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Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 20, n. 42, p. 361-376, jul./dez. 2014 http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832014000200014 O LEGADO DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA: RELATO DE ROQUE DE BARROS LARAIA Roque de Barros Laraia * Universidade de Brasília – Brasil Gostaria de começar a minha fala com um pequeno prólogo: Nasci em um país muito distante. Distante no espaço porque, situado no hemisfério sul, cava muito longe do mundo civilizado. Distante no tempo, também, porque todas as conquistas da modernidade chegavam com muito atraso. O país em que nasci estava, assim, muito distante do Brasil de hoje: estradas asfaltadas, águas encanadas, esgotos, eletricidade, telefonia eram pri- vilégios de poucos e inexistentes na maior parte do país. Assim mesmo, o pouco que existia deixava muito a desejar. Os cariocas cantavam: “Rio de Janeiro, cidade que me seduz. De dia, falta água. De noite, falta luz.” E o Rio era a nossa cidade maravilhosa, como ainda é. Nasci em setembro de 1932, em uma pequena cidade do sul de Minas Gerais, situada no piemonte da Serra da Mantiqueira, divisor de águas entre o vale do Paraíba, no Estado de São Paulo, e o mineiro vale do Sapucaí. Nos mapas do século XVIII, um pequeno ponto marca o vilarejo do Mandú, nome de seu rio mais próximo. Mas, mesmo antes de se tornar cidade, em 1848, o lugarejo já era chamado de Pouso Alegre. De fato, no passado era apenas um pouso para os viajantes que, provenientes de São Paulo, se destinavam ao cen- tro de Minas, geralmente em busca do ouro. Ninguém sabe quem foi o cansa- do viajante que, repousando sob um céu estrelado, emoldurado pelas sombras das escuras montanhas, resolveu denominar de alegre o seu modesto pouso. Na época em que escrevi o meu pequeno livro – Cultura: um conceito antropológico (Laraia, 1986) – encantei-me com uma armação de Geertz de que “nascemos aptos para viver mil vidas e, no entanto, vivemos uma só”. * Professor Emérito da UnB, Pesquisador Emérito do CNPq.

LARAIA, Roque de Barros. O Legado Da Antropologia Brasileira

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O Legado Da Antropologia Brasileira

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    O LEGADO DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA:RELATO DE ROQUE DE BARROS LARAIA

    Roque de Barros Laraia*

    Universidade de Braslia Brasil

    Gostaria de comear a minha fala com um pequeno prlogo:Nasci em um pas muito distante. Distante no espao porque, situado no

    hemisfrio sul, fi cava muito longe do mundo civilizado. Distante no tempo, tambm, porque todas as conquistas da modernidade chegavam com muito atraso. O pas em que nasci estava, assim, muito distante do Brasil de hoje: estradas asfaltadas, guas encanadas, esgotos, eletricidade, telefonia eram pri-vilgios de poucos e inexistentes na maior parte do pas. Assim mesmo, o pouco que existia deixava muito a desejar. Os cariocas cantavam: Rio de Janeiro, cidade que me seduz. De dia, falta gua. De noite, falta luz. E o Rio era a nossa cidade maravilhosa, como ainda .

    Nasci em setembro de 1932, em uma pequena cidade do sul de Minas Gerais, situada no piemonte da Serra da Mantiqueira, divisor de guas entre o vale do Paraba, no Estado de So Paulo, e o mineiro vale do Sapuca. Nos mapas do sculo XVIII, um pequeno ponto marca o vilarejo do Mand, nome de seu rio mais prximo. Mas, mesmo antes de se tornar cidade, em 1848, o lugarejo j era chamado de Pouso Alegre. De fato, no passado era apenas um pouso para os viajantes que, provenientes de So Paulo, se destinavam ao cen-tro de Minas, geralmente em busca do ouro. Ningum sabe quem foi o cansa-do viajante que, repousando sob um cu estrelado, emoldurado pelas sombras das escuras montanhas, resolveu denominar de alegre o seu modesto pouso.

    Na poca em que escrevi o meu pequeno livro Cultura: um conceito antropolgico (Laraia, 1986) encantei-me com uma afi rmao de Geertz de que nascemos aptos para viver mil vidas e, no entanto, vivemos uma s.

    * Professor Emrito da UnB, Pesquisador Emrito do CNPq.

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    Desde muito novo, eu o mais velho de sete irmos, tendo como pai um via-jante comercial, pensava muito o que eu queria ser, qual o caminho a seguir? Cheguei a pensar em muitas possibilidades, ser padre, piloto militar, explora-dor na frica e, fi nalmente, engenheiro.

    Considero, que para mim, o ano de 1939 foi muito importante, porque foi o ano em que minha me me matriculou em uma escola primria. Nesse ano, na Europa, um nefando messias dava inicio Segunda Guerra Mundial. No meu primeiro dia de aulas, fui jogado no meio de um roseiral, por um menino maior chamado Messias. Voltei para casa todo arranhado, disposto a renegar para sempre qualquer tipo de messias.

