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Lamborghini
Juliano Martinz
Enquanto despencava do 32º andar, Lamborghini se perguntava quem teria sido o
miserável que o empurrara, covardemente, edifício abaixo. Pela fração de um instante,
pensou em Helena. Mas ela não faria isso. É verdade que ele simplesmente a usara. Mas
Helena tinha uma dívida com ele – ele salvara sua vida. Essa foi a conclusão a que ele
chegou no vigésimo primeiro. No décimo sexto, lembrou-se de Samantha. Mas Samantha
ainda era uma mulher sensível, e mulheres sensíveis não empurram homens do 32º
andar, mesmo o tal homem sendo o dissimulado Lamborghini. Quando faltava menos de
um andar para Lamborghini arrebentar seu crânio contra o chão, ele pensou que o melhor
a fazer era fechar os olhos, e pela primeira vez em sua vida, se resignar.
Abriu a boca para se despedir do mundo que o acolhera e que alimentara sua
ganância de um dia dominá-lo; e teria feito, se o seu rosto não tivesse se chocado (e se
dilacerado) violentamente contra o concreto da rua Augusta.
Três horas depois.
- Tem certeza do que acaba de me dizer?
- Como não teria?
- Não consigo entender porque ele faria isso.
- Você me perguntou o que aconteceu.
- Por que seu noivo se jogaria do 32º andar?
- Ele não era meu noivo.
- Por que seu noivo se jogou daquele prédio?
- Eu não sei.
- Não está ajudando.
- O que quer que eu diga?
- A verdade.
- Mas...
- Temos uma garota na outra sala, e ela diz que ele foi empurrado.
- Empurrado por quem? Não havia ninguém no apartamento, além de nós dois.
- Algo me diz que está mentindo.
- Mas, por que infernos eu mentiria?
- Porque acho que você empurrou o miserável.
Quinze minutos antes.
- Ele foi empurrado.
- Quem o empurrou?
- Eu não sei. Estava escuro.
- O que você viu?
- Eu já disse... inferno.
- Tente se acalmar. Preciso de detalhes.
- Eu havia acabado de chegar. Entrei no apartamento. Não vi Lamborghini. Chamei
por ele, mas não houve resposta. Imaginei que ele estivesse na cobertura. Ele costumava
passar horas lá em cima. Então...
- Então...?
- Então...
- O que viu, Samantha?
- Então, eu subi. E vi tudo. Estava com uma capa preta... estava com uma capa
preta e o empurrou... Ele não teve chance.
- Quem empurrou? Era homem ou mulher?
- Eu não sei. Acho que nem uma coisa nem outra.
- Como assim?
- Um anjo.
- Um anjo?
- Sim. Um anjo empurrou Lamborghini.
31º ANDAR
A boca da safada fedia a esgoto. E se não fosse minha prática em beijar bocas tumulais
de garotas vazias buscando um sentido na vida, confesso, teria vomitado tudo o que
comera naquela noite.
Essa foi minha primeira lembrança, em minha queda inevitável, meu fôlego a
poucos segundos de cessar, fim previsto. Qualquer coisa pode ser prevista numa vida
monótona. Mas não a minha. Pelo menos, penso que não. Tento recobrar toda minha
memória, entender as entrelinhas, capturar alguns sentidos para que a equação me ajude
a entender porque estou caindo desse prédio, segundos após sentir duas mãos em minhas
costas, me empurrando. Ah, a queda inevitável. O fim inevitável.
Não deve ser fácil narrar a própria história menos de dez segundos antes de
morrer. Para ser honesto, não sei quanto tempo tenho até me arrebentar lá embaixo. Mas
tentarei descobrir, no pouco tempo que me resta, porque estou aqui. Não digo que o
farei, porque nunca fiz isso em minha vida – afinal, nunca fui covardemente empurrado do
alto de um prédio de 32 andares.
Vamos, portanto, aos fatos. Não tenho muito tempo.
Fato um: meu nome é Lamborghini.
Fato dois: a boca da safada fedia a esgoto.
30º ANDAR
Onde eu estava? Lembre-se.
Respiro fundo. É bom ser quem eu sou. É bom estar onde estou. Não
necessariamente na cobertura do meu prédio, mas em minha posição de vantagem sobre
os vermes que me rodeiam. Uns 8 bilhões. Oito bilhões de vermes com suas vidinhas
insuportáveis, tentando sorrir. As pessoas sempre procuram motivos. Motivos para tudo. E
para o nada. Nadam em falso. Falsificam suas experiências, como se pudessem reescrever
a cada dia, uma nova história. As pessoas não buscam mais a felicidade. Desistiram dela.
Ou será que a felicidade desistiu das pessoas? Tanto faz. O fato: pessoas buscam apenas
sensações. Um novo motivo para continuar. Não almejam mais viver pra sempre. Querem
motivos para chegarem vivas até amanhã. São inseguras. Desesperadas por uma mão que
as conduza, enquanto assistem ao noticiário da televisão. E se mascaram atrás de
gargalhadas, e das sensações que constroem como castelos de areia à beira do mar.
Vivem em estado vegetativo. Estafados e inativos. Querem apenas curtir.
Então, curtam-me agora, canalhas. Chegou a minha vez.
De repente, um baque em minhas costas. Sem ruídos, sem precedência qualquer.
Apenas aquele baque. Percebo: duas mãos. Mãos assassinas. Certeiras. Rápidas. Mãos
rápidas de alguém rápido. Sou precipitado a frente. Droga! Agora ferrou. Tento me
agarrar a alguma coisa. Mas não há nada. A não ser... ar. Será que dá pra impedir a
queda dum corpo de 75 quilos agarrando o ar? Tarde demais. Daqui pro chão são alguns
andares. Alguns segundos para descobrir quem resolveu ferrar com minha vida.
