificuldades que encontramos paradecidir exatamente o que aprendemos com a experiência, o que esta"prova' e o que "refuta". A parte da experiência submetida a exameserá a "observação" da desintegração beta, de Chadwick, em 1914.A história mostra uma experiência apresentando, a princípio, um enig-ma de rotina num programa de pesquisa, depois quase promovida ao

 posto de "experiência crucial", e depois novamente rebaixada para

apresentar um (novo) enigma de rotina, tudo isso dependendo detodo o mutável panorama teórico e empírico. A maioria dos relatosconvencionais, confundidos por essas mudanças, prefere falsificar ahistória.

291

Quando Chadwick descobriu o espectro contínuo da desintegra-ção radioativa beta em 1914, ninguém supôs que esse curioso fenõ-meno tivesse alguma relação com as leis da conservação. Ofereceram-

289. Isso já tinha sido feito por Planck, mas apenas inadvertidamentee, por assim dizer, por engano. Cf. Ter Haar, The Old Quantum Theory, de1967, p. 18. Com efeito, o papel de Pringsheim e Lummer foi estimular aanálise crítica das deduções informais na teoria quântica da radiação, dedu-

ções carregadas de "lemas ocultos" vitais, expressos apenas no desenvolvimen-to subseqüente. Um passo importantíssimo nesse "proceso de articulação" foio de Ehrenfest, "Welche Züge der Lichtquantenhypothese spielen in der Theo-rie der Wãrmestrahlung eine wesentliche Rolle?", 1911.

290. Cf., por exemplo, a lista de 1910 de Joffé (Joffé, "Zur Theorie der Strahlungserscheinungen", 1911, p. 547).

291. Notável exceção parcial é o relato de Pauli (Pauli, "Zur ãlterenund neueren Geschichte des Neutrinos", 1958). Nas linhas que se seguemtento, ao mesmo tempo, corrigir a história de Pauli e mostrar que sua racio-nalidade pode ser facilmente vista à luz do nosso enfoque.

207

 

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se em 1922 duas engenhosas explicações rivais, ambas dentro da es-trutura da física atômica da época, uma de L. Meitner, outra de C. D.Ellis. De acordo com a Srta. Meitner, os elétrons eram, em parte,elétrons primários do núcleo e, em parte, elétrons secundários daenvoltória eletrônica. De acordo com o Sr. Ellis, eram todos elétrons

 primários. Ambas as teorias continham sofisticadas hipóteses auxilia-res, mas ambas predisseram fatos novos. Os fatos preditos se contra-

disseram uns aos outros e o testemunho experimental sustentou Elliscontra Meitner.292A Srta. Meitner apelou; o "tribunal de apelação"experimental recusou-lhe apoio, mas sentenciou que uma hipóteseauxiliar crucial da teoria de Ellis tinha de ser rejeitada. 293O resultadoda briga foi um empate.

Mesmo assim ninguém pensaria que a experiência de Chadwick desafiasse a lei da conservação da energia, se Bohr e Kramers, exa-tamente na ocasião da controvérsia entre Ellis e Meitner, não tivessemchegado à conclusão de que só poderiam desenvolver uma teoria coe-rente se renunciassem ao princípio da conservação da energia em processos simples. Um dos traços principais da fascinante teoria deBohr-Kramers-Slater em 1924 era que as leis clássicas da conservação

da energia e do momento tinham sido substituídas por leis estatísti-cas.294Essa teoria (ou, melhor, "programa") foi imediatamente "re-futada" e nenhuma das suas conseqüências corroborada; com efeito,nunca foi suficientemente desenvolvida para explicar a desintegração beta. Mas a despeito do abandono imediato do programa (não só por causa das "refutações" que lhe opuseram as experiências de Compton-Simon e de Bothe-Geiger, mas também por causa da emergência deum poderoso rival: o programa Heisenberg-Schrõdinger  295

),Bohr  permaneceu convencido de que as leis não-estatísticas da conservação

292. Ellis e Wooster, "The Average Energy of Desintegration of RadiumE", 1927.

293. Meitner e Orthmann, "Ober eine absolute Bestimmung der Ener-gie der primãren fj — Strahlen von Radium E", 1930.

294. Slater só cooperou com relutância no sacrifício do princípio deconservação. Escreveu a van der Waerden em 1964: "Como você suspeitava,a idéia da conservação estatística da energia e do momento foi posta emteoria por Bohr e Kramers, contrariando o meu ponto de vista." Van der Waerden faz comicamente o que pode para exonerar Slater do crime terrívelde ser responsável por uma teoria falsa (van der Waerde, Source of QuantumMechanics, 1967.

295. Popper não tem razão quando sugere que essas "refutações" foramsuficientes para provocar a derrocada da teoria. (Popper, Conjectures and 

 Refutations, p. 242.)

208

teriam de ser finalmente abandonadas e que a anomalia da desintegra-ção beta só seria explicada quando essas leis fossem substituídas; e,nessa ocasião, a desintegração beta seria vista como uma experiênciacrucial contrária às leis da conservação. Conta-nos Gamow que Bohr tentou usar a idéia da não-conservação da energia na desintegração beta para uma engenhosa explicação da produção aparentemente eter-na de energia nas estrelas 296Só Pauli, em seu anseio mefistofélico

de desafiar o Senhor, permaneceu conservador 297e engenhou, em1930, sua teoria do neut ri no para explicar a desintegração beta esalvar o princípio da conservação da energia. Comunicou sua idéianuma carta faceta dirigida a uma conferência em Tubingen — poisem vez de ir à conferência ele preferiu ficar em Zurique para assistir a um baile.298Aludiu a ela, pela primeira vez, numa conferência pú-

 blica em 1931 em Pasadena, mas não permitiu que a conferênciafosse publicada, porque se sentia "inseguro" em relação à idéia. Bohr,nessa ocasião (1932), ainda pensava que — pelo menos em físicanuclear — talvez fosse preciso "renunciar à própria idéia do equilíbrioda energia".299Pauli decidiu afinal publicar sua palestra sobre o neu-t rino, que pronunciou na conferência de Solvay em 1933, conquanto

" a recepção do congresso, excetuando-se dois jovens físicos, fossecét ca".300Mas a teoria de Pauli possuía méritos metodológicos. Salvounão só o princípio da conservação da energia mas também o princí- pio da conservação do spin e da estatística: explicava não só o espec-tro da desintegração beta mas também, ao mesmo tempo, a "anomalia

296. Gamow, Thirty Years that Shook Physics, 1966, pp. 724. Bohr nunca publicou essa teoria (que, tal como se achava não poderia ser testada)"mas tinha-se a impressão" — escreveu Gamow — "de que ele não ficariamuito surpreendido se ela fosse verdadeira". Gamow não precisa a data dateoria não-publicada, mas parece que Bohr se ocupou dela em 1928-9, quan-do Gamow trabalhava em Copenhague.

297. Cf. a divertida peça "Fausto" produzida no instituto de Bohr em1932; publicada por Gamow como apêndice do seu livro Thirty Years that Shook Phyhics, 1966.

298. Cf. Pauli, "Zur ãlteren und neueren Geschichte des Neutrinos",1958.

299. Bohr, "Light and Life", 1933. Ehrenfest também ficou do lado deBohr contra o neutrino. O descobrimento do nêutron, levado a efeito por Chadwick em 1932, abalou-lhes apenas levemente a oposição: eles ainda te-miam a idéia de uma partícula sem carga e até, possivelmente, sem massa(em repouso), e tendo apenas spin "desencorpado".

300. Wu, "Beta Decay", 1966.

209 

C d h lli " fl ê

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do nitrogênio".301Consoante os padrões Whewellianos, essa "confluên-cia de induções" deveria ter sido suficiente para estabelecer a respeita-

 bilidade da teoria de Pauli. De acordo, porém, com os nossos critérios,fazia-se mister a predição bem-sucedida de alguns fatos novos. Issotambém foi propiciado pela teoria de Pauli, que tinha uma conseqüên-cia observável interessante: se estivesse certa, os espectros-P teriamde ter uma área superior clara. Essa questão, na oportunidade, nãoficou decidida, mas Ellis e Mott passaram a interessar-se 302

e, logo,um aluno de Ellis, Henderson, mostrou que as experiências confirma-vam o programa de Pauli.303

Bohr não se deixou impressionar. Sabiaque, se se encetasse algum dia um programa importante baseado naconservação estatística da energia, o cinto crescente de hipóteses au-xiliares daria conta da evidência de aspecto mais negativo.

De fato, nesses anos, a maioria dos físicos mais notáveis supôsque na física nuclear as leis da conservação da energia e do aumentodeixariam de funcionar.

304A razão foi exposta claramente por Lise

Meitner, que só em 1933 admitiu a derrota: "Todas as tentativas paradefender a validade da lei da conservação da energia também em

 processos simples exigiam um segundo processo [na desintegração

 beta] . Mas esse processo não foi encontrado. . . " aos : isto é,o pro-grama de conservação relativo ao núcleo mostrava uma transferênciade problema empiricamente degenerativo. Fizeram-se diversas tenta-tivas engenhosas para explicar o espectro contínuo de emissão betasem presumir a existência de uma "partícula ladra". 306Embora tenham

301. Sobre uma fascinante discussão dos problemas abertos apresenta-dos pela desintegração beta e pela anomaliadonitrogênio, cf. aConferênciaFaraday de Bohr em 1930, lidaantes mas publicada depois da solução dePauli (Bohr, "Chemistry and the Quantum Theory of Atomic Constitution",1930, especialmente as pp. 380-3).

302. Ellis e Mott, "Energy Relations in the /3-Ray Type of RadioactiveDesintegrations", 1933.

303. Henderson, "The Upper Limits of the Continuous /3-ray Spectraof Thorium C and C"", 1934.304. Mott, "Wellennvechanik and Kernphysik", 1933. Heisenberg, no seu

célebre trabalho de 1932, emque apresentou omodelo próton-nêutron donúcleo, assinalou que "Emvirtude docolapso da conservação da energia nadecomposição beta não se pode dar uma definição única da energia aglutina

elétron dentro do nêutron" (p. 164).305. Meitner, "Kernstruktur", 1933, p. 132.306. Como, por exemplo, Thomson, "On the Waves associated with

/3-rays, and the Relation between Free Electrons and theis Waves", 1929, eKudar, "Der wellenmechanische Charakter des /3-Zerfalls, I-II-III", 1929-30.