    Aprendi a ler com rapidez. E no esqueo que o meu segundo livro esco-lar denominava-se Pindorama (terra das palmeiras) e todas as suas persona-gens eram pequenos ndios.

    No fi nal daquele ano, meu pai introduziu-me em um mundo maravilho-so: a livraria Rezende. Fiquei fascinado diante tantos livros e, principalmente, do material de papelaria: cadernos, lpis de cores, tinteiros, etc. Fiquei orgu-lhoso quando meu pai contou para o livreiro que eu estava comeando a ler. A partir de ento Alcides Rezende sempre me mostrava os livros infantis, o que levava o meu pai a comprar um deles Tenho certeza que foi a partir de ento que desenvolvi um incansvel gosto pela leitura, o que orientou o rumo da minha vida.

    Costumo brincar que nasci sob o signo de Marte. De fato, nasci prematu-ro de dois meses, porque minha me teve o meu parto precipitado, assustada que foi com os tiros de canhes do 8 Regimento de Artilharia Montada, defen-dendo a minha cidade de um ataque das foras paulistas, durante a Revoluo de 1932. Alm disto, desde que o Brasil entrou na Guerra, em 1942, eu fi -cava junto com meu pai ouvindo as noticias atravs de um barulhento rdio Telefunken.

    Nessa poca, a prefeitura da cidade construiu um cercado em um canto da praa principal da cidade. Destinava-se a recolher ferro velho para o bem do Brasil. Isso fazia parte de um esforo de um pas em guerra, desprovido de uma indstria siderrgica capaz de atender as suas demandas, tanto civis como militares. Em todo o canto do pas foram realizadas iniciativas como essa. No preciso dizer que, como neto de italianos, eu tinha que demonstrar a minha lealdade com o meu pas. Assim, munido de um carrinho de duas rodas percorri todos os terrenos vazios da cidade. Vasculhei at mesmo o depsito

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    de entulhos que a minha av calabresa guardava. Fiz vrias viagens at o centro de recolhimento de sucatas. Esse fato chamou a ateno de um capito mdico do exrcito, que mantinha um programa patritico na PRJ7 Rdio Clube de Pouso Alegre. Foi assim que ouvi pela primeira vez o meu nome na mdia. De fato, eu no perdia uma oportunidade de deixar bem claro que, apesar de minha ascendncia, o meu pas era o Brasil. Frequentemente, pla-giando o ttulo de uma reportagem publicada na revista americana Selees, repetia para mim mesmo s o meu sangue italiano.

    Quando fi z 15 anos, meu pai presenteou-me com um livro do Visconde de Taunay. Demonstrei tanto entusiasmo com a leitura do mesmo que, nos dois anos seguintes, j possua mais de 20 livros do mesmo autor. Todos esses li-vros faziam parte de um encalhe em uma livraria na cidade de Ipameri, Gois, cidade esta que fazia parte do itinerrio comercial de meu pai. Eram livros editados, na dcada de 1920, pela Companhia Melhoramentos. Finalmente, eu tinha encontrado o meu autor. Admirava a sua imensa capacidade de descre-ver a natureza e os homens do interior longnquo de nosso pas. Acompanhei as suas aventurosas viagens e principalmente sua participao na Guerra do Paraguai. Li e reli muitas vezes a Retirada da Laguna (Taunay, 1874). Anos depois eu encontrei as suas Memrias (Taunay, 1948), publicadas 50 anos depois de sua morte. Alfredo dEscragnolle Taunay, fi lho e neto de franceses, no cansou de demonstrar o amor que sentia pelo seu pas e a sua crena em um grande futuro.

    No comeo de 1950, parti em um fumacento trem da Rede Mineira de Viao para So Paulo. Doze horas depois cheguei a Estao da Luz. O meu objetivo era completar o segundo grau, alm de conseguir o meu primeiro emprego.

    No raiar dos anos 1950, procurar um emprego em So Paulo no era uma tarefa difcil como agora. Algum sugeriu que eu me dirigisse, de manh bem cedo, para a frente da redao do Dirio Popular, que possua inme-ras pginas de ofertas de trabalho. Assim fazendo eu j estaria em vantagem sobre aqueles que aguardavam o jornal nas bancas distribudas pela cida-de. Enquanto aguardava a sada do mesmo, um jovem caminhou em minha direo e perguntou se eu procurava um emprego. Disse que representava o Laboratrio Novoterpica, uma empresa produtora de medicamentos, cujos escritrios estavam situados na rua 25 de Janeiro, uma travessa da avenida

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    Tiradentes. No me recordo se cheguei a comprar o jornal. O fato que fui rapidamente para o endereo indicado.

