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  • 7/24/2019 Lechene r 05

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    MIGRAO E SADE MENTAL: O SOFRIMENTO DOS MIGRANTES E O

    ENCONTRO DE ORDENS SIMBLICAS

    Elsa Lechner1CEAS/ISCTE

    Palavras-chave:migrao, sade, diferena, dilogo interdisciplinar, terapias inter-culturais.

    Resumo: A partir da experincia de trabalho enquanto antroploga na Consulta do Migrante no

    Hospital Miguel Bombarda em Lisboa, este texto pretende ser uma pequena reflexo sobre o necessrio

    dialogo, neste contexto teraputico, entre diferentes campos do saber e diferentes formas de relao ao

    Outro. Trata-se de problematizar o encontro entre saberes e fazeres diferentes, com o intuito de por em

    relevo e enriquecimento resultante da tentativa de adequao realidade complexa do encontro entre

    migrantes e prestadores de cuidados de sade.

    O tema do sofrimento dos imigrantes, quando situado no contexto do apoio psicolgico

    aos mesmos, cria a necessidade de dilogo entre campos do saber to distintos como as

    cincias sociais e as cincias mdicas e psicolgicas.

    Em pases onde a realidade da imigrao tem j uma histria longa, este dilogo

    encontra-se institucionalizado em prticas teraputicas especializadas e em disciplinas

    universitrias como a Etnopsiquiatria e a Psiquiatria Transcultural ou Cultural.

    No horizonte de uma reflexo sobre esta interface entre imigrao e sade, no

    proponho aqui hoje uma definio destas disciplinas e prticas mas apenas algumas

    consideraes sobre a necessidade de problematizar o encontro entre saberes e fazeres

    diferentes tal como os imigrantes que recorrem Consulta do Migrante do HMB nos

    lembram semanalmente.

    1Doutorada em Antropologia Social pela EHESS, bolseira ps-doc da FCT.

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    Uma primeira considerao a fazer a de que este campo de aco e reflexo se

    caracteriza por uma provisoriedade epistemolgica e um questionamento metodolgico

    permanentes, cuja a aceitao dos quais no representa uma fonte de ineficcia mas,

    antes pelo contrrio, uma condio de enriquecimento e de adequao realidade dos

    migrantes bem como dos prestadores de cuidados.

    Desde logo, importante ter em conta que os prprios termos imigrante e distrbio

    ou doena mental, devem ser relativizados e confrontados com as singularidades, para

    no corrermos o risco de produzir e reproduzir artefactos conceptuais presumidos como

    universalmente vlidos onde, de facto, o so menos. Num terreno to delicado como

    este, necessrio estarmos atentos s especificidades, s experincias concretas das

    pessoas, ideia de diversidade, e no atribuir sem questionamento categorias

    impermeveis ao confronto.

    Existem experincias diferentes da imigrao, como existem formas diferentes de ser

    imigrante. Em funo do tipo de experincias que os sujeitos tm (p. ex.: um exilado,

    um refugiado, ou um settler) tambm o tipo de resposta individual situao, pode

    variar.

    A condio de imigrao no ontolgica, nem deve ser reificada em categorias

    psicolgicas ou mdicas. Cair nesse facilitismo correr o risco de nosografar os

    migrantes, ou seja, de um fechar em categorias diagnosticas que os marcam socialmente

    e lhes atribuem uma identidade postia. Se para a Psicologia existem de facto estruturas

    da personalidade, e para a Psiquiatria existem terrenos neurobiolgicos propensos

    manifestao de doenas mentais em contextos de stress como o da imigrao, para os

    socilogos e economistas, existem condies de vida das pessoas que tambm podem

    explicar o sofrimento. Para a Antropologia, que cruza de forma privilegiada a

    Psiquiatria Transcultural, existem contextos particulares de alteridade e contedos

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    culturais das identidades que podem contribuir para a compreenso e o aliviar do

    sofrimento dos migrantes.

    O dilogo entre saberes diferentes na sala de atendimento a imigrantes num hospital

    psiquitrico, permite igualmente no medicalizar a diferena e no fixar a vivncia dos

    pacientes (desta vez) numa categoria diagnostica impermevel ao tempo e histria.

    Para alguns autores interessados na psicopatologia das migraes, a imigrao

    corresponde mesmo a um contexto privilegiado de transio individual e psicolgica.

    Comparvel a um ritual de transformao, tal experincia tem efeitos concretos nos

    indivduos e nos grupos (as comunidades migrantes e os grupos de acolhimento nos

    pases hospedes). A mudana em causa, processa-se por sua vez, ao mesmo tempo

    nos mundos psquico e cultural de todos, numa zona intersticial de contacto entre

    fronteiras, territrios de pertena, lnguas, redes sociais, culturas e temporalidades

    diferentes. O tempo da memria e das heranas passadas, confronta e dialoga (quando

    dialoga) com o correr dos dias no pas de imigrao, onde os imigrantes trabalham, tem

    filhos e vivem durante a maior parte do ano. O tempo presente, tambm o tempo da

    possibilidade de aprendizagem da novidade e das formas de ser diferente de si prprio

    outrora.