210

sido discutidas com grande interesse,307essas tentativas foram aban-donadas porque não conseguiram estabelecer uma transferência pro-gressiva.

 Nesse ponto, Fermi entrou em cena. Em 1933-4 ele reinterpretouo  problema da emissão beta na estrutura do programa de pesquisade uma nova teoria quântica. Dessa maneira, deu início a um pequeno

e novo programa de pesquisa do neutrino (que mais tarde veio a ser o  programa das interações fracas). Calculou alguns dos primeirosmodelos toscos.

3° 8 Se bem sua teoria ainda não tivesse predito nenhumfato novo, deixou claro que isto era apenas uma questão de algumtrabalho futuro.

Dois anos se passaram e a promessa de Fermi ainda não se tinhacumprido. Mas o novo programa de física quântica desenvolveu-sedepressa, pelo menos no que dizia respeito aos fenômenos não-nuclea-res. Bohr convenceu-se de que algumas das idéias originais básicasdo programa Bohr-Kramers-Slater se achavam agora firmemente en-gastadas no novo programa quântico e que o programa novo resolveraos problemas teóricos intrínsecos do velho programa quântico sem

tocar nas leis da conservação. Por isso mesmo, Bohr acompanhou otrabalho de Fermi com simpatia e, em 1936, numa insólita seqüênciade acontecimentos, apoiou-o publicamente, conquanto a sua atitude, pelos nossos padrões, fosse um tanto prematura.

Em 1936 Shankland ideou um novo teste de teorias rivais deespalhamento de fótons. Seus resultados pareciam dar apoio à teoriarefugada de Bohr-Kramers-Slater e solapar a confiabilidade de expe-riências que, mais de uma década antes, a refutavam. 309O trabalhode Shankland causou sensação. Os físicos que detestavam a nova ten-dência deram-se pressa a saudar a experiência de Shankland. Dirac, por exemplo, não tardou a dar as boas-vindas ao programa "refuta-do" de Bohr-Kramers-Slater, que voltava, escreveu um artigo incisivo

contra a "chamada eletrodinâmica quântica" e exigiu "uma profundaalteração das idéias teóricas atuais, envolvendo um afastamento dasleis da conservação [a fim de] obter uma mecânica quântica relati-

307. Sobre uma discussão interesantíssima, cf. Rutherford, Chadwick eEllis, Radiations from Radioactive Substances, 1930, pp. 335-6.

308. Fermi, "tentativodiuna teoriadell'emissionedei raggi `beta"',1933 e "Versuch einer Theorie der /3-Strahlen. I", 1934.

309. Shankland, "Michelson-Morley Experiment", 1936.

')1 1 

vista satisfatória".i 70 No artigo, Dirac tornou a sugerir que a desin-  por trás da ousada aplicação de Fermi ao núcleo do novo grande pro-

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g g qtegração beta pode muito bem revelar-se uma peça de evidência cru-cial contra as leis da conse rvação e ridicularizou a "nova partículainobservável, o neutrino, especialmente postulado por alguns investi-gadores na tentativa de preservar a conse rvação da energia, presu-mindo que a partícula inobservável lograria o equilíbrio". 311Logodepois Peierls se juntou à discussão e sugeriu que a experiência deShankland talvez fosse até capaz de refutar a conse rvação estatística

da energia. E acrescentou: "Isso também parece satisfatório, depoisque tiver sido abandonada a conservação particularizada." 312

 No instituto de Boh em Copenhague, as experiências de Shan-kland foram imediatamente repetidas e postas de lado. Jacobsen, co-lega de Bohr, relatou esses fatos numa carta a Nature. Os resultadosde Jacobsen foram acompanhados por uma carta do próprio Bohr,que saiu firmemente a campo contra os rebeldes e em defesa do novo programa quântico de Heisenberg. Empenhou-se, sobretudo, na de-fesa do neutrino contra Dirac: "Observe-se que as razões para dúvidassérias no tocante à rigorosa validade das leis da conservação no pro-

 blema da emissão dos raios-a dos núcleos atômicos foram agora emgrande parte removidas pelo acordo sugestivo entre a prova experi-

mental, que aumenta rapidamente, tocante aos fenômenos dos raios-ae as conseqüências das hipóteses do neutrino de Pauli, tão notavelmen-te desenvolvidas na teoria de Fermi." 313

Em sua primeira versão, a teoria de Fermi não teve nenhumsucesso empírico notável. Com efeito, até os dados disponíveis, espe-cialmente no caso de RaE, em que centralizou a pesquisa da emissão

 beta, contradiziam vigorosamente a teoria de Fermi de 1933-4. Elequeria tratar desses dados na segunda parte do seu trabalho, que, to-davia, nunca se publicou. Ainda que se interprete a teoria de Fermide 1933-4 como a primeira versão de um programa flexível, por voltade 1936 não era possível detectar nenhum sinal sério de uma trans-ferência progressiva.

314Mas Bohr desejava colocar sua autoridade

310. Dirac, "Does Conservation of Energy Hold in Atomic Processes?",1936.

311.  Ibid.

312. Peierls, "Interpretation of Shankland's Experiment", 1936.313. Bohr, "Conservation Laws in Quantum Theory", 1936.314. Entre 1933 e 1936, vários físicos ofereceram alternativas ou  pro-

 puseram mudançasad hoc da teoria de Fermi; cf., por exemplo, Becke eSitte,"Zur Theorie des , Q -Zerfalls", 1933, Bethe ePeierls, "The `Neutrino'", 1934,

212

grama de Heisenberg; e como a experiência de Shankland e os ata-ques de Dirac e Peierls haviam focalizado na desintegração beta acrítica do novo grande programa, ele pôs nas nuvens o programa doneutrino de Fermi, que prometia preencher uma lacuna sensível. Esseúltimo desenvolvimento, sem dúvida, poupou a Bohr uma dramáticahumilhação: os programas baseados nos princípios da conservação progrediram, ao mesmo tempo que não se fez nenhum progresso no

campo rival.

315

A moral da história, mais uma vez, é que o status de uma expe-riência tão "crucial" depende do status da competição teórica em quese acha envolvida. À maneira que crescem ou minguam as fo rtunasdos campos concorrentes, a interpretação e a avaliação da experiência

 podem mudar.

 Nosso folclore científico, no entanto, está impregnado de teoriasde racionalidade instantânea. A história que contei, falseada na maio-ria dos relatos, foi reconstruída nos termos de alguma teoria errôneada racionalidade. Até nas exposições mais populares abundam essesfalseamentos. Permitam-me mencionar dois exemplos.

 Num ensaio aprendemos o seguinte acerca da desintegração beta:"Quando esta situação foi enfrentada pela primeira vez, as alternativas

Konopinski e Uhlenbeck, "On the Fermi theory of ¡3-radioactivity", 1935. Wue Moszkowski escreveram, em 1966, que "a teoria [isto é, o programa] dedesintegração beta de Fermi, segundo se sabe agora, prediz com notável exa-tidão não só a relação entre o coeficiente de desintegração beta e a energiada desintegração, mas também a forma dos espectros beta". Mas acentuamque "logo no começo a teoria de Fermi topou infelizmente com um teste in-

 justo. Até o momento em que se pôde produzir grande cópia de núcleos radio-ativos artificiais, RaE era o único candidato que satisfazia belamente a muitosrequisitos experimentais como uma fonte ¡3 para a investigação da forma doseu espectro. Como poderíamos ter sabido que o espectro /3 de RaE se reve-laria apenas um caso muito especial, um caso cujo espectro, na verdade, sófoi compreendido muito recentemente? Sua dependência peculiar da energiadesafiava o que se esperava da simples teoria de Fermi da desintegração  ,Q eretardou de forma considerável o ritmo do progresso inicial da teoria [istoé. do programa]" (Wu e Moszkowski, Beta Decay, 1966, p. 6).

315. E muito duvidoso que o programa do neutrino de Fermi fosse pro-gressivo ou degenerativo mesmo entre 1936 e 1950; e depois de 1950 o vere-dito ainda não está cristalinamente claro. Discutirei, porém, o assunto emoutro lugar qualquer. (A propósito, Schródinger defendeu a interpretaçãoestatística dos princípios de conservação a despeito do seu papel crucial nodesenvolvimento da nova física quântica; cf. seu ensaio intitulado, "Might

 perhaps Energy be merely, a Statistical Concept?", 1958.)

213

 

pareciamsombrias Os físicos tinham de aceitar o desmoronamentocada" 318 —  pelo programa derrotado) . Está visto, porém, que osi i j l i h í i U

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 pareciam sombrias. Os físicos tinham de aceitar o desmoronamentoda lei da conservação da energia ousupor a existência de uma partículanova e não-vista. Essa partícula, emitida juntamente com o prótone o elétron na desintegração do nêutron, poderia salvar o pilar cen-tral da física ficando com a energia faltante. Isso aconteceu no come-ço da década de 1930, quando a introdução de uma nova partículanão era o assunto casual de hoje. Não obstante, só depois da mais

breve das vacilações, os físicos optaram pela segunda alternativa."

316

Está claro que as alternativas discutida' 'oram bem mais do que duase que a "vacilação" não foi, por certt `a mais breve".

 Num conhecido compêndio dE 1i% sofia da ciência aprendemosque (1) "a lei (ou princípio) de Conservação da energia foi seria-mente contestada pelas experiência, sobre a desintegração dos raios

 beta, cujo resultado não poderia ser r: gado"; que (2) apesar disso,a lei não foi abandonada, presumindo-se a existência de uma novaespécie de entidade (chamada "neutrino") a fim de estabelecer aconcordância entre a lei e os dados experimentais"; e que (3) "arazão fundamental dessa suposição é que a rejeição da lei da conser-vação privaria grande parte do nosso conhecimento físico de sua

coerência sistemática".317

Mas os três pontos estão errados; (1) estáerrado porque nenhuma lei pode ser "seriamente contestada" só por experiências; (2) está errado porque não se elaboram hipóteses cien-tíficas só para preencher lacunas entre os dados e a teoria, senão

 para predizer fatos novos; e (3) está errado porque, na ocasião, pa-recia aue sóa rejeição da lei da conservação asseguraria a "coerênciasistemática" do nosso conhecimento físico.

(d 4)Conclusão. O resultado do desenvolvimento contínuo.

