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TEORIA

Legado L LUPTON Ellen Design Escrita Pesquisa Liberado Cap 01

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T E OR I A

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N O A LT O Catálogo, design de

Herbert Bayer, 1934. Republicado

na Gebrauchsgrafik, abril de

1936. Essa publicação nazista

usa a estrutura do livro dentro

do livro. O livro em forma de

escudo aparece sobre imagens

de fundo retratando as massas

“populares” e os recursos naturais

e industriais da Alemanha.

C E N T R O Livro, The Reign of

Narcissism, de Barbara Bloom,

1990. Württembergischer

Kunstverein Stuttgart. Bloom

apresenta uma fonte literária

como artefato físico.

A B A I X O Catálogo, California

Institute of the Arts, design de

Barbara Glauber e Somi Kim,

1993. O ícone cartunesco de um

livro ocupa a espinha do layout.

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D E S C O N S T R U Ç Ã O E D E S I G N G R Á F I C O 3

Desde o surgimento do termo “desconstrução” no jornalismo especializado do design, na metade da década de 1980, essa sugestiva palavra tem servido para rotular práticas na arquitetura e no design gráfico, de produtos e de moda que favorecem formas cortadas, fragmentárias e em camadas, muitas vezes imbuídas de conotações futuristas ambíguas. Esse ensaio examina a recepção e a utilização da desconstrução na história recente do design e considera o lugar da tipografia dentro da obra de Jacques Derrida, que iniciou a teoria da desconstrução. Derrida descrevia a desconstrução como um modo de questionamento entre e sobre as tecnologias, dispositivos formais, instituições sociais e metáforas centrais de representação. A desconstrução pertence tanto à história quanto à teoria. Ela está embutida na recente cultura visual e acadêmica e descreve uma estratégia crítica de criação de formas que é desempenhada em uma ampla gama de artefatos e práticas.

Derrida introduziu o conceito de desconstrução no livro Of Grammatology (Gramatologia), publicado na França em 1967 e traduzido para o inglês em 1976.1 A desconstrução tornou-se uma bandeira para os estudos literários de vanguarda nos Estados Unidos nas décadas de 1970 e 1980, escandalizando departamentos de inglês, de francês e de literatura comparada. A desconstrução rejeitava o projeto de crítica moderna, que era o de revelar o sentido de uma obra literária estudando o modo como sua forma e seu conteúdo transmitem mensagens humanísticas essenciais. A desconstrução, bem como as estratégias críticas baseadas no marxismo, no feminismo, na semiótica e na antropologia, concentra-se não nos temas e nas imagens de seus objetos, mas nos sistemas linguísticos e institucionais que cercam sua produção.2

Segundo a teoria de Derrida, a desconstrução pergunta como a representação habita a realidade. Como a imagem externa das coisas entra em sua essência interna? Como a superfície penetra na pele? A cultura ocidental é, desde Platão, controlada por oposições como realidade/representação, interior/exterior, original/cópia e mente/corpo. As conquistas intelectuais do Ocidente (sua ciência, arte, filosofia, literatura) vêm valorizando um dos lados desses pares em detrimento do outro, aliando um à verdade e o outro à falsidade. A desconstrução ataca essas oposições, mostrando como o conceito desvalorizado e negativo habita o conceito valorizado e positivo.

Desconstrução e Design Gráfico

1 Jacques Derrida, Of

Grammatology, trad. Gayatri

Chakravorty Spivak (Baltimore:

John Hopkins Press, 1976). Ver

especialmente o Capítulo 2,

“Linguistics and Grammatology”,

27-73.

2 Jonathan Culler analisa

o impacto da desconstrução

sobre a crítica literária no livro

On Deconstruction: Theory and

Criticism after Structuralism

(Ithaca: Cornell University

Press, 1982).

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4 D E S I G N E S C R I T A P E S Q U I S A

Consideremos, por exemplo, a oposição entre natureza e cultura. A ideia de “natureza” depende da ideia de “cultura” para ser compreendida, e, no entanto, a cultura está embutida na natureza. É ilusório conceber o ambiente não humano como um cenário primitivo intocado pelos produtos da mão humana – cidades, estradas, fazendas, aterros sanitários. O fato de as sociedades ocidentais terem produzido um conceito de “natureza” em oposição ao de “cultura” é um reflexo de nossa alienação dos sistemas ecológicos que a civilização esgota e transforma. É possível encontrar outra construção interior/exterior no conceito judaico-cristão de corpo como invólucro exterior da alma interior, uma construção que eleva a alma a uma fonte sagrada de pensamentos e espírito, relegando o corpo a uma função meramente mecânica. No domínio da estética, a obra de arte original é acompanhada de uma aura de autenticidade que falta à sua cópia; o original é dotado do espírito de seu criador, enquanto a cópia não passa de mera matéria vazia.

Derrida afirmou que o sistema intelectual (ou epistema) construído sobre a oposição entre realidade e representação sempre dependeu, na verdade, de representações para construir a si mesmo:

Externo/interno, imagem/realidade, representação/presença – essa é a velha grade a que está relegado o desejo de desenhar o campo de uma ciência. E de qual ciência? De uma ciência que não pode mais responder ao conceito clássico de epistema, porque seu campo tem como originalidade (uma originalidade que ele inaugura) o fato de que a abertura da “imagem”, que nele se dá, aparece como a condição da “realidade”: relação que não mais se deixa pensar na diferença simples e na exterioridade sem compromisso da “imagem” e da “realidade”, do “fora” e do “dentro”, da “aparência” e da “essência” (33).*Uma oposição crucial para Derrida é a da fala/escrita. A tradição filosófica

ocidental vem denegrindo a escrita como uma cópia inferior da palavra falada. A fala parte da consciência interior, mas a escrita é morta e abstrata. A escrita desvirtua a linguagem ao desprendê-la do sujeito falante. No processo de incorporação da linguagem, a escrita rouba sua alma. Contrária a esse ponto de vista, a desconstrução vê a escrita como uma forma ativa de representação. A escrita não é meramente uma cópia inferior, uma transcrição falha da palavra falada; a escrita invade o pensamento e a fala, transformando as esferas sagradas da memória, do conhecimento e do espírito.

