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685 P áinrNt NártS PáNãrur Ntá NS N JSãetuN Noi áiNei áuN i NSot Ni Ni Pái áNSSi CAPÍTULO 21 Providências preliminares e julgamento conforme o estado do processo Sumário • 1. Saneamento e fase de saneamento. As providências preliminares – 2. Julgamento conforme o estado do processo – 3. Julgamento antecipado do mérito – 4. Da decisão de saneamento e organização do processo: 4.1. Generalidades; 4.2. Audiência de saneamento e organização em cooperação com as partes; 4.3. O acordo de organização do processo; 4.4. O calendário processual; 4.5. Eficácia preclusiva da decisão de saneamento e de organização do processo em relação ao reexame das questões que podem ser decididas a qualquer tempo pelo órgão jurisdicional: 4.5.1. Consideração introdutória; 4.5.2. O juízo de admissibilidade positivo e a preclusão. 1. SANEAMENTO E FASE DE SANEAMENTO. AS PROVIDÊNCIAS PRELIMINARES Apresentada ou não a resposta do réu, inicia-se uma fase do procedimento comum que se denomina de fase de saneamento ou fase de ordenamento do pro- cesso. Durante este período, o magistrado, se for o caso, deve tomar providências que deixem o processo apto para que nele seja proferida uma decisão, chamada de julgamento conforme o estado do processo 1 (art. 347 do CPC). 2 É importante notar que a atividade de saneamento do magistrado não se es- gota nessa fase, que se caracteriza, apenas, pela concentração de atos de regulari- zação do processo. É que, desde o momento em que recebe a petição inicial, pode o magistrado tomar providências para regularizar eventuais defeitos processuais – a determinação de emenda da petição inicial (art. 321 do CPC) 3 e a possibilidade de controle a qualquer tempo das questões relativas à admissibilidade do procedi- mento (art. 485, § 3º, CPC) são exemplos disso. O dever de o magistrado sanear o processo deve ser exercido ao longo de todo o procedimento, mas há uma fase em que essa sua atuação revela-se mais concentrada. A fase de saneamento inicia-se após o escoamento do prazo de contestação. No entanto, é possível que, após esse momento, a fase postulatória (que é aquela em que se define o objeto litigioso do processo, sobre o qual falamos no capítulo 1. PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 3, p. 429. 2. “Findo o prazo para a contestação, o juiz tomará, conforme o caso, as providências preliminares constantes das seções deste Capítulo”. 3. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 59.

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Providências preliminares e julgamento conforme

o estado do processo Sumário • 1. Saneamento e fase de saneamento. As providências preliminares – 2. Julgamento conforme o estado do processo – 3. Julgamento antecipado do mérito – 4. Da decisão de saneamento e organização do processo: 4.1. Generalidades; 4.2. Audiência de saneamento e organização em cooperação com as partes; 4.3. O acordo de organização do processo; 4.4. O calendário processual; 4.5. Eficácia preclusiva da decisão de saneamento e de organização do processo em relação ao reexame das questões que podem ser decididas a qualquer tempo pelo órgão jurisdicional: 4.5.1. Consideração introdutória; 4.5.2. O juízo de admissibilidade positivo e a preclusão.

1. SANEAMENTO E FASE DE SANEAMENTO. AS PROVIDÊNCIAS PRELIMINARES

Apresentada ou não a resposta do réu, inicia-se uma fase do procedimento comum que se denomina de fase de saneamento ou fase de ordenamento do pro-cesso. Durante este período, o magistrado, se for o caso, deve tomar providências que deixem o processo apto para que nele seja proferida uma decisão, chamada de julgamento conforme o estado do processo1 (art. 347 do CPC).2

É importante notar que a atividade de saneamento do magistrado não se es-gota nessa fase, que se caracteriza, apenas, pela concentração de atos de regulari-zação do processo. É que, desde o momento em que recebe a petição inicial, pode o magistrado tomar providências para regularizar eventuais defeitos processuais – a determinação de emenda da petição inicial (art. 321 do CPC)3 e a possibilidade de controle a qualquer tempo das questões relativas à admissibilidade do procedi-mento (art. 485, § 3º, CPC) são exemplos disso. O dever de o magistrado sanear o processo deve ser exercido ao longo de todo o procedimento, mas há uma fase em que essa sua atuação revela-se mais concentrada.

A fase de saneamento inicia-se após o escoamento do prazo de contestação. No entanto, é possível que, após esse momento, a fase postulatória (que é aquela em que se define o objeto litigioso do processo, sobre o qual falamos no capítulo

1. PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 3, p. 429.

2. “Findo o prazo para a contestação, o juiz tomará, conforme o caso, as providências preliminares constantes das seções deste Capítulo”.

3. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 59.

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sobre a teoria da cognição judicial) se prolongue, pois o réu pode ter reconvindo ou denunciado a lide a um terceiro. É possível, ainda, que o autor requeira o aditamen-to ou a alteração do pedido ou da causa de pedir, com o consentimento do réu, com base no art. 329, II, do CPC. Os primeiros atos da fase de saneamento podem coincidir, portanto, com a prática dos últimos atos da fase postulatória.

Eis, basicamente, o rol de providências preliminares.

a) Tendo sido apresentada defesa indireta, deve o juiz intimar o autor para apre-sentar a sua réplica, em quinze dias (arts. 350-351 do CPC), que consiste na manifes-tação do demandante sobre os fatos novos deduzidos pelo réu em sua defesa. Se a defesa for direta, não haverá intimação para a réplica. Se o autor trouxer documentos na réplica, o réu deverá ser intimado para manifestar-se sobre eles, em quinze dias, conforme a regra extraída do §1º do art. 437 do CPC.

Embora raro, é possível que, em réplica, o autor deduza fatos novos ou traga documentos novos. Se isso acontecer e o órgão jurisdicional entender admissível esse tipo de alegação em réplica, caberá nova providência preliminar: garantir ao réu a tréplica, também no prazo de dez dias. Se o réu, em tréplica, fizer o mesmo e trouxer fatos novos ou documentos novos, terá o autor o direito de manifestar-se sobre tudo isso, no mesmo prazo. Para evitar esse vaivém, o órgão jurisdicional pode não admitir tais alegações; se o admitir, porém, não há escapató-ria