Sou o arremessado. O vazio que você sempre evitou.
Fato um: acabo de ser empurrado da cobertura do prédio onde moro.
Fato dois: tenho menos de 10 segundos para descobrir quem fez isso.
28º ANDAR
Algo me diz que a resposta à questão não está aqui, nos últimos minutos, ou na última
hora que passei em meu apartamento. Recapitular do final pode parecer inteligente. Mas
às vezes, pode ser exatamente contraproducente. A ordem correta das coisas nos faz fluir
melhor os detalhes. E é nos detalhes que a maioria das questões se resolve. Potências são
derrubadas, nomes são louvados, amores são rompidos – tudo por detalhes. Assim,
melhor escolher a sequência correta. Primeiro, aperto o stop. Depois o play. A resposta
deve estar lá, pouco depois de toda essa porcaria começar. Depois que dei os primeiros
passos para conquistar o mundo. E não preciso voltar tanto tempo assim. Na verdade, o
que me difere de humanidade é justamente isso: faço o que tem de ser feito antes que
você conceba ser isso possível.
Melhor voltar ao começo.
Então, volte...
Volte...
Volte.
26º ANDAR
Na tela do computador, ela parece perfeita. As pessoas costumam ter essa aura enganosa
quando apenas construção “byteana”. Seu sorriso transmite plenitude, alvor juvenil. Não é
possível sentir a propagação fétida do seu hálito podre. Sem defeitos. Sem danos. Sem
poluição. Abaixo da foto, os dizeres: “Eu, sorrindo”.
- Gosto do seu sorriso – sussurro.
- O que disse? – pergunta a voz lúgubre da mesa ao lado.
Minimizo a janela do meu navegador. Olho para ela. Minha subalterna. Os cabelos
carregados de tufos brancos, as narinas protuberantes parecendo dois fornos, um buço
hitleriano, e uma história de falta de amor.
Saco meu sorriso mais arrebatador e disparo, lenta e apaixonadamente:
- Gosto do seu sorriso.
Ela mostra as dentarias (não posso chamar aquele arreganhamento dos infernos de
“sorriso”). Fica vermelha. Pobre... pobre... Esqueci seu nome. Pobre mulher, inamável. Ela
volta ao seu trabalho. Eu, não. Não faço porcaria nenhuma durante a maior parte do dia.
Afinal, qual seria a razão de eu deter o título de chefe do departamento? Por isso,
maximizo a tela do computador. Novamente, o sorriso. Quem diria?, bafo tumulário!!!
Alguns cliques e saio do seu álbum. Agora, resolvo olhar o nome dela – numa lista de
importância, o nome sempre fica em último lugar. Junto com sua história e interesses
pessoais.
Fato primeiro: ela é filha do presidente da companhia.
Fato último: seu nome é Helena Boaventura.
24º ANDAR
Se você me perguntar quem eu sou, tenho a resposta pronta: sou o cara que vai te ferrar.
Não uso armas de fogo, jamais dei um soco em minha vida, e tampouco sei qual o gosto
do sangue. Mas tenho as duas únicas armas que preciso para derrotar o que se postar
diante de mim: lábia e inteligência.
Conquistar o mundo pode parecer uma louca pretensão. Mas sou louco e
pretensioso. Portanto, cale a boca, e aprenda. Esse mundo está cheio de vermes.
Rastejantes ou não, não passam de vermes. E eu costumo dividi-los em dois tipos. Nada
mais do que isso. Os resistentes e os subordinados. Os últimos trocariam suas almas por
um prato de comida. E tenho mais do que um prato de comida a lhes oferecer. O outro
grupo compõe-se dos resistentes; ao menos, nominalmente. Digo “nominalmente” porque
são fracos ao extremo. Pessoas que confiam todo seu universo à tecnologia, fazendo
transações comerciais e bancárias, preenchendo cadastros, expondo suas preferências –
tudo ali, na internet. Rendem-se diante da oportunidade de mostrarem quem são, onde
estão e porquê estão. Para mim, tolos vulneráveis. Conheço seu ponto fraco, e posso
derrotá-los de mãos vazias. Seria até deprimente se eu, da forma como só eu sei, não
pudesse tirar proveito dessa ignorância enraizada.
É por isso que digo: sou o cara que vai te ferrar.
Sou um programador. Correção: sou O Programador. Qualquer imbecil me julgaria
convencido, megalomaníaco, o narcisista da hora. Mas, não se conquista o mundo com
megalomania. Por isso, não perco meu tempo com espelhos, diários, ou plantações de
árvores. Estou pouco me lixando para consciência, ou agrados pessoais. Tenho um
objetivo, e não permito que sentimentos deturpem minha concentração. Tudo o que faço,
sei, concluo, planejo pode ser colocado em algumas linhas no computador. Por isso, me
apego apenas aos fatos.
Sou O Programador. Não sei se o melhor do mundo. Para ser sincero, não o
melhor. Mas o mais esperto. E isso significa tudo, meu caro. Enquanto as pessoas tentam
colocar em prática tudo o que aprenderam na escola, perpetuando a ignorância, eu
sempre tentei provar que estavam errados. E o que aprendi? Programas recebem dados, e
dados, e dados, e dados. E o que eles fazem com esses dados? Eu te digo: me dão o
poder que necessito para dominar o mundo.
Fato primeiro: eu sei como conquistar o mundo.
Fatos consecutivos: ninguém jamais concebeu ser isso possível.
23º ANDAR
Trabalho em uma das maiores fabricantes de componentes eletrônicos do mundo.