    Esse foi o meu prime iro emprego. O meu chefe direto era um contador, encarregado de fazer a cobrana dos clientes do laboratrio. A mim coube a rdua tarefa de procurar os maus pagadores. Todas as manhs recebia um pacote de duplicatas j vencidas e partia em busca dos farmacuticos insol-ventes. Foi ento que fi z a minha primeira constatao sociolgica: os maus pagadores sempre estavam situados nos lugares mais longnquos, em ruas no pavimentadas e distantes dos pontos de nibus ou de bondes. Alguns me recebiam simpaticamente, solicitavam um novo prazo ou pagavam uma parte do dbito. Outros fi cavam ofendidos. Tratavam-me rispidamente, ignorando que na minha volta para o escritrio eu tinha instrues para deixar as suas duplicatas no Cartrio de Protestos. Andando, enfi m, pela periferia, armado com um mapa das ruas da cidade, fui me acostumando com lugares que os-tentavam estranhos nomes: Pirituba, Freguesia do , Jabaquara, Tucuruvi, Limo, Casa Verde, etc. E, surpreendentemente, muito tempo depois, soube que o Professor Florestan Fernandes meu orientador de doutorado tinha trabalhado, como entregador de amostras, no mesmo laboratrio, uma dcada antes de mim.

    Matriculei-me no turno da noite em um colgio particular no bairro da Liberdade, o Colgio Anglo Latino, onde terminei o meu segundo grau.

    Em setembro daquele ano, andando pela rua das Palmeiras, percebi uma pequena multido em frente a uma vitrine. Curioso, aproximei-me e vi, pela primeira vez, um aparelho de televiso. Era a primeira transmisso de TV realizada no Brasil, pela TV Tupi.

    Logo no incio do ano seguinte, graas indicao de um amigo, con-segui um emprego de reprter policial em um jornal sensacionalista, A Hora. Na entrevista que fi z, pesou muito o fato de demonstrar que conhecia muito bem a cidade. Hoje estou convicto que a contratao em um jornal mudou o rumo de minha vida. Em primeiro lugar, porque o j combalido projeto de fazer engenharia foi pouco a pouco sendo deixado de lado. A necessidade de escrever rapidamente os textos das reportagens desenvolveu muito a minha capacidade de redao. Se antes eu j gostava muito de ler, passei tambm a ter prazer em escrever.

    Havia outras compensaes. Em um jornal pequeno como A Hora no existia um sistema rgido de especializaes. Um reprter policial poderia ser

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    convocado para fazer outros tipos de reportagem. Como ter que escrever so-bre o precrio sistema de transporte da cidade; sobre o alto custo de vida; mas tambm participar de um almoo promocional com uma platinada rum-beira cubana, Ninon Sevilha, no restaurante Fasano, ainda na rua Vieira de Carvalho. Ou ainda, nada melhor para um reprter de 21 anos, almoar no Estdio da Vera Cruz com uma bela estrela que ainda no tinha chegado aos 30 anos, Tnia Carrero!

    Em janeiro de 2013, o Brasil todo e o Rio Grande do Sul em particu-lar foi abalado pela tragdia de Santa Maria. A imprensa toda relembrou o terrvel incndio ocorrido, em 1962, em um circo em Niteri. Ningum, po-rem, lembrou que na noite de 29 de julho de 1953, na rua Florncio de Abreu, em So Paulo, ocorreu em um clube de dana um incndio que matou 53 pessoas. Eu fi z a cobertura desse acidente. Lembro que na poca, os jornais se referiram a um fato semelhante, ocorrido uma dcada antes em um cinema no Brs, o Cine Oberdan, que matou muitas crianas. Refl eti, ento, como pode ser curta a memria coletiva e que se torna menor ainda quando comparada com a dimenso da negligncia e da incompetncia de nossas autoridades quando se refere s questes de segurana.

    Trs anos depois, com uma sensao de ter perdido o tempo, resolvi res-suscitar o projeto de estudar engenharia. Era muito difcil deixar o jornal. Cheguei concluso que para isso o melhor seria sair de So Paulo, vol-tar para a minha Minas Gerais, mudar para Belo Horizonte. Resolvi que o melhor modo de fazer isso, desde que necessitava de um emprego, era fazer um concurso pblico para o IAPI Instituto de Aposentadoria e Penses dos Industririos e pedir a transferncia para l.

    Fazer um concurso pblico naquela poca no era nada comparvel com os de hoje. O que fi z tinha cerca de 60 vagas para mais ou menos 300 candi-datos. Fiz sem nenhuma preparao e fi quei entre os 30 primeiros aprovados. Assim, em junho de 1954 entrei defi nitivamente no servio pblico federal. Somente no fi nal de 1955 consegui minha transferncia por permuta para Belo Horizonte.

    Resumindo esta introduo que j foi longe demais: em Belo Horizonte, descobri o bvio, que a engenharia no era o meu caminho, ruim demais que sou em matemtica, e por isso ingressei no curso de Histria da Faculdade de Filosofi a da Universidade Federal de Minas Gerais. Esse curso funciona-va, ento, do 19 ao 23 andar do edifcio Acaiaca. Os alunos de engenharia

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    costumavam zombar dizendo que de fato estudvamos na Boite Acaiaca, que funcionava no subsolo do mesmo prdio.

    Em dezembro de 1959, tornei-me bacharel em Histria e recebi o convite para ser auxiliar de ensino na cadeira de Etnologia e Lngua Tupi, fato esse que jamais se concretizou.