 Não existem experiências cruciais, pelo menos não existem se por elas se entenderem experiências capazes de deriubar instantaneamenteum programa de pesquisa. Com efeito, quando urn programa de pes-

quisa sofre uma derrota e é suplantado por outro, podemos — numalonga visão retrospectiva — chamar crucial a uma experiência se severificar que ela propiciou uma corroboração espetacular do programavitorioso e o fracasso do programa derrotado (no sentido de quenunca foi "explicada progressivamente — ou, numa palavra, "expli-

316. Treiman, "The Weak Interactions", 1959; o grifoémeu.317.  Nagel, The Structure of Science, 1961, pp. 65-6.318. Cf. mais acima, p. 145, nota de péde página n.° 112.

214

cientistas nem sempre julgam corretamente situações heurísticas. Umcientista precipitado pode afirmar que sua experiência derrotou um programa, e partes da comunidade científica podem até, precipitada-mente, aceitar-lhe a afirmativa. Mas 'se um cientista do campo "der-rotado" apresentar, alguns anos depois, uma explicação científica da

 pretensa "experiência crucial" no programa pretensamente derrotado.o título honorífico pode ser retirado e a "experiência crucial" pock 

converter-se, de uma derrota, numa nova vitória para o programa.Os exemplos abundam. Fizeram-se muitas experiências no século

XVIII que foram, de um ponto de vista histórico-sociológico, ampla-mente aceitas como evidência "crucial" contra a lei da queda livrede Galileu e a teoria da gravitação de Newton. No século XIX houvediversas "experiências cruciais" baseadas em mensurações da veloci-dade da luz que "refutavam" a teoria corpuscular e que, mais tarde,se revelaram errôneas à luz da teoria da relatividade. Tais "experiên-cias cruciais" foram depois eliminadas dos compêndios justificacio-nistas como manifestações de vergonhosa miopia ou até de inveja.( Recentemente reapareceram em alguns manuais, desta feita para ilus-trar a inevitável irracionalidade das modas científicas.) Entretanto,

nos casos em que "experiências" ostensivamente "cruciais" foram, defato, confirmadas mais tarde pela derrota do programa, os historiado-res tacharam de estúpidos, invejosos e aduladores do pai do progra-ma de pesquisa em apreço os que a elas resistiram. ("Sociológos doconhecimento" que estão na moda — ou "psicólogos do conhecimen-to" — tendem a explicar posições em termos puramente sociais ou psicológicos quando, na realidade, elas são determinadas por princí- pios de racionalidade. Um exemplo típico é a explicação da oposiçãode Einstein ao princípio da complementaridade de Bohr sob a alega-ção de que "em 1926 Einstein tinha quarenta e sete anos. Quarentae sete anos podem ser a plenitude da vida, mas não para físicos".

319)

319. Bernstein, A Comprehensible World: On Modern Science and itsOrigins, 1961, p. 129. A- fim de avaliar elementos progressivos e degenerativosem transferências de problema rivais precisamos compreender as idéias envol-vidas. Mas a sociologia do conhecimento serve com freqüência de coberturade sucesso para a ignorância: a maioria dos sociólogos do conhecimento nãoentende as idéias nem mesmo se interessa por elas; limita-se a observar osmodelos sociopsicológicos de comportamento. Popper costumava contar umahistória a respeito de um "psicólogo social", o Dr. X, que estudava o compor-tamento de um grupo de cientistas. Tendo participado de um seminário defísica no intuito de estudar a psicologia da ciência, observou a "emergênciade um líder", o "efeito de agrupamento em torno" em alguns e a "reação de

21 5

 

A luz de minhas considerações, a idéia da racionalidade instantâ- ser corroborados322

Aindaassimé possível alcançar-se tal "progresso"

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E11.'4\s4ir): C.A►,1Q;

322. Anteriormente, em meu ensaio de 1968, "Changes in the Problemof Inductive Logic", distingui, acompanhando Popper, dois critérios de ad--hocidade. Chamei ad hocAàs teorias que prediziam fatos novos mas falhavam ■4completamente: nada do seu excesso de conteúdo foi corroborado (cf. tambémmais acima, à p. 152, nota de pé de página n.° 135, e p. 152, nota de pé de

 página n.° 136).323. A fórmula da radiação de Planck — dada em seu ensaio de 1900,

"Ober eine Verbesserung der Wienschen Spektralgleichung" — é um bomexemple: cf. mais acima, p. 206, nota de rodapé n.° 287. Podemos chamar a

essas hipóteses, que não são ad hoc,, nemad hoc,, mas ainda insatisfatóriasno sentido especificado no texto, ad hocs. Esses três empregos de ad hoc — infalivelmente pejorativos — proporcionarão um verbete satisfatório ao Ox- ford English Dictionary.

É curioso notar que os termos "empírico" e "formal" são usados comosinônimos do nosso ad hoes.

Em seu brilhante ensaio de 1967, "Theory Testing in Psychology andPhysics: a Methodological Paradox", Meehl refere que na psicologia contem- porânea — especialmente na psicologia social — muitos pretensos "programasde pesquisa" consistem, na realidade, em cadeias de estratagemas ad hoc..

324. Cf. mais acima, p. 168.11

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nea pode ser vista como utópica. Mas essa idéia utópica é a marcaregistrada da maior parte das epistemologias. Os justificacionistasqueriam que as teorias científicas fossem provadas antes até de ser  publicadas; os probabilistas esperavam que uma máquina pudesse dar instantaneamente o valor (grau de confirmação) de uma teoria, emfase da evidência; os falseacionistas ingênuos esperavam que a elimi-nação fosse ao menos o resultado instantâneo do veredito da expe-

riência.320

Espero haver demonstrado que todas essas teorias da ra-cionalidade instantânea — e de aprendizado instantâneo — fracassam.Os estudos de casos desta seção mostram que a racionalidade traba-lha muito mais devagar do que a maioria das pessoas tende a pensar e, mesmo assim, falivelmente. A coruja de Minerva voa ao cair danoite. Também espero ter mostrado que a continuidade na ciência, a

tenacidadede algumas teorias, a racionalidade de certa dose de dog-matismo só poderão ser explicados se interpretarmos a ciência comoum campo de batalha onde pelejam programas de pesquisa muito maisdo que teorias isoladas. Pode compreender-se muito pouco do cres-cimento da ciência quando o nosso paradigma de uma quantidadeapreciável do conhecimento científico é uma teoria isolada como "To-dos os cisnes são brancos", que permanece à distância, sem se achar envolvida num programa importante de pesquisa. Meu relato implica

um novo critério de demarcação entre a "ciência maJura", que con- siste em programas de pesquisa, e "ciência imatura", que consiste simplesmente num remendado padrão de ensaio-e-erro.

321

Podemos, por exemplo, fazer uma conjectura, vê-la refutada e depois salva por uma hipótese auxiliar que não é ad hoc nos sentidos discutidos ante-riormente. Ela talvez prediga fatos novos, alguns dos quais podem até

defesa" em outros, a correlação entre a idade, o sexo e o comportamentoagressivo, etc. (O Dr. X afirmava ter usado algumas técnicas sofisticadas de pequenas amostras de estatística moderna.) No fim do entusiástico relato Pop- per perguntou ao Dr. X: "Qual era o problema que o grupo estava discutindo?"

O Dr. X ficou surpreso: "Por que pergunta? Não prestei atenção às  palavras!Afinal de contas, que é o que tem isso com a psicologia do conhecimento?".320. É claro que os falseacionistas ingênuos talvez levem algum tempo

 para chegar ao "veredito da experiência": a experiência tem de ser repetidae considerada com espírito crítico. Mas depois que a discussão termina numacordo entre os entendidos, e assim se torna "aceito" um "enunciado básico",e se decide qual foi a teoria específica atingida por ele, o falseacionista ingê-nuo terá pouca paciência com os que ainda "prevaricarem".

321. A elaboração dessa demarcação nos dois parágrafos seguintes foimelhorada no prelo, depois de discussões inestimáveis com Paul Meehl emMinneapolis em 1969.

216

ser corroborados. Ainda assim é possível alcançar se tal progressocom uma série arbitrária e remendada de teorias desconexas. Mas paraos bons cientistas esse progresso témporário não será satisfatório; eles poderão até rejeitá-lo por não ser genuinamente científico. Qualifica-rão tais hipóteses auxiliares simplesmente de "formais", "arbitrárias","empíricas", "semi-empíricas", ou mesmo "ad hoc".

323

 Aciência madura consiste em programas de pesquisa em que se

antecipam não só fatos novos mas também, num sentido importante,novas teorias auxiliares; a ciência madura — á diferença do ensaio-

-e-erro corriqueiro — tem "força heurística". Não nos esqueçamosde que na heurística positiva de um programa poderoso, desde o co-meço, há um esquema geral de construção dos cintos protetores: essaforça heurística gera a autonomia da ciência teórica.

321

O requisito do crescimento contínuo é minha reconstrução ra-cional do requisito amplamente reconhecido da "unidade" ou "beleza"da ciência. Ele focaliza a fraqueza de dois tipos — aparenteni,:,nemuito diferentes — da teorização. Primeiro, mostra a fraqueza de

 programas que, como o marxismo ou o freudismo, são sem dúvida,"unificados", e dão um apanhado geral da espécie de teorias auxilia-

res que usarão na absorção de anomalias, mas que planejam infali-velmente suas teorias auxiliares reais na esteira de fatos sem, ao mes-mo tempo, antecipar outros. (Que fato novo predisse, o marxismo,digamos, desde 1917?) Em segundo lugar, mostra séries remendadas,

 

destituídas de imaginação, de ajustamentos "empíricos" corriqueiros,f l d i l i i l C

Contrariando a moral falseacionista de Popper, os cientistas freqüenteeracionalmente proclamam "que os resultados experimentais não

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.tão freqüentes, por exemplo, na moderna psicologia social. Com aajuda das chamadas "técnicas estatísticas", tais ajustamentos podemfazer algumas predições "novas" e podem até fazer com que nelasapareça algumas sementes sem importância de verdade. Masessas teorizações não têm idéia unificadora, não têm força heurística,não têm continuidade. Não significam um autêntico programa de pesquisa e são, de um modo geral, inteiramente sem valor.