FA L A

interior à mentenão requer equipamento

espontaneamente aprendida

naturaloriginal

sujeito presente

* N. de T.: Gramatologia. São

Paulo: Perspectiva, 2008, p.41

(trad. Miriam Chnaiderman e

Renato Janine Ribeiro)

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D E S C O N S T R U Ç Ã O E D E S I G N G R Á F I C O 5

De acordo com Derrida, pode-se dizer que qualquer sistema de memória é um tipo de escrita, uma vez que registra informações com o objetivo de futuras transmissões. Em si, a linguagem falada compartilha com a escrita a alienação característica da consciência interior, uma vez que sua função depende da repetibilidade dos signos e, portanto, de uma divisão entre pensamento e expressão, entre a originalidade do enunciado espontâneo e a familiaridade da cópia.

Derrida usou o termo gramatologia para denominar o estudo da escrita como forma distinta de representação. Essa palavra um tanto pesada intitula o livro cujo legado mais infame é a desconstrução. Derrida propôs a gramatologia como campo de pesquisa para o qual a desconstrução é um modo crucial de investigação, uma maneira de questionamento que enquadra a natureza de seu objeto. As formas materiais e os processos da tipografia e do design gráfico fazem parte do domínio da gramatologia.

Se a escrita não passa de uma cópia da palavra falada, a tipografia é um modo de representação ainda mais distante da fonte primordial do sentido na mente do autor. O alfabeto, em princípio, representa os sons da fala, reduzindo-os a um conjunto finito de marcas repetíveis; a tipografia nada mais é do que o meio pelo qual ocorre essa repetição. A letra a pode ser entalhada em pedra, escrita a lápis ou impressa com um bloco gravado, mas apenas esse último processo é tipográfico, propriamente falando. A produção tipográfica envolve a composição de letras idênticas em linhas de texto. Os caracteres podem ser gerados a partir de relevos em superfícies de madeira, metal ou borracha, ou ainda a partir de um negativo fotográfico, de um código digital ou de um estêncil de papel. A arte da tipografia inclui o design de caracteres tipográficos para reprodução e a disposição de caracteres em linhas de texto. Entre as funções tipográficas características encontram-se a escolha de fontes, o espaçamento entre letras, palavras, linhas e colunas, assim como o padrão formado por essas distinções gráficas ao longo do corpo de um documento. Retornaremos ainda, neste ensaio, ao envolvimento do próprio Derrida com formas tipográficas, mas, antes disso, daremos uma olhada na desconstrução dentro da cultura do design.

E S C R I T A

exterior à menterequer equipamentoculturalmente construídaartificialcópiasujeito ausente

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6 D E S I G N E S C R I T A P E S Q U I S A

Periódico, Visible Language,

“French Currents of the Letter”,

design por Richard Kerr, Alice

Hecht, Jane Kosstrin, Herbert

Thompson e Katherine McCoy

na Cranbrook Academy of Art,

1978. Essa coleção de ensaios

sobre teoria literária francesa foi

criada como projeto estudantil.

A relação convencional entre

interior e exterior, e figura e

fundo, é invertida à medida que

os espaços entre linhas e palavras

se expandem progressivamente

e as notas de rodapé invadem a

área normalmente reservada ao

texto central.

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A H I S T Ó R I A D A D E S C O N S T RU Ç Ã O N O D E S I G N

A desconstrução pertence a um campo crítico mais amplo conhecido como “pós-estruturalismo”, cujas figuras centrais incluem Roland Barthes, Michel Foucault e Jean Baudrillard. Cada um desses autores via os modos de representação – das convenções da literatura e da fotografia ao design das escolas e prisões – como tecnologias poderosas que constroem e recriam o mundo social. O ataque da desconstrução à neutralidade dos signos também opera nas mitologias de consumo de Barthes, nas arqueologias institucionais de Foucault e na estética simulacionista de Baudrillard.3

A ideia de que as formas culturais ajudam a fabricar categorias aparentemente “naturais” como raça, sexualidade, classe e valor estético foi profundamente relevante para os artistas visuais nas décadas de 1970 e 1980. O pós-estruturalismo oferecia um caminho crítico que levava ao interior do “pós-modernismo” e uma alternativa para os resgates nostálgicos da pintura figurativa e da arquitetura neoclássica durante esse período. Enquanto Barbara Kruger, Cindy Sherman e Victor Burgin atacavam os mitos da mídia por meio de sua obra visual, livros como The Anti-Aesthetic, de Hal Foster, e Literary Theory, de Terry Eagleton, levavam o pós-estruturalismo a artistas e estudantes de forma acessível.4

Os designers gráficos de muitos cursos de arte dos Estados Unidos foram expostos à teoria crítica pelos campos da fotografia, da arquitetura, da arte performática e das instalações. A mais amplamente divulgada das intersecções entre pós-estruturalismo e design gráfico ocorreu na Cranbrook Academy of Art, sob a liderança da cocoordenadora Katherine McCoy.5 O primeiro confronto dos designers da Cranbrook com a crítica literária se deu quando criaram o design de uma edição especial para o periódico Visible Language sobre a estética literária francesa contemporânea, publicada no verão norte-americano de 1978. Daniel Libeskind, diretor do curso de arquitetura em Cranbrook, deu aos designers gráficos um seminário sobre teoria literária que os preparou para desenvolver sua estratégia: os alunos desintegraram uma série de ensaios, progressivamente expandindo os espaços entre linhas e palavras, e com isso trazendo as notas de rodapé para o espaço normalmente reservado ao texto principal. A edição French Currents of the Letter rejeitava as ideologias estabelecidas de solução de problemas e comunicação direta que constituíam a “ciência normal” para os designers gráficos modernos.6

3 Entre os textos

pós-estruturalistas amplamente

lidos pelos estudantes de arte e

design na década de 1980 estão

Roland Barthes, Mythologies,

trad. Annette Lavers (New York:

Farrar, Straus & Giroux, 1972);

Michel Foucault, Discipline and

Punish: The Birth of the Prison,

trad. Alan Sheridan (New York:

Random House, 1979); e Jean

Baudrillard, For a Critique of the

Political Economy of the Sign, trad.