Chipsets. Chips. Cada chip, um programa, um firmware. Eu desenvolvo firmwares. Os
componentes eletrônicos da empresa onde trabalho estão em computadores, monitores,
smartphones, impressoras, telefones. Os componentes estão lá. E eu também. Prestou
atenção? E EU também. Isso resume tudo. Foi ali que consegui instalar meu vírus, meu
primogênito. Do firmware pro software. A vantagem: firmwares são menores que
softwares. Eficientes, e pequenos. Assim nasceu meu filho: pequeno e infernal de
eficiente. A maneira do vírus trabalhar, recolhendo e transferindo dados sem intervenção
do usuário, não foi capturada como ameaçadora pelos antivírus, no princípio. Ele fazia
também o caminho inverso. Do computador, o vírus infectava chips de monitores,
impressoras, webcams, TVs e celulares. Recolhimento de informações. E transferência.
Nos meus servidores, outros vírus, os irmãos, começaram a montar os dossiês. Desde o
momento em que o computador é ligado, ele captura tudo. E montam dossiês de pessoas,
empresas, governos. Interpretação de cada tecla digitada. Posts, comentários, avaliações.
Códigos, senhas, contas bancárias, lugares favoritos, bebida favorita, o próximo encontro.
Em resumo, tudo. Um filho da mãe genial. Através dos dossiês, eu poderia saber o que
quisesse sobre qualquer pessoa que tivesse uma vida virtual. O número dos seus
documentos, suas senhas, suas últimas férias, o nome do seu cachorro.
Em uma semana, milhões de casas infectadas. Ao final de dois meses, bilhões.
Um filho da mãe genial.
21º ANDAR
Quando conheci Helena percebi que ela tentava esconder a morbidez de sua vida atrás
daquele sorriso. Qualquer otário se enganaria – todos se enganavam – mas não eu. Lábia
e INTELIGÊNCIA, lembra? A mim não enganam. A linha do sorriso denuncia tudo. Aposto
que a infeliz já havia se entupido de comprimidos e vodca depois de esgotar-se na busca
de um sentido na vida. E depois vinha com aquela porcaria de sorriso mascarando toda a
angústia dos infernos que mastigava cada órgão seu.
- Prazer, sou Helena Boaventura. – Ênfase no sobrenome. Filha do dono da
empresa. Faz questão de deixar isso claro. Um sorriso falso e um sobrenome – seu escudo
é só esse.
Beijo sua mão. Pele delicada. Alva. Tênue como o véu do horizonte. Branca como o
mármore de um mausoléu. Vontade morder. Um miserável como eu tem tempo pra tudo.
Até pra pensar coisas como essas. Mas acho que ela ia gostar. Ela tem cara de quem ia
gostar. Pra quem já deve ter tentado se matar uma dúzia de vezes, uma mordidinha na
mão poderia até lhe parecer agradável. Ou talvez não. Nesse caso, seria um tapa na cara,
alguns xingamentos, e uma carta de demissão na minha mesa, no dia seguinte. Melhor
deixar a mordidela pra lá.
- É um prazer conhecê-la! – Prazer o inferno! – Me chamo Lamborghini. – Na
verdade, me chamo Pedro Lamborghini. Mas meus pais haviam comido estrume no dia em
que escolheram esse nome. Melhor me esconder atrás do sobrenome, como a Srta. Adeus
Mundo Cruel me ensinou.
Estamos numa festa na empresa. Odeio festas. Não há sinceridades em festas. Ali,
tudo é obrigatório. Obrigatoriedade. Você é obrigado a um milhão de coisas numa festa.
Obrigado a cumprimentar e conversar com pessoas que odeia. Obrigado a comer comida
podre. Obrigado a sorrir, e sorrir e sorrir. Festa é ditadura.
E nesta, em particular, só zumbis. Zumbizaiada pra tudo quanto é lado. Velhos
acionistas da empresa. Por Deus, como conseguem caminhar? Deve ser alguma injeção.
Essas múmias mal conseguem respirar. A pele ressequida e flácida pende ao sabor do
vento. Sensibilidade zero, no mínimo. Os corpúsculos de Vater-Pacini, de Meissner, de
Krause já se aposentaram há décadas. Ninguém se surpreenderia com algum infarto
durante aqueles momentos lânguidos da festa sem graça. E bota sem graça nisso. Zumbis
por todos os lados; eles e seus descendentes, além de meia dúzia de puxa-sacos. Trinta e
sete, no total. Trinta e sete lacaios se atirando sobre comida pobre. Hoje, em especial,
lagosta. Nessas horas, perdem a classe. Perdem a classe, mas mantém a classe. Deu pra
entender? Pelo menos, eles tentam. Avançam sobre as carcaças como selvagens, mas
ainda mantém aquele ar de superioridade. O que seria um zumbi com ar de
superioridade? Venha até essa festa, e eu te mostro.
Helena olha ao redor. Quer se certificar de que é notada. Quem não a notaria?
Bonita até cansar. Mas ela é insegura. Como todas as de sua laia. Precisam da
reafirmação de que são amadas e invejadas a cada minuto. Sempre assim. Se a regra é
quebrada, se por um instante, a idolatria desaparece, elas se desesperam. Acham que
perderam toda a supremacia. Aí uma infeliz dessas se atira sobre cartelas de duloxetina,
citalopram, reboxetina e uma garrafa de whisky ou vodca pra ajudar toda essa porcaria a
descer. Até alguém da família encontrar a infeliz desmaiada numa poça de vômito,
decorados com restos da lagosta e com manchas de um sangue quase preto, e acionar
uma ambulância. Os médicos de plantão adoram atender casos assim. Recebem uma
fortuna para calarem a boca, e não divulgarem que o filho ou filha do magnata bom do
pedaço tentou dissolver o estômago com um coquetel capaz de derrubar um elefante. Um
atendimento desses, e o cara garante férias de um mês na Europa para toda a família.