325

Conquanto baseado no de Popper, meu relato da racionalidadecientífica afasta-se de algumas das suas idéias gerais. Endosso atécerto ponto não só o convencionalismo de Le Roy em relação àsteorias, mas também o convencionalismo de Popper em relação às

 proposições básicas. Neste sentido os cientistas (e, como já demons-trei, os matemáticos também

32t1)não são irracionais quando tendem

a ignorar exemplos contrarios ou, como preferem chamar-lhes, exem- plos "recalcitrantes" ou "residuais", e seguem a seqüência de proble-mas tal como foi prescrita pela heurística positiva do seu programa,e elaboram — e aplicam — suas teorias sem dar-lhes maior atenção.

327

325. Depois de ler o ensaio de Meehl, "Theory Testing in Psychology

and Physics" (1967) e o de Lykken, "Statistical Significance in PsychologicalResearch" (1968) ficamos a imaginar se a função das técnicas estatísticas nasciências sociais não é, principalmente, fornecer um maquinismo para produzir corroborações espúrias e, desse modo, uma aparência de "progresso científico"onde, na verdade, não há nada mais que um acréscimo de lixo pseudo-inte-lectual. Meehl escreve que "nas ciências físicas, o resultado habitual de umaperfeiçoamento do modelo exprimental, da instrumentação ou da massa nu-mérica de dados, é aumentar a dificuldade da "barreira observacional" que ateoria física do interesse precisa sobrepujar com êxito; ao passo que na psi-cologia e em algumas ciências aliadas do comportamento, o efeito costumeirodessa melhoria na precisão experimental é fornecer uma barreira que a teoriatranspõe com maior facilidade". Ou, como disse Lykken: "A importânciaestatística [em psicologia] talvez seja o atributo menos importante de uma boa experiência; nunca é condição suficiente para se afirmar que uma teoriafoi utilmente corroborada, que se estabeleceu um fato empírico significativo,ou que um relato da experiência deve ser publicado." Parece-me que a maior das teorizações condenadas por Meehl e Lykken talvez seja ad hoca. Dessemodo, a metodologia dos programas de pesquisa talvez nos ajude a elaborar as leis para deter essa poluição intelectual, capaz de destruir nosso meio cul-tural antes até que a poluição industrial e do tráfego destrua nosso meio físico.

326. Cf. meu ensaio de 1963-4 intitulado "Proofs and Refutations".327. Assim se esvai a assimetria metodológicaentre os enunciados uni-

versais e os singulares. Podemos adotar qualquer um dos dois por convenção:no "núcleo" decidimos "aceitar" enunciados universais; na "base empírica",enunciados singulares. A assimetria lógicaentre os enunciados universais e ossingulares sóé fatal para o indutivista dogmático que só quer aprender com

218

eracionalmente proclamam que os resultados experimentais nãomerecem confiança, ou que as discrepâncias que se afirmam existir entre os resultados experimentais e a teoria são apenas aparentes edesaparecerão com o progresso dõ nosso entendimento". 328Pode ser que, ao fazê-lo, eles não estejam "adotando o próprio inverso da ati-tude crítica que ... é a atitude apropri ada ao cientista".329

Popper,na verdade, tem razão ao acentuar que "a atitude dogmática de afer-

rar-se a uma teori a pelo maior tempo possível é de considerável im- portância. Sem ela, talvez nunca descobríssemos o que há numa teoria — abriríamos mão da teoria antes de ter uma oportunidade real dedescobrir-lhe a força: e, em conseqüência disso, nenhuma teo ria seria

 jamais capaz de representar o seu papel de trazer ordem ao mundo,de preparar-nos para acontecimentos futuros, de chamar nossa aten-ção para acontecimentos que, de outro modo, nunca observaría-mos".330Assim, o "dogmatismo" da "ciência normal" não impede ocrescimento enquanto o combinamos com o reconhecimento poppe-riano de existência de uma ciência normal, progressiva e boa e deuma ciência normal, degenerativa e má, e enquanto mantemos a de -terminação de eliminar, sob certas condições objetivamente definidas,alguns programas de pesquisa.

A atitude dogmática na ciência — que explicaria seus períodosestáveis — foi descrita por Kuhn como um traço fundamental da"ciência normal". 331

Mas a estrutura conceptual de Kuhn para lidar com a continuidade na ciência é sociopsicológica: a minha é norma-tiva. Olho para a continuidade na ciência através de "óculos popperia-

a experiência e a lógica. E claro que o convencionalista pode "aceitar" a assi-metria lógica: ele não tem de ser (embora possa sê-lo) também um indutivista."Aceita" enunciados universais, mas não porque afirma deduzi-los (ou induzi-los) dos singulares.

328. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 9.329.  Ibid.

330. Popper, "What is Dialectic?", primeira nota de pé de página. En-contramos um reparo semelhante em seu livro Conjectures and Refutations,1963, p. 49. Mas esses reparos estão em contradição prima facie com algumasde suas observações (Logik der Forschung, 1934) (citadas mais acima, à p. 135e, por conseguinte, só podem ser interpretados como sinais de uma percepção popperiana cada vez mais aguda de uma anomalia não-digerida em seu pró- prio programa de pesquisa.

331. Com efeito, meu critério de demarcação entre a ciência madura ea imatura pode ser interpretado como absorção popperiana da idéia de "nor-malidade" de Kuhn como marco distintivo de ciência [madura] ; e também

219

 

nos" Onde Kuhn vê "paradigmas" tambémvejo "programas de pes paradigma contém se s próprios padrões A crise le a embora não

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nos . Onde Kuhn vê paradigmas , tambémvejo programas de pes-quisa" racionais.

4. 0 PROGRAMA DE PESQUISA POPPERIANO VERSUS OPROGRAMA DE PESQUISA KUHNIANO

Sumariemos agora a controvérsia Kuhn-Popper.Mostramos que Kuhn está certo quando faz objeçõés ao falsea-

cionismo ingênuo e quando acentua a continuidade do crescimentocientífico, a tenacidadede algumas teorias científicas. Mas Kuhn estáerrado ao pensar que, pondo de lado o falseacionismo ingênuo, pôsde lado, por essa maneira, todas as classes de falseacionismo. Kuhnopõe objeções a todo o programa popperiano de pesquisa e excluiqualquer  possibilidade de reconstrução racional do crescimento daciência. Numa sucinta comparação entre Hume, Carnap e Popper,Watkins assinala que o crescimento da ciência é indutivo e irracionalsegundo Hume, indutivo e racional segundo Carnap, não-indutivo eracional segundo Popper. 332Mas a comparação de Watkins pode ser estendida para acrescentar que ele é não-indutivo e irracional segundoKuhn. No entender de Kuhn não pode haver lógica, mas apenas psi-cologia da descoberta. 333 Na concepção de Kuhn, por exemplo, asanomalias e incoerências sempre abundam na ciência, mas em perfo-dos "normais" o paradigma dominante assegura um padrão de cres-cimento finalmente derrubado por uma "c rise". Não existe nenhumacausa racional determinada para o aparecimento de uma "c rise"kuhniana. "Crise" é um conceito psicológico; é um pânico contagioso.Emerge então um novo "paradigma", incomensurável com o seu pre-decessor. Não existem padrões racionais para a sua comparação. Cada

reforça meu argumento anterior contra considerar os enunciados altamente

falseáveis como eminentemente científicos. (Cf. mais acima, p. 123.)A propósito, essa demarcação entre ciência madura e ciência imatura já aparece em meus ensaios "Infinite Regress and the Foundations of Mathe-matics" (1962) e "Proofs and Refutations" (1963-4), onde chamei à primeira"adivinhação dedutiva" e à segunda "ensaio-e-erro ingênuo". (Veja, por exem-

 plo, no ensaio de 1963-4, a seção 7(e): "Adivinhação dedutiva contra adivinha-cão ingênua".)

332. Watkins, "Hume, Carnap and Popper", 1968, p. 281.333. Kuhn, "Logic of Discovery or Psychology of Research?" 1965. Mas

essa posição já se acha implícita em sua obra de 1962, The Structure of Scien-tific Revolutions.

220

 paradigma contém seus próprios padrões. A crise leva embora nãosó as velhas teorias e regras, mas também os padrões que nos fizeramrespeitá-las. O novo paradigma traz uma racionalidade totalmentenova. Não há padrões superparadigmáticos. A mudança é um efeitode adesão de última hora. Assim sendo, de acordo com a concepçãode Kuhn, a revolução científica é irracional, uma questão de psicologia

das multidões.

A redução da filosofia da ciência à psicologia da ciência nãocomeçou com Kuhn. Uma onda anterior de "psicologismo" seguiu-se ao desmoronamento do justificacionismo. Para muitos, o justifica-cionismo representava a única forma possível de racionalidade: o fimdo justificacionismo significava o fim da racionalidade. O colapsoda tese de que as teorias científicas são prováveis, de que o progressoda ciência é cumulativo, fez que os justificacionistas entrassem em pânico. Se "descobrir é provar" e nada é provável, não pode haver descobertas, apenas proclamações de descobertas. Os justificacionistasdesapontados — ex-justificacionistas — cuidavam que a elaboraçãode padrões racionais era uma atividade inútil e que a única coisaque se pode fazer é estudar — e imitar — a Mente Científica, tal

como é exemplificada em cientistas famosos. Depois do colapso dafísica newtoniana, Popper elaborou padrões críticos novos, não-justi-ficacionistas. Alguns dos que já haviam sabido do colapso da racio-nalidade justificacionista ficaram sabendo, em sua maioria por ouvir dizer, dos coloridos slogans de Popper que sugeriam o ingênuo.Achando-os insustentáveis, identificaram o colapso do ingênuo como fim da própria racionalidade. A elaboração de padrões racionaisfoi novamente considerada uma empresa inútil; o melhor que se podefazer, tornaram eles a pensar, é estudar a Mente Científica. 334A filo-sofia crítica seria substituída pelo que Polanyi denominou filosofia"pós-crítica". Mas o programa de pesquisa kuhniano contém um novotraço: não devemos estudar a mente do cientista individual, mas amente da Comunidade Científica. A psicologia individual é substi-

tuída pela psicologia social; a imitação dos grandes cientistas pelasubmissão à sabedoria coletiva da comunidade.

Mas Kuhn fez vista grossa para a falseacionismo sofisticado dePopper e para o programa de pesquisa que ele iniciou. Popper subs-

334. A propósito, assim como alguns ex-justificacionistas anteriores di-rigiram a onda do irracionalismo cético, assim agora alguns ex-falseacionistasdirigem a nova onda do irracionalismo cético e do anarquismo. Isso está me-lhor exemplificado em Feyerabend, "Against Method", 1970.