Charles Levin (St. Louis, MO:

Telos Press, 1981).

4 Entre as obras que ajudaram a

popularizar o pós-estruturalismo

estão The Anti-Aesthetic: Essays

on Postmodern Culture, de Hal

Foster, ed. (Port Townsend, WA:

Bay Press, 1983) e Terry Eagleton,

Literary Theory: An Introduction

(Minneapolis: University of

Minnesota Press, 1983).

5 Cranbrook Design: The New

Discourse (New York: Rizzoli,

1990), com ensaios de Katherine

McCoy, Lorraine Wild e outros.

Ver também Katherine McCoy,

“American Graphic Design

Expression”, Design Quarterly 148

(1990): 4-22.

6 A edição French Currents of

the Letter inclui ensaios sobre

tipografia e desconstrução.

Ver Andrew J. McKenna,

“Biblioclasm: Derrida and his

Precursors”, Visible Language XII

(Summer 1978): 289-304.

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O pós-estruturalismo voltou às discussões em Cranbrook por volta de 1983. McCoy atribui a Jeffery Keedy, um aluno da escola entre 1983-85, o crédito por apresentar aos colegas de curso as obras de Barthes e outros.7

As turmas de 1985-87 e 1986-88 também se envolveram ativamente com teorias críticas; entre os alunos dessa época estão Andrew Blauvelt, Brad Collins, Edward Fella, David Frej e Allen Hori. A interação com o departamento de fotografia, coordenado por Carl Toth, incentivava o diálogo sobre teorias críticas e práticas visuais.8 O pós-estruturalismo não era, no entanto, a metodologia unificada para a escola, mesmo em seu período de maior circulação, mas, em vez disso, integrava um eclético debate de ideias. Segundo Keedy, seus colegas de Cranbrook estavam olhando para tudo, do misticismo alquímico ao “vodu da proporção” da seção áurea.9

Em uma entrevista de 1991, McCoy relembrou que “a teoria havia se tornado parte da cultura intelectual em arte e fotografia. Nunca tentamos aplicar textos específicos, tratava-se muito mais de um processo geral de filtragem. O termo ‘desconstrutivista’ me deixa furiosa. O pós-estruturalismo é uma postura, não um estilo”.10 Os designers de Cranbrook expressavam essa “postura” em experimentos formais (visuais e verbais) que brincavam com as convenções da leitura e em projetos que usavam a teoria como fonte direta de conteúdo, unindo em colagens citações de fontes diversas. Assim, a teoria era tanto formação intelectual para a expressão abstrata quanto objeto de pesquisa. O cartaz Typography as Discourse, de 1989, criado por Allen Hori para divulgar uma palestra de McCoy, é um manifesto para a prática do design embasada na teoria literária. A tipografia de Hori desafia a tradicional oposição entre ver e ler, tratando a superfície como conteúdo teórico e forma sensorial, como texto e textura ao mesmo tempo. Em vez de entregar diretamente as informações, o cartaz de Hori espera que o leitor se esforce para descobrir suas mensagens.

A resposta ao pós-estruturalismo em Cranbrook foi, em grande medida, otimista, esquivando-se do pessimismo e da crítica política que permeiam o trabalho de Barthes, Foucault e outros. McCoy usou a teoria arquitetônica de Robert Venturi e Denise Scott Brown como “degrau” para o pós-estruturalismo, o que lhe permitiu misturar a valorização pop do vernacular comercial com a crítica do pós-estruturalismo aos “significados fixos”.11 A preferência de McCoy pela celebração formal em detrimento da crítica cultural ecoa no comentário de Keedy. “Era o aspecto poético de Barthes que me atraía, não a análise marxista. Afinal, somos designers trabalhando em uma sociedade de consumo, e, embora o marxismo seja uma ideia interessante, eu não gostaria de colocá-lo em prática.”12

7 Katherine McCoy, entrevista

com Ellen Lupton, fevereiro

de 1991.

8 Comunicação com Andrew

Blauvelt, 1994.

9 Jeffery Keedy, entrevista com

Ellen Lupton, fevereiro de 1991.

10 Katherine McCoy, entrevista

com Ellen Lupton, fevereiro de

1991.

11 Robert Venturi, Denise Scott

Brown e Steven Izenour, Learning

from Las Vegas (Cambridge: MIT

Press, 1972).

12 Jeffery Keedy, entrevista com

Ellen Lupton, fevereiro de 1991.

Cartaz, Typography and Discourse,

design Allen Hori, 1989.

Cranbrook Academy of Art,

Michigan.