- Esse ar me sufoca – Sou eu quem fala. – Preciso de ar. Me acompanha?
Ela entende. Quero dar uma volta lá fora, perto da piscina, longe das múmias. Não
sei você, mas odeio paquerar uma garota cercado por zumbis.
Ela pensa antes de aceitar. E diz um “tá” ocasional, bem banal. Besteira! Aceitou
logo de cara, de primeira, e fica fazendo ceninha pra parecer difícil. Como se fosse uma
garota segura. Sei. Segura. Tá bom. As doxepinas e maprotilinas no banheiro dela que o
digam. Está nos olhos dela. Anormalidade dos neurotransmissores monoaminérgicos. E
ainda dá aquela balançada nos cabelos, finge pensar, e diz: um “Tá”, com aquela
languidez toda. Vontade socar o estômago.
Lá fora. Eu e ela. Sós. Todos estão lá dentro. Lógico. A comida foi servida. Os
setritívoros e necrófagos se posicionam. Aqui fora, o vento bate em seus cabelos. Os
cabelos de Helena dançam ao ritmo da brisa. Revelam seu pescoço branco. Penso em
morder. De novo. É que o negócio é convidativo pra burro.
E então começa o jogo. Aquela porcaria toda que você só aprende na prática,
embora alguns teimem em dizer que é possível estabelecer regras e procedimentos. Só
pra arrancar grana dos trouxas. Estou falando sobre conquistar uma mulher. É difícil
definir isso. Mas resumindo, passe segurança, e ela estará no papo. Mas precisa ser
sincero. Se você for um cara inseguro, então vá morar sozinho e cuidar de porcos. Ou
qualquer porcaria do tipo. Você é seguro ou não é. Isso aí não se aprende. Você pode
aprender como revelar sua segurança. Mas aprender a ser seguro não dá. Se você é um
cagão, se feche em seu quarto e vá feder sozinho. É o melhor que pode fazer, pode
acreditar.
Onde eu estava? O jogo. Ah, o jogo. É uma amolação dos infernos. Cheio de
etapas. Odeio etapas. As pessoas devem se achar eternas. Sempre achando que podem
adiar o que querem agora. Tudo pela causa do que chamam de “clima”. Por que não ser
mais direto? Realmente, não entendo. Mas, enfim, a porcaria do jogo funciona assim:
Você tem que fazer perguntas para ela e sobre ela. Para ela se sentir importante.
Faça isso, ou a infeliz vai se entupir de inibidores de monoaminoxidase. Quando ela
responder, finja estar interessado. Use e abuse do “sério?”. Levante as sobrancelhas
sempre. “Sério?” sem sobrancelhas erguidas, não é sério. E bote ela pra falar. Incentive a
cidadã a falar. Elas gostam disso. Coloque-a no lugar que ela quer estar: no topo, mesmo
que você a deseje no chão enquanto limpa seus pés empoeirados nas costas dela. Depois,
revele algo a seu respeito. Algumas de suas consecuções. Mas não deixe ela perceber que
você faz isso de propósito. Só perdedores tem essa necessidade. E mulheres fogem de
perdedores como eu fujo de idiotas como você. Entendeu?
Eu passei por todas essas etapas com Helena. Deu um sono terrível. Mas acabou.
Ela me enlaça com seus braços. Sinto o perfume dela. É almíscar. Ela passou demais.
Garotas como Helena sempre exageram no perfume. Tem medo de errar na dosagem. Aí
socam meio litro, pra garantir. Mesmo porque elas gostam de deixar um corredor
odorífero pra cambada de idiotas se lembrarem delas meia hora depois de deixar o
aposento. Cítricos, florais aldeídos, chipres florais, aromáticos secos e frutados. O carimbo
mais sedutor que encontraram para se gravar na mente dos seus observadores. Como se
Helena precisasse disso! Helena entalha-se na memória de qualquer um só com aquele
rosto. E aquele pescoço. Ah, que pescoço! Um dia ainda pego uma faca e passo bem
rente, um ou dois pedacinhos, com limão. Deve ser o inferno de bom!
- O que disse? – Ela pergunta. Eu não disse nada, e ela manda um “o que disse?”
pra fazer charme antes de eu beijá-la. Estamos com os lábios quase em contato. As
mulheres sempre esperam uma frase de efeito antes do beijo. É por causa do tal “clima”.
Adivinha o que solto?
- Disse que sou um cara de muita sorte em ter os lábios mais quentes desse mundo
sobre os meus.
Ela se derrete. Quem não se derreteria?
Nessa noite, ela vai deixar as doxepinas em paz.
Ah, e a porcaria do médico que adie as férias pra Europa.
18º ANDAR
Vamos aos fatos.
Quando Helena me perguntou “O que disse?”, aquela proximidade de fazer inveja a
qualquer marmanjo, tive a impressão de ter acabado de abrir um túmulo. Algo assim,
simples e direto. Chego num cemitério, escolho um túmulo vedado há uma semana, abro
e respiro fundo. Deu pra entender? A língua dela devia ser um cadáver. Ou o estômago,
sabe-se lá. Em suma: decomposição. O meio litro de almíscar no corpo dela já não fazia
mais efeito algum. Só aquele fedor cadavérico no ar. E aquele gosto na minha boca.
Enquanto a beijava, tive impressão que os vermes saltavam da língua dela para a minha.
Já se perguntou qual é o gosto de vermes vivos? Eu te digo: é azedo.
- O que você deseja? – Ela pergunta, momentos depois, eu atrás dela,
contemplando a piscina. Vira essa privada que você chama de boca pra lá, dona.
- Agora, amanhã ou no futuro? – Eu.
- E amanhã não é futuro? – Me encurrala, sorridente.