221 

tituiu o problema central da racionalidade clássica, o velho problema

dos fundamentos pelo novo problema do crescimento crítico-falível,e pô-se a elaborar padrões objetivos desse crescimento. Neste ensaio

Kuhn mostrou, por certo, que a psicologia da ciência revelaverdades importantes e, de fato, tristes. Mas a psicologia da ciência

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p p jtentei desenvolver um pouco mais o seu programa. Creio que este pequeno desenvolvimento é suficiente para escapar às censuras deKuhn .

335

A reconstrução do progresso científico como proliferação de programas rivais de pesquisa e transferências progressivas e degene-rativas de problemas fornece uma imagem da atividade científica

que é de muitas maneiras diferente da imagem proporcionada pelasua reconstrução como uma sucessão de teorias ousadas e seus dra-máticos derrubamentos. Seus principais aspectos foram desenvolvidosdas idéias de Popper e, em pa rt icular, da sua condenação dos estra-tagemas "convencionalistas", isto é, diminuidores de conteúdo. A p ri n-cipal diferença em relação à versão o riginal de Popper, creio eu, é

que na minha concepção a crítica não mata nem deve matar — tão depressa quanto Popper imaginava. A crítica destrutiva, pura-mente negativa, como a "refutação" ou a demonstração de umainconsistência não elimina um programa. A crítica de um programaé um processo longo e amiúde frustrante, e os programas em desen-volvimento devem ser tratados sem severidade.

336 Pode-se, natural-mente, mostrar a degeneração de um programa de pesquisa, mas sôa crítica construtiva pode, com a ajuda de programas de pesquisarivais, obter êxitos reais; e os resultados espetaculares e dramáticossó se tornam visíveis a posteriori e através da reconstrução racional.

335. De fato, como eu já havia mencionado, meu conceito de um "pro- grama de pesquisa" pode ser interpretado como um objetivo, uma reconstru-ção "do terceiro mundo" do conceito sociopsicológico de "paradigma" de Kuhn: desse modo a "transferência de gestalt" kuhniana pode ser executadasem que seja preciso, para isso, tirar os óculos popperianos.

( Não tratei da afirmativa de Kuhn e Feyerabend de que as teorias não podem ser eliminadas por nenhum motivo objetivo mercê da "incomensura- bilidade" das teorias rivais. As teorias incomensuráveis não são incompatíveisentre si nem comparáveis no que concerne ao conteúdo. Mas, segundo umdicionário, podemos torná-las incompatíveis e tornar-lhes o conteúdo compa-rável. Se quisermos eliminar um programa, necessitamos de determinaçãometodológica. Essa determinação é o centro do falseacionismo metodológico; por exemplo, nenhum resultado de amostragem estatística é incompatível comuma teoria estatística a não ser que as façamos incompatíveis com a ajudadas regras popperianas de rejeição. Cf. mais acima, p. 132.)

336. A relutância dos economistas e de outros cientistas sociais emaceitar a metodologia de Popper pode dever-se em parte, ao efeito destrutivodo falseacionismo ingênuo sobre os programas de pesquisa que estão come-çando.

222

não é autônoma; pois o crescimento — racionalmente recons-truído — da ciência se verifica essencialmente no mundo das idéias,no "terceiro mundo" de Platão e -de Popper, no mundo do conheci-mento inteligível, que o independe de sujeitos do conhecimento. 337

O programa de pesquisa de Popper visa a uma descrição desse cresci-mento científico objetivo. 338O programa de pesquisa de Kuhn parecevisar a uma descrição da mudança na mente científica ( normal")

(individual ou comunal).338

Mas a imagem-espelho do terceiromun-do na mente do indivíduo — até na mente dos cientistas "normais"

337. 0 primeiro mundo é o mundo material, o segundo é o mundo daconsciência, o terceiro é o mundo das proposições, da verdade, dos padrões:o mundo do conhecimento objetivo. Os loci classici modernos sobre o assuntosão os dois ensaios de Popper, "Epistemology without a Knowing Subject" e"On the Theory of the Objective Mind", ambos de 1968; cf. também o im-

 pressionante programa deToulmin exposto em seu trabalho de 1967, "TheEvolutionary Development of Natural Science". Cumpre mencionar aqui quemuitos trechos de Popper em sua Logik der Forschung (1934) e até em suasConjectures and Refutations (1963) parecem descrições de um contraste psi-cológico entre a Mente Crítica e a Mente Indutivista. Mas os termos psicolo-gístas de Popper podem ser reinterpretados, numa grande extensão, em termosdo terceiro mundo: veja Musgrave, "The Objectivism of Popper's Epistemo-logy", 1974.

338. Com efeito, o programa de Popper estende-se além da ciência. Osconceitos de transferências "progressivas" e "degenerativas" de problemas ea idéia da proliferação de teorias podem ser generalizadas para abranger qualquer espécie de discussão racional e, assim, servir de instrumentos parauma teoria geral da crítica; cf. meus trabalhos "Popper zum Abgrenzungs-und Ti dúktionsproblem" e "History of Science and its Rational Recons-tructions", ambos de 1971. Meu ensaio de 19634, "Proofs and Refutations",

 pode ser visto como a história de um programa progressivo e não-empíricode pesquisa; e meu ensaio de 1968, "Changes in the Problem of InductiveLogic" contém a história de um programa degenerativo e não-empírico delógica indutiva.)

339. Estados de espírito reais, crenças, etc., pertencem ao segundo mun-do; estados do espírito normal  pertencem a um limbo entre o segundo e o

terceiro. O estudo das mentes científicas reais pertence à  psicologia;o estudoda mente "normal" (ou "sadia", etc.) pertence à filosofia psicologista da ciên-cia. Existem duas espécies de filosofias psicologistas da ciência. De acordocom uma delas não pode haver filosofia da ciência: só uma psicologia decientistas individuais. De acordo com a outra, há uma psicologia da mente"científica", "ideal" ou "normal": isso transforma a filosofia da ciência nu-ma psicologia da mente ideal e, ademais, oferece uma psicoterapia paratransformar nossa mente na mente ideal. Discuto circunstanciadamente alhu-res esse segundo tipo de psicologismo. Kuhn não parece haver notado adistinção.

223

 

 — é geralmente uma caricatura do original; e descrever essa cari-catura sem relacioná-la com o terceiro mundo original pode perfei-

acabe matando o seu fantasma. Popper, é o falseacionista ingênuoe Popper 2 é o falseacionista sofisticado. O verdadeiroPopper desen-volveu-se passando da versão dogmática para a versão ingênua do

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g p ptamente redundar na caricatura de uma caricatura. Não se podecompreender a história da ciência sem levar em conta a interaçãodos três mundos.

 APENDICE 

 POPPER,O FALSEACIONISMO E  A"TESE  DUHEM-QUINE" 

Popper começou como falseacionista dogmático na década de1920; mas logo compreendeu a insustentabilidade de sua posição enão publicou coisa alguma antes de inventar o falseacionismo me-todológico. Idéia de todo nova na filosofia da ciência, tem sua ori-gem claramente em Popper, que a aventou como solução para as difi-culdades do falseacionismo dogmático. Com efeito, o conflito entreas teses de que a ciência é crítica e falível ao mesmo tempo é umdos problemas centrais da filosofia popperiana. Embora oferecesseuma formulação coerente e uma crítica do falseacionismo dogmático,Popper nunca fez uma distinção nítida entre o falseacionismo ingênuoe o sofisticado. Num ensaio anterior,34

o distingui três Poppers: Pop- per o , Popper  s e Popper 2. Popper o é o falseacionista dogmático quenunca publicou uma palavra: foi inventado — e "criticado" — pri-meiro por Ayer e depois por muitos outros. 341

Espero que este ensaio

340. Cf. meu ensaio de196V , , Changes in the Problem of InductiveLogic".

341. Ayer  parece ter sido o primeiro aatribuir o falseacionismo dogmá-ticoa Popper. (Ayer também,nventouo mitodeque,deacordo comPopper, a "confutabilidade definida" era umcritério não só docaráter em- pírico mas também do caráter significativo da proposição: cf. o seu Language,Truth and Logic, 1936, capítulo 1, p. 38 da segunda edição.) Ainda hoje,

muitos filósofos (cf. Juhos, Ober die empirische Induktion", 1966, ou Nagel," What is True and False in Science: Medawar and the Anatomy of Research",1967) criticam o homem-de-palha Popper. Em seu livro publicado em 1967,The Art of the Soluble, Medawar chamou ao falseacionismo dogmático"umadas idéias mais vigorosas" da metodologia de Popper. Ao fazer uma - críticadolivro de Medawar, Nagel criticou-o por "endossar" o que ele tambémacredita serem "afirmações de Popper" (Nagel, "What is True and False inScience: Medawar and the Anatomy of Research", 1967, p. 70). Acríticade Nagel convenceu Medawar de que "o atodefalseamento não está imuneao erro humano" ( Medawar, Induction and Intuition in Scientific Thought,

224

falseacionismo metodológico na década de 1920 e chegou às `regrasde aceitação" do falseacionismo sofisticado na década de 1950. Mar-cou-lhe a transição o haver ele àcrescentado ao requisito original detestabilidade o "segundo" requisito de "testabilidade independen-te" 342e, a seguir, o "terceiro" requisito de que alguns desses testesindependentes resultassem em corroborações.

343Mas o verdadeiro Pop-

 per nunca abandonou suas pri meiras (ingênuas) regras de falseamen-

to. Ele tem exigido, até o presente, que "se estabeleçam de antemãoos critérios de refutação: urge que haja consenso em torno das situa-ções observáveis, se realmente observadas, que significam que a teo-ria está refutada".

344Ele ainda interpreta "falseamento" como resul-

tado de um duelo entre a teoria e a obse rvação, sem que outra teoriamelhor esteja necessariamenteenvolvida. O verdadeiro Popper nuncaexplicou circunstanciadamente o processo de apelação por cujo inter-médio alguns "enunciados básicos aceitos" podem ser eliminados.Desse modo, o verdadeiro Popper consiste em Popper, com algunselementos de Popper 2 .