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A ênfase do pós-estruturalismo na abertura de sentido vem sendo incorporada por muitos designers em uma teoria romântica de autoexpressão: o argumento sustenta que, uma vez que o significado não está fixo nas formas materiais, os designers e leitores compartilham a criação espontânea de sentido. As interpretações são particulares e pessoais, produzidas pelas sensibilidades únicas de criadores e leitores. Essa abordagem representa uma resposta bastante alegre ao tema pós-estruturalista da “morte do autor”, que afirma que o eu interior é construído por sistemas e tecnologias externos. Segundo a concepção de Barthes e Foucault, por exemplo, o cidadão/artista/produtor não é o mestre dominador da linguagem, da mídia, da educação, dos costumes e assim por diante; em vez disso, o indivíduo opera dentro da grade de possibilidades que esses códigos apresentam. Em vez de encarar a produção de sentido como uma questão particular, a teoria pós-estruturalista tende a ver o domínio do “pessoal” como algo estruturado por sinais externos. A invenção e a revolução são resultado de agressões táticas contra a grade.13

O “desconstrutivismo” foi catapultado para dentro da corrente dominante da imprensa de design pela exposição Deconstructivist Architecture, de 1988, no MoMA, com curadoria de Philip Johnson e Mark Wigley.14 Os curadores usaram o termo “desconstrutivismo” para conectar uma série de práticas arquitetônicas ao Construtivismo Russo, que, nos primórdios, visionava a forma e a tecnologia em conturbação caótica em detrimento da solução racional. A exposição do MoMA detectava uma variante igualmente distorcida do modernismo no trabalho de Frank Gehry, Daniel Libeskind, Peter Eisenman e outros. Em seu ensaio para o catálogo, Wigley escreveu:

Um arquiteto desconstrutivo... não é o que desmonta edifícios, mas o que localiza os dilemas inerentes dentro dos edifícios. O arquiteto desconstrutivo coloca as formas puras da tradição arquitetônica no divã e identifica os sintomas de uma impureza reprimida. A impureza é trazida para a superfície através de uma combinação de coação gentil e tortura violenta: a forma sofre um interrogatório (11).Na opinião de Wigley, a desconstrução na arquitetura faz perguntas sobre

o modernismo, reexaminando sua própria linguagem, seus materiais e seus processos.

13 Robin Kinross culpa o

pós-estruturalismo pelo fato de

os designers contemporâneos

terem se refugiado em

perspectivas pessoais da forma e

da função tipográficas. Embora a

teoria já venha sendo usada pelos

designers por algum tempo, a

visão pós-estruturalista do poder

dos signos é profundamente

social, gerando uma crítica, e

não uma celebração, das noções

humanistas de bom gosto e

originalidade. Ver Kinross, Fellow

Readers: Notes on Multiplied

Language (Londres: Hyphen

Press, 1994).

14 Philip Johnson e Mark

Wigley, Deconstructivist

Architecture (New York: Museum

of Modern Art, 1988).

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Embora a exposição do MoMA descrevesse a desconstrução como um modo de investigação e não como um repertório de maneirismos, ainda assim os curadores enquadraram sua exposição em um novo “ismo” e, com isso, ajudaram a canonizar os elementos de um estilo de época, marcado por geometrias retorcidas, planos sem centro e fragmentos de vidro e metal. Esse conjunto de características visuais rapidamente migrou da arquitetura para o design gráfico, da mesma forma que os ícones e as cores do pós-modernismo neoclássico haviam feito um pouco antes. Ao passo que a abordagem mais crítica à desconstrução atingira os designers gráficos no campo da fotografia e das belas-artes, a arquitetura oferecia um vocabulário formal pronto para o uso que podia ser adotado de forma mais ampla. “Desconstrução”, “desconstrutivismo” e a contração “descon” tornaram-se clichês no mundo do design, em que davam nome a tendências já existentes e catalisavam novas tendências nos campos do design gráfico, de móveis e de moda.15

Em 1990, Philip Meggs publicou um guia prático para os aspirantes a desconstrutivistas na revista Step-by-Step Graphics. Seguindo a lógica do projeto do MoMA, a história de Meggs começa no construtivismo e termina na “desconstrução”; entretanto, ao contrário de Wigley, Meggs retratou os primórdios do modernismo como um projeto puramente racional.16 Uma peça mais analítica, criada por Chuck Byrne e Martha Witte para a Print (1990), descreve a desconstrução como um “zeitgeist”, um germe filosófico que circula na cultura contemporânea e influencia os designers gráficos, mesmo sem que eles saibam. Essa opinião corresponde, grosso modo, à ideia de McCoy de que o pós-estruturalismo é uma “postura” geral em resposta à “cultura intelectual” da época. O artigo de Byrne e Witte identifica exemplos de desconstrução ao longo do mapa ideológico do design contemporâneo, desde a obra de Paula Scher e Stephen Doyle até Lucille Tenazas e Lorraine Wild.

Hoje em dia, o termo “desconstrução” é usado eventualmente para rotular qualquer obra que favoreça a complexidade em detrimento da simplicidade e dramatize as possibilidades formais da produção digital. Em geral, utiliza-se o termo para evocar uma lealdade genérica à Cranbrook ou à CalArts, um gesto que reduz as duas escolas a símbolos superficiais, abrangendo uma grande variedade de práticas distintas. A visão que temos sobre a desconstrução no design gráfico é ao mesmo tempo mais estreita e mais ampla em escopo do que a visão que evolui do discurso atual. Em vez de olhar para a desconstrução como um estilo histórico ou de época, vemos a desconstrução como um processo crítico – um ato de questionamento.

15 Michael Collins e Andreas

Papadakis incluem um

capítulo sobre desconstrução,

desconstrutivismo e modernismo

tardio (“Deconstruction,

Deconstructivism, and

Late-Modernism”) em seu livro

Post-Modern Design (New York:

Rizzoli, 1989), 179-95. O livro faz

um levantamento de móveis, joias

e outras artes decorativas.

16 Entre os ensaios sobre

desconstrução e design

gráfico estão Philip Meggs,

“De-constructing Typography”,

Step-by-Step Graphics 6

(February de 1990), 178-181;

e Chuck Byrne e Martha

Witte, “A Brave New World:

Understanding Deconstruction”,

Print XLIV (November/

December 1990), 80-87.