- Hum. Garota esperta. Ponto pra você. – Ela se remexe. É só elogiar, e elas se
remexem. Anote isso. Se deu uma remexida, tá no papo. – Bom, então preciso ser mais
objetivo. Agora eu quero aproveitar esse momento sublime com uma garota linda,
interessante e esperta que acabo de conhecer – ela se remexe –, amanhã meus planos
envolverão apenas o objetivo de dar a essa garota a noite mais linda com que já foi
presenteada – ela se remexe de novo –, e no futuro, beeeem futuro... quero conquistar o
mundo.
Acabei soltando essa. Bastante desproporcional à conversa. Mas fazer o que?
Quando vi, já tinha falado. Embora pudesse soar como uma frase imbecil, era, no final das
contas, a pura verdade. Mas ela entenderia de uma de duas formas: ou acharia que eu
estava fazendo graça, ou que usava de algum simbolismo. Acho que ela entendeu a
segunda opção, afinal, arrematou:
- Ah, eu quero conquistar a Lua. – Ela se vira para trás para me encarar. Tranco a
respiração. – Se me trouxer a Lua, eu sou sua. – De onde ela tirou essa pérola?
Sorrio. Respiração trancada. Concordo com a cabeça, um sorrisinho maroto que só
eu sei fazer. Ela se arrepia, e volta a olhar pra piscina. Fuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu... Santo
ar!
Daqui pra frente, é só descida. E não estou falando da queda que estou tendo. Me
refiro ao jogo da conquista: a parte mais difícil já passei. Agora é só administrar. Como se
administra uma relação? Deixo essa pra próxima, embora não haverá próxima. A
armadilha estava posta. Eu tinha a filha do presidente da companhia em minhas mãos. E
com a minha promoção, eu estaria lá dentro, bem lá, na cripta dos deuses, para
disseminar o vírus que colocaria todos os idiotas do mundo aos meus pés.
16º ANDAR
Tive acesso ao banco de dados da empresa, dois dias antes de conhecer a mansão de
Helena. Eu era o chefe do departamento. Mas isso não significa que eu pudesse fazer o
que bem entendesse, na hora em que bem quisesse. Um dia eu ainda chegaria a isso.
Faria o que bem quisesse com qualquer coisa. O dono do mundo. Mas ainda não. Não
ainda. Havia horários. Estatutos. Regras. E regras sempre quebram a genialidade de
qualquer um. Eu não podia estar ali, naquele horário. Ainda mais sozinho, altas horas.
Alguém me viu. Alguém me vê. Quem é o alguém? Já o vi antes, mas não sei o seu nome.
O nome é o último item numa lista de importância, lembra-se? Mas é alguém de
autoridade lá dentro. Se não fosse, não me questionaria. Alguém de autoridade. Mas um
puxa-saco. Esse mundo está cheio dessa raça maldita. Pessoas que não conseguem nada
por esforço próprio. Pessoas assim embrulham o meu estômago. E isso não é força de
expressão.
Ele para ao meu lado. Eu, sentado em frente ao computador. Coloca a mão na
cintura. Postura feminina. Usa um terno que custa metade do meu salário. Pelo visto
andou puxando muitos sacos. Sacos enrugados de zumbis com 80 anos de idade. Vida
inútil! Se eu tivesse uma vida dessas, cortava os pulsos. E deixaria um bilhete: “Não se
preocupem. Não farei falta alguma”. Mas esse aí ainda não deu uma boa olhada no
espelho. Se o tivesse feito, já teria virado comida de verme. Por isso, tem a imponência
em cada célula do corpo, enquanto fica com aquela mãozinha na cintura esperando a
resposta à sua pergunta: “Que faz aqui?”. Adivinha se fico tenso. Um homem com a
minha capacidade, tenso? Tá bom. Lido com gente dessa laia com a mesma facilidade que
bocejo. Veja como funciona.
Não olho para ele. Se alguém tenta se impor sobre você, basta não olhar pro
miserável. Isso é o suficiente para desarmar qualquer um: ignorá-lo. Mas tem vida curta.
Não se pode ficar ignorando a pessoa, tão simplesmente. Se demorar mais do que alguns
segundos, ela reage. Então é preciso uma segunda atitude. Faça o que faço:
- Que inferno – grito. – Olha a porcaria que aprontaram nesse lixo.
Um acesso de raiva a plenos pulmões, amigo. Isso quebra qualquer um. Mas é
preciso dizer em voz bem alta. Nada de resmungos. Aposto que se um cara tiver uma
arma apontada pra sua cabeça, vai pensar duas vezes antes de puxar o gatilho. Reações
exasperadas e inesperadas, naquela hora em que ninguém cospe algo assim, deixa
qualquer um paralisado. Percebo, pelo canto dos olhos, o engomadinho engolindo em
seco. Chega ser engraçado. Mas não rio. Senão, o rito se perde.
Levanto-me e olho pra ele. Ergo um dedo.
- Essa porcaria vai feder, amigo. E quando isso acontecer, o meu estará fora da
reta. Isso eu garanto. – Começo a sair. Ainda paro e me volto para ele. – A propósito,
Samantha citou o seu nome.
- O quê?
Não respondo. Apenas saio.
Se você conhecesse Samantha, e eu te dissesse que ela citou seu nome, você
também teria um súbito aceleramento do coração e diria um “O quê?” boçal, como o
escroto ali. Coloque Helena e Samantha lado a lado, e me peça para escolher. A senhora
de uma dúvida.