    No fi nal da dcada de 1950, ainda predominava no Brasil a ideia de que pessoas de bem estudam direito, engenharia ou medicina. Para os que tinham pouco dinheiro restava o sacerdcio ou a vida militar. Muitos de meus familia-res tinham estranhado a minha escolha pela Faculdade de Filosofi a, mas ainda no sabiam do pior.

    No decorrer de minha carreira como antroplogo sempre tive que res-ponder uma questo muito comum que nunca se faz a um mdico ou a um advogado. Por que, entre tantas profi sses, existem pessoas que escolhem um ofi cio to estranho como o nosso?

    Essa questo foi muito bem trabalhada, entre outros, por nossa colega Mariza Peirano (1992), em seu artigo Artimanhas do acaso. Ela nos remete as suas entrevistas com Florestan Fernandes, Antnio Cndido, Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira. Segundo Peirano, o primeiro no teria escrito sobre os Tupinamb se no tivesse aceitado um desafi o de Alfred Metraux para realizar um estudo sobre a organizao social desses ndios extintos no sculo XVII. Antonio Cndido somente foi para a USP porque seu pai decidiu mudar do Rio de Janeiro para Poos de Caldas: Como o trajeto para So Paulo era menos demorado do que para o Rio, Antonio Cndido formou-se em So Paulo. No Rio, segundo Peirano (1992, p. 11-12), as coordenadas geracionais e as matrizes e pensamento teriam naturalmente sido diferentes. Darcy Ribeiro no teria se interessado por temticas nacionais se no tivesse recebido uma bolsa para organizar um fi chrio sobre a bibliografi a brasilei-ra de interesse antropolgico e social, quando era da Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo. E, fi nalmente, Roberto Cardoso de Oliveira, recm--formado em fi losofi a, teve um encontro com Darcy Ribeiro, promovido por um amigo comum, quando esse fez uma conferncia na Biblioteca Municipal de So Paulo. Darcy estava procurando um assistente para um curso no Museu do ndio e o convidou.

    Foi tambm por uma artimanha do acaso que eu encontrei a antropolo-gia. Em janeiro de 1960, quando me preparava para iniciar a minha vida como historiador, resolvi fazer um lanche na cantina da Faculdade de Filosofi a.

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    Vi, ento, o edital de um curso de Teoria e Pesquisa em Antropologia Social a ser realizado no Museu Nacional. Fiz o concurso e ganhei uma das seis vagas oferecidas. Talvez no teria sido um antroplogo se no estivesse decidido a comer um misto quente naquela tarde quente do vero de Belo Horizonte. No meu caso, o acaso com suas artimanhas armou uma teia maior: fui aluno de Roberto Cardoso de Oliveira e anos depois Florestan Fernandes foi o meu orientador de tese de doutorado.

    Mariza discutiu muito bem o fato de seus quatro informantes no aceita-rem a ideia de um destino preestabelecido. Buscam no acaso, um fator inde-terminado por defi nio, a explicao para as suas escolhas. Todos os acima citados, com certeza, jamais buscariam explicaes do tipo estava escrito nas estrelas, foi feita a vontade do Senhor, to de agrado daqueles que acreditam em carma do tipo indiano, til para explicar tanto o sucesso como o insucesso. O interessante como acentua a autora no enfatizarem o papel do inegvel esforo individual de cada um na obteno de seus objetivos.

    Mas a explicao do acaso inevitavelmente tautolgica: ela vale sem-pre, ou ento, pelo contrrio no vale nada, pois tudo poderia ser explicado pelo mesmo. Como afi rmam os historiadores, o se no existe. Talvez, como eu disse, no teria sido um antroplogo se no tivesse ido a cantina e visto o edital, mas eu fui e isso o que vale. Da mesma forma, Napoleo no teria ido para Santa Helena se no tivesse sido derrotado em Warteloo, mas ele foi.

    O que nos resta ento para explicar a nossa escolha? Quem nos d a resposta Tocqueville: O acaso s produz o que estava preparado anterior-mente. A leitura do edital do concurso no Museu Nacional s me chamou a ateno porque eu tinha um interesse ainda que no manifesto pela antro-pologia, o que no foi verdadeiro para os meus colegas de histria que no se interessaram pelo anncio.

    De fato, no decorrer do curso, os temas antropolgicos sempre me cha-mavam a ateno, apesar da cadeira de antropologia, na poca, estar ocupada por um professor que nada sabia do assunto. Marco Antnio Coelho (2000, p. 46), em sua autobiografi a, Herana de um sonho, escreveu Cheguei a as-sistir as aulas preparatrias no curso de Sociologia, a fi m de fazer o vestibu-lar. Mas logo fi quei horrorizado com o professor dessa matria, [] mdico dermatologista, lder catlico ultra reacionrio, incapaz de satisfazer minhas inquietaes e perguntas. Conclui que seria perda de tempo fazer cincias sociais, pois a sociologia era o cerne desse curso. Por isso desisti, resolvendo

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    trilhar o caminho da Faculdade de Direito. (No fi nal dos anos 1950 o re-ferido professor passou a ministrar as aulas de Antropologia Biolgica e Antropologia Cultural.)