A idéia de uma demarcação entre as transferências progressivase as degenerativas de problemas, como foi discutida neste trabalho,

 baseia-se na obra de Popper: sua demarcação, na verdade, é quaseidêntica ao seu célebre critério demarcatório entre a ciência e a me-tafísica. 345

1969, p. 54). Medawar e Nagel, porém, não souberam ler Popper: a  Logik der Forschung deste último é a mais forte das críticas ao falseacionismodogmático que já se escreveu.

Pode ter-se uma visão caridosa do erro de Medawar: para cientistas brilhantes cujo talento especulativo se viu frustrado sob a tirania de umalógica indutivista da descoberta, o falseacionismo, até em sua forma dogmá-tica, estava destinado a ter um tremendo efeito liberatório. (Além de Me-dawar, outro detentor do Prémio Nobel, Eccles, aprendeu com' Popper asubstituir sua cautela original por uma arrojada especulação falseável: cf.Eccles, "The Neurophysiological Basis of Experience", 1964, pp. 274-5.)

342. Popper, "The Aim of Science", 1957.343. Popper, Conjectures and Refutations, 1963, pp. 242 e seguintes.344. Popper, Conjectures and Ref utations, 1963, p. 38, nota de pé pá-

gina n.° 3.345. Se o leitor estiver em dúvida quanto à autenticidade de minha

reformulação do critério de demarcação de Popper, releia as partes impor-tantes de Popper (Logik der Forschung), tendo Musgrave ("On a DemarcationDispute", 1968) por guia. Musgrave escreveu o supracitado ensaio contra

225

 

Originalmente, Popper só tinha em mente o aspecto teóricodastransferências de problemas, o que é lembrado na seção 20 da suaLogik derForschung e desenvolvido em seu The Poverty of Histori-

conteúdo é também demasiado fraca: não pode lidar, por exemplo,com o "paradoxo de rodeios",

349e não condena estratagemas

350ad 

h ó ã li i d l i it d hi ó i

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g g y f

cism.346 Só depois ajuntou uma discussão do aspecto empírico dastransferências de problemas em suas Conjectures and Refutations.

347 

Entretanto, a condenação de Popper aos "estratagemas convencio-nalistas", em certos sentidos, é muito fo rte e, em outros, muito fraca.É muito forte pois, segundo Popper, uma nova versão de um pro-grama progressivo nunca adota um estratagema diminuidor de con-teúdo para absorver uma anomalia, e nunca diz coisas como esta:"todos os corpos são newtonianos, exceto dezessete corpos anômalos".Mas visto que sempre abundam anomalias não explicadas, admito taisformulações; uma explicação é um passo dado à frente (isto é, "cien-tífica") quando explica pelo menos algumas anomalias prévias quenão foram explicadas "cientificamente" por sua predecessora. En-quanto as anomalias forem consideradas problemas autênticos (em-

 bora não necessariamente urgentes), pouco importa que as dramati-zemos como "refutações" ou que as despojemos de dramaticidadecomo "exceções": a diferença, nesse caso, é apenas lingüística. (Ograu de tolerância de estratagemas ad hoc nos permite progredir atésobre fundamentos inconsistentes. As transferências de problemas po-dem então ser progressivas a despeito das inconsistências. 348) Entre-

tanto, a condenação de Popper dos estratagemas diminuidores de

Bartley, que, no seu trabalho do mesmo ano, "Theories of Demarcation between Science and Metaphysics", atribuiu erroneamente a Popper o cri-tério de demarcação do falseacionismo ingênuo, tal como foi formulado maisacima, à p. 109.

346. Emsua Logik der Forschung (1934), Popper preocupou-se princi- palmente com uma proscrição dos ajustamentos ad hoc subreptícios. Popper (Popper') exige que o objetivo de uma experiência c rucial potencialmentenegativa seja apresentado juntamente com a teoria, e depois que a sentençado júri experimental seja humildemente aceita. Disso se segue que os estra-tagemas convencionalistas, que depois da sentença torcem retrospectivamentea teoria original a fim de escapar à sentença, são eo ipso excluídos. Masse admitirmos a refutação e depois reformularmos a teoria com a ajuda deum estratagema ad hoc, podemos admiti-lo como"nova" teoria; e se ela for testável, Popper ' a aceitará para uma nova crítica: "Sempre que descobrimosque um sistema foi salvo por um estratagema convencionalista, tornamos atestá-lo, e rejeitamo-lo, se as circunstâncias o exigirem" (Popper, Logik der 

 Forschung, seção 20).347. Sobre detalhes, cf. meu ensaio "Changes in the Problem of Inducti-

ve Logic", 1968, especialmente as pp. 388-90.348. Cf. mais acima, pp. 174 e seguintes. Essa tolerância raro se en-

contra, se é que se encontra alguma vez, em compêndios de método cien-tífico.

22 6

hoc 3 , que só são eliminados pelo requisito de que as hipóteses auxi-liares deveriam ser formadas de acordo com a heurística positiva deum programa de pesquisa autêntica. Esse novo requisito nos leva ao problema da continuidade na ciência.

O problema da continuidadena ciência foi levantado por Pop- per e seus seguidores há muito tempo. Quando propus minha teo ria

do crescimento baseado na idéia de programas de pesquisa concor-rentes, tornei a seguir, e tentei melhorar, a tradição popperiana.O próprio Popper, em sua Logik der Forschung, já sublinhara aimportância heurística da "metafísica influente",

351e foi visto por alguns membros do Círculo de Viena como defensor da pe rigosametafísica.352Quando o seu interesse pelo papel da metafísica revi-veu na década de 1950, ele escreveu um "Epílogo Metafísico" inte-ressantíssimo a respeito de "programas de pesquisa metafísica" parao seu Postscript: After Twenty Years — no prelo desde 1957.

353

349. Cf. mais acima, p. 160.350. Cf. mais acima, à p. 217, nota de rodapé n' 323.351. Cf., por exemplo, sua Logik der Forschung, fim da seção 4; cf.

também seu ensaio de 1968 intitulado "Remarks on the Problems of Demar-cation and Rationality", p. 93. Não nos esqueça que tal importância foinegada à metafísica por Comte e Duhem. As pessoas que mais fizeram parainverter a maré antimetafísica na filosofia e na historiografia da ciênciaforam Burtt, Popper e Koyré.

352.  Na crítica que fizeram do livro, Carnap e Hempel trataram dedefender Popper dessa acusação (cf. Carnap, Crítica do livro de Popper, Logik der Forschung, 1953, e Hempel, Crítica do livro de Popper, Logik der  Forschung, 1937). Hempel escreveu: "[Popper] acentua vigorosamente cer-tas características do seu enfoque, comuns com as características do enfo-que de alguns pensadores que seguem uma orientação metafísica. Espera-seque esse valioso trabalho não seja mal interpretado como se tencionasse per-mitir o advento de uma metafísica nova, talvez até logicamente defensável."

353. Uma passagem desse Postscript merece ser aqui citada: "O ato-mismo é um ... excelente exemplo de uma teoria metafísica não-testável,cuja influência sobre a ciência excedeu a de muitas teorias testáveis... A

mais recente e mais ampla até agora foi o programa de Faraday, Maxwell,Einstein, de Broglie e Schródinger, de conceber o mundo... em termosde campos continuos... Cada uma dessas teorias metafísicas funcionou, muitoantes de tornar-se testável, como programa para a ciência, indicando a direçãoem que se podem encontrar satisfatórias teorias explanatórias de ciência, e possibilitando algo semelhante a uma avaliação da profundidade de uma teo-ria. Em biologia, a teoria da evolução, a da célula e a da infecção bacterianadesempenharam papéis semelhantes, pelo menos durante algum tempo. Em psicologia, o sensualismo, o atomismo (isto é, a teoria de que todas as expe-riências são compostas de últimos elementos, tais como, por exemplo, os

227

 

Popper, no entanto, não associava a tenacidade com a irrefutabilidade .

metodológica, mas com a irrefutabilidade sintática. Por "metafísica"Finalmente, eu gosta ri a de discutir a "tese Duhem-Quine" e sua

relação com o falseacionismo.357

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entendia enunciados sintaticamente especificáveis como enunciadosdo tipo "todos-alguns" e enunciados puramente existenciais. Nenhumenunciado básico poderia entrar em conflito com eles devido a suaforma lógica. Nesse sentido, por exemplo, "para todos os metais háum solvente" seria `metafísico", ao passo que a teoria da gravitaçãode Newton, tomada isoladamente, não o seria.

354Na década de 1950,

Popper também suscitou o problema crítico das teorias metafísicas esugeriu soluções.355Agassi e Watkins publicaram diversos estudosinteressantes sobre o papel dessa "metafísica" da ciência, que todosligavam à continuidade do progresso científico.

356Meu tratamento

difere do deles porque vou muito mais longe do que eles no apagar a demarcação entre "ciência" [de Popper] e "metafísica" [de Pop- per] : nem sequer emprego mais o termo "metafísico". Só me refiroa programas de pesquisa científica cujo núcleo é irrefutável não por razões sintáticas mas por razões metodológicas que nada têm que ver com a forma lógica. Em segundo lugar, separando nitidamente o

 problema descritivodo papel psicológico-histórico da metafísica do problema normativo de distinguir os programas de pesquisa progres-sivos dos programas de pesquisa degenerativos, desenvolvi o proble-

ma além do que eles já o tinham feito.

dados dos sentidos) e a psicanálise devem ser mencionados como programasde pesquisa metafísica... Até asserções puramente existenciais têm-se reve-lado, às vezes, sugestivas e proveitosas na história da ciência, ainda quenunca tenham feito parte dela. Efetivamente, poucas teorias metafísicas exer-ceram maior influência sobre o desenvolvimento da ciência do que a seguinteteoria puramente metafísica: "Existe uma substância capaz de transformar metais vis em ouro (isto é, a pedra filosofal)", embora se trate de umateoria não-falseável, que nunca foi verificada e na qual, hoje em dia, nin-guém acredita."

354. Cf. especialmente Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 66. Naedição de 1959 ele acrescentou uma nota de rodapé esclarecedora (nota derodapé n.° *2) a fim de acentuar que nos enunciados metafísicos do tipo todos-

-alguns o quantificador existencial precisa ser interpretado como "ilimitado";mas, naturalmente, ele já deixara esse pormenor absolutamente claro na seção15 do texto original.