Com essa frase, me elimino da memória do idiota. Ele nem vai se lembrar que eu
existo. Pelo menos por algumas horas. Samantha citou o nome dele. Bem, na verdade,
Samantha nem sabe que esse ser um dia foi cuspido junto com placenta por uma infeliz
mulher. Mas a frase vai deixar o idiota pensando no que a principesca Samantha teria dito
a seu respeito. E logo logo vai começar a dar asas à sua imaginação, alimentando desejos
secretos. Até a madrugada, já vai se imaginar acariciando os cabelos daquele monumento
de mulher, enquanto trocam juras de amor. Aquele é exatamente o tipo de cara que só
consegue mulher enquanto sonha ou delira. Mulheres não deveriam sequer olhar para
caras assim. Um “oi” e os idiotas já acham que a garota está apaixonada.
Saio, sem dizer mais nada. Escapei. É assim que um vencedor age. É assim que
alguém que quer dominar o mundo deveria agir. Qualquer perdedor ficaria urdindo
desculpas, tecendo argumentos, propondo subornos. Bobagem! Um homem que deseja
conquistar o mundo não se perde com coisas assim. Prefiro gastar meu tempo matando
uma mosca do que ficar barganhando com um engomadinho daquele.
Por falar nisto, naquele hora vi uma mosca sentada sobre a parede branca. Eba!!!
13º ANDAR
Samantha mordeu os lábios. Que inveja!
Almoçávamos num restaurante próximo a empresa. Ela e eu. Eu e ela. Não era
exatamente um almoço pra saciar a fome. Estava mais para um almoço de negócios.
Encher a barriga era só o pano de fundo. Samantha cuidava do dinheiro da empresa. O
que entrava, o que saía. Logo, era a máquina da empresa. E uma senhora de uma
máquina!
- Desenvolver um sistema de transferência de informações entre chips a esse custo,
me parece bastante excessivo. – Se você pedir um centavo pra Samantha, ela vai chiar.
Faz parte do jogo. Ela precisa reclamar. É paga pra isso.
- Eu pensaria o mesmo se não recuperássemos esse valor em dois meses.
- Você me parece otimista demais.
- Não sou emotivo, Samantha. – Era a verdade. – Nem sou um cara ganancioso –
uma senhora duma grande mentira. – O que estou te dizendo é com base no estudo
minucioso que nós realizamos do mercado. Um novo firmware para gerenciar as
informações relevantes e irrelevantes da BIOS, é tudo o que os equipamentos estão
precisando. Fizemos pesquisas junto às grandes corporações, e posso te garantir: vai
vender como água.
Ela morde o lábio de novo. Podia deixar um pedaço pra mim, gulosa egoísta.
Pensa. Ela concorda comigo. Mas isso não é suficiente. Ela pensa em argumentos
porque precisa argumentar com os acionistas da empresa. Por isso, fica ali, olhando para
o nada. Então dá uma garfada. As pessoas precisam comer para pensar. Eu sei disso. O
ponto fraco de 100% da humanidade: estômago. Ela mastiga como se estivesse sendo
filmada. Cada mastigada é cinematográfica. Daria para tirar uma foto, emoldurar, e
colocar na estante da sala. E todos a olham com admiração. Eu também, como não? Mas
não me apaixono. Nem por ela, nem por Helena, nem por ninguém. Nunca estive
apaixonado. Isso é para perdedores que precisam preencher vazios interiores.
Depois de outra sessão de garfadas e mastigadas sublimes, ela arremata:
- OK. Vou apresentar essa decisão ao conselho.
- Será que eles vão arrumar algum problema?
- Não. – Ela sorri. Com aquele sorriso, ela conquistaria o título de miss-qualquer-
porcaria. – A linha dura do conselho, sou eu.
9º ANDAR
Conheci o velho dela na velha mansão da velha capital. Tive essa impressão ao entrar:
cheiro de mofo. Podia ser só impressão. Entrar em um lugar escuro que você sabe que
tem mais de 100 anos, não causa uma impressão muito boa. Meu nariz ardeu adentrando
aquele mausoléu.
E o presidente da companhia se aproximou. Um passo. Outro. Apoiava-se. Adivinha
a cara que o velho fez ao me olhar de cima até embaixo. Te dou 10 horas pra pensar. Se
tem uma coisa que odeio é ser examinado por alguém que, entorpecidamente, acredita
estar acima de mim. Aquele corpo embalsamado que colocara Helena no mundo não era
mais influente do que eu. Nem a pau. Ele tinha apenas algo de que eu precisava. Mas isso
não o fazia melhor do que eu. E o que eu precisava daquele velho era um comunicado à
empresa: “Deixe ele entrar”. Simples assim: me deixar entrar. Para que o plano desse
certo, para que eu colocasse cada centelha no seu devido lugar, eu precisava ter acesso a
todos os cantos da empresa. Especialmente, à área de testes. Eu precisava mandar
naquela porcaria, ou não chegaria a lugar algum.
Enfim, o velho me encarou como se eu fosse um bom pedaço de carne pendurado
no açougue da esquina. Olhos assustadores. Pode acreditar. Dava pra tirar uma foto, em
close, e colocar no cartaz de algum filme de terror. Olhos empapados em sangue. Era algo
assim. A tênue e cansada túnica conjuntiva revelava um sangue vivo louco pra romper as
fronteiras e correr pelo seu rosto. A esclera era um mapa de vasos sanguíneos. E a íris era
de um verde-musgo aterrador. Não sei você, mas para mim, olhos verdes são olhos
amedrontadores. Se eu fosse diretor de filmes de terror, colocaria olhos verdes em todos
os monstros. Ia ser de um realismo dos infernos.
Quando ele chegou aos meus pés com aqueles olhos canibais, voltou pelo mesmo
caminho, subindo pelas pernas, até o tronco, e por fim, chegou aos meus olhos. Me
encarou. Se apagarem a luz, eu saio correndo.
- Quem é você, rapaz?