    No meu caso ao contrrio de Marco Antnio Coelho comecei a ga-rimpar por debaixo das aulas mal dadas, buscando respostas para as minhas inquietaes. Frequentava a pequena biblioteca da faculdade em busca de li-vros de antropologia. O primeiro que encontrei foi O homem, de Ralph Linton (1943), talvez o primeiro manual traduzido para o Brasil. Descobri logo que Casa-grande e senzala (Freyre, 1933) no era apenas um texto sociolgico, e foi, em seu prefcio, que pela primeira vez ouvi falar de Franz Boas.

    Em 23 de fevereiro de 1960, parti para o Rio de Janeiro em um voo mui-to tumultuado. O avio demorou muito para aterrissar, alm de atravessar a cada momento zonas de turbulncias. Naquele dia, prximo ao Po de Acar, um avio de passageiro se chocou com uma aeronave militar americana que transportava a Banda do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, que fazia parte da comitiva do presidente Eisenhower, em visita ao Brasil. Foi, portanto, em um clima de tragdia que desembarquei no Rio para tentar um passo decisivo em minha vida.

    No dia seguinte, pela primeira vez, entrei no edifcio do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista. Caminhei por estreitos corredores, ladeados de ve-lhas vitrines repletas de ossos humanos e de estranhos aparelhos de antropo-metria. Encontrei-me com os outros candidatos, no eram muitos. Um deles se aproximou: Lembra-se de mim? No ano anterior, eu o tinha visto no Primeiro Encontro Nacional de Estudantes de Histria, realizado na Faculdade Nacional de Filosofi a. Eu fazia parte da delegao mineira, ele representava a Faculdade de Filosofi a de Niteri. Soube, ento, o seu nome: Roberto Augusto da Matta. Foi esse o momento inicial de uma duradora amizade.

    Pouco tempo depois, fui entrevistado pelo coordenador do curso: Roberto Cardoso de Oliveira. Lembro-me do jovem e sisudo professor de apenas 31 anos de idade, sem as barbas que adotaria na dcada seguinte, trajando o seu jaleco branco, como era o uniforme dos pesquisadores do Museu Nacional, ento denominados naturalistas.

    Os seis alunos que constituram a primeira turma do curso de Especializao em Antropologia Social foram; Alcida Rita Ramos, Edson Soares Diniz, Hortncia Caminha, Onidia Bevenutti, Roberto Augusto da Matta e Roque de Barros Laraia.

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    Gostaria de salientar a importncia desse curso em um momento, ini-ciado na dcada anterior, em que a antropologia brasileira estava passando por uma grande transformao. Era o incio de um perodo em que os antro-plogos autodidatas estavam sendo substitudos por pessoas com a adequada formao. Nos dois ltimos anos da dcada anterior, Darcy Ribeiro promoveu, no Museu do ndio, um curso de formao de indigenistas. Mas, na primeira edio do mesmo, nem o curso de graduao foi um requisito.

    Em 1960, o Museu Nacional era uma instituio vinculada ao Ministrio da Educao e Cultura. Somente no inicio de 1961 seria vinculado Universidade do Brasil. A realizao do curso teve um respaldo institucional e fi nanceiro do Instituto de Cincias Sociais da Universidade do Brasil.

    Todos os seis alunos eram bolsistas de tempo integral. As manhs eram ocupadas por aulas e seminrios. As tardes eram destinadas s leituras dos tex-tos recomendados, a quase totalidade deles era em ingls. ramos obrigados a trabalhar tambm durante a noite para pode complementar as nossas leituras.

    O ambiente do Museu Nacional, repleto de austeridade e de tradio cientfi ca, aliado ao entusiasmo de Roberto Cardoso de Oliveira, refl etiu de maneira positiva sobre o grupo de jovens estudantes, proporcionando um cli-ma de solidariedade, disposio para o trabalho, alm de um nvel adequado de competitividade.

    O conjunto de leituras, alm dos clssicos da antropologia, tinha tambm espao para socilogos como Talcott Parsons, Marion Levi Jr., Robert Merton e, naturalmente, Florestan Fernandes. A utilizao do termo antropologia so-cial indicava tambm uma priorizao da antropologia britnica.

    O projeto, elaborado por Cardoso de Oliveira, Grupo domstico, fa-mlia e parentesco: ideias para uma pesquisa em antropologia social serviu para o treinamento dos alunos junto aos ndios terena, no sul do ento Mato Grosso. Esse fato teve, para mim, um signifi cado especial. Como admirador e leitor do Visconde de Taunay pude conhecer muitos dos lugares que ele descreveu e, sobretudo esse povo admirvel, os Terena, que tanta admirao lhe causou.

    Quando o curso terminou, o Museu Nacional que no contratava novos pesquisadores h mais de uma dcada, resolveu admitir em seu quadro os trs primeiros colocados: Alcida Ramos, Roberto DaMatta e Roque Laraia. Foi com tristeza que recebemos a noticia que Alcida era portuguesa e, portanto, no podia ser contratada.