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O D E S I G N N A D E S C O N S T RU Ç Ã O

Depois de analisar a vida da desconstrução na história recente do design, vamos agora localizar o design dentro da teoria da desconstrução. Os recursos visuais da tipografia são instrumentais para a dissecção da arte e da filosofia ocidentais levada a cabo por Derrida. A crítica de Derrida à oposição fala/escrita se desenvolveu a partir de sua leitura do Course in General Linguistics (Curso de Linguística Geral), de Ferdinand de Saussure, um texto fundamental para os campos da linguística estruturalista, da semiótica e da antropologia.17 Saussure afirmava que o sentido dos signos não se encontra nos próprios signos: não há uma ligação natural entre o significante (o aspecto material do signo) e o significado (seu referente). Em vez disso, o sentido de um signo se dá apenas pela sua relação com os outros signos de um sistema. Esse princípio é a base do estruturalismo, que se concentra em padrões ou em estruturas que geram sentido no lugar do “conteúdo” de um determinado código ou costume.

Saussure argumentava que, por não ter sentido inerente, o signo, se isolado, é vazio, nulo, ausente. O signo não possui vida além do sistema ou da “estrutura” dentro da qual se enquadra. A linguagem não é uma janela transparente para conceitos preexistentes: ela forma ativamente o domínio das ideias. A raiz, corpo material do significante, não é uma cópia secundária do elevado e nobre plano dos conceitos: ambos não passam de massas amorfas até que o trabalho articulatório da linguagem os divida em peças distintas. Em vez de pensar na linguagem como um código para representar passivamente os “pensamentos”, Saussure mostrou que os “pensamentos” tomam forma através do corpo material da linguagem.

Em Of Grammatology, Derrida observa que, embora Saussure estivesse disposto a revelar o vazio no âmago da linguagem, ele se enfureceu ao ver o mesmo princípio em ação na escrita, o sistema de signos criado para representar a fala. Saussure enxergava a escrita como uma cópia da fala, uma tecnologia artificial para reproduzir a linguagem. Embora o alfabeto se proponha a ser uma transcrição fonética dos sons falados, há abundância de ortografias irracionais em códigos como o inglês escrito: por exemplo, palavras que têm o mesmo som mas são escritas de forma diferente (meet|meat) e combinações de letras com pronúncias falsas (th-, sh-, -ght). O tom da crítica de Saussure evolui de uma leve irritação no início do argumento a uma acalorada condenação da forma como o alfabeto viola uma fala inocente e natural: a “tirania da escrita” distorce seu referente primitivo através de “monstruosidades ortográficas” e “deformações fônicas” (30-2).

17 Ferdinand de Saussure

fundou a linguística estrutural

com seu Course in General

Linguistics, trad. Wade Baskin

(New York: McGraw-Hill, 1959).

Ver “Graphic Representation of

Language” (22-32) e “General

Principles” (65-100). Sobre

Saussure e a teoria crítica, ver

Jonathan Culler, Ferdinand

de Saussure (Ithaca: Cornell

University Press, 1976).

A B A I X O Seções e axonometria

explodida de estrutura e

circulação, City Edge, design

de Daniel Libeskind, 1987. A

obra fez parte da exposição

Deconstructivist Architecture, no

MoMA, em 1988.

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1 2 D E S I G N E S C R I T A P E S Q U I S A

Saussure lançou seu ataque à escrita fonética, o meio paradigmático de comunicação no Ocidente. Ele excluiu explicitamente as escritas pictográfica e ideográfica de sua crítica. Nas palavras de Saussure, os ideogramas chineses não têm as mesmas “consequências deploráveis”, pois seus usuários compreendem claramente seu papel como signos secundários para as palavras faladas e não como a língua em si (26). O poder (e a sedução) da escrita fonética está em sua economia: um pequeno número de caracteres é capaz de representar uma série infinita de palavras. Ao contrário das escritas pictográfica ou ideográfica, a escrita fonética representa o significante da língua (seu som material) e não o significado (seu sentido conceitual ou “conteúdo”). Ao passo que o ideograma representa um conceito, os caracteres fonéticos indicam meramente o som. Assim, o alfabeto segue a arbitrariedade do signo, considerando o significante independentemente de seu sentido.

O alfabeto separou a língua em interior e exterior: o destino da escrita fonética é ocupar e definir o exterior, servir como cópia mecânica do significante que mantém intacto o sagrado interior. Segundo Derrida, a interioridade e a plenitude da fala dependem da existência de uma representação exterior e vazia – o alfabeto. Da mesma forma, a noção de “natureza” como domínio ideal dissociado da produção humana só poderia surgir à medida que a “civilização” pilhava os sistemas ecológicos dos quais depende a cultura. “Desconstruir” a relação entre fala e escrita significa reverter o estado dos dois termos, mas sem simplesmente substituir um pelo outro. A desconstrução pretende mostrar que a fala é, no fundo, caracterizada pela mesma falha em refletir de forma transparente a realidade, pelo mesmo vazio interior. Não existe fala plena ou inocente. O fato de nossa cultura ter desenvolvido um sistema de escrita fonética – que representa o significante material isolado do significado sagrado – é indicativo de nosso distanciamento essencial da língua falada. Por explorar a lacuna entre significado e significante, a escrita fonética não é simplesmente um reflexo secundário da língua, mas um sintoma da falta de presença e de autossuficiência interior da própria língua.

E S Q U E R D A Diagrama,

estrutura do signo,

retirado do Course in

General Linguistics, de

Ferdinand de Saussure.