355. Cf. especialmente o seu livro Conjectures and Refutations, 1963, pp.198-9 (publicado pela primeira vez em 1958).

356. Cf. os ensaios de Watkins, "Between Analytic and Empirical" (1957)e "Influential and Confirmable Metaphysics" (1958) e os de Agassi, "TheConfusion between Physics and Metaphysics in the Standard Histories of Sciences" (1962) e "Scientific Problems and Their Roots in Metaphysics"(1964).

228

De acordo com a "tese Duhem-Quine", em havendo imagina-ção suficiente, qualquer teoria (quer consista numa proposição, querconsista numa conjunção finita de muitas proposições) pode ser salvapermanentemente da "refutação" por algum ajustamento adequadono conhecimento de fundo em que está incluída. Como diz "aconte-ça o que acontecer, qualquer pronunciamento pode ser considerado

verdadeiro, se fizermos ajustamentos suficientemente drásticos em ou-tros pontos do sistema ... Inversamente, nenhum enunciado é imuneà revisão." 358De mais a mais, o "sistema" é nada menos que "o con-

 junto da ciência". "Uma experiência recalcitrante pode ser acomo-dada por uma de várias reavaliações alternativas em vários pontosaltern ativos do sistema total [incluindo a possibilidade de reavaliara própria experiência recalcitrante] ." 539

Essa tese tem duas interpretações muito diferentes. Em sua inter-

 pretação fraca apenas afirma a impossibilidade do atingimento expe-rimental direto de um alvo teórico ri gorosamente especificado e a pos-sibilidade lógica de modelar a ciência de maneiras muito diferentes.A interpretação fraca só atinge o falseacionismo dogmático e não o

metodológico: apenas nega a possibilidade de uma refutação de qual-quer componente separado de um sistema teórico.

Em sua interpretação forte a tese Duhem-Quine exclui qualquerregra de seleção racional entre as alternativas; essa versão é incom-patível com todas as formas de falseacionismo metodológico. Asduas interpretações não foram claramente separadas, embora a dife-rença seja metodologicamente vital. Duhem parece ter conservadoapenas a interpretação fraca: para ele a seleção é uma questão de"sagacidade": precisamos escolher sempre ce rt o a fim de chegar maispert o da "classificação natural". 360Por outro lado, Quine, na tra-

357. Esta parte final do Apêndice foi acrescentada no prelo.358. Quine, From a Logical Point of View, 1953, capítulo ii.

359.  Ibid. A cláusula entre os colchetes é minha.

360. Segundo Duhem, uma experiência nunca pode condenar sozinhauma teoria isolada (tal como o núcleo de um programa de pesquisa): parauma "condenação" dessa natureza também precisamos de "senso comum", "sa-gacidade" e bom instinto metafísico que nos conduza na direção de (ou

 para) "certa ordem eminentíssima", (Veja o fim do Apêndiceda segundaedição do seu livro publicado em 1906, La Théorie Physique, Son Objet et  Sa Structure.

229

 

dição do pragmatismo norte-americano de James e Lewis, parecemanter uma posição muito próxima da interpretação forte.'s 1

E i i t t t t D h Q i F

guir indefinidamente. Na verdade, há um número infinito de possi- bilidades de substituir — em havendo imaginação suficiente — qual-quer uma das premissas (no modelo dedutivo) invocando uma mu-d l t di t t d h i t t t l (f d

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Examinemos agora mais atentamente a tese Duhem-Quine. Fa-çamos uma "experiência recalcitrante" expressa num "enunciado deobservação"O' incompatível com uma conjunção de enunciados teó-ricos (e "observacionais") h,, h 2... hn , 11, 12...In, em queh, são teorias e /, as condições iniciais correspondentes. No "mo-delo dedutivo", h,. h,n11 ... I n logicamente supõem O; obser-va-se, porém, que 0' supõe não-O. Suponhamos também que as pre-missas são independentes e todas necessárias para deduzir  O.

 Nesse caso podemos restaurar a consistência alterando qualquer uma das sentenças do nosso modelo dedutivo. Seja, por exemplo, h l :

"sempre que um fio estiver carregado com um peso que exceda oque caracteriza o esforço de fração do fio, este se romperá"; seja 112:"o peso característico para esse fioé 1 libra"; seja h,: "o pesocolocado neste fio foi de 2 libras". Seja, finalmente, O: "colocou-seum peso de ferro de 2 libras sobre o fio localizado na posição espaço--tempo P e este não se rompeu". Pode resolver-se o problema demuitas maneiras. Para dar alguns exemplos: (1) Rejeitamos h,; subs-tituímos a expressão "é carregado com um peso" por "é  puxado por uma força"; introduzimos uma nova condição inicial: havia um ímã

(ou uma força até então desconhecida) escondido no forro do labo-ratório. (2) Rejeitamos h2 ; propomos que o esforço de tração de- penda do grau de umidade dos fios; o esforço de tração do fio real,desde que ele se umedeceu, foi de 2 libras. (3) Rejeitamos O; o fionão se rompeu; apenas se observou que ele não se rompeu, mas o professor que propôs h, & h 2 & h3 era um conhecido burguês liberale seus assistentes revolucionários de laboratório viram-lhe as hipó-teses sistematicamente refutadas quando, na realidade, elas foramconfirmadas. (5) Rejeitamos h 3 ; o fio não era um "fio", era um "su-

 perfio", e os "superfios" nunca se rompem.

361. Quine fala de enunciados que têm "distãncias variáveis de uma peri-feria sensocial" e estão, assim, mais ou menos expostos à mudança. Mas tantoa periferia sensorial quanto a métrica são difíceis de definir. Segundo Quine,"as considerações que dirigem lo homem] na deformação da própria herançacientífica para ajustar-se às suas continuadas periferias sensociais são racionais, pragmáticas" (Quine, From a Logical Point of View, 1953). Mas o "pragmatismo" para Quine, como para James ou Le Roy, não passa de conforto psicológico;e parece-me irracional chamar a isso "racional".

362. Sobre tais "defesas resumidoras de conceitos" e "refutações amplia-doras de conceitos", cf. meu ensaio de 1963-4, intitulado "Proofs and Refu-tations".

23 0

dança em alguma parte distante do nosso conhecimento total (fora domodelo dedutivo) e por essa maneira restaurar a consistência.

Podemos formular esa observação trivial dizendo que "cada teste

é um desafio ao conjunto do nosso conhecimento"?  Não vejo nenhu-ma razão para não o fazer. A resistência de alguns falseacionistas aesse "dogma holístico do caráter `global' de todos os testes"

363deve-

se apenas a uma fusão semântica de duas noções diferentes de "teste"(ou "desafio") que um resultado experimental recalcitrante apresentaao nosso conhecimento.

 A interpretação popperiana de um "teste" (ou "desafio") é queo resultado(0)contradiz ("desafia") uma conjunção finita, bemespecificada de premissas ( T) : O & T não podem ser verdadeiros .

Mas nenhum protagonista do argumento Duhem-Quine negaria esse ponto.

 A interpretação quineana do "teste" (ou "desafio") é  que a

 substituiçãodeO & T  pode invocar alguma mudança também forade O e T. O sucessor de O&T  pode ser incompatível com H emalguma parte distante do conhecimento. Mas nenhum popperiano

negaria esse ponto.A fusão das duas noções de procedimento de teste conduziu a

alguns mal-entendidos e erros lógicos. Algumas pessoas sentiramintuitivamente que o modus tollens da refutação pode "repercutir"nas premissas muito distantes em nosso conhecimento total e, por-tanto, viram-se apanhadas na idéia de que a "cláusula ceteris paribus" 

éuma premissa que se associa conjuntivamenteàs premissas óbvias.Logra-se, porém, essa "repercussão" não pelo modus tollens mascomo resultado da substituição subseqüente do nosso modelo dedu-tivo oríginal.

364

363. Popper, Conjectures and Refutation, 1963, capítulo 10, seção XVI.364. 0tocus classicus desta confusão é a crítica teimosa de Popper levada

a efeito por Canfield e Lehrer em seu ensaio de 1961, "A Note on Predictionand Deduction"; Stegmüller seguiu-os ao pântano lógico no seu trabalho de1966 a que deu o título de "Explanation, Prediction, Scientific Systematizationand Non-Explanatory Information" (p. 7). Coffa contribuiu para a elucidaçãodo problema num ensaio publicado em 1968: "Deductive predictions".

Infelizmente, minha própria fraseologia neste trabalho em certos lugaresdá a entender que a "cláusula ceteris paribus" tem de ser uma premissa inde-

 pendente na teoria que está sendo testada. Minha atenção foi chamada paraessa falha facilmente reparável por Colin Howson.

231

:t62Poderíamos prosse-

 

Desse modo, a "tese fraca de Quine" mantém-se trivialmente.Mas a "tese forte de Quine" encontrará vigorosa oposição não só do

leais ao seu núcleo, eles terão permissão para fazê-lo. E se um gênioaparecer decidido a substituir ("progressivamente") uma teo ria não-

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falseacionista ingênuo mas também do sofisticado.