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    No inicio de 1961, j ento como pesquisador do Museu Nacional, de-diquei-me a preparar o meu primeiro trabalho de campo autnomo. Entre os Terena, no ano anterior, eu era apenas um aluno, auxiliar de pesquisa. A minha primeira escolha foi os ndios fulni, no interior de Pernambuco. Tinha lido o livro de Estevo Pinto (1956), Etnologia brasileira (Fulni os ltimos dos Tapuias), alm de um manuscrito de Marx Boudin que fornecia dados interessantes sobre o sistema de parentesco fulni. Foi quando surgiu Frei Gil Gomes, um frade dominicano residente em Marab. Visitando o Museu Nacional, ele nos falou dos Suru, um grupo tupi-guarani do sudeste do Par, que ele tinha contatado um ano antes. Considerei este um desafi o mais pro-vocador: trabalhar com um grupo com nenhum falante de portugus e que conservava ainda todos os seus padres culturais.

    O grande desafi o era a preparao de um projeto que pudesse fazer parte de dois grandes projetos de pesquisas, coordenados por Roberto Cardoso de Oliveira e fi nanciado pelo Instituto de Cincias Sociais da Universidade do Brasil. fcil imaginar a difi culdade de fazer um projeto sobre um grupo totalmente desconhecido, nunca antes visitado por outro pesquisador. A es-tratgia correta teria sido a realizao de um survey, ou seja, empreender uma viagem exploratria at os mesmos e regressar ao Museu Nacional para elaborar um projeto de pesquisa. Mas naquela poca esse seria um empreen-dimento impossvel. As verbas de pesquisas eram pequenas e Marab estava muito distante, ligada por um sistema aerovirio caro e que demorava mais de um dia para percorrer o trajeto Rio-Marab. E a aldeia estava situada, como aprendi depois, a uma penosa viagem de mais de trs dias dentro da mata amaznica.

    Assim, o projeto, indispensvel para a obteno de recursos para a via-gem e para a autorizao de pesquisa por parte do Museu Nacional, foi ela-borado a partir de uma srie de hiptese que poderiam ter sido aplicadas a qualquer outro grupo. Considero hoje que foi uma audcia ter apresentado esse projeto como comunicao 5 Reunio Brasileira de Antropologia, rea-lizada em Belo Horizonte, 1961.

    No possvel, no espao desta conferncia, apresentar o teor do mesmo, mas gostaria de me referir apenas a uma das hipteses. Uma anlise superfi cial que empreendi, ento, demonstrava que todos os grupos tupi at ento estu-dados possuam termos de tios do tipo fuso bifurcada. Esse fato nos levou ingenuamente a adotar como correta uma hiptese de Leslie White (1939)

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    que considerava como vlida a existncia de uma segmentao como cl em sociedades que possuem termos de tios desse tipo.

    Gostaria agora ocupar um pouco do nosso tempo para dar uma ideia do que era fazer uma pesquisa etnogrfi ca, meio sculo atrs:

    Em julho de 1961, samos do Rio de Janeiro em um DC-3, da Real Transporte Areos, com destino a Goinia, onde pernoitamos. Digo partimos, porque ramos quatro pesquisadores. Fui acompanhado de um estudante da segunda turma do curso de especializao, Marcos Magalhes Rubinger, que seria meu assistente entre os Suru. E Roberto DaMatta que se destinava aos ndios gavio, tambm na regio de Marab, ia acompanhado de outro estu-dante, Julio Cezar Melatti.

    De Goinia, partimos bem cedo, na manh seguinte, com destino Marab, onde chegamos por volta das 15h. Antes fi zemos vrias escalas: Niquelndia, Pedro Afonso, Porto Nacional e Tocantinpolis. As pistas de pouso eram de terra, algumas praticamente dentro da rea urbana, ao lado mesmo de uma rua. Os passageiros aguardavam a chegada do avio protegi-dos pela sombra de uma rvore. As paradas eram demoradas em funo das difi culdades de acomodar a bagagem dos viajantes, sempre constitudas de vrios e complicados volumes.

    A primeira impresso de Marab foi desoladora. O aeroporto estava situ-ado na margem esquerda do rio Itacaiunas, prximo a um pequeno aglomerado de casebres. Ficamos aliviados ao saber que Marab estava do outro lado do rio.

    Finalmente, chegamos cidade que, apesar de pequena (constituda ape-nas pelo que hoje chamado de Cidade Velha), era bem urbanizada, com ruas caladas e uma praa central. Nos hospedamos na Penso Central, considera-da a melhor da cidade, o que nos levou a imaginar como seria a pior.

    espera do barco, que nos devia levar rio acima, demorou nove mo-dorrentos dias. Na manh do dia da partida, acomodamos as nossas coisas na embarcao Pau Ferrado, mas o proprietrio do mesmo disse que tinha que fazer algumas coisas na cidade, por isso s partimos s 16h. Logo depois do pr do sol, a embarcao encostou em um barranco, onde passamos a noite, revirando nas redes, assediados por uma legio de mosquitos.

    No dia seguinte, aps uma acidentada travessia na corredeira de Me Maria, chegamos ao inicio da tarde em Apinags, quase na confl uncia do rio Tocantins com o Araguaia. Logo em seguida, amontoados em um velho jipe, partimos para So Domingos das Latas, onde pernoitamos.