Só pra zoar com o atrófico, comecei a examiná-lo, de cima até embaixo. Confesso
que o que vi não justifica nenhuma explanação. Se não fosse aquele terno de cinco mil
dólares (o cara usava terno em casa?), não sei o que sobraria. No máximo, uma pele
desgastada e alvacenta (ou alvadia, ou albescente, ou albicante, ou qualquer outra
porcaria que preferir). Sei que quando voltei a encarar os olhos aberrantes da
monstruosidade, eles me fulminavam. Parece que ele não gostou da primeira impressão
que teve do namorado da filhinha bafo-de-búfalo dele.
Helena se apressou em me apresentar:
- Papai, esse é o meu namorado, que lhe falei. Pedro Lamborghini.
Que “Pedro”, sua maluca?
- Ora, ora. – Ele suspirou umas cinquenta vezes antes do “ora, ora”, recuperando o
controle. Acho que só não voou no meu pescoço porque não conseguia sequer ficar de pé.
– Não me lembro de tê-lo visto na empresa. Qual o seu departamento?
- Programação.
- Hum. O chefe?
- Em pessoa. – Tentei sorrir, mas ele não devolveu.
- Pois bem, Pedro, sente-se.
- Meu nome é Lamborghini.
- Pedro Lamborghini?
- Pode me chamar só de Lamborghini. – Sorrindo.
- Pois bem, Pedro, quais são suas intenções com minha filha?
Quase ri. Só podia ser provocação. Um velho que faz uma pergunta dessas tá
pedindo uma gargalhada pra ecoar naquela catacumba por duas horas. Seja honesto:
quem seria sincero ao responder a uma pergunta dessas? O que ele queria que eu
dissesse? Que minha intenção ao namorar Helena é conquistar a confiança dele, um cargo
de chefia do departamento de testes, produção e expedição, e, se sobrar tempo, tentar
arrancar um pedacinho da orelha da garota com uma dentada? “Quais são suas intenções
com minha filha?” As pessoas gostam de perder tempo com bobagens. Essa é a verdade.
O que acha que respondi pro velho? Abri um baú na minha cabeça que guardo com muito
carinho, e que tem um rótulo escrito: “Insinceridades”. E desfilei uma idiotice atrás de
outra, sobre amar a garota, cuidar dela, respeitá-la, noivar, casar, e todas outras
baboseiras que os devoradores de garotas ingênuas estão acostumados a dizer.
Ele não pareceu acreditar. A linha do sorriso denunciou isso. Os pais nunca
acreditam na boa intenção de caras que colocam as mãos em suas filhinhas. Para eles, o
pretendente é apenas um pérfido sacana que só quer se aproveitar da garota, e usá-la
como troféu enquanto desfila, exibindo-a sob o rótulo: “Cacei, e levei”. E esses pais estão
cobertos de razão!
Uma hora depois, e ele já havia me desgastado com milhares de perguntas. Assim
que a múmia saiu da sala, se amparando em cada móvel, Helena disse:
- Papai gostou de você.
Se aquilo é gostar, quero que o velho me odeie com ódio mortal.
“Quais são suas intenções com minha filha?”
- Do que está rindo, Lamborghini?
7º ANDAR
O departamento de testes possui um chefe. O departamento de produção possui um
chefe. O departamento de expedição possui um chefe. E eu sou o chefe de todos eles. Na
verdade, esse cargo não existia. Mas depois de usar minha lábia (e isso eu tenho de
sobra) pra cima do velho “sogro” consegui convencê-lo, e consequentemente aos
acionistas, de que essa seria uma atitude inteligente se desejassem aumentar os lucros.
Fale em aumentar os lucros, consiga qualquer prova de que está embasado, e terá o que
quiser de qualquer imbecil.
Você sente o poder quando tem o poder. Não é explicável. Apenas é o que é. Uma
profusão de sentimentos e sensações. Não é explicável. E foi o poder que me invadiu
quando assumi o controle dos departamentos.
Eu havia criado o vírus. Implantei-o nos sistemas. E Samantha conseguiu a
aprovação para a produção e distribuição do novo firmware. Uma coisa era certa: o vírus
faria o serviço dele. Mas ele precisava sair da companhia direto para os computadores dos
meus futuros escravos. E da programação até o usuário final, havia barreiras e mais
barreiras. Por isso, eu precisava daquele controle. Você sente o poder quando tem o
poder. Um vírus seria detectado na área de testes. E um material com vírus jamais seria
produzido e despachado. Eu tinha de me certificar de que meu filho não encontrasse
alguém que o denunciasse. Por isso, eu precisava daquele cargo, daquele controle. Você
sente o poder quando tem o poder. Para isso, precisei me aproximar do velho e ganhar
sua confiança. Para isso, eu precisei de Helena Boaventura. Lábia e inteligência. Não
brinque comigo, amigo.
Sempre mantive meus pés no chão. Se eu fosse pego, passaria alguns anos na
cadeia, e apodreceria o resto numa vida monótona, e vazia. Pensei em um milhão de
coisas, possíveis problemas, e vias de escape. Até o vírus se espalhar por todo o mundo,
eu não poderia fazer nada. Meu golpe só teria início, quando eu tivesse a maioria dos
computadores (e demais aparelhos eletrônicos) do planeta sob meu controle. Antes disso,
não poderia fazer absolutamente nada. Somente esperar. Isso daria uma agonia dos
infernos. Durante esse período, eu não poderia ser descoberto. Mas essa era uma
possibilidade real. Alguém no planeta, consultores, hackers, ou qualquer outro poderia
descobrir o vírus e espalhar a notícia pela internet. Eles chegariam a mim, antes que eu
tivesse tempo de praguejar. Eu precisava de um plano para escapar, caso o fato viesse a
tona. Poderia fugir, me esconder. Talvez, forjar minha morte. Escapar dos olhos da
humanidade, enquanto meu filho se dissipava pela internet. Eu só tinha de me manter
livre durante esse período.