O falseacionista ingênuo insiste em que, se tivermos uma sérieinconsistente de enunciados científicos, p rimeiro teremos de escolher dentre eles (1) uma teoria que esteja sendo testada (para servir denoz); depois precisamos escolher (2) um enunciado básico aceito(para servir de martelo)eo resto será conhecimento de fundo não-

-contestado (para servir de bigorna). E para dar a devida força a essa postura, precisamos oferecer um método de "endurecer" o "martelo"e a "bigorna" para poder quebrar a "noz" e, assim, realizar uma"experiência crucial negativa". Mas a "adivinhação" ingênua dessadivisão é demasiado arbitrária, não nos dá nenhum endurecimentosério. (Grünbaum, por outro lado, aplica o teorema de Bayes paramostrar que, pelo menos em certo sentido, o "martelo" e a "bigorna"têm altas probabilidades posteriores e, po rtanto, são "duras" bastante para ser usadas como quebra-nozes.365)

O falseacionista sofisticado permite que qualquer  parte do cor- po da ciência seja substituído mas só sob a condição de que sejasubstituído de modo "progressivo", de sorte que a substituição ante-

cipe com êxito fatos novos. Em sua reconst rução racional do falsea-mento, "experiências cruciais negativas" não desempenham papel al-gum. Ele não vê nada de errado num g ru po de cientistas brilhantesconspirando para acondicionar tudo o que podem no seu programade pesquisa ("referencial conceitual", se quiserem) favo ri to com umnúcleo sagrado. Enqu anto o gênio — e a sorte — lhes permitemexpandir o programa "progressivamente", enquanto permanecerem

365. Grünbaum assumiu anteriormente uma posição de falseacionismo dog-mático e afirmou, referindo- se aos seus estudos interessantes de geomet ria física,que podemos verificar falsidade de algumas hipóteses científicas (por exemplo,"The Falsifiability of the Lorentz-Fitzgerald Contraction Hypothesis", de 1959,e "The Duhemian Argument", de 1960). Ao primeiro desses ensaios seguiu-se

o ensaio de Feyerabend, "Comments on Griinbaum's 'Law and Convention inPhysical Theory'" (1959), em que o autor argumentou que "as refutações s6são finais enquanto faltam explicações alternativas engenhosas e não-triviaisda evidência". Em seu trabalho de 1966, intitulado "The Falsifiability of aComponent of a Theoretical System", Grünbaum modifica sua posição e depois,em resposta à crítica de Mary Hesse (Hesse, Crítica de Grünbaum, 1968) eoutros, restringiu-a ainda mais: "Pelo menos em alguns casos, podemos deter-minar a falsidade de uma hipótese componente para todas as finalidades cientí-ficas, embora não possamos falseá-la além de qualquer possibilidade de reabi-litação subseqüente" (Grünbaum, "Can We Ascertain the Falsity of a ScientificHypothesis?" 1969, p. 1.092).

232

-contestada e corroborada, que não lhe agrada por motivos filosófi-cos, estéticos ou pessoais, felicidades para ele. Se dois grupos desen-volvendo programas rivais de pesquisa competirem, o que tiver maistalento criativo tenderá a ser bem-sucedido — a não ser que Deus ocastigue com uma extrema falta de êxito empírico. Adireção daciênciaé determinada principalmente pela imaginação cri ativa hu-

mana e não pelo universo de fatos que nos cercam. Aimaginaçãocriativa tem probabilidades de encontrar uma nova evidência corro- boradora até para o programa mais "absurdo", se a busca for conve-nientemente orientada.

366Essa busca de uma nova evidência corrobo-

radora é  perfeitamente permissível. Os cientistas sonham com fanta-sias e depois se empenham numa caçada altamente seletiva de fatosnovos que se ajustem a essas fantasias. Esse processo pode ser des-crito como a "ciência criando seu próprio universo" (enquanto noslembrarmos de que aqui se usa "criando" num sentido provocativo--idiossincrático). Uma escola brilhante de estudiosos (patrocinada por uma sociedade rica desejosa de financiar alguns testes bem pla-nejados) pode ter êxito na execução de qualquer programa fantás-tico ou, alternativamente, se tiver inclinação para tanto, no derruba-

mento de qualquer pilar arbitrariamente escolhido do "conhecimentoestabelecido".

O falseacionista dogmático erguerá as mãos aos céus horroriza-do por esse enfoque. Verá o espectro do instrumentalismo de Bellar-mino erguer-se do entulho debaixo do qual o êxito newtoniano da"ciência provada" o havia enterrado. Acusará o falseacionista sofis-ticado de construir sistemas procustianos arbitrários e forçar os fatosa ajustar-se a eles. Pode até brandi-lo como revitalização da profanaaliança irracionalista entre o pragmatismo tosco de James e o volun-tarismo de Bergson, triunfantemente vencido por Russell e Steb-

366. Um exemplo típico dessa natureza é o princípio de Newton de atra-

ção gravitacional, de acordo com o qual os corpos se atraem uns aos outrosinstantaneamente de imensas distâncias. Huyghens descreveu a idéia como "ab-

surda", Leibnitz como "oculta", e os melhores cientistas do tempo "entraram aindagar como [Newton] pudera dar-se a tanto trabalho fazendo um número tãogrande de investigações e cálculos difíceis sem outro fundamento além dessemesmo princípio" (cf. Koyré, Newtonian Studies, 1965, pp. 117-18). Eu já sus-tentara anteriormente que não é verdade que o mérito do progresso teórico

 pertence ao teórico, mas que o sucesso empírico é apenas uma questão de sorte.Se o teórico for mais imaginativo, é mais provável que o seu programa teóricoobtenha, pelo menos, algum sucesso empírico. Cf. meu ensaio, "Changes in theProblem of Inductive Logic", 1968, pp. 387-90.

233 

 bing. 367Mas o nosso falseacionismo sofisticado combina "instrumen-talismo" (ou "convencionalismo") com um vigoroso requisito empi-rista que nem os "salvadores de fenômenos" medievais, como Bel-larmino nem pragmatistas como Quine e nem bergsonianos como Le

REFERENCIAS

Agassi [1959]: "How are Facts Discovered?", Impulse, 3, n.° 10, pp. 2-4.A i [1962] "Th C f i b t Ph i d M t h i i th St

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larmino, nem pragmatistas como Quine e nem bergsonianos como LeRoy tinham apreciado: o requisito de Leibnitz-Whewell-Popper deque aconstrução — bem planejada — de compartimentos há de

 prosseguir muito mais depressa do que o registro de fatos que devem

 ser guardados neles. Enquanto esse requisito for satisfeito, pouco im- portará, que acentuemos o aspecto "instrumental" dos programas de pesquisa imaginativos para descobrir fatos novos e fazer predições

merecedoras de fé, ou que acentuemos a "verossimilhança" poppe-riana crescente e putativa (isto é, a diferença estimada entre o con-teúdo de verdade e o conteúdo de falsidade) de suas versões sucessi-vas. 368O falseacionismo sofisticado combina assim os melhoreselementos do voluntarismo, do pragmatismo e das teorias realistas docrescimento empírico.

O falseacionista sofisticado não toma o partido de Galileu nemo do Cardeal Bellarmino. Não toma o partido de Galileu porqueafirma que todas as nossas teorias básicas podem ser igualmenteabsurdas e inverossímeis para a mente divina; e não toma o partidode Bellarmino, a não ser que o cardeal concordasse em que as teo-rias científicas ainda podem conduzir, a longo prazo, a conseqüên-

cias cada vez mais verdadeiras e cada vez menos falsas e, nesse sen-tido estritamente técnico, podem ter crescente verossimilhança".

369

367. Cf. Russell, The Philosophy of Bergson (1914), Russel, History of Western Philosophy (1946) e Stebbing, Pragmatism and French Voluntarism(1914). Justificacionista, Russell desprezava o convencionalismo: "Assim comoa vontade subiu na escala, o conhecimento desceu. Essa foi a mudança maisnotável que se verificou na disposição de espírito da filosofia do nosso tempo, preparada por Rousseau e Kant..." (  History of Western Philosophy, p. 787).Popper, naturalmente, foi buscar parte da sua inspiração em Kant e Bergson.(Cf. sua Logik der Forschung, 1934, seções 2 e 4).

368. Sobre "verossimilhança" cf. Popper, Conjectures and Refutations,1963, capítulo 10, e mais adiante, a nota de pé de página seguinte; sobre "fide-dignidade" cf. meu ensaio de 1968, "Changes in the Problem of Inductive Lo-gic", pp. 390-405 e também meu trabalho de 1971, "Popper zum Abgrenzungs-

und Induktionsproblem".369. "Verossimilhança" tem dois significados distintos, que não se devemconfundir. Primeiro, o termo pode ser usado para significar a intuitiva seme-lhança à verdade da teoria; nesse sentido, no meu entender, todas as teo ri ascientíficas criadas pela mente humana são igualmente inverossímeis e "ocultas".Segundo, ele pode ser usado para significar uma diferença conjunto-teoréticaentre as conseqüências verdadeiras e falsas de uma teoria que nunca poderemosconhecer mas que podemos presumir. Foi Popper quem empregou "verossimi-lhança" como termo técnico para denotar essa espécie de diferença (Conjectures

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 jectures and Refutation, pp. 399 e seguintes) mas nenhuma para a primeira.Bellarmino, todavia, poderia ter concordado em que a teoria coperniciana tinhagrande "verossimilhança" no sentido técnico de Popper, mas não tinha nenhu-ma verossimilhança no primeiro sentido, intuitivo. Quase todos os "instrumen-talistas" são "realistas", pois concordam em que a "verossimilhança" [poppe-riana] das teorias científicas provavelmente está crescendo; mas, ao mesmotempo, não são "realistas", pois concordam, por exemplo, em que o enfoque decampo einsteiniano está intuitivamentemais próximo do Esquema do Universodo que a ação newtoniana à distância. O "objetivo da ciência", portanto, podeestar aumentando a "verossimilhança" popperiana, mas não precisa estar aumen-tando a verossimilhança clássica. Esta última, como diz o próprio Popper,à diferença da primeira, é uma "idéia perigosamente vaga e metafísica" (Con-

 jectures and Refutation, 1963, p. 231).A "verossimilhança empírica" de Popper, em certo sentido, reabilita a

idéia do crescimento cumulativo na ciência. Mas a força propulsora do cresci-mento cumulativo na "verossimilhança empírica" é conflito revolucionário na"verossimilhança intuitiva".

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 Não será perigosamente enganoso falar como se a verdade tarskiana estivesselocalizada em algum lugar, numa espécie de espaço métrico ou, pelo menos,topológico, de modo que podemos dizer sensatamente de duas teorias — digamosuma teoria anterior t, e uma teoria ulterior t, — que t, suplantou t, ou progrediualém de t 1 , aproximando-se mais da verdade do que t,?" (Popper, Conjecturesand Refutations, 1963, p. 232). Popper rejeitou minhas vagas apreensões. Eleachava — com razão — que estava propondo uma nova idéia importantíssima.Enganava-se, porém, ao acreditar que sua concepção nova e técnica da "veros-similhança" absorvia completamente os problemas na velha "verossimilhança"intuitiva. Diz Kuhn: "Dizer, por exemplo, de uma teoria decampo que ela "estámais próxima da verdade" do que uma teoria mais antiga de matéria e forçadeveria significar, a menos que as palavras estejam sendo estranhamente usadas,que os constituintes finais da natureza são mais parecidos com campos do quecom matéria e força." (neste volume, mais adiante, p. 327; o grifo é meu). Naverdade, Kuhn está certo, mas as palavras de fato, costumamser "estranha-mente usadas". Espero que esta nota contribua para o esclarecimento do proble-ma em apreço.

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