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    Contratamos, ento, Raimundo Cabral, com a sua tropa de burros, para nos levar at a aldeia. Viajamos, ento, um dia inteiro, marchando vagarosa-mente por estreitas picadas dentro da mata, at atingirmos o rancho de Joo Bispo. Na manh seguinte, aps mais de dez horas de viagem, chegamos ao barraco, denominado Cajueiro, de propriedade de um senhor Durval, onde passamos a ltima noite de viagem.

    A viagem at a aldeia durou trs horas. O senhor Cabral descarregou os nossos bens no meio da praa e partiu rapidamente de volta, incomodado com a presena dos selvagens.

    No possvel, no tempo de que dispomos, descrever o que foi a minha primeira pesquisa. Mas acho importante fazer uma sntese da minha experi-ncia. Quando Cabral e sua tropa de burros sumiu na picada aberta na mata senti que, de fato, estava me desligando do mundo. Uma pesquisa de campo, ento, signifi cava isolamento completo, sem nenhuma notcia do resto do pas.

    Logo de inicio, um homem aproximou fumando um grande cigarro. Entremeando palavras incompreensveis soltou algumas baforadas de fuma-a sobre ns. Soube depois que no era um ato de boas vindas, mas uma defumao para espantar os maus espritos que, por ventura, tivessem nos acompanhados. Era ele Kuarikuara, o morobixawa e tambm pai da aldeia. Mas, apesar disso, a acolhida era amistosa. As pessoas sorriam e falavam ao mesmo tempo. Algumas delas alisavam os pelos de meus braos. Crianas nos olhavam com seus olhinhos espantados. Junto aldeia existia uma pequena casa, a de frei Gil. Ali armamos as nossas redes e depositamos a nossa baga-gem. Entregamos para Kuarikuara os presentes que levamos e ele procedeu a distribuio dos mesmos.

    Os resultados dessa pesquisa foram publicados em ndios e castanheiros (Laraia; Da Matta, 1967) e em alguns artigos. Por isto, me limito a apenas falar mais da experincia existencial de um trabalho de campo.

    De comeo, a nossa grande difi culdade era a comunicao oral. Como fazer uma pesquisa sem saber a lngua dos informantes? Decidi ento por comear por um levantamento topogrfi co da aldeia: a disposio das casas, os caminhos para a roa, para o igarap; a localizao das redes dentro das casas; etc.

    Finalmente, descobrimos que estvamos sempre acompanhados de um simptico kunumi, aparentando 11 ou 12 anos: Tiwaku. Soubemos que ele fre-quentava a casa de um casal de sertanejos que frei Gil colocara nas imediaes

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    da aldeia. Tiwaku possua um pequeno vocabulrio portugus. Tornou-se,ento, o nosso intrprete, mesmo porque no tnhamos outra escolha. Aprendemos muito com ele.

    Quando terminamos o nosso curso de especializao no Museu Nacional, e escolhemos trabalhar com populaes indgenas, o nosso objetivo era de produzir uma monografi a tendo como modelo Malinowski, Radcliffe-Brow ou Firth. Mas o que encontramos no campo foi uma pequena sociedade viven-do o trauma dos acontecimentos relativos ao seu primeiro contato. Uma vez encontrei Kuarikuara, o chefe, chorando em sua rede.

    As genealogias que coletei mostraram que, cerca de um ano antes, eles eram 126 pessoas. Uma semana depois do contato, acometidos pela primeira gripe, estavam reduzidos a 40 pessoas: 7 homens, 14 mulheres e 19 crianas. Por isso, no escrevi uma monografi a, mas um livro sobre as consequncias do encontro de uma sociedade indgena com uma frente pioneira extrativista.

    Na concluso de minha parte no livro ndios e castanheiros, de 1967, escrevi expressando o meu pessimismo: Ser este o eplogo de um longo processo de frico intertnica? No prefcio da segunda edio, em 1978, j pude escrever:

    Finalmente, gostaramos de repetir (eu e Da Matta) que erramos em nossos prognsticos. Os nossos informantes nos ensinaram que o valor e a capacidade de resistncia de um povo no se mede pela sua dimenso demogrfi ca: uma pe-quenina sociedade humana pode continuar resistindo, no importa a que preo, enquanto estiver viva a crena nos seus valores, apesar dos brancos e da persis-tente tradio predatria destes. (Laraia, 1978, p. 17).

    Em 1996, 30 anos depois de minha ltima ida, voltei aldeia. Parei diante da casa do encarregado do posto indgena, que era um Suru. Antes mesmo que eu dissesse alguma coisa, ele estendeu a mo e disse com um sorriso: Voc o Roque? Soube ento que era Tirem, o irmo mais novo de Tiwakou, o menino que falava portugus. Os outros Suru se aproximaram. Agora so muitos, mais de 200 pessoas. Dos 34 que encontrei em 1966, re-encontrei 27. Todos os demais nasceram depois. Parti com a certeza que eles afastaram para sempre o fantasma da extino.