D I R E I TA Diagrama, a

língua tomando forma a

partir da massa amorfa de

sons e conceitos, retirado

do Course in General

Linguistics, de Ferdinand

de Saussure.

significado

significante

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D E S C O N S T R U Ç Ã O E D E S I G N G R Á F I C O 1 3

O ataque final de Derrida à noção de escrita como cópia secundária da fala é afirmar, perversamente, que “a escrita fonética não existe” (39). Não só a escrita habita a fala, transformando sua gramática e som, e não só a escrita fonética funciona como o “próprio outro” da língua, um “exterior” fabricado para afirmar sua própria “interioridade” ilusória, mas esse modelo de “exterior” sistematicamente não consegue se comportar da forma esperada. Assim, onde Saussure tinha afirmado que havia apenas duas formas de escrita – fonética e ideográfica –, Derrida mostrou que a fronteira entre as duas é f lutuante.

A escrita fonética está repleta de elementos e funções não fonéticas. Alguns signos usados em conjunto com o alfabeto são ideográficos, incluindo números e símbolos matemáticos. Outras marcas gráficas sequer podem ser chamadas de signos, uma vez que não representam “significados” ou conceitos distintos: por exemplo, pontuação, f loreios, rasuras e padrões de diferença como tipo romano/itálico e caixa-alta/caixa-baixa. Que “ideia” é representada pelo espaço entre duas palavras ou por um dingbat no início de uma linha? As diversas formas de espacejamento são elementos essenciais entre essas marcas não fonéticas – lacunas negativas entre os símbolos positivos do alfabeto. De acordo com Derrida, o espacejamento não pode ser relegado a um papel de “simples acessório” da escrita: “Que uma fala dita viva possa prestar-se ao espacejamento na sua própria escritura, eis o que originariamente a relaciona com sua própria morte” (Of Grammatology, p. 39)*. O alfabeto aprendeu a confiar nos silenciosos servos gráficos como o espacejamento e a pontuação, os quais, como a moldura de um quadro, parecem estar seguramente “fora” do conteúdo e da estrutura internos de uma obra e, no entanto, são condições necessárias para sua criação e leitura.

Em The Truth in Painting, Derrida discute o emolduramento como componente fundamental das obras de arte.18 Na estética iluminista de Kant, a moldura de um quadro pertence a uma classe de elementos chamados parerga, que significa “em torno da obra”, ou fora/ao redor da obra. Entre os parerga listados por Kant estão as colunas dos edifícios, os drapeados nas vestimentas das estátuas e as molduras dos quadros. Kant descreve esses dispositivos de emolduramento como anexos ornamentais à obra de arte: tocam a obra, mas mantêm-se seguramente fora dela. A estética de Kant forma a base para a crítica de arte moderna, que proclama a integridade e a autossuficiência do objeto.

18 Derrida apresenta a teoria da

moldura em The Truth in Painting,

trad. Geoff Bennington e Ian

McLeod (Chicago: University of

Chicago Press, 1987).

* N. de T.: Gramatologia. São

Paulo: Perspectiva, 2008, p.49

(trad. Miriam Chnaiderman e

Renato Janine Ribeiro)

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De acordo com Derrida, o “quase-distanciamento” e a aparente modéstia da moldura do quadro e de outros parerga servem tanto para esconder quanto para revelar o vazio no âmago de um objeto aparentemente autônomo de devoção estética. Assim como os suplementos não fonéticos ao alfabeto, as fronteiras que cercam as imagens ou os textos são ao mesmo tempo figura e fundo, elemento positivo e lacuna negativa, acessório dispensável e suporte crucial. Nas palavras de Derrida:

O parergon

é uma forma que tem,

como determinação tradicional,

não destacar-se

mas desaparecer

enterrar-se, apagar-se,

dissolver-se no momento em que libera sua maior energia.

A moldura

não é de forma alguma um pano de fundo...

mas tampouco

em sua espessura de margem é figura.

No mínimo, é uma figura que

se desprende por vontade própria (61).

Espacejamento e pontuação, fronteiras e molduras: esses são os territórios da tipografia e do design gráfico, aquelas artes marginais que tornam legíveis os textos e as imagens. A substância da tipografia não está no alfabeto em si – as formas genéricas de caracteres e seus usos convencionados –, mas no contexto visual e nas formas gráficas específicas que materializam o sistema da escrita. O design e a tipografia trabalham nos limites da escrita, determinando a forma e o estilo das letras, os espaços entre elas, e sua localização na página. De sua posição à margem da comunicação, a tipografia distanciou a escrita da fala.

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D E S I G N C O M O D E S C O N S T RU Ç Ã O

A história da tipografia e da escrita poderia ser escrita como o desenvolvimento das estruturas formais que vêm explorando a fronteira entre o interior e o exterior dos textos. Compilar um catálogo da micromecânica da editoração – sumários e folhas de rosto, legendas e colofões, fólios e notas de rodapé, entrelinhamento e profundidade das linhas, margens e elementos marginais, espacejamento e pontuação – é uma atividade que contribuiria para o que Derrida chamou de gramatologia, o estudo da escrita como modo distinto de representação. Essa história poderia posicionar diversas técnicas tipográficas em relação à divisão entre forma e conteúdo, interior e exterior. Algumas convenções servem para racionalizar a apresentação de informações, erguendo “cálices de cristal” translúcidos ao redor de um corpo de “conteúdo” aparentemente independente e neutro. Algumas estruturas invadem o interior sagrado com tamanha profundidade que o texto é virado do avesso, enquanto outras ignoram ou contradizem a organização interna de um texto em resposta a pressões externas impostas por tecnologia, estética, interesses corporativos, adequação social, conveniência de produção, e assim por diante.