Eu calculei 3 meses para o vírus se espalhar.
Dois meses depois, a coisa desandou.
4º ANDAR
Você sabe que alguma coisa está errada quando aquele alarme que carrega junto à sua
velha consciência começa a berrar. Foi essa a sensação que tive quando atendi ao
telefone em meu apartamento.
Naquela hora, eu ainda não havia entrado em ação. Faltava muito pouco. Acho que
poucos dias. Era um momento de tamanha excitação que bloqueava atitudes. Eu apenas
curtia o momento. Pense no que isso significa. Dentre alguns dias, eu poderia iniciar a
terceira guerra mundial, se assim o quisesse. A internet seria toda minha. Os celulares do
mundo todos meus. E também qualquer dispositivo que se conectasse a internet ou a um
computador.
O mundo aos meus pés.
Curvem-se, canalhas.
Mas, em vez disso, o telefone tocou.
Atendo.
Do outro lado da linha, a voz apavorada.
- O que está havendo? Seu nome está em cada canto da internet. E também na TV.
Estão indo atrás de você.
Paralisei. Paralisado. Eles me descobriram. Logo agora? Eu estou tão perto. Tão
perto.
Desligo instintivamente o telefone quando percebo a aproximação de alguém. É
Helena. Estou em meu apartamento. Ela não tem a chave. Como entrou?, eu pergunto. A
porta estava aberta, responde. Fiquei preocupada, acrescenta. Porta aberta. “Estão indo
atrás de você”. O alarme, entende? Não, não agora. O que posso fazer? Talvez o vírus
ainda leve duas ou três semanas para cumprir sua tarefa. Depois disso, estarei no
controle. Mas, até lá, não posso ser encontrado. Será que consigo me esconder por três
semanas. E se me acharem? Pense. Pense. O que posso fazer? Volta-me a ideia de forjar
minha morte. Poderia funcionar. Mas como eu faria isso? E que infernos Helena está
fazendo aqui, agora?
Helena mal entrou e ouço um barulho. Na cobertura, lá em cima. Um telefonema
tenebroso, a porta aberta, e um barulho lá em cima. Isso não cheira nada bem. Subo. No
instinto, subo. Aonde você vai?, me pergunta Helena. Não respondo. Deveria ter saído
correndo. Agora sei. Deveria ter dado o pé do meu apartamento, naquela hora. Ido para
um hotel, uma ponte, um beco. E então pensar no que fazer. Mas, simplesmente cometi a
burrice de subir. Lá em cima, não havia nada. Olhei aqui e ali, e nada. Ouço Helena
gritando lá embaixo. Não é nada, grito em resposta. Deve ter sido o vento. Vou até a
beirada. Olho a profusão de luzes se misturando sob a névoa da poluição, se refazendo,
novas formas. Novas estruturas.
Respiro fundo. É bom ser quem eu sou.
É bom ser o governante da humanidade.
E então o baque em minhas costas.
Duas mãos.
E aqui estou eu, despencando.
2º ANDAR
Última chance. Onde errei? Já posso divisar o rosto de algumas pessoas na calçada. Elas
não olham para cima. Afinal, eu não grito enquanto caio. Um homem, em minha posição,
gritar? Tá bom. Vai esperando. Isso é para os fracos. Não grito. Apenas me concentro.
Mas eu sabia, desde 4, 5 ou 6 segundos atrás, quando a inevitável queda teve início, que
quando eu visse o rosto de alguém na calçada, não conseguiria mais me concentrar. E
estava certo.
A proximidade da morte, agora, me acena. Não é mais uma perspectiva para os
próximos segundos. É a realidade. Face a face com ela. Rostos na multidão são os rostos
do meu fim anunciado.
1º ANDAR
Talvez não tenha havido planos secretos. Talvez eu não tenha sido traído. Talvez tenha
sido apenas um assalto. O ladrão, surpreendido, se livrou de mim antes de fazer a limpa
no apartamento.
Pode ser assim? Está satisfeito? Será que é possível morrer em paz sem ficar se
atormentando com questões sobre os quês e por quês? Ao menos, uma vez.
Feche os olhos.
Inspire.
1/2 ANDAR
É sua vez, Lamborghini.
Minha vez.
Esta é minha história.
Daqui pra frente, será minha herança.
Feche os olhos.
Inspire.
E diga: “Adeus, mundo cruel”.
- Adeus mun...
Um gemido. Outro. Aqui e ali, algum soluçar. Almas seladas. Abraços. Lenços. Soluços.
Alguém se aproxima. Parece assustado. Fala com um conhecido. Ele ouviu uma notícia. É
outra. Pior que a primeira. Cada qual mais assustadora que sua predecessora. Elas se
espalham. O mundo enlouqueceu, alguém diz. É o fim dos tempos, diz outro. Aos poucos,
o grupo se dissipa. Todos os grupos, em todos os cantos do mundo, estão se dissipando.
Apavorados. Trancafiados em suas casas. Apavorados com o rumo que está tomando a
humanidade. Apavorados. Mas, nem todos estão assim.
Tranquilas e satisfeitas, ali permanecem as duas figuras: um homem e uma
mulher.
- Está feito! - diz o homem.
- E agora, qual o próximo passo?
- Daqui pra frente, é só descida. Em 2 ou 3 dias, 8 bilhões de canalhas vão se
curvar diante de nós.
- Então talvez seja a hora de mostrar seu rosto ao mundo. – Samantha sorri.
O homem ergue a taça.
- Um brinde a nós e a... – Ele para, subitamente, e fita seu pescoço.
- O que foi?
- Alguém já te disse que seu pescoço parece ser o inferno de bom?
F I M