    Cada experincia de campo nica. Depois dos Suru, trabalhei com os Akwawa-Asurini, no baixo Tocantins; com os Kamayur, no Alto Xingu;

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    os Urubu-Kaapor, no Gurupi, limite do Par com o Maranho. Cheguei a fa-zer um estudo das relaes intertnicas entre os Xerente e a comunidade de Tocantnia (TO). Por vrios motivos, fi z curtas visitas s aldeias dos Xavante, Karaj, Gorotire, Java, Aw-Canoeiro, Kaiwo, Gavio, Guajajara, Potiguara e Makuxi. Mas a primeira experincia de campo a mais marcante e a que defi ne o nosso rumo.

    Desde que me tornei antroplogo, considerei importante participar da Associao Brasileira de Antropologia, Participei, pela primeira vez, da 5 RBA realizada em Belo Horizonte, sob a presidncia de Darcy Ribeiro. Foi quando fui admitido como scio colaborador e apresentei a minha pri-meira comunicao. Realizada em uma colnia de frias na periferia da ci-dade, no contou com mais de 30 ou 40 participantes. Trinta anos depois, em 1992, como presidente da ABA, tive o prazer de organizar, no prdio da Faculdade de Filosofi a da UFMG, a 18 RBA, que contou com a participa-o de 700 inscritos. Na ltima RBA, em So Paulo, o nmero de partici-pante chegou a 4000!

    Desde 1978 comecei a participar dos Encontros da Anpocs. Sempre con-siderei importante ter um canal de comunicao com as outras disciplinas das cincias sociais. No ano de 2000, fui eleito presidente da Anpocs. Foi uma grande experincia e sempre sou grato minha amiga, a sociloga Maria Arminda Arruda do Nascimento, que exerceu com efi cincia e brilho a secre-taria da Anpocs naquele perodo.

    Nunca me arrependi da escolha que fi z. Podia viver tantas vidas, mas escolhi a de ser um observador dos homens. A antropologia me proporcionou a possibilidade de viver em outros pases e conhecer como disse o poeta lugares nunca antes imaginados.

    No posso deixar de me referir ao privilgio de ter conhecido pessoal-mente as fi guras tutelares de nossa disciplina: Heloisa Alberto Torres, Herbert Baldus, Charles Wagley, Oswaldo Cabral, Roger Bastide, Eduardo Galvo, Egon Schaden, Gilberto Freyre, Manuel Digues Junior, Thales de Azevedo, Nunes Pereira, Luiz de Castro Faria, Florestan Fernandes e Roberto Cardoso de Oliveira.

    Gostaria de concluir esta minha fala relembrando um momento im-portante na histria da antropologia brasileira. Na 6 Reunio Brasileira de Antropologia, realizada em So Paulo e presidida por Herbert Baldus, foi

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    eleito Eduardo Galvo, como o novo presidente, que deveria realizar a 7 RBA, em Braslia, em 1965. Com o golpe militar de 1964, Galvo foi exo-nerado da Universidade de Braslia e retornou ao Museu Emilio Goeldi, em Belm. Iniciou-se assim um perodo de semiclandestinidade da ABA. A 7 Reunio foi realizada, em Belm, em 1966, durante um grande encontro comemorativo do 1 centenrio do Museu Goeldi. Nessa reunio foi eleito Manuel Digues Junior como presidente da ABA. Somente cinco anos depois, em 1971, sombra do Encontro Internacional de Estudos Brasileiros, realiza-do na USP, foi possvel a realizao da 8 RBA. Coube a tarefa da organizao a Egon Schaden e Joo Batista Borges Pereira. Em funo do pequeno nmero de participantes no foi realizada a eleio para presidente, continuando a presidncia com Manuel Digues Junior.

    Foi o meu querido e saudoso amigo, Silvio Coelho dos Santos, juntamen-te com Manuel Digues Junior que realizaram em Florianpolis, em 1974, a 9 Reunio Brasileira de Antropologia. Eram esperados cerca de 60 partici-pantes para essa reunio, que marca o renascimento da ABA. Mas algo de novo estava ocorrendo, para a surpresa dos organizadores. nibus repletos de estudantes chegavam de todas as partes do Brasil. O nmero de participantes ultrapassou a cifra dos 400. Enfi m, os primeiros programas de ps-graduao em antropologia estavam apresentando os seus resultados. Thales de Azevedo, o mais velho antroplogo presente, foi eleito presidente e a nova reunio, mar-cada para 1976, em Salvador. Da em diante nunca mais a ABA deixou de se reunir a cada binio.

    Pois foi nesse mesmo ano de 1974, a razo para que estejamos aqui reu-nidos. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul deu inicio ao seu bem--sucedido Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social. Foi para mim uma grande satisfao e uma honra participar desta comemorao. No decor-rer dessas quatro dcadas, tive inmeras oportunidade de visitar este progra-ma, seja como consultor da Capes, da Finep, ou como docente participando de bancas de doutorado ou de concursos para professores. Aqui encontrei colegas que se transformaram em grandes amigos. assim, com imensa alegria, que participo desta festa no momento em que o programa comemora os seus 40 anos e a sua merecida nota sete. Obrigado.

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