A obra Modern Typography (1992), de Robin Kinross, mapeia a progressiva racionalização das formas e usos das letras ao longo de vários séculos. O livro de Kinross descreve a imprenssão como um processo prototipicamente “moderno”, que desde o início mobilizou técnicas de produção em massa e precipitou o amadurecimento das artes e ciências. As sementes da modernização estavam presentes nas primeiras provas de Gutenberg; seus frutos estão nas metodologias autoconscientes, nas práticas profissionalizadas e nas formas visuais padronizadas de tipógrafos, que, desde o início do século XVII, substituíram a antiga noção de que a imprensa era uma arte hermética de “magia negra”, cujos métodos eram zelosamente guardados por uma casta de artesãos.19 Se a história da tipografia moderna de Kinross cobre cinco séculos, uma contra-história da desconstrução poderia abarcar a mesma extensão de tempo, desenvolvendo-se paralelamente e abaixo do estabelecimento de estruturas formais transparentes e corpos coerentes de conhecimento profissional.

19 Robin Kinross, Modern

Typography: An Essay in Critical

History (London: Hyphen Press,

1992). Johanna Drucker escreve

sobre o lado experimental e

transgressor (em oposição ao

racional) do modernismo em

The Visible Word: Experimental

Typography and Modern Art,

1909-1923 (Chicago: University of

Chicago Press, 1994).

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1 6 D E S I G N E S C R I T A P E S Q U I S A

E S Q U E R D A Livro,

Campanus Opera, de

Johannes Antonius,

impresso por Eucharius

Silber, Roma, 1445.

D I R E I TA Livro, Bíblia

Latina, impressa

por Anton Koberger,

Nuremberg, 1497.

E S Q U E R D A Jornal, Publick

Occurrences Both Foreign and

Domestick, Boston, 1690.

D I R E I TA Jornal, The Daily

Inter Ocean, Chicago, 1881.

Reproduzido em Robert

F. Ravolevitz, From Quill

to Computer: The Story

of America’s Community

Newspapers (Freeman, South

Dakota: National Newspaper

Foundation, 1985).

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D E S C O N S T R U Ç Ã O E D E S I G N G R Á F I C O 1 7

A escrita do próprio Derrida já lançou mão de layouts de página fora dos padrões convencionais das publicações acadêmicas. Seu livro Glas, com design de Richard Eckersley, da University of Nebraska Press, consiste em conjuntos de textos paralelos em fontes diferentes, o que sugere vozes e modos de escrita heterogêneos. Glas transforma as anotações dos eruditos dos manuscritos medievais e as justaposições acidentais dos jornais modernos em uma estratégia autoral deliberada.

Um estudo de tipografia e escrita embasado na desconstrução examinaria estruturas que dramatizam a intrusão da forma visual no conteúdo verbal, a invasão das “ideias” por marcas, lacunas e diferenças gráficas. As páginas no alto, à direita, representam duas abordagens diferentes à emolduração do texto. Na primeira, as margens são uma borda transparente para o bloco sólido que domina a página. As linhas em caracteres romanos clássicos são minimamente interrompidas, preservando o texto como um campo contínuo de letras. O segundo exemplo recorre à tradição dos elementos marginais e dos comentários bíblicos. Aqui, a tipografia é um meio interpretativo; o texto não é fechado, e sim aberto. O primeiro exemplo sugere que as fronteiras entre interior e exterior, entre figura e fundo, entre leitor e escritor, estão seguramente definidas, enquanto o segundo exemplo dramatiza essas divisões, engolfando o centro e a borda.

Outra comparação vem da história dos jornais, que surgiram como meio literário de elite no século XVII. Os primeiros jornais ingleses baseavam sua estrutura na do livro clássico, e seu design era direcionado à leitura do início ao fim. À medida que o jornal se tornou um meio popular na Europa e na América, durante o século XIX, aumentou de tamanho, das medidas de um livro para um formato-padrão maior, incorporando diversos elementos, de reportagens sobre crimes e escândalos a anúncios de bens e serviços. O moderno jornal ilustrado é uma colcha de retalhos de elementos que competem entre si, cuja justaposição ref lete não as hierarquias racionais de conteúdo, mas a luta entre interesses editoriais, publicitários e de produção. Enquanto a estrutura do jornal de notícias clássico aspirava ao status de um objeto coerente e completo, a aparência do jornal popular era resultado de acordos comerciais apressados e de condições arbitrárias.20

20 Sobre a história do jornal,

ver Allen Hutt, The Changing

Newspaper: Typographic Trends in

Britain and America, 1622-1972

(London, Gordon Fraser, 1973).

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1 8 D E S I G N E S C R I T A P E S Q U I S A

Livro, Strange Attractors, design

de Marlene McCarty e Tibor

Kalman, 1989. The New Museum

of Contemporary Art, Nova York.

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D E S C O N S T R U Ç Ã O E D E S I G N G R Á F I C O 1 9

Livro, Glas, de Jacques

Derrida. Edição em língua

francesa, no alto à direita,

publicada pela Éditions

Galilée, Paris, 1974. Edição

em língua inglesa, à esquerda,

publicada pela University of

Nebraska Press, 1986; design

de Richard Eckersley.

Livro, The Telephone Book,

de Avital Ronal, design de

Richard Eckersley, 1989.

University of Nebraska Press.

Em página dupla, Eckersley

deliberadamente crivou o

bloco de texto com lacunas

verticais – essas aberturas,

chamadas “caminhos de rato”

no jargão da tipografia, são

vistas como falhas no design

convencional de livros, que

aspira a campos de texto de

coloração uniforme.