    Nesta referncia dimenso temporal da experincia migratria, vislumbra-se uma

    abordagem fenomenolgica que no contradiz uma abordagem mais estrutural. E

    independentemente da perspectiva que se tome num primeiro momento de acolhimento

    aos imigrantes, fcil ficar paralisado perante as diferenas radicais entre formas de

    pensar e de ser. Ora, para no replicar os prprios modelos de interpretao e

    interveno, necessrio desenvolver conhecimentos adequados a esta nova realidade

    que nos implica a todos.

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    O encontro entre mundos referenciais e culturais diversos, nunca privado de conflitos,

    e no gera necessariamente simpatias e conhecimento mtuo. Frequentemente os mal-

    entendidos permanecem para alm das boas intenes, e so mesmo o nico rasto destes

    encontros. Pensar poder conhecer o outro, o imigrante, o estrangeiro, sem se olhar para

    si prprio de uma nova maneira, ou ignorando as dinmicas complexas da alteridade,

    impossvel. Uma condio para chegar ao outro aceitar a parte de incerteza e de

    estranheza de ns prprios e do nosso saber. Existe uma violncia no encontro com a

    diferena e com os diferentes que para autores como Tobie Nathan, faz com que esse

    encontro seja sempre traumtico.

    Este problema conduz a um outro, seu subsidirio: o da compreenso e da traduo em

    contextos de diversidade. Reportando-nos ao contexto dos encontros de culturas numa

    sala de hospital psiquitrico, como o caso da consulta do Migrante, a diferena torna-

    se o terreno de interaco principal, levando a uma negociao de sentidos que traduz

    tambm uma confrontao de culturas. Tal leva necessidade de tomar em

    considerao a questo do confronto e do dialogo na prpria forma de pensar e aplicar

    estratgias teraputicas e de acompanhamento dos migrantes.

    Falar dos imigrantes, de culturas diferentes, significa falar de si e considerar a prpria

    histria e cultura dentro das quais se gera o implcito ns de quem se propes ajudar e

    reflectir sobre o outro.

    Neste panorama de problemas e de tomada de conscincia que a antropologia

    contempornea ajuda a clarificar, uma etnopsiquiatria ou psiquiatria cultural receptiva

    aos imigrantes deve, segundo os autores mais produtivos nesta rea, reconsiderar o seu

    estatuto de simples clnica. De facto, os mesmos autores, sugerem que esta prtica

    antes de mais uma reflexo sobre as mltiplas dimenses da doena e da cura, da

    transformao cultural, psicolgica e social, dos processos de adaptao dos migrantes.

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    Mas a adaptao e transformao no diz apenas aos migrantes ou s suas

    psicopatologias. Olhar apenas para esses seria deixar emergir um modelo essencialista

    da cultura, do sofrimento e da sociedade; uma representao esttica da diferena que se

    revela destituda de fundamento na realidade.

    Torna-se necessrio compreender e problematizar as mutaes e processos de mutua

    aculturao, que ocorrem entre aqueles que imigram e os que os acolhem. As

    categorizaes e tipificaes dos saberes institudos tambm devem ser descontrudas

    (por principio e no como fim em si), de forma que noes como etnia, comunidade,

    cultura, ou estrangeiro, no se tornem impermeveis complexidade da realidade. O

    encontro informal com os imigrantes, face a face, permite justamente conhecer as

    dimenses no oficiais da sua realidade quotidiana, que os prprios omitem e gerem em

    funo da sua maior ou menor vulnerabilidade a cada encontro.

    Os imigrantes que pedem ajuda para aliviar o seu sofrimento, fazem-nos o convite de

    desenvolver uma escuta presente, atenta, respeitosa, que no nos deixa indiferentes

    ameaa que ns prprios podemos significar para a sua dignidade de pessoas. Olhar de

    frente a possibilidade de ameaado outro, aceitar por prova o real poder que os

    prestadores de cuidados tm sobre a vida dos outros, e aceitar os desafios que este

    confronto traz ao nosso prprio conhecimento, levando-nos a criar formas de

    interveno mais adequadas e pertinentes.

    Referencias:

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    Beneduce, Roberto. (1998) Frontiere dell identit e della memoria. Etnopsichiatria e

    migrazioni in un mondo creolo. Angelli, Milano.

    Moro, Marie-Rose. (1994)Parents en exil. Psychopathologie et migrations. Puf, Paris.

    Moro, Marie-Rose. (2002) Enfants dici venus dailleurs. Natre et grandir en France.

    La Dcouverte, Paris.

    Nathan, Tobie. (1986)LaFolie des autres. Trait dethnopsychiatrie clinique. Dunod,

    Paris.