302
LEGÍTIMOS VASSALOS PARDOS LIVRES E FORROS NA VILA RICA COLONIAL (1750-1803) DANIEL PRECIOSO

Legitimos_vassalos_pardos Livres e Forros Na Vila Rica Colonial

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Livro sobre História Colonial na Vila Rica setecentista

Citation preview

  • Legtimos VassaLosPardos livres e forros na vila rica colonial (1750-1803)Daniel Precioso

  • Legtimos vassaLos

  • Conselho editorial aCadmiCoresponsvel pela publicao desta obra

    tnia da Costa Garciamrcia Pereira da silva

    susani silveira lemos Frana

  • Daniel Precioso

    Legtimos vassaLosPardos livres e forros na vila

    rica colonial (1750-1803)

  • 2011 editora Unesp

    Cultura Acadmica

    Praa da s, 108

    01001-900 so Paulo sP

    tel.: (0xx11) 3242-7171

    Fax: (0xx11) 3242-7172

    [email protected]

    editora afiliada:

    este livro publicado pelo Programa de Publicaes digitais da Pr-reitoria de Ps-Graduao da Universidade estadual Paulista Jlio de mesquita Filho (UnesP)

    CiP Brasil. Catalogao na Fonte

    sindicato nacional dos editores de livros, rJ

    P932i

    Precioso, daniel

    legtimos vassalos: pardos livres e forros na Vila rica colonial (1750-1803)

    / daniel Precioso. so Paulo: Cultura acadmica, 2011.

    inclui bibliografia.

    apndice

    isBn 978-85-7983-209-3

    1. minas Gerais histria. 2. Brasil histria Perodo colonial, 1500-

    1822. 3. escravos libertos. i. ttulo.

    11-7939 Cdd: 981.51

    Cdd: 94(815.1)1500/1822

  • Aos meus pais, Valter e Neide.

  • Os cazamentos, e mais ainda as mancebias dos proprietrios com mulheres pretas, e mulatas tem feito mais de tres partes do povo de gente liberta, sem criao, sem meios de alimentar-se, sem costumes e com a louca opinio de q.e a gente forra no deve trabalhar; tal he a mania, q.e induz a vista da escravatura, unindo-se aos vcios mencionados.

    Baslio Teixeira de S Vedra Informao sobre a Capitania de Minas Gerais (1805)

    Por trajos demasiados/ em que todos so iguais/ so confusos/ os trs estados, danados/ alterados mesteirais/ em seus usos./ No devemos ser comuns/ Seno para Deus amarmos/ e servirmos,/ no sejamos todos uns/ em ricamente calarmos/ e vestirmos./[...] Nos outros tempos passados/ todos queriam viver/ honestamente,/ ordenados, compassados,/ cada um em seu valer/ era contente./ [...]/ Todos sem altevidade/ honestamente folgavam/ cada um/ segundo sua qualidade [...].

    Poeta AnnimoPoema do Cancioneiro Geral (1516)

  • Os homens pardos, Irmos da Confraria do Senhor So Jos, de Vila Rica das Minas Gerais, [...] sendo legtimos vassalos de V. Majestade e nacionais daqueles domnios, onde vivem com reto procedimento, sendo uns mestres aprovados pela Cmara da dita Vila em seus ofcios mecnicos e subordinados a estes trabalham vrios oficiais e aprendizes; que outros se vem constitudos mestres em artes liberais, como os msicos, que o seu efetivo exerccio pelos templos do Senhor e procisses pblicas, aonde certamente grande indecncia irem de capote, no se atrevendo a vestirem corpo por se verem privados do adorno e compostura dos seus espadins, com que sempre se trataram e que, finalmente, outros aspirando a mais, se acham mestres em gramtica, cirurgia e na honrosa ocupao de mineiros, sendo muitos destes filhos de homens nobres, que como tais so reconhecidos []

    Petio dos homens pardos livres da Capitania das Minas (1758)

  • Sumrio

    Lista de siglas e abreviaturas 11

    Apresentao 13

    Introduo 15

    1 os homens pardos na Vila rica setecentista 292 Mulatos e pardos na legislao colonial 653 a capela de so Jos dos Bem-casados

    de Vila rica: locus de sociabilidade parda 1074 Percursos: as trajetrias de vida dos confrades 171

    Consideraes finais 237

    Fontes 245

    Referncias bibliogrficas 251

    Apndice estatstico 267

    Anexos 271anexo i

    Relao de oficiais e mesrios da confraria de so Jos de Vila rica 273

  • anexo ii Diagramas das rvores genealgicas dos confrades (amostragem total) da irmandade de so Jos de Vila rica 287

  • LiSta de SigLaS e abreviaturaS

    acsM arquivo da casa setecentista de Mariana AEAM Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana AHMI Arquivo Histrico do Museu da Inconfidncia/

    casa do Pilar aHU arquivo Histrico Ultramarino AMI Anurio do Museu da Inconfidncia aPnscaD arquivo da Parquia de nossa senhora da

    conceio de antnio Dias aPnsP arquivo da Parquia de nossa senhora do Pilar BN Biblioteca Nacional/RJ CC Casa dos Contos/Ouro Preto cd. cdice cx. caixa Doc. Documento HaHr The Hispanic american Historical review IEB Instituto de Estudos Brasileiros/USP iPHan instituto do Patrimnio Histrico e artstico

    nacional Maas Museu arquidiocesano de arte sacra de Mariana MG Minas Gerais Ms. Manuscrito

  • 12 daniel PreCioso

    raPM revista do arquivo Pblico Mineiro rBH revista Brasileira de Histria RIHGB Revista do Instituto Histrico e Geogrfico

    Brasileiro RIHGMG Revista do Instituto Histrico e Geogrfico de

    Minas Gerais riPHan revista do instituto do Patrimnio Histrico e

    artstico nacional rsPHan revista do servio do Patrimnio Histrico e

    artstico nacional

  • apreSentao

    este livro uma verso revisada e adaptada da dissertao Le-gtimos vassalos: pardos livres e forros na Vila rica colonial (1750-1803), defendida em 2010, junto ao Programa de Ps-Graduao em Histria da UnesP-Franca. a sua publicao tornou-se pos-svel graas concorrncia direta e indireta de muitas pessoas, s quais devoto estes agradecimentos.

    inicialmente, manifesto a minha profunda gratido professora ida lewkowicz pela orientao da dissertao.

    agradeo aos professores Jean Marcel carvalho Frana e ana raquel Portugal pelas discusses realizadas em disciplinas do curso e durante o exame geral de qualificao.

    ao professor Marco antonio silveira, ex-orientador, pelo deba-te instigante de temas relacionados minha pesquisa e pelos apon-tamentos realizados durante a defesa da minha dissertao.

    Masa arajo, em nome da secretaria de ps-graduao pelo suporte.

    Aos funcionrios dos arquivos que percorri: Sueli e Carmen, da casa do Pilar; conceio, da casa dos contos; luciana, adelma e Fabiana, da Cria; Cssio e Antero, da Casa Setecentista; Caju e ngela, da Parquia do Pilar.

    Ao professor Jos Arnaldo Aguiar Lima pelo dilogo aberto.

  • 14 daniel PreCioso

    aos professores renato Pinto Venncio e ronald raminelli pe-las sugestes apresentadas em pareceres dados minha monografia de bacharelado no curso de Histria da UFoP, defendida em 2007.

    minha famlia, de modo especial, pelo apoio incondicional.Por fim, agradeo ao CNPq pelo financiamento desta pesquisa

    e ao selo Cultura Acadmica da Fundao Editora da UNESP pela oportunidade desta publicao.

  • introduo

    a sociedade mineira emergiu abrupta e violentamente nos ser-tes do centro-sul da amrica portuguesa. no obstante tenham nascido sob o signo do improviso e da espontaneidade, urbes como Vila Rica, Sabar, So Joo del Rey e Arraial do Tejuco, em poucas dcadas de ocupao, j haviam se consolidado como proeminentes ambientes citadinos, com igrejas, edifcios pblicos, pontes, chafa-rizes, aquedutos e ruas caladas, desfrutando de um vigoroso uni-verso cultural, notavelmente desenvolvido nas artes plsticas, na arquitetura, na literatura e na msica.

    nos nascentes ncleos urbanos mineiros, conviveram indiv-duos de qualidades,1 costumes, valores e crenas distintas. Pro-cessos mltiplos de miscigenao, hibridao e mestiagem, no apenas do ponto de vista biolgico, mas tambm cultural,2 engen-draram uma sociedade complexa e multifacetada, cuja ampla cama-da de forros e mulatos fez-se presente desde cedo. a instabilidade

    1 Qualidade, expressada tipicamente em condies raciais (por exemplo, n-dio, mestio, espanhol), em muitos exemplos, era uma impresso inclusiva que refletia a reputao da pessoa como um todo. Cor, ocupao e riqueza poderiam influenciar a qualidade da pessoa, assim como a pureza de sangue, a honra, a integridade e, at mesmo, o lugar de origem (traduo livre) (Mc-caa, 1984, p.477-8).

    2 Nas reas urbanizadas das Minas Setecentistas, a mobilidade fsica e social e a hibridao biolgica e cultural se processaram com notvel pujana (Paiva, 2008, p.24). sobre o conceito de hibridismo cultural, cf. serge Gruzinski (2001).

  • 16 daniel PreCioso

    e a mobilidade foram caractersticas intrnsecas ao povoamento da regio.3 Fortunas dissipavam-se rapidamente, cativos alavam ao mundo dos libertos, forros adquiriam escravos, mulatos bem nas-cidos ocupavam cargos administrativos, bastardos herdavam, ne-gras e mulatas forras ostentavam vestes imprprias sua condio.

    a sensao de descontrole e desregramento, que a distncia geo-grfica da Corte s fazia aumentar, perpassou os numerosos maos de cartas que a coroa trocou com o conselho Ultramarino, com os governadores e com os vice-reis ao longo do sculo XViii. a ten-tativa obstinada de conformar uma sociedade herdeira de critrios estamentais de antigo regime e que incorporou valores ligados ao acmulo de riquezas est bem representada nas medidas discutidas e aplicadas com o objetivo de assentar os vassalos mineiros, fazen-do-os casar, assistir em residncia fixa, contribuir com os reais ser-vios e, em geral, com a manuteno da ordem (silveira, 1997). a exemplo do que ocorreu em outros ncleos urbanos coloniais, como salvador, recife e rio de Janeiro, nas Minas as elites governativas contrapunham a presena estruturadora da escravido quela de-sestruturante de negros e mulatos libertos.4 embora as autoridades vissem com maus olhos o incremento demogrfico da camada de libertos, a alforria consistia em uma prtica generalizada, indispen-svel para a reproduo da escravido como sistema.

    Na Amrica portuguesa, a larga incidncia da mestiagem fez eclodir uma ampla populao de mulatos, entre os quais se ob-servam grandes taxas de manumisso (Klein, 1978, p.4-9). Desta sorte, a prtica da alforria, sobretudo entre os mulatos, atuava de molde a tencionar a estratificao social, pois lanava na sociedade homens e mulheres que no se enquadravam em nenhum dos ex-

    3 Srgio Buarque de Holanda (1977) definiu o meio social mineiro como uma estrutura movedia, em vista da mobilidade de suas partes integrantes.

    4 silvia Hunold lara (2007, p.332) problematizou a relao entre a presena estruturadora da escravido e a sua imbricao na teia hierrquica do Antigo regime, atentando para o fato de que os negros, os mulatos e os pardos, livres ou forros, encontravam-se, ainda que em graus distintos, prximos da fronteira que separava a liberdade da escravido, constituindo grupos que, fundamen-talmente, visavam marcar a liberdade.

  • leGtimos Vassalos 17

    tremos raciais (branco-negro) e legais (senhor-escravo). a distino jurdica entre cativo e forro parece ter sido menos definida do que a diferena tnica entre indivduos de ascendncia africana (negros e mulatos) e brancos, pois a elite colonial, ciosa de sua suposta pu-reza de sangue, identificava indistintamente os indivduos de as-cendncia africana, incluindo os forros e seus descendentes, com a escravido (russell-Wood, 2005, p.70). em resposta a essa atitude, negros e mulatos com algum cabedal se trajavam com galas e lu-zimentos imprprios s suas condies, o que gerava toda sorte de polmicas e protestos.5 os pardos do tero de infantaria auxiliar, providos no cargo por patente assinada pelo governador da capita-nia e confirmada pelo rei, causavam dissenso entre as elites bran-cas por trazerem um espadim preso cinta, arma que no apenas garantia superioridade de defesa e ataque em situaes de conflito, como tambm consistia em um smbolo de status.

    nas Minas, as oportunidades de mobilidade social abertas pelas diversificadas atividades econmicas que se estruturaram em torno da minerao criaram nas almas de negros e mulatos forros ares e desejos de fidalguia. Conforme observou Marco Antonio Silvei-ra, foram comuns na vida social mineira casos que alimentavam a obsesso pela honra e pela dignidade. Dentre os diversos grupos sociais que procuravam distinguir-se a todo custo, afirma o histo-riador, talvez os pardos representassem mais vivamente esta ten-dncia, se bem que tenham ascendido de muitas formas diferentes, sua cor sempre acusava a origem escrava (silveira, 1997, p.169). nos subrbios de vilas e cidades da amrica portuguesa, mulatos com posses, herdeiros de homens brancos, poderiam ocupar cargos de juzes de vintena ou, ento, postos baixos do senado da cmara (russell-Wood, 2000, p.105-23; Boxer, 1967, p.150), permane-

    5 sob essa ptica, o aparente excesso de luxo dos vestidos e colares das negras de tabuleiro pode ser compreendido como uma apropriao de recursos materiais e simblicos que ajudavam a marcar e reforar a condio social de forra. o excesso no trajar de negras e mulatas forras foi denunciado, entre outros, por antonil (1974). o sentido do luxo superlativo em rituais de exibies pbli-cas por parte dos habitantes da amrica portuguesa foi matria do estudo de slvia lara (2007, p.111).

  • 18 daniel PreCioso

    cendo-lhes proibida, porm, a ocupao dos principais cargos da repblica em virtude do estigma da herana negra. a mulatice em quatro geraes de ascendentes era igualmente uma barreira que os inabilitava candidatura s ordens Terceiras e s Misericrdias, organismos mais conservadores do ideal de branquidade.6 Para os pardos forros e livres, portanto, a aquisio de terras e escravos, a pertena oficialidade militar, o patrocnio de um pai branco e reputado, o direito herana, o no exerccio de ofcio vil e o arran-jo de laos matrimoniais e de compadrio vantajosos delineavam as melhores formas de adquirir estima social e boa fama pblica. as estratgias de mobilidade dos pardos ocorriam, assim, preferencial-mente em perspectiva intragrupal. como observou Giovanni levi (1998, p.211-2), numa sociedade segmentada em corpos, os con-flitos e as solidariedades frequentemente ocorriam entre os iguais, estes competiam no interior de um segmento dado.

    o tema central do livro relaciona-se, portanto, discusso dos significados polticos e sociais da crescente presena de pardos for-ros e livres na sociedade mineira durante a segunda metade do scu-lo XViii. seu objetivo consiste em abordar as margens e os limites de integrao desses indivduos sociedade mineira em um perodo caracterizado por uma poltica de orientao regalista que visava, em certa medida, diminuir os desnveis entre os diversos grupos sociais em relao figura real, reduzindo o poder de negociao aos sditos, mas conferindo-lhes em troca certo grau de distino ou prestgio na ordem poltica.7 O escopo da anlise aqui empreen-dida, as estratgias de distino social dos pardos forros e livres, insere nosso objeto na encruzilhada de historiografias referentes a assuntos diversos, tornando rdua a tarefa de um balano historio-grfico sobre a temtica estudada. Por esse motivo, procuraremos

    6 como salientou evaldo cabral de Mello (1989, p.11), na realidade da amrica portuguesa, a genealogia era um saber de importncia capital para esses orga-nismos.

    7 Houve uma tentativa de rearranjar a estratificao social, colocando-se limites ao clero e primeira nobreza e abrindo-se caminhos a outros grupos sociais. o que no significa, porm, a desvalorizao completa da ordem estamental (cf.Falcon, 1982; Maxwell, 1996).

  • leGtimos Vassalos 19

    citar apenas alguns estudos basilares sobre os mulatos, os pardos, os forros, as irmandades, os teros ou tropas auxiliares e a mobilidade social no perodo colonial, tendo por objetivo traar um panorama das discusses historiogrficas que desembocaram no nosso pro-blema de pesquisa. O debate mais aprofundado da bibliografia de referncia aparecer no decorrer dos captulos, ao sabor das argu-mentaes desenvolvidas.

    sobre os mulatos e os pardos na amrica portuguesa, Escravos e libertos no Brasil colonial (1967) de A. J. R. Russell-Wood referncia fundamental. no livro, o autor estabeleceu, pioneiramente, uma dis-tino entre as duas categorias, afirmando que cada uma delas faz refe-rncia a um determinado tipo social. Segundo Russell-Wood, embora ambas as designaes aludissem aos mistos entre as duas raas, di-ferenciavam-se quando o objetivo era marcar a condio social.8 como veremos, trabalhos mais recentes afirmaram que o termo pardo era uma designao da condio social e no da cor. Em nossa anlise, en-tretanto, no tomaremos o termo apenas como condio social, haja vista que os homens e as mulheres de nossa amostragem, quase em sua totalidade, eram mestios, filhos ou netos de pais de diferentes nacio-nalidades portugueses e africanos, mais precisamente.

    os homens cujas trajetrias acompanharemos eram tambm forros ou descendentes deles. os estudos sobre escravido tarda-ram a incorporar os libertos e a alforria entre suas preocupaes, centradas, quase exclusivamente, na populao escrava. Talvez a explicao para esse longo hiato na histria dos libertos esteja na longevidade de uma tradio analtica que construiu a imagem de uma sociedade colonial assentada nos binmios senhor versus es-cravo e branco versus preto. nesse esquema interpretativo, pouco espao restava para os mulatos e os forros. e, quando havia, apa-reciam comprimidos entre os dois polos bem definidos da escala social e racial, formando, assim, uma camada intermediria que, acreditava-se, seria integrada por indivduos que viveram na errn-cia e na vadiagem (Prado Jnior, 1999; Franco, 1974). na dcada

    8 em linhas gerais, o pardo era o tipo trabalhador e integrado na sociedade, e o mulato, revelia, era o vadio, preguioso e insolente (russell-Wood, 2005, p.49).

  • 20 daniel PreCioso

    de 1960, russell-Wood (2005) alertou que a populao de negros e mulatos forros era muito significativa e heterognea nas principais vilas e cidades da amrica portuguesa. as pesquisas de charles Boxer (1967) acerca das relaes raciais no imprio martimo por-tugus apontaram possibilidades de mobilidade social abertas aos mulatos forros. os trabalhos desses historiadores descortinaram uma realidade mais complexa e dinmica do que o quadro pintado em Formao do Brasil contemporneo (1942), possibilitando aos es-tudiosos do tema aventar novas hipteses e rejeitar a associao ime-diata de negros e mulatos forros com a marginalidade e a pobreza.9

    Concomitantes aos estudos sobre a alforria, a partir de fins da dca-da de 1980, diversos trabalhos abordaram as possibilidades de integra-o desses segmentos sociais sociedade brasileira dos sculos XViii e XiX.10 argumento recorrente nesses estudos o de que as irmandades e as tropas funcionavam como redutos privilegiados para a formao de identidades particulares para africanos, crioulos e pardos. Especifica-mente sobre as irmandades de negros e mulatos, destacamos os estudos de russell-Wood (1971), Fritz salles (1963), curt lange (1979), Julita scarano (1978), caio Boschi (1986), Marlia ribeiro (1989) e Marcos aguiar (1993). embora com enfoques diferentes, os autores mencio-nados notaram, igualmente, que as associaes religiosas de irmos leigos tornaram-se importantes porta-vozes para indivduos de as-cendncia africana proferirem as suas aspiraes polticas e sociais.

    a participao em milcias negras tambm apareceu, em algu-mas das referncias citadas, como forma de integrar socialmente crioulos e pardos forros, posto que lhes garantiam meios materiais e, sobretudo, simblicos de distino perante os seus pares.11 a histo-

    9 na dcada de 1980, estudos baseados em formulaes de caio Prado Jr. sobre a organizao social na colnia tambm chamaram a ateno para as possibi-lidades de distino abertas aos forros e aos livres com ascendncia africana, apresentando, assim, uma realidade mais complexa para enquadrar os seg-mentos pertencentes s camadas intermedirias. Sobre a integrao social de vassalos que se mostravam teis ao bem comum vide, por exemplo, laura de Mello e souza (1985).

    10 Cf., entre outros, Ida Lewkowicz (1988-1989), Maria Ins Cortes de Oliveira (1988) e sheila de castro Faria (1998).

    11 Vide, por exemplo, russell-Wood (2005), principalmente o cap.5.

  • leGtimos Vassalos 21

    riografia das milcias negras mineiras recente, ainda que o assunto tenha despertado o interesse de alguns estudiosos anteriormente, sem, porm, ter sido aprofundado.12 na ltima dcada, Francis cot-ta (2002) e cristiane Pagano (2006) se debruaram sobre os teros e tropas auxiliares de homens pardos de Minas Gerais, demonstrando que ser provido com patente militar, para esses grupos, mesmo com o atraso de pagamento ou sem o recebimento de soldo pelo trabalho de polcia que realizavam, consistia em um poderoso recurso sim-blico, capaz de rearranj-los em melhores posies da hierarquia social e distanci-los dos demais homens de cor.

    as estratgias de mobilidade social dos pardos em Minas Gerais,13 objeto de nossa pesquisa, portanto, apareceram em diversas pginas escritas pelos historiadores citados acima, mas no foram assunto de estudos pormenorizados, cujo escopo de anlise estivesse sobre os pr-prios agentes do grupo, observados em suas mltiplas atividades e es-tratgias cotidianas. Ao centrarmos nossa anlise nos homens pardos, e no nas irmandades, nas tropas ou nas possibilidades de ascenso social de forros em geral, acreditamos concorrer para uma viso mais integral de como nossos agentes histricos procuraram, em suas lides dirias, melhores chances de acumular posses e de obter boa estima pe-rante a sociedade. Justificamos, assim, a importncia do estudo, cuja relevncia reside em conectar diferentes historiografias e em contribuir empiricamente para o entendimento de como homens mestios egres-sos do cativeiro conseguiram, por entre as margens e os interstcios de uma ordem escravista e estamental, ascender na escala social.

    com o objetivo de acompanhar as estratgias de integrao e dis-tino operadas por uma parcela de pardos forros e livres na Vila rica setecentista, procuraremos seguir os percursos sociais e as trajetrias de vida de indivduos desse segmento sociorracial que, com maior ou menor sucesso, atingiram reconhecimento. nesse sentido, a pr-pria construo da categoria pardo pode lanar luz sobre a busca

    12 exceo do estudo pioneiro de enrique Peregalli (1986), apenas recentemen-te o assunto tem recebido maior ateno.

    13 Para uma anlise das possibilidades de mobilidade social na Amrica portu-guesa, cf., entre outros trabalhos, laima Mesgravis (1983), Marco antonio silveira (1997), antnio Manuel Hespanha (2006) e slvia lara (2007).

  • 22 daniel PreCioso

    de integrao social por mestios de branco e preto, livres ou forros, antes estigmatizados, principalmente, por meio de termos como mulato e cabra.14 O vocbulo pardo ganhou uma conotao, ao mesmo tempo, racial e social, segundo uma acepo definida a partir de meados da centria. em termos gerais, a linguagem empregada para estabelecer o seu sentido em documentos coevos pode ser iden-tificada como um verdadeiro campo de batalha, cujo debate em torno dos elementos para a construo de um sentido prprio para o ter-mo norteou as correspondncias que os mistos entre as duas raas enviaram, individual ou coletivamente, ao conselho Ultramarino, e seus apelos extrajudiciais enviados diretamente ao soberano. cientes de que as trs designaes mulato, cabra e pardo eram contempo-rneas e, no raro, utilizadas para designar um mesmo indivduo em momentos e registros documentais diversos, seguiremos a pista dei-xada por russell-Wood (2005, p.142) de que as irmandades nica forma de atividade comunal permitida s pessoas de cor na amrica portuguesa e as tropas auxiliares serviram como instrumentos de vociferao de splicas e clamores dos negros e mulatos livres.

    sob essa ptica, a confraria de so Jos dos Bem casados dos Homens Pardos de Vila rica consiste em um locus de anlise pri-vilegiado para o estudo da sociabilidade do segmento tnico em questo, uma vez que a designao homens pardos, agregada ao nome da irmandade, foi adotada pelos prprios confrades, muitos deles tambm ocupados como oficiais de milcias.15 Partindo da premissa de que a qualidade atribuda a uma pessoa em determina-

    14 Daqui em diante, os termos cabra, mulato e pardo aparecero sem as-pas. Os vocbulos mulato e pardo aparecero em itlico quando procurarmos conceitu-los ou categoriz-los.

    15 a confraria de so Jos de Vila rica, ao longo do sculo XiX, tornou-se um importante reduto de sociabilidade parda, reunindo diversas irmandades de indivduos pertencentes a esse grupo tnico nos seus altares laterais, tais como a de nossa senhora do Parto, a de nossa senhora da Boa Morte, a de nossa senhora de Guadalupe e a arquiconfraria do cordo de so Francisco de assis. Doravante, passaremos a nos referir aos confrades de so Jos como irmos do Patriarca ou irmos do santo e confraria como irmandade do santo, irmandade do Patriarca ou do Glorioso Patriarca, expresses retiradas de documentos manuscritos de Vila rica dos sculos XViii e XiX.

  • leGtimos Vassalos 23

    do registro documental dependia do prprio indivduo, da poca, da regio e do observador, utilizaremos a noo de grupos tnicos de Fredrik Barth para abordar os pardos congregados na irmandade. segundo Barth (1998, p.189), os grupos tnicos no devem ser es-tudados pela observao de seus traos culturais perenes, mas por meio das fronteiras que so construdas por intermdio de discursos que identificam um ns (insiders) em contraposio a um eles (outsiders), ensejando categorias de autoatribuio e identificao realizadas pelos prprios atores a fim de organizar a interao deles com as demais pessoas da sociedade. Para o estudo da sociabilidade religiosa e miliciana parda recorremos ao conceito de identidade con-trastiva, de roberto cardoso de oliveira (1976), com o objetivo de demonstrar como os pardos de Vila rica construram, por meio de irmandades e teros auxiliares, uma identidade prpria, capaz de distingui-los dos cativos e dos negros, que julgavam de inferior condio.16 Para isso apropriaram smbolos de status social reserva-dos ao mundo dos brancos e verteram outros novos para o arca-bouo identitrio de seu prprio universo tnico.

    o corpus documental compulsado para a pesquisa compos-to por fontes manuscritas, impressas e iconogrficas, espalha-das por arquivos, bibliotecas, institutos e museus das cidades de ouro Preto, Mariana, Belo Horizonte, so Paulo e rio de Janeiro. entre as fontes impressas, encontram-se documentos transcritos pelas revistas do arquivo Pblico Mineiro (raPM), do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (RIHGB), do Instituto Histrico e Geogrfico de Minas Gerais (RIHGMG), do Anurio do Museu da Inconfidncia (AMI) e do Servio do Patrimnio Histrico e artstico nacional (rsPHan), alm de um informe histrico e artstico-arquitetnico da capela de so Jos, arquivado na 13a Superintendncia Regional (Belo Hori-zonte) do instituto do Patrimnio Histrico e artstico nacional (IPHAN). As fontes iconogrficas consistem em registros foto-

    16 o conceito de identidade contrastiva foi desenvolvido para a sociabilidade religiosa parda na amrica portuguesa pela historiadora larissa Viana (2007).

  • 24 daniel PreCioso

    grficos do interior da Capela de So Jos e da Matriz de Antnio Dias, os desta fornecidos pelo arquivo da Parquia de nossa se-nhora da conceio (aPnscaD).17 em relao aos documen-tos manuscritos, alm dos livros particulares da irmandade de so Jos, cujos microfilmes encontram-se no arquivo da Par-quia de Nossa Senhora do Pilar/Casa dos Contos de Ouro Preto (APNSP), consultamos testamentos, inventrios post-mortem, processos de habilitao para matrimnio e peties enviadas ao conselho Ultramarino,18 entre outros documentos.19 a amos-tragem de irmos oficiais e mesrios da Confraria de So Jos, cujas trajetrias de vida escrutinaremos, derivou a priori da transcrio dos livros de eleies da irmandade. o cruzamento onomstico da listagem completa daqueles que ocuparam fun-es administrativas entre 1727 e 1823 com os catlogos dos ar-quivos cartoriais de ouro Preto e Mariana resultou no seguinte: encontramos 21 testamentos e 24 inventrios de irmos de So Jos. Foram identificados 36 irmos da confraria, dos quais 31 ocuparam cargos de direo. Os testamentos e inventrios dos irmos do Patriarca foram coletados no arquivo Histrico do Museu da Inconfidncia/Casa do Pilar de Ouro Preto (AHMI) e no arquivo da casa setecentista de Mariana (acsM).20 com-pletam o rol de fontes lidas, 269 processos de habilitao para matrimnios, os quais se encontram no Arquivo Eclesistico da arquidiocese de Mariana (aeaM).21

    17 Sobre iconografia, ver Erwin Panofsky (1979 e 1986), Ernest Gombrich (1995) e Michael Baxandall (1985).

    18 as peties dos homens pardos foram consultadas no acervo digital de Docu-mentos Manuscritos avulsos da capitania de Minas Gerais (1680-1823) do arquivo Histrico Ultramarino (aHU). Para uma abordagem das missivas endereadas pelos pardos ao monarca, cf. russell-Wood (1995).

    19 os outros manuscritos referidos consistem em um ofcio da coleo lamego do instituto de estudos Brasileiros da UsP (ieB) e um requerimento encontrado em um livro de correspondncias da Coleo Benedito Ottoni da Biblioteca nacional do rio de Janeiro (Bn).

    20 Sobre as possibilidades de anlise de testamentos e inventrios, cf., respectivamen-te, Eduardo Frana Paiva (1993/1994) e Beatriz Ricardina de Magalhes (1989).

    21 Para uma abordagem dos processos de habilitao para matrimnio, cf. sheila Faria (1998, p.58-60).

  • leGtimos Vassalos 25

    amparados em farta documentao, em sua maioria composta de manuscritos,22 procuraremos reatar fios aparentemente desco-nexos, fazendo entrecruzar novamente, mediante um exaustivo cruzamento de dados, as trajetrias de vida de homens e mulheres pardos, muitos deles completamente esquecidos. Da poeira dos arquivos e no desbaste de estantes de livros escritos h duzentos anos ou mais, procuramos conhecer, mesmo que pela pena de ta-belies e escrives, as vozes de nossos personagens. adiantando algumas impresses sobre a pesquisa, podemos dizer que o esfor-o gerou frutos. alm de trazer tona alguns dados inditos sobre nossos agentes histricos outros nem tanto, bem verdade , a pesquisa atingiu, em parte, seus objetivos. Uma hermenutica das trajetrias permitiu responder algumas perguntas que guiaram as visitas que fizemos aos arquivos, tais como: quem eram os homens pardos de Vila Rica? Eram eles filhos ou netos de pais de diferentes nacionalidades (isto , mestios ou descendentes deles)? Por que se pretendiam cultores de uma identidade parda prpria? Quais foram os meios de que lanaram mo para ascender socialmente (a ponto de deixarem vestgios documentais lacunares, mas sig-nificativos em se tratando de indivduos de ascendncia africana)? Qual foi o papel das milcias, das irmandades, dos ofcios mec-nicos e das artes liberais na melhoria de suas condies materiais e simblicas (j que a maior parte deles encontrava-se envolvida com essas atividades e corporaes)?

    a principal dificuldade da pesquisa consistiu em urdir vest-gios fragmentrios, fazendo brotar do conjunto deles uma trama histrica. em funo da natureza lacunar das fontes analisadas, a urdidura desse complexo tear s se tornou possvel por meio de um estudo prosopogrfico23 dos irmos do Patriarca, os quais ocuparam cargos de oficiais e mesrios entre 1750 e 1803.

    22 Sobre paleografia, ver Eurpedes Franklin Leal e Ana Regina Berwanger (1992). Optamos por realizar a transliterao da grafia original dos textos do sculo XViii e XiX.

    23 Para uma abordagem prosopogrfica, cf. as formulaes de Lawrence Stone (1971) e carlo Ginzburg e carlo Poni (1991, p.176-7).

  • 26 daniel PreCioso

    o limite cronolgico inicial da pesquisa foi estabelecido le-vando em conta a transformao ocorrida na prtica de domina-o das gentes do ultramar com o estabelecimento do ministrio pombalino, que adotou uma poltica de integrao social de in-divduos antes marginalizados, tornando-os vassalos teis.24 o marco final da pesquisa consiste no ano em que os irmos do Serfico Padre So Francisco de Paula a maioria deles, vale lembrar, igualmente irmos do Patriarca redigiram as regras estatutrias da Ordem Terceira, que passou a ser o principal reduto de sociabilidade parda, posio que a irmandade de so Jos deteve durante todo o sculo XViii.25

    em nossa abordagem, perseguiremos, sobretudo, as estratgias de integrao social adotadas pelos pardos em suas aes cotidianas observadas em escala microanaltica,26 despendendo ateno espe-cial ao desempenho profissional, ao casamento, constituio de famlias, transmisso de bens, ao compadrio e ao envio de cartas

    24 No perodo pombalino, o modelo de centralizao monrquica que remontava ao governo geral foi revogado. Amparado na axiomtica legitimao do poder rgio por meio de um pacto com os soberanos, esse modelo servira de base reprodu-o da autoridade monrquica em mbito imperial, vigorando ainda na primeira metade do Dezoito (campos, 2002, p.23). Pombal adotou uma nova poltica re-galista, que visava diminuir o poder de negociao dos sditos, conferindo-lhes em troca um novo status na ordem poltica. Os mecanismos de identificao en-tre os sditos e os soberanos foram redimensionados durante a segunda metade do sculo, quando os agentes rgios reformaram a poltica relativa aos indgenas com a criao do Diretrio e buscaram tornar til a multido de negros e mulatos presentes nos centros urbanos da amrica portuguesa, arregimentando-os em tropas auxiliares exclusivas de seus grupos tnicos.

    25 Em realidade, a anlise dos testamentos de irmos de So Jos principalmente no tocante escolha das mortalhas para enterro, cuja recorrncia da eleio do hbito de So Francisco de Paula notvel sugere que o culto ao santo vinha solapando, em termos devocionais, o do Patriarca So Jos j em fins do sculo XViii, ainda que esse fato tenha se delineado claramente apenas com a reda-o do estatuto da ordem Terceira, em 1803. cf. estatuto e Fundao da Irmandade (1793-1807) (APNSP/CC, rolo 16, volume 286).

    26 Buscaremos inspirao em micro-historiadores que exibem deliberadamente em seus estudos uma dimenso experimental, tais como Giovanni levi (2000), que estudou o poder no interior de uma comunidade rural italiana em A he-rana imaterial. no livro, levi sugere o procedimento de uma micro-histria que consiste na criao de condies de observao que fazem aparecer formas, organizaes e objetos inditos, reinseridos em seus diversos contextos.

  • leGtimos Vassalos 27

    ao Conselho Ultramarino. A anlise no ficar circunscrita ao in-divduo, espraiando-se por uma ou mais geraes acima e abaixo quando os vestgios documentais permitirem: procedimento de pesquisa que possibilita uma apreciao da ascendncia, da filiao e da mobilidade social em perspectiva familiar e geracional dos par-dos forros e livres.

    no primeiro captulo, procuraremos analisar a formao de uma sociedade urbana, mestia e economicamente diversificada em Vila rica. ademais, tentaremos matizar a presena de homens pardos na regio, bem como as possibilidades abertas para integrao so-cial de forros e descendentes. neste sentido, avaliaremos as vises acerca do trabalho livre em sociedades escravistas, perseguindo as formas e as possibilidades de melhoria da condio material abertas aos homens pardos mediante o acmulo de riqueza.

    o segundo captulo visa apresentar as mudanas ocorridas na legislao portuguesa durante o ministrio pombalino, quando al-gumas barreiras legais para a ascenso social de forros e mulatos foram derrubadas. Junto com a observao dessas transformaes, nos debruaremos sobre as medidas poltico-administrativas de governadores da capitania de Minas Gerais, adotadas ao longo de todo o sculo XViii. concluindo o debate sobre os mulatos e par-dos na legislao atinente amrica portuguesa, analisaremos as missivas endereadas pelos pardos cativos, forros e livres ao conse-lho Ultramarino, nas quais debateram aspectos das leis e das medi-das aludidas nas sees anteriores do captulo.

    a confraria de so Jos dos Bem casados, reduto de sociabili-dade dos homens pardos cujas trajetrias de vida acompanharemos, ser matria do terceiro captulo. Aspectos administrativos das ir-mandades congregadas na capela, como provises para erguer o tem-plo e para criar as irmandades, sero recuperados e sua anlise repor-tar as fases de evoluo tipolgicas das irmandades leigas mineiras. Procurando atingir a inteno persuasiva das obras artsticas con-tratadas pelos homens pardos devotos de so Jos, lanaremos mo de uma anlise iconogrfica e iconolgica do conjunto imagtico do interior do templo, mais precisamente da pintura e do imaginrio

  • 28 daniel PreCioso

    que representam imagens da vida do patrono da irmandade titular. assim, angariaremos novos elementos para a discusso do estatuto associativo da confraria de so Jos, aspecto controverso na historio-grafia. O conflito entre as irmandades da capela e outras de diferentes grupos tnicos, as clivagens existentes no interior do prprio templo e, mesmo, da prpria irmandade, tambm sero trabalhados, assim como o feixe de relaes estabelecidas entre os confrades.

    no ltimo captulo, os confrades da irmandade de so Jos sero estudados em seu contexto local, i.e., no distrito urbano ou na par-quia em que residiram. Ensejando uma microanlise, delinearemos o perfil social e tnico das lideranas da irmandade e suas relaes profissionais e de parentesco. Tais dados se prestaro bem para o en-saio de um estudo prosopogrfico dos confrades mesrios e oficiais administradores da confraria dos pardos. examinaremos os padres de ascendncia e filiao, de endogamia e exogamia em casamentos, de legitimidade e ilegitimidade entre os descendentes, de dotao de filhas, e de heranas e de trabalho em particular as possibilidades de acmulo de peclios por fora do desempenho de ofcios mecnicos e artes liberais. a determinao da mobilidade vertical e, principal-mente, horizontal ser igualmente referendada em nossa anlise. A reduo de escala permitir, portanto, um exame das razes de rique-za e poder no interior do grupo tnico dos pardos.27

    27 Para uma abordagem da estratificao social em perspectiva microanaltica, cf. Magnus Mrner (1983, p.359).

  • 1 oS homenS pardoS na viLa rica

    SetecentiSta

    Uma infinidade de expresses e terminologias era utilizada para se referir ao fruto do intercurso sexual entre homens brancos e mulheres negras na amrica portuguesa durante o sculo XViii.1 levando em considerao a documentao compulsada (inventrios post-mortem, testamentos, processos de habilitao para matrimnio, cartas de governadores e outras autoridades), a sua denominao variava em funo de duas categorias principais: mulato e pardo.2

    Eram categorias polissmicas, oscilando o sentido segundo os dife-rentes contextos discursivos nos quais se inscreviam. certo que todas

    1 O letrado Raimundo Jos de Souza Gayozo (1818, p.119-20) apresentou uma tabuada de gradaes de cores em que sistematizou os tipos humanos mescla-dos entre branco e preto. segundo a tabuada havia, no sentido do menos para o mais negro, respectivamente, o mulato (filho de um branco com uma negra, ou seja, metade negro e metade branco), o quarto (filho de negro com uma mulata, isto , trs quartos negro e um quarto branco), o outo ou oitavo (filho de negro com uma quartona, ou seja, sete oitavos negro e um oitavo branco) e o negro (filho de uma outona e um negro, produzindo uma prole inteiramente negra). Podemos acrescentar termos menos bem definidos, como mestio, trigueiro, escuro ou moreno. s vezes uma nica palavra era inadequada para descrever o grau de brancura ou negritude de um indivduo, e o redator recorria a expresses vagas como corado bastantemente, de cor fechada etc. (russell-Wood, 2005, p.49).

    2 o termo cabra tambm apareceu, mas eventualmente. segundo Moraes e sil-va (1813, p.314), a palavra designava o filho de pai mulato e me preta, ou s avessas. Na realidade, porm, confundia-se com mestio, mulato e pardo (Faria, 1998, p.161, n.60).

  • 30 daniel PreCioso

    se referiam igualmente cor resultante da mistura entre branco e pre-to, porm, em determinados usos de linguagem, a sua carga semntica poderia se desprender da pigmentao da tez. no parte integrante de nossos objetivos a anlise do universo semntico ou a decifrao do idioma da mestiagem. Basta salientar que a existncia de uma ou mais acepes para uma mesma palavra no significava anarquia de sentido, sendo possvel estabelecer regularidades no emprego delas.3

    assim, as categorias mulato e pardo designavam igualmen-te um mesmo tipo humano: o filho de negro com branco e os seus descendentes,4 porm, quando vertidas qualificao do tipo so-cial, seus sentidos se afastavam (Pessoa, 2007, p.151). como ob-servou russell-Wood (2005, p.49), em uma sociedade cujos ex-tremos diametralmente opostos do espectro racial (branco-negro) nem sempre correspondiam aos extremos diametralmente opostos do espectro moral, os mestios (e no os negros) portavam atribu-tos aviltantes, como preguia, desonestidade, deslealdade, arrogn-cia etc. Portanto, se alguns indivduos considerados moralmente aceitveis recebiam o nome de pardos, comumente as autoridades se referiam aos mestios com a alcunha de mulatos.

    recentemente, pesquisas amparadas nas formulaes de Peter Eisenberg (1989, p.269-70) tm ressaltado que as designaes mu-lato e pardo no aludiam sempre cor da pele, servindo tambm para identificar o indivduo livre de ascendncia africana. De acordo com essa concepo, os rebentos de ventre forro seriam livres e aten-deriam pela designao pardo, fossem mestios ou no.5 nossa anlise, contudo, apesar de distinguir os tipos sociais expressos nes-

    3 Para um exame dos discursos sobre os mulatos e os pardos, cf. raimundo Pes-soa (2007).

    4 no Vocabulario Portuguez e Latino do padre raphael Bluteau, a mestiagem apa-rece como o elemento norteador do emprego dos vocbulos mulato e pardo. Se-gundo Bluteau (1712, p.265, t.Vi), pardo se refere a uma cor entre branco e preto, prpria do pardal, donde parece lhe veio o nome. o padre informa, ainda, que a expresso homem pardo era utilizada como sinnimo de mulato, significando o filho de branca e negro ou de negro e de mulher branca (ibidem, p.628, t. V).

    5 Essa vertente historiogrfica considera a cor uma condio social. Cf. Peter eisenberg (1989, p.269-70), Hebe Maria Mattos (1998, p.29-30; 2000, p.6-18), sheila Faria (1998, p.135), larissa Viana (2007, p.210-1), roberto Guedes Ferreira (2005, p.78, n.32) e cacilda Machado (2006, p.25).

  • leGtimos Vassalos 31

    sas terminologias, se voltar a um mesmo tipo humano: o mestio de negro com branco, haja vista que, no caso dos pardos, pelo menos a partir da segunda metade do sculo XViii, a mestiagem no era o nico aspecto levado em conta para o emprego da terminologia. as-sim, referendaremos igualmente fatores adicionais, como a riqueza, a condio social e o comportamento, essenciais para determinar a posio de uma pessoa, mesmo no interior dos parmetros restritos das raas (russell-Wood, 2005, p.47).6

    Na Amrica portuguesa, o concubinato foi uma prtica corri-queira. em uma sociedade composta majoritariamente por homens, a escassez de mulheres brancas acarretou uma generalizao dos tratos ilcitos entre homens brancos e mulheres de ascendncia africana, escravas, forras ou livres. assim como nos centros urba-nos do rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco, em Minas Gerais despontou uma populao mais aparente de libertos. no primeiro quartel do sculo XViii, sobretudo, a combinao da escassez de mulheres negras e da quase ausncia de mulheres brancas com a prtica generalizada do concubinato inter-racial refletiu-se, em ter-mos demogrficos, no aparecimento de um setor muito numeroso de mulatos livres em Minas Gerais. O peso demogrfico e o acmu-lo de fora poltica por esse grupo podem ser observados, a partir da segunda metade do sculo XViii, na apario mais frequente do termo pardo nas fontes oficiais, sugerindo que a conotao negativa da palavra mulato vinha sendo solapada.

    Paisagem geogrfica, urbana e social de Vila Rica

    Passar s Minas no era uma tarefa fcil. Percorrer os cami-nhos que ligavam as capitanias de so Paulo, Bahia e rio de Janeiro regio aurfera implicava enfrentar fortalezas naturais compostas por escarpas vertiginosamente altas, vales, rios, florestas virgens e matas mal penetradas. no obstante os reveses dessa aventura,

    6 O uso do conceito de raa, aplicado ao contexto do sculo XVIII, ser deba-tido a seguir no captulo 4.

  • 32 daniel PreCioso

    a partir do ocaso do seiscentos, quando as notcias dos primeiros achados aurferos vieram tona, uma turba de homens, egressos do reino e de outras regies da conquista, concorreram aos fundos ter-ritoriais, ento conhecidos como sertes dos cataguases, na poro centro-sul da amrica portuguesa.

    O resultado desse afluxo populacional em direo s Minas con-sistiu na criao de pequenos aglomerados populacionais, os cha-mados arraiais. Espao de vivncia coletiva que expressava as ne-cessidades sociais, religiosas e econmicas de um pequeno grupo de vizinhos, o arraial era um simples acampamento ou pequenos agregados de casas que se formavam seja ao longo do leito de riachos e grupiaras [...], seja em torno de uma capela (Mata, 2002, p.141- 42).7 Uma intensa mobilidade espacial caracterizou a ocupao e o povoamento das Minas, que, embora tenha arrefecido com o passar dos anos, permaneceu uma caracterstica marcante durante todo o Setecentos. As dificuldades iniciais de sobrevivncia na regio, no impediram, contudo, a criao de centros ou ncleos urbanos.8

    ainda na primeira dcada do sculo XViii, os habitantes das Minas envolveram-se no conjunto de escaramuas conhecidas como Guerra dos emboabas (1707-1709). resultante dos choques dos pri-meiros descobridores com o elemento adventcio, o conflito tornou indispensvel uma efetiva presena da fora ordenadora do Estado. no por acaso, estruturou-se mais solidamente a vida civil, poltica e administrativa imediatamente aps os combates. Para pr fim s desordens da improvisao do incio e s lutas de faces desejosas de supremacia, urgia a instaurao da mquina administrativa. Em nove de novembro de 1709, a coroa portuguesa separou os distritos de so Paulo e Minas da capitania do rio de Janeiro. alm disso, visando deixar o seu poder mais prximo das Minas, determinou que

    7 as capelas primitivas eram rsticas e feitas base de pau a pique, atendendo pela escolha do material ao carter efmero da ocupao territorial durante a fase inicial de povoamento.

    8 segundo russell-Wood (1998), que examinou as relaes centro-periferia no Brasil, o centro era associado a um ncleo urbano, que, no mundo portu-gus, correspondia categoria de vila ou cidade, entidades criadas por meio de prerrogativas reais.

  • leGtimos Vassalos 33

    os chefes da nova unidade no podiam ficar em So Paulo, uma vez que os interesses e a rebeldia se localizavam no serto. Deixando a sede, viviam em Minas (iglsias, 1972, p.365-6).

    com a criao da capitania de so Paulo e Minas foram estabe-lecidos os distritos administrativos. em 1711, o governador antonio de albuquerque coelho de carvalho, a mando de D. Joo V, erigiu as trs primeiras vilas mineiras: Sabar, Ribeiro do Carmo e Vila Rica.9 Na mesma dcada, foram fundados os municpios de So Joo del Rey (1713), Vila do Prncipe (1714), Vila nova da rainha (1714) e so Jos del Rey (1718) (Coelho, 1852, p.255-481). Seguindo o fio condutor dos novos rumos que se imprimiam vida na regio, paralelamente, demarcavam-se, em 1714, as trs primeiras comarcas de Minas Ge-rais: Rio das Velhas (Sabar), Rio das Mortes e Vila Rica (Ramos, 1993, p.643). a partilha das terras que tocava a cada uma delas foi realizada tendo em vista a arrecadao dos quintos do ouro (costa; luna, 1982, p.9). em 1720, em virtude da extenso territorial do rio das Velhas e dos problemas advindos do descaminho do ouro dentro da sua jurisdi-o, foi estabelecida uma quarta comarca no serro do Frio.

    efetiva e simbolicamente, a instalao das casas de cmara e cadeia e do pelourinho representava a presena do poder poltico na regio, visando acomodar os mineiros,10 o que no impediu, porm, que potentados como Paschoal da silva Guimares se amotinassem

    9 Vila rica foi criada pelo governador antonio de albuquerque coelho de Carvalho a 8 de julho de 1711 e confirmada por carta rgia de 15 de dezem-bro de 1712 (coelho, 1852, p.261). a transcrio do Termo de ereo da Vila encontra-se na revista do arquivo Pblico Mineiro (1897, p.84-5). em 1712, o governador, em contas prestadas ao Conselho Ultramarino, afirmou ter reduzido aquelas terras e sossego em que esto aqueles moradores, conser-vando-os muito conformes e sem diferenas os forasteiros, como os moradores, concedendo e repartindo entre todos por sesmarias as mesmas terras incultas (AHU/MG, Cx. 1, Doc. 32).

    10 o ato fundador consistia em um ato poltico. embora tenha havido casos, na amrica latina, de cidades espontneas (frutos de um processo inter-no), tais como Vila rica, o impulso fundador fruto de um processo externo, que se origina do desejo dos conquistadores (romero, 2004, p.92-3). ainda que isoladas dentro da imensido espacial e cultural, alheia e hostil, competia s cidades dominar e civilizar seu contorno, o que primeiro se chamou evange-lizar e depois educar (Rama, 1985, p.37).

  • 34 daniel PreCioso

    contra a instalao das casas de Fundio em 1720.11 a revolta de Vila rica esteve intrinsecamente ligada ao desmembramento dsa capitanias de so Paulo e Minas, ocorrido com a promulgao do alvar de dois de dezembro daquele ano. Como advertiu Francis-co iglsias (1972, p.366), ante o recrudescimento das paixes e a gravidade das revoltas, soluo foi criar capitania no centro. no fortuitamente, Vila Rica, palco de diversos conflitos, foi escolhida para sediar o governo da nova capitania.

    As gentes que concorreram regio mineira eram de procedn-cias e qualidades diversas, como portugueses, luso-brasileiros, afri-canos, crioulos e mestios. em relao aos portugueses, tamanha foi a proporo dos que vieram para as Minas, que a coroa passou a temer o despovoamento da poro setentrional do reino. essa imi-grao era essencialmente masculina e o imigrante tpico estava no fim da adolescncia ou com pouco mais de vinte anos, era solteiro e vinha das provncias nortistas do Minho, de Trs-os-Montes e do alto Douro, ou das ilhas atlnticas (russell-Wood, 2005, p.56).

    so parcos os relatos que permitem traar a magnitude da mas-sa de homens que deixaram suas terras natais ao longo do sculo XViii, em busca de uma vida fastuosa por meio da atividade mine-ratria.12 srgio Buarque de Holanda (1977, p.266), baseando-se no relato de antonil, apresentou a cifra de trinta mil almas para Minas Gerais, em 1710. Herbert Klein (1987, p.83), por sua vez, sustentou que a populao mineira, no mesmo perodo, somava quarenta mil almas, das quais vinte mil eram brancas e vinte mil escravas. certa-mente, entre a populao considerada juridicamente livre no havia apenas brancos, mas tambm negros e mulatos, os quais desertaram das reas costeiras para o Planalto Central. O impacto da descober-ta de jazidas aurferas no territrio mineiro, alm de romper com

    11 Sobre o assunto, ver Carla Maria Junho Anastsia (1998) e Luciano Figueiredo (1996).

    12 Em carta de 20 de maio de 1725, o secretrio do governo, Manuel da Fonseca de azevedo, relatou que as Minas se achavam com grandssimo nmero de moradores, os quais vinham a elas s a fim de se remedearem (sic) e enri-quecerem, segundo a necessidade ou ambio de cada um (AHU/MG, Cx. 6, Doc. 61).

  • leGtimos Vassalos 35

    a base costeira de ocupao, alterou a base agrcola conservadora e patriarcal da economia13 e reconfigurou o abastecimento da mo de obra escrava no interior da amrica portuguesa (Florentino; ri-beiro, 204, p.125). De acordo com as estimativas de russell-Wood (2005) e de eduardo Frana Paiva (1995), a populao escrava de Minas Gerais sofreu forte incremento ao longo do sculo XViii, sobretudo na segunda metade da centria. a populao muncipe, que era de 88 mil almas em 1749, saltou para 188 mil em 1805.

    Grfico 1 nmero de escravos, em Minas Gerais, por ano (1717-1821).

    Fonte: russell-Wood, 2005, p.55; Paiva, 1995, p.66.

    entre os africanos, predominavam os de nao Mina, isto , provenientes da costa da Mina,14 regio porturia que ia do Cabo de Palmas at as Canrias, mas tambm havia grupos de procedncia advindos da costa centro-ocidental, usualmente

    13 Porm, a maior presena do estado na regio no atuou de molde a inibir a forma de organizao patriarcal da famlia em Minas Gerais. cf. silvia Brgger (2002).

    14 segundo eduardo Frana Paiva (2002, p.203, n.3), a designao Mina bas-tante imprecisa. A origem do termo est associada ao Castelo de So Jorge de Mina, erguido pelos portugueses, em 1482, na costa africana, onde, hoje, fica Gana. a regio passou a ser chamada de costa da Mina. os escravos embar-cados nos portos existentes nessa regio eram, ento, chamados de Mina, mas muitos deles eram oriundos de outros lugares da frica, tanto da costa, quanto do interior. Mariza de carvalho soares (2000, p.117), que estudou o arca-bouo semntico utilizado para identificar os africanos e seus descendentes na Amrica portuguesa, cunhou o termo grupos de procedncia, valorizando como critrios classificatrios os portos de embarque, a lngua e outros compo-nentes culturais, mas no necessariamente tnicos.

  • 36 daniel PreCioso

    dividida em dois subgrupos: congo e angola.15 entre os es-cravos encontravam-se, ainda, os negros nascidos na amrica portuguesa. segundo Bluteau (1712, p.613, t.ii), o crioulo era o escravo que nasceu na casa do seu senhor, ou seja, fruto do intercurso sexual entre uma preta (gentia ou crioula) e um preto (gentio ou crioulo) nascido na amrica. sua identificao, por-tanto, levava em conta a ascendncia africana paterna e materna e o local de nascimento.

    o crescimento contnuo e vertiginoso da populao de escra-vos em Minas e o costume dos senhores de alforriar os escravos nascidos e criados em casa ou o de deix-los coartados em seus testamentos ocasionaram a constituio de uma camada de liber-tos, problema que afligiu as autoridades de governo ao longo de todo o sculo. embora a populao de forros tenha se apresenta-do numericamente mais significativa apenas na segunda metade do Setecentos (ver Grfico 2),16 a presena de negros e mestios libertos afetou sobremaneira a sensibilidade de autoridades e de colonos brancos (silveira, 2007, p.26), pois o aumento demo-grfico de mulatos e libertos colocou um problema social, qual seja, o de incorporar sociedade novas figuras, criando um lu-gar social com particularidades positivas e negativas quer para os indivduos que, apesar de no serem escravos, no gozavam da liberdade ostentada pelos brancos, quer para os indivduos que descendiam no apenas de pretas, crioulas ou mulatas, mas tambm de brancos.

    15 Do reino do congo provinham, alm de congos, muxicongos, loangos, cabin-das e monjolos. De angola vieram massanganas, caanjes, loandas, rebolos, cabunds, quissams e ambacas e, mais do sul, os benguelas (Soares, 2000, p.109-10).

    16 segundo Maurcio Goulart (1975, p.141), as listas de captao indicam a res-peito da populao liberta em Minas taxas em torno de apenas 1% e 1,5% do total entre os anos de 1735 e 1749.

  • leGtimos Vassalos 37

    Grfico 2 Nmero de pardos/pretos escravos e livres, em Minas Gerais, (1786-1821).Fonte: eschewege, 1899, p.294-5.

    Os dados demogrficos relativos Capitania das Minas durante a primeira metade do sculo XVIII so lacunares. Apenas na T-bua dos habitantes das Minas Gerais e dos nascidos e falecidos no ano de 1776 so disponibilizados nmeros mais completos acerca da composio sexual da populao das quatro comarcas mineiras, embora no distinga escravos e libertos (raPM, 1897, p.511). os mapas populacionais da capitania de Minas de 1786, 1805, 1808, 1821 e 1823 indicam distines de qualidade, condio social e gnero, porm no informam os dados referentes populao por comarca (Eschewege, 1899, p.294-5). Essas fontes demogrficas17 permitem, contudo, observar que os pardos se apresentavam em maior nmero que os brancos, crescendo o seu percentual, progres-sivamente, no perodo em anlise (ver Grfico 3).

    17 listas nominativas e Mapas de Populao fazem parte de um mesmo corpus documental, geralmente referido por pesquisadores como Listas Nominativas, Mapas de Populao, Censos. Porm, para efeito de exposio textual, diferen-cio listas de mapas. as listas so a descrio dos domiclios isoladamente, um a um. os mapas de populao, de ocupao etc. so tabulaes feitas a partir das listas [...] as cores indicam ora uma coletividade abstrata, ora uma observao pontual, dirigida aos membros dos fogos. isto dependia da fonte e da idiossin-crasia de quem registrava. Preto, pardo e mulato eram usados principalmente na elaborao dos mapas para referir uma coletividade. Por outro lado, quando utilizados nas listas, eram classificaes personalizadas (Ferreira, 2005, p.78, n.32 e 80).

  • 38 daniel PreCioso

    Grfico 3 Populao da capitania de Minas Gerais, por ano (1776-1821).Fonte: raPM, 1937, p.511; eschewege, 1899, p.294-5.

    a comarca de Vila rica, apesar de ser a menos extensa da capita-nia, apresentou sempre ndices elevados de densidade demogrfica. em 1776, contava 78.618 almas, 49.789 (63,33%) homens e 28.829 (36,66%) mulheres. Seguindo a tendncia geral da capitania entre os anos de 1776 e 1821, na comarca, em 1776, prevaleciam numeri-camente os pretos (33.961 ou 68,2 %), seguidos pelos pardos (7.981 ou 16,02%) e pelos brancos (7.847 ou 15,76%). Da mesma forma, porm em menor intensidade, entre as mulheres predominavam as pretas (15.187 ou 52, 67%), em seguida as pardas (8.810 ou 30,55%) e, em menor nmero, as brancas (4.832 ou 16,76%). com relao ao grupo especfico dos pardos, os homens somavam nas quatro comarcas 40.793 almas e as mulheres 41.317, observando-se um equilbrio relativo entre os sexos. a comarca de Vila rica possua a segunda maior populao dessa qualidade dentre as quatro comar-cas, sendo somente suplantada pela de Sabar (ver Tabela 1).

  • leGtimos Vassalos 39

    Tabela 1 Qualidade e sexo dos habitantes de Minas Gerais, por comarca (1776).

    comarcaHomens

    Brancos Pardos negros TotalVila ricario das MortesSabarserro do Frio

    Total

    7.84716.277

    8.6488.905

    41.677

    7.9817.615

    17.0118.186

    40.793

    33.96116.19934.70723.304

    117.171

    49.78950.09160.36639.395

    199.641

    comarcaMulheres

    Brancas Pardas negras TotalVila ricario das MortesSabarserro do Frio

    Total

    4.83213.649

    5.7464.760

    28.987

    8.8108.179

    17.2257.103

    41.317

    15.18710.86216.239

    7.536

    49.824

    28.82932.69039.21019.339

    120.128Fonte: raPM, 1897, p.511.

    o Mapa da comarca de Vila rica (1778), do cartgrafo Jos Joaquim da rocha, permite localizar os arraiais e as vilas pertencen-tes sua jurisdio, assim como os rios e as entradas que cortavam a regio. em instruo dada ao governo da capitania, em 1780, o desembargador do Porto, Joo Jos Teixeira coelho (1852, p.261), apontou que a comarca de Vila rica era composta por vastos ser-tes, encontrando-se situada nas margens do rio Doce e rios que vertem para ele e habitada por ndios mansos e bravos.18

    18 na comarca de Vila rica, nas abas meridionais da serra do ouro Preto, nas-ce o rio Doce, correndo pela cidade de Mariana, com o nome de ribeiro do Carmo, e da para o Oriente. O rio ganha densidade com as guas de alguns ribeiros e do rio Piranga, Gaulaxos do norte e do sul, casca, sacramento e Bombassa, se juntando com o Tercicaba, dividindo a a Comarca do Sabar. e em direo ao norte, percorria vastos sertes, dividindo as comarcas de Vila Rica e Serro do Frio. O Rio Doce e todos os que nele desguam, alm de abun-dantes de peixes eram minerais, o que permitia, durante o sculo XViii, a ex-trao do ouro sem embargo. Em alguns de seus ribeires se encontrou topzio, assim como na serra dos Macacos, itatiaia e outras vizinhas. o rio servia ainda a quem quisesse passar s Minas em embarcaes, pois, com exceo das ento chamadas escadinhas, compostas por cachoeiras que compreendem meia lgua de extenso, no possua mais obstculos (RAPM, 1937, p.513).

  • 40 daniel PreCioso

    Figura 1 Mapa da comarca de Vila rica, de Jos Joaquim da rocha (1778).Fonte: Biblioteca nacional (Bn).

    a comarca se compunha de dois termos, Vila rica e ribeiro do carmo (depois de 1745, cidade de Mariana). De incio, Vila rica contava com maior jurisdio, mas com o desmembramento de so Joo del Rey, j em 1713, [...] Vila do Carmo, com 50.000 km2, ficou praticamente com um tero da extenso da comarca (lewkowicz, 1992, p.33).

    Vila Rica era o nico ncleo populacional significante na Minas Gerais colonial. O carter multifuncional e o papel desempenhado na produo e na administrao aurfera colocaram-na em posio de destaque perante as demais urbes mineiras.19 abruptamente, de po-voado improvisado passou condio de centro da vida civil, social e econmica da capitania (lima Jnior, 1965, p.59). Vencida a primei-ra fase de euforia, a instabilidade da empresa mineradora e a fugaci-

    19 Sabar, So Joo del Rey, So Jos del Rey, Ribeiro do Carmo, Vila do Prnci-pe, Vila Bela e Vila Boa, criaturas da indstria extrativa, nunca alcanaram a combinao de funes comercial, administrativa, econmica e social, para assim tornarem-se vilas-ncleo em um contexto colonial mais amplo (russell--Wood, 1998, s/p). Ribeiro do Carmo, apesar de ter sido elevada Leal Ci-dade Mariana para sediar o Bispado, em 1745, continuou em posio perifrica frente a Vila rica.

  • leGtimos Vassalos 41

    dade do ouro no decorrer do tempo fizeram que o incipiente conglo-merado proto-urbano tomasse uma feio mais estvel. A derrocada das construes que atendiam ao carter provisrio de que se valeram os primeiros povoadores deu lugar, sobretudo a partir de 1740, a uma arquitetura que pela solidez de seu material as rochas (principal-mente a canga, o quartzito e a pedra-sabo) denotava por si s o enraizamento da populao (Vasconcellos, 1977, p.100). o governo de Gomes Freire de andrade, o conde de Bobadela (1735-1763), re-presenta a grande poca das construes, o esplendor de Vila rica no tocante s obras pblicas. em seu governo foram construdos a santa casa de Misericrdia20 e o Palcio dos Governadores, como tambm belos chafarizes, pontes e calamentos de ruas e praas, muitas obras de interesse coletivo evidente (salles, 1982, p.97). em fins do terceiro quartel do Setecentos, Vila Rica j havia consolidado sua feio urbana.21 O florescimento das irmandades religiosas, que atingiam ento notvel vigor, possibilitou a construo de suntuosos templos de pedra e cal. Em fins do sculo XVIII, as obras pblicas e religiosas transformaram a vila em um canteiro de obras.

    Um estudo corogrfico apresentado em uma memria annima de Vila Rica, que datada de fins do sculo XVIII e incio do XIX, apre-sentou as coordenadas geogrficas, o clima e os morros povoados:

    Vila Rica est situada em 339 graus e 48 minutos de longitu-de, e 20 graus e 24 minutos de latitude, nas abas meridionais de uma serra chamada do Ouro Preto, e por isso quase sempre est a vila coberta de nvoas [...]. a serra do ouro Preto povoada de mineiros, com diferentes nomes as suas povoaes, que so o Morro do Po Doce, Morro do ramos, Morro do ouro Podre, Morro do ouro Fino, Morro da Queimada e Morro de santana. (raPM, 1937, p.445)

    20 A Santa Casa da Misericrdia de Vila Rica foi erigida por alvar de 16 de abril de 1738 (RIHGB, s/d [1781], p.138).

    21 Em uma memria annima atribuda a fins do sculo XVIII e incio do XIX relatava-se que Vila rica tinha quatorze fontes, todas de maravilhosa e cristalina gua, com seus tanques, de que se servem os habitantes para darem de beber aos animais (raPM, 1937, p.445).

  • 42 daniel PreCioso

    Aspecto muito destacado em memrias, corografias e, at mes-mo, em instrues de governo era o da topografia de Vila Rica e seu termo. as terras so descritas como cheias de serras que fatigam a todos os que a passeiam, aparecendo ora como pouco aptas para a cultura e boas para extrao do ouro, ora como abundante de vveres necessrios para passar a vida, como eram as hortalias e as frutas que fertilizam todas as Minas, pela falta de produo delas nas mais partes (coelho, 1852, p.261).22

    ao longo do sculo XViii, a populao de Vila rica encontrava--se distribuda em seis distritos: antnio Dias, ouro Preto, alto da cruz, Padre Faria, cabeas e Morros. em 16 de fevereiro de 1724, foram criadas as duas parquias: nossa senhora da conceio de antnio Dias e nossa senhora do Pilar de ouro Preto.23 De acordo com a diviso eclesistica do territrio da vila, a Freguesia de Ant-nio Dias passou a abarcar em sua jurisdio os distritos do alto da cruz, Padre Faria, Taquaral e antnio Dias, e a Freguesia do Pilar, os distritos de cabeas e ouro Preto. Do ponto de vista poltico e administrativo, em 1780, a sede do poder da capitania possua um governador e capito-general, uma cmara, uma junta da fazenda real, uma junta dos recursos, uma intendncia, uma junta das jus-tias, um ouvidor, um juiz dos rfos e um vigrio da vara (Coelho, 1852, p.262).

    a populao de Vila rica foi predominantemente de origem afri-cana, sobretudo na segunda metade do sculo XViii, para o que, cer-tamente, concorreu o fato de sua parcela cativa ter sofrido um rpido acrscimo nas quatro primeiras dcadas do sculo (Grfico 4).

    22 entre as hortalias, produziam-se couve, repolho e cebola. as frutas tambm davam com abundncia, principalmente pssego, marmelo, laranja, ma e jus (raPM, 1937, p.445).

    23 Na verdade, essa diviso bipartida das jurisdies eclesisticas em Vila Rica remonta ao ano de 1705, quando o bispo do rio de Janeiro enviou a esse povoa do, na condio de vigrios, os padres Jos de Faria e Fialho e Manuel de castro (lange, 1981, p.17). no termo de Vila rica se situavam ainda, ao sul de Vila rica, a Parquia de santo antnio da itatiaia; a sudeste, santo antnio do ouro Branco e nossa senhora da conceio das congonhas do campo; a nordeste, nossa senhora da Boa Viagem de itabira e nossa senhora de nazar da Cachoeira; e ao norte, So Bartolomeu. Cf. RIHGB (s/d [1781], p.119-97).

  • leGtimos Vassalos 43

    Grfico 4 Populao escrava de Vila rica, por ano (1716-1749).Fonte: costa; luna, 1982, p.22; Figueiredo; campos, 1999.

    segundo russell-Wood (2005, p.165), as municipalidades de Vila rica e Vila do carmo e seus arredores mais prximos contavam com 50% a mais do total da populao escrava da capitania.24 na tabela a seguir so apresentados os percentuais de escravos pelas vi-las mineiras entre os anos de 1716 e 1728:

    Tabela 2 concentrao de escravos por Vila (1716-1728).

    Vilaconcentrao de escravos

    1716-17 1717-18 1718-19 179-1720 1728ribeiro do carmo 6.834 10.974 10.937 9.812 17.376Vila rica 6.271 7.110 7.708 7.653 11.521Sabar 4.905 5.712 5.771 4.902 7.014so Joo 3.051 2.282 2.216 1.868 3.448so Jos 1.393 1.324 1.184 5.419Vila nova 3.848 4.347 4.478 4.051 4.791Vila do Prncipe 3.000 2.096 2.090 1.671 1.934Pitangui 283 415 359 845escravos de religiosos 897 * * *Total 27.909 35.094 34.939 31.500 52.348* includos nos totais gerais acima. Fontes: APMSG, vol.11, fls.275-6 v.280-1, 287-8 v; v.24, fls.4-9; APMDF, v.47, fls. 64 v-6 v apud russell-Wood, 2005, p.165.

    24 A partir das centralidades criadas no sculo XVIII, o urbano seria responsvel por deflagrar ou no mnimo acentuar a especializao das atividades econmi-cas, fator que pode explicar a abundante presena escrava em Vila rica e em ribeiro do carmo, principais urbes da comarca de Vila rica. o rural, por sua vez, no era apenas resultado do desenvolvimento do campo em relativa autonomia, mas tambm, de uma relao nova e especfica com os espaos citadinos intermedirios (Cunha, 2007, p.107).

  • 44 daniel PreCioso

    A despeito da existncia de fontes demogrficas (tbuas de ha-bitantes e mapas populacionais) para a segunda metade do sculo XViii, no dispomos de dados sobre Vila rica, em particular. na ausncia destes, recorreremos a estimativas gerais da capitania para matizar a presena dos pardos na regio.25

    Entre os indivduos de ascendncia africana, no perodo que compreende os anos de 1786 e 1808, os pretos cativos prevalece-ram sobre os pardos cativos com dilatada superioridade numrica (Grfico 5). Inversamente, entre os livres, os pardos predominaram sobre os pretos, porm em menor peso numrico (Grfico 6).

    Grfico 5 nmero de pardos e pretos cativos, em Minas Gerais, por ano (1786-1821).Fonte: eschewege, 1899, p.294-5.

    Grfico 6 nmero de pardos e pretos livres, em Minas Gerais, por ano (1786-1821).Fonte: eschewege, 1899, p.294-5.

    25 Como j observamos, as cores nas tbuas e nos mapas de populao referem uma coletividade abstrata. a estas fontes se contrapem os censos ou listas nominativas, que atribuem personalizadamente a qualidade dos habitantes dos foros. cf. roberto Guedes Ferreira (2005).

  • leGtimos Vassalos 45

    no que diz respeito proporo entre os sexos, o nmero de mu-lheres pardas preponderou com ligeira vantagem sobre o de homens de mesma qualidade, tanto entre os escravos como entre os livres (Grficos 7 e 8). Em sntese, as pardas constituam o maior segmento da populao de ascendncia africana em Minas Gerais.

    Grfico 7 nmero de homens e mulheres pardos cativos, em Minas Gerais, por ano (1786-1808).Fonte: eschewege, 1899, p.294-5.

    Grfico 8 nmero de homens e mulheres pardos livres, em Minas Gerais, por ano (1786-1808).Fonte: eschewege, 1899, p.294-5.

    salta-nos aos olhos a esmagadora vantagem numrica dos par-dos livres sobre os escravos de mesma qualidade. enquanto a popu-lao de pardos livres cresceu progressivamente ao longo dos anos

  • 46 daniel PreCioso

    de 1786, 1805 e 1808, a de pardos escravos, apesar de sofrer leve aumento em 1805, voltou a cair em 1808 (Grfico 9).

    Grfico 9 nmero de pardos livres e cativos, em Minas Gerais, por ano (1786-1821).Fonte: eschewege, 1899, p.294-5.

    somente com o recenseamento de 1804 so apresentados dados mais concisos sobre a paisagem social de Vila rica.26 os habitantes da vila que atingiram, aproximadamente, a cifra de 15.000 almas, em 1740, ou seja, no auge da minerao (ramos, 1975, p.202) so-mavam apenas 8.867, em 1804.

    os distritos de ouro Preto e de antnio Dias eram os mais po-pulosos, contando a sua populao, aproximadamente, 31,93% e 18,84% do total, respectivamente (Tabela 3).27

    26 o historiador Herculano Gomes Mathias (1969, p.iV) publicou o censo, po-rm de forma incompleta, separando apenas as listas que corresponderiam atualmente parte urbana da cidade de ouro Preto.

    27 nos dois distritos concentravam-se 50,77% da populao, 48,13% dos livres e 56,56% dos cativos. segundo costa e luna (1982, p.64), neste ncleo principal centralizava-se a vida administrativa, militar e religiosa da urbe. Estas duas unidades distritais assemelhavam-se, ainda, pela estratificao de seus moradores e com respeito ao peso relativo dos sexos.

  • leGtimos Vassalos 47

    Tabela 3 Populao de Vila rica, por distritos (1804).

    DistritosPopulao

    Homens Mulheres Total livres escravos Total

    ouro Preto 1.441 1.430 2.871 1.819 1.052 2.871

    antnio Dias 857 837 1.694 1.100 594 1.694

    cabeas 720 681 1.401 950 451 1.401

    Morro 655 624 1.289 946 343 1.289

    alto da cruz 517 601 1.118 824 294 1.118

    Padre Faria 286 331 617 458 159 617

    Total 4.486 4.504 8.990 6.097 2.893 8.990

    Fonte: Mathias, 1969, p.XXV.

    Quanto ao sexo, levando em conta a populao total de Vila Rica, verificamos o predomnio das mulheres (51,13%) sobre os ho-mens (48,87%). Havia, porm, uma discrepncia do peso relativo dos sexos, entre escravos e livres:

    a razo de masculinidade relativa aos escravos (138,07 ho-mens para 100,00 cativas) demonstra que as taxas de manumis-ses eram maiores no segmento das mulheres. Para os livres a razo de masculinidade correspondeu, apenas, a 80,80 vale di-zer contvamos 80,8 homens para cada grupo de 100 mulheres. (costa; luna, 1982, p.64)

    a populao de Vila rica, que foi preponderantemente masculina durante todo o Dezoito, apresentou, em 1804, um relativo equilbrio entre os sexos (havia 95,56 homens para 100 indivduos do sexo oposto). Um dos motivos dessa mudana no peso relativo entre homens e mulheres foi o predomnio do elemento masculino no processo de exciso populacional por que passava a rea no perodo em anlise (costa; luna, 1982, p.64).

  • 48 daniel PreCioso

    nos seis distritos recenseados, os livres e os forros predomina-vam numericamente, representando 68,61% da populao total, en-quanto os escravos e coartados representavam pouco menos de um tero (31,39%).28 o alto da cruz apresentava a maior parcela de livres (77,85%); em seguida Padre Faria (73,35%), Morro (73,20%), antnio Dias (68,20%), cabeas (66,86%) e ouro Preto (63,81%) (costa; luna, 1982, p.64-5).

    iraci Del nero da costa, baseado no confronto entre os dados censitrios de 1804 e os registrados nos cdices da Parquia de Ant-nio Dias (1719-1826), constatou que houve um nmero imponde-rvel de omisses relativas tanto cor quanto situao dos forros [...] por parte dos responsveis pelo levantamento populacional.29 assim, uma exata apreciao dos percentuais de pardos forros e li-vres fica comprometida. Em relao aos pardos escravos, as lacunas parecem menores. o estudo do censo realizado por iraci costa no apresenta as anlises correspondentes cor e aos forros, mas reve-la a mdia da faixa etria entre a populao escrava crioula e parda. Do total de cativos pardos, 49,41% tinham entre 0 e 19 anos, 48,57% entre 20 e 50 e apenas 1,77% contava 60 anos ou mais. Percentual pa-recido verificado no caso dos escravos crioulos, sendo que os africa-nos por estarem sujeitos migrao forada, que ocorria geralmente durante a fase adulta , foram os que apresentaram a menor mdia de indivduos com idade entre 0 e 19 anos (Tabela 4).

    Tabela 4 repartio percentual dos escravos africanos e coloniais, segundo grandes grupos etrios (Vila Rica, 1804).

    Faixa etria crioulos Pardos africanos0 19 anos 43,57 49,41 9,1920 59 anos 51,71 48,82 79,1460 anos ou mais 4,72 1,77 11,67Total 100% 100% 100%

    Fonte: costa, 1977, p.159.

    28 os agregados correspondiam a 16,14% dos livres (costa; luna, 1982, p.64).29 Por outro lado, para os crioulos (negros nascidos no Brasil) verificamos faltar

    tanto este qualificativo quanto o relativo condio de libertos (Costa, 1977, p.110-1).

  • leGtimos Vassalos 49

    no incio do sculo XiX, torna-se clara em Vila rica uma forte retrao populacional, cujo reflexo consistiu no abandono de mui-tas das casas da cidade e, de forma um pouco mais ampla, o arrefe-cimento das obras pblicas, ficando incompletos, anos a fio, inme-ros edifcios (cunha, 2007, p.131).30 o decrscimo da populao de Vila Rica contrasta com o aumento do percentual demogrfico da capitania de Minas, como demonstram os mapas populacionais de 1805, 1808 e 1821 (eschewege, 1899, p.294-5).

    Em resumo, at o final da dcada de 1730, quando o declnio tanto da importao como da populao de escravos passou a cor-responder ao arrefecimento da prosperidade da comunidade minei-ra, o desequilbrio sexual entre a populao escrava acentuou-se, com ampla maioria de homens. com o avanar do sculo XViii, verifica-se uma tendncia de equilbrio entre os sexos, uma dimi-nuio da populao escrava e, o que mais digno de nota, um aumento vertiginoso do nmero de forros e de seus descendentes, principalmente durante a segunda metade do setecentos.31 a exem-plo do que ocorria no rio de Janeiro, em salvador e em recife, em Vila rica houve o surgimento de uma populao mais visvel de libertos de ascendncia africana (Russell-Wood, 2005, p.169).32

    30 no comeo do sculo XiX, a situao da Vila era bastantemente desagra-dvel [...] pela arquitetura das casas (RAPM, 1937, p.445). O mesmo quadro desolador perpassou as crnicas dos viajantes europeus (eschewege, [s.d]; Mawe, 1994; Rugendas, 1972; Saint-Hilaire, 1975). A redefinio das bases da economia aps o esgotamento das reservas de metais e pedras preciosas explica o movimento de refluxo populacional e a criao de uma economia sob bases agrcolas ocorrida nos ncleos urbanos durante a segunda metade da centria, como tambm o arrefecimento das obras pblicas na virada para o oitocentos.

    31 iraci Del nero da costa (1977, p.83), que se debruou sobre os registros de batismos, bitos e casamentos da parquia de nossa senhora da conceio de antnio Dias, apontou um crescimento vegetativo negativo da populao, en-tre 1719 e 1826. no entanto, o segmento dos forros apresentou crescimento ve-getativo positivo no mesmo perodo, tendo havido maior nmero de batismos do que de bitos entre eles.

    32 embora as capitanias de Minas Gerais, do rio de Janeiro e da Bahia apresentas-sem populaes negras bastante numerosas, Pernambuco e suas anexas apresen-tavam o mais significativo contingente populacional da Amrica portuguesa, e, no interior deste, a mais vigorosa camada de libertos, egressos h uma ou mais geraes do cativeiro (alden, 1963, p.185-6 e 191; alden, 1991, p.287).

  • 50 daniel PreCioso

    no primeiro quartel do sculo XViii, sobretudo, a combinao da escassez de mulheres negras e a da quase ausncia de mulheres brancas com a prtica generalizada do concubinato inter-racial re-fletiu-se, em termos demogrficos, no aparecimento de um setor de mulatos livres desproporcionalmente grande em Minas Gerais (russell-Wood, 2005, p.172).

    o estudo de Vila rica, importante urbe do sculo XViii, pode fornecer, portanto, subsdios para uma abordagem da sociedade co-lonial que no se reduz s dicotomias senhor-escravo e branco-pre-to, pois ilumina o cotidiano de outros segmentos sociais homens livres pobres, negros e mestios libertos, dentre outros33 permi-tindo ao historiador discutir os significados da liberdade (dos forros e seus descendentes) e da mestiagem nos ncleos urbanos da am-rica portuguesa setecentista.

    Diversificao das atividades econmicas, trabalho e mobilidade social

    a descoberta do ouro em Minas Gerais fez que diversos ncleos populacionais crescessem vertiginosamente nas primeiras dcadas do setecentos. Para gerir os assuntos atinentes minerao foi criada a Intendncia de Minas, organismo administrativo responsvel pela execuo do regimento de 1702, ao qual competia cobrar o quinto, superintender todo o servio da minerao e resolver os pleitos entre os mineradores, bem como destes com terceiros (Prado Jnior, 1999, p.175). na capitania das Minas, esse organismo instalou-se na Vila do Sabar, zelando para que, de todo o ouro extrado em cada povoa-

    33 essa abordagem foi sugerida por ronald raminelli (Vainfas, 2000, p.120). cabe lembrar, ainda, que leituras renovadas do espao urbano colonial amplia-ram o foco de anlise para alm das dicotomias regular-irregular e planejado--espontneo, perspectiva consagrada pelo captulo o semeador e o ladrilha-dor do ensaio clssico de Srgio Buarque de Holanda (1982, p.61-100). Em relao s Minas, estudos sobre a cidade de Mariana e o Distrito Diamantino demonstraram que a rotina e a irracionalidade no nortearam o seu parce-lamento urbano. Cf. Cludia Damasceno Fonseca (2003) e Sylvio de Vascon-cellos (2004, p.145).

  • leGtimos Vassalos 51

    o, fosse deduzido o quinto da coroa.34 Uma vez descobertas as ja-zidas, informavam-se as autoridades competentes a fim de demarcar os terrenos aurferos e as datas. os lotes de terras eram distribudos ao descobridor, que escolhia a primeira data, sendo posteriormente demarcada outra pela Fazenda real e colocada em praa pblica para arrematao as demais eram repartidas em proporo ao nmero de escravos dos candidatos. Duas formas principais de explorao do minrio vigoraram: a lavra e a faiscao. a primeira predominou no perodo em que o ouro era abundante, reunindo vrios trabalhadores em uma nica frente de trabalho. a segunda desenvolveu-se conco-mitante ao decrscimo da produo aurfera, consistindo no batea-mento precrio e individualizado (Prado Jnior, 1999, p.175).

    o declnio da minerao no gerou o imediato colapso da econo-mia mineira.35 entrando em irreversvel queda de produo a partir de meados do sculo XVIII, a forte diversificao das atividades produtivas na regio tornou possvel a manuteno do vigor eco-nmico da capitania. a prpria natureza da empresa mineratria criou campo profcuo ao desenvolvimento urbano e diversifica-o do mercado para o provimento e o abastecimento das nascentes aglomeraes populacionais. como sugeriu Wilson cano (1977, p.102), foi reduzido o nmero de pessoas que se enriqueceram com o ouro. ademais, havia distintos caminhos percorridos pelo ouro at chegar s mos dos colonos mineiros certo que os mi-neiros eram os primeiros beneficiados com o metal precioso, porm este lhes escapava diante das necessidades geradas pela vida em um ambiente citadino, indo parar nas mos dos donos de vendas de se-cos e molhados, das negras de tabuleiro, dos oficiais mecnicos que trabalhavam em suas tendas ou subordinados a outrem, dos negros sangradores e donos de boticas. Variados eram, portanto, os modos de arrecadar o ouro.

    34 na Demarcao Diamantina instalou-se um rgo similar chamado de Intendncia dos Diamantes, em 1734.

    35 a crise da atividade mineratria acarretou transformaes na dinmica social. O seu corolrio foi a maior acomodao espacial de uma populao antes sobremaneira volante, e o desenvolvimento da atividade agropastoril em detrimento da mineratria, principalmente na comarca do rio das Mortes.

  • 52 daniel PreCioso

    No seria exagero, pois, afirmar que o vigor dos centros urbanos mineiros setecentistas no se deveu fundamentalmente explora-o do ouro. Tanto assim que, de modo contrrio, como pode-ria ser explicada a crescente dinamizao da vida urbana ocorrida durante a segunda metade do setecentos, justamente o perodo de crise da minerao, que entrara em irreversvel declnio?

    J na dcada de 1950, Mafalda Zemella respondia a essa ques-to. em seu estudo sobre o abastecimento da capitania e a dinmica interna do mercado mineiro, a autora observou a existncia de um amplo espectro de ocupaes e gneros de abastecimento (Zemella, 1951). Srgio Buarque de Holanda, em seu estudo clssico Metais e pedras preciosas, salientou a complexidade do universo mineiro, bem como a pluralidade da sua economia. segundo o historiador, apenas uma parcela da populao, e no a maior, se ocupava da minerao. alm disso, chamou ateno para o aparecimento de atividades produtivas novas, no menos rendosas, muitas vezes, do que a das prprias jazidas, uma vez que atraem, por vias diferentes, o produto delas (Holanda, 1977, p.292).

    a partir dos anos 1980, roberto Martins (1982, p.45) e robert slenes (1998, p.449-95) rejeitaram a ideia de que, aps o revs da minerao, Minas teria passado por um processo de desarticulao da economia e esvaziamento demogrfico. Em sntese, os estudos citados demonstram que aps o boom minerador formou-se, em Minas Gerais, uma sociedade heterognea, com base econmica di-versificada, tendo coexistido mltiplas formas de trabalho ligadas a uma estrutura produtiva complexa e dinmica.

    nota-se que o vigor da economia mineira setecentista foi deriva-do de caractersticas da vida urbana, da diversificao das atividades produtivas, de uma economia fortemente integrada, do estabeleci-mento de interdependncia regional (mais precisamente, entre reas urbanas de minerao e zonas rurais destinadas ao cultivo de produ-tos para o abastecimento), de maior flexibilidade social e, no conjun-to, consequequentemente, de estruturao de significativo mercado interno (costa; luna, 1982, p.16-7). a articulao dos aspectos alu-didos redundou em um sistema particularmente complexo do qual

  • leGtimos Vassalos 53

    interessa-nos ressaltar dois elementos principais: o carter urbano da formao mineira e o diversificado conjunto de atividades econ-micas, em geral, e artesanais, em particular, aspectos cruciais para o entendimento de como forros e mestios ascenderam socialmente na Vila rica da segunda metade do sculo XViii.

    A acentuada ampliao da diviso social do trabalho, com nfase nas ocupaes artesanais, abriu oportunidades para o homem livre integrar-se na estrutura de ocupaes (costa; luna, 1982, p.12). o carter citadino da civilizao do ouro foi completado por

    uma forte tendncia diversificao produtiva, permitindo e mesmo emulando a dinmica da mobilidade social que ali se instaurou. contrariamente ao homem livre do campo, foram os libertos dos ncleos urbanos os que tiveram as maiores chances de ascenso social na capitania, cumprindo assinalar que a rele-vante presena de comerciantes, artesos, burocratas, militares, artistas e literatos demonstrou, na prtica, como se processou a mobilidade vertical. (Boschi, 1986, p.161)

    A flexibilidade resultante da precoce urbanizao, acrescida re-alada miscigenao entre europeus e africanos, abriu um leque de possibilidades aos homens considerados juridicamente livres na socie-dade mineradora. ainda que a intensa miscigenao no implicava igualdade racial ou social, [pois] a ordem escravista pressupunha estra-tificao, tanto racial como social (Boschi, 1986, p.164), a populao de trabalhadores livres e forros beneficiou-se com as oportunidades despontadas, com as quais tentavam minimizar as dificuldades de uma vida de carestia, buscando integrar-se ao mercado. embora as chan-ces de ascender na estrutura social fossem abertas a forros e seus des-cendentes e a mulatos, a ascenso era preferencialmente horizontal, isto , intragrupal.36 alm disso, o grupo em foco no constitua, de modo algum, um todo homogneo, tendo uns poucos se enriquecido e alcanado estima no meio social no qual se encontravam inseridos.

    36 sobre a ascenso social no interior de um mesmo estamento, cf. J. Delumeau (1968, p.150-62) e lawrence stone (1985, p.270-98).

  • 54 daniel PreCioso

    a sociedade mineira era escravista, herdeira de critrios estamentais do antigo regime e perpassada por valores ligados ao acmulo de ri-quezas (silveira, 1997, p.106, passim).37 Para avaliar a estima social de um indivduo de ascendncia africana, preciso ter em mente que a qualidade e a condio jurdica atuavam como obstculos, pois reme-tiam experincia do cativeiro vivenciada ou herdada pelo sangue. To-davia, era possvel atingir reconhecimento social por meio da riqueza, do exerccio de uma profisso reputada e da constituio de famlias e de laos de parentesco ritual vantajosos. ao privilegiarmos em nossa anlise o grupo de pardos considerados juridicamente livres, a mobili-dade social preferencialmente buscada no interior de seu grupo, no se descuidando, porm, da condio de forro ou de livre.38

    Em relao ao trabalho, os que viviam de sua agncia, e no do desempenho de atividades para outrem, certamente gozavam de me-

    37 na sociedade do antigo regime, a riqueza no era em si mesma, um fator decisivo de mudana social, [...] [podendo] constituir um meio legtimo de mudana de estado, se ela mesma no resultar de um processo ilegtimo de aquisio de bens (Hespanha, 2006, p.122 e 129). no entanto, em sociedades escravistas, a riqueza permitia, por exemplo, aos egressos do cativeiro a aquisi-o de terras e escravos, possibilitando-lhes marcar e reforar sua liberdade.

    38 nesse ponto, distanciamo-nos da abordagem de eduardo Frana Paiva (2001, p.66-7), que agrupou forros e descendentes em uma mesma categoria analtica. segundo o historiador, partindo de suas condies sociais e deixando de lado o que era chamado de qualidade naquela poca (branco, preto, crioulo, pardo, mulato, cabra, entre outras designaes), possvel dividi-los em trs gran-des grupamentos: livres, libertos (includos os negros e os mestios nascidos livres) e escravos. os descendentes de libertos nascidos aps as alforrias das mes eram juridicamente livres. contudo, estavam sujeitos s restries sociais impostas aos ex-escravos e, por isso, estiveram muito mais prximos do mun-do dos libertos e de seus ascendentes cativos que da liberdade ostentada pelos brancos. Isso justifica a incluso desses indivduos entre os libertos. No h, portanto, motivos para o estabelecimento de um quarto agrupamento social. De fato, liberdade ostentada por descendentes de forros no pode ser iguala-da dos brancos (e mesmo dos mestios) livres, porm, a anlise indistinta de forros e descendentes em um mesmo grupo desconsidera a mobilidade ocor-rida do primeiro para o segundo estado jurdico, desprezando as disparidades relativas hierarquia entre esses segmentos e o paulatino distanciamento de um passado escravo. Assim, embora fossem mais tnues e trouxessem maiores dificuldades na sua apreenso, as distines entre forros e seus descendentes existiam. os forros, por exemplo, poderiam ter sua alforria anulada por ingra-tido (cf. ordenaes Filipinas, livro iV, Ttulo lXii, p.863-7).

  • leGtimos Vassalos 55

    lhor reputao social perante os de mesma qualidade e condio ju-rdica.39 Portanto, o acmulo de peclios e a constituio de uma boa fama pblica poderiam subverter a hierarquia impressa nos termos utilizados para designar racial e socialmente os indivduos. a me