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“Dicionários” visuais de design de páginas, que contêm diagramas esquemáticos com layouts típicos, tornaram-se um tema comum na literatura especializada em design do século XX. O manifesto de Jan Tschichold, “The Placing of Type in a Given Space”, de 1934, mapeia uma gama de variações sutis na localização de cabeçalhos e corpo de texto, e o manual de Don May, 101 Roughs, de 1942, retrata as variações do design da página comercial. Enquanto Tschichold mapeou diferenças mínimas entre elementos claramente organizados, May acomodou a diversidade de mídias e mensagens que competem entre si, típicas da publicidade. Ambos os teóricos apresentaram uma série de contentores para corpos genéricos de “conteúdo”, mas com uma diferença: as estruturas de Tschichold pretendem ser molduras neutras para as figuras textuais dominantes, enquanto os padrões de May são fundos ativos que ignoram as hierarquias convencionais. Entre as estruturas desorganizadas de May estão “Quatro pontos: o layout toca os quatro lados do espaço apenas uma vez” e “Eixo central: o texto, a ilustração e o logotipo se alinham com lados alternados do eixo”.

Se alguém se aventurasse pelo estudo da gramatologia proposta por Derrida, o catálogo de formas resultante poderia incluir as condições gráficas delineadas anteriormente. Em cada um dos casos, foi mostrado um artefato coerente e aparentemente autossuficiente em justaposição a uma situação em que as forças externas interferem no conteúdo. Uma história da tipografia embasada na desconstrução mostraria como o design gráfico vem revelando, revisando ou ignorando as regras de comunicação aceitas. Essas intervenções podem representar confrontos sociais críticos ou encontros casuais com as pressões sociais, tecnológicas e estéticas que dão forma à criação de textos.

Em uma entrevista de 1994, Derrida foi indagado sobre a suposta “morte” da desconstrução nas universidades dos Estados Unidos. Sua resposta foi a seguinte: “Acho que há um elemento da desconstrução que pertence à estrutura da história ou dos fatos. Isso teve início antes do fenômeno acadêmico da desconstrução e continuará com outros nomes”21. No espírito dessa declaração, nosso interesse é o de desassociar a relevância da desconstrução de um período histórico. Em vez de encará-la como um “ismo” do final dos anos 1980 e início dos 1990, enxergamo-la como parte de uma evolução permanente do design e da tipografia como modos de representação distintos.

21 Mitchell Stevens, “Jacques Derrida”.

The New York Times Magazine (January

23, 1994): 22-5.

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D E S C O N S T R U Ç Ã O E D E S I G N G R Á F I C O 2 1

N O A LT O Diagramas

de página, design de Jan

Tschichold, retirados de

“The Placing of Type in a Given

Space”, 1934. Reimpressos em

Jan Tschichold, Typographer,

Ruari McClean, ed. (Boston:

David R. Godine, 1975).

A B A I X O Diagramas de

página, design de Don May,

1942. Retirados de 101 Roughs

(Chicago: Frederick J.

Drake & Co.).

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2 2 D E S I G N E S C R I T A P E S Q U I S A

AO LADO Livro, The

Imperial Family Bible, 1854.

Blackie and Son, Glasgow.

Os comentários marginais

correm no centro da página.

ABAIXO Photography

Between Covers: The Dutch

Documentary Photobook

after 1945, design de Fred

Struving, 1989. Fragmento

Uitgeverij, Amsterdam. Neste

livro bilíngue, as notas de

rodapé e outros elementos

marginais ocupam o centro.

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D E S C O N S T R U Ç Ã O E D E S I G N G R Á F I C O 2 3

Mas a desconstrução também pertence à cultura: trata-se de uma operação que assumiu um nome e teceu uma rede de inf luências em contextos sociais específicos. A desconstrução já habitou uma série de mundos institucionais, dos departamentos de literatura de universidades a escolas de arte e design, passando pelo discurso do jornalismo popular, onde funcionou tanto como atividade crítica quanto como bandeira para uma vasta gama de estilos. Para fechar nosso ensaio, selecionamos um exemplo de design gráfico que faz uma crítica direta à mídia contemporânea.

A capa de Vincent Gagliostro para a NYQ, uma revista de notícias direcionada à comunidade gay, foi criada em novembro de 1991, em resposta à declaração do astro do basquete Magic Johnson de que era soropositivo. Gagliostro impôs o logotipo e a manchete da NYQ sobre uma capa da revista Newsweek que mostrava Magic Johnson de braços erguidos em um gesto de sacrifício santificado e vigor atlético. “Ele não é nosso herói”, escreveu a NYQ sobre o texto existente. Se o uso de camadas e emendas que Gagliostro fez é comum a gestualidades mais estetizadas e individualizadas encontradas em outras instâncias do design contemporâneo, o objetivo de seu design não era o de disparar uma variedade infinita de interpretações pessoais, e sim o de explicitamente manipular um artefato cultural. O ato de reescritura de Gagliostro é uma resposta poderosa à ubiquidade dos sistemas de signos normativos e mostra que as estruturas da mídia de massa podem ser reembaralhadas e reabitadas. A capa da NYQ revela e explora a função de emolduramento como processo transformativo que se recusa a se manter fora do conteúdo editorial nele contido.

Espaçamento, emolduramento, pontuação, estilo de tipos, layout e outras estruturas não fonéticas de diferença constituem a interface material da escrita. As pesquisas tradicionais em literatura e linguística se esquecem dessas formas gráficas, optando por se concentrar na Palavra como centro da comunicação. Segundo Derrida, as funções de repetição, citação e fragmentação que caracterizam a escrita são condições endêmicas a toda expressão humana – até mesmo os enunciados de fala aparentemente espontâneos e autopresentes ou as superfícies lisas e naturalísticas da pintura e da fotografia. O design pode envolver criticamente as mecânicas de representação, expondo e revisando seus vieses ideológicos; o design também pode recriar a gramática da comunicação, descobrindo estruturas e padrões dentro da mídia material da escrita visual e verbal.

Capa de revista, NYQ, design

de Vincent Gagliostro, Nova

York, 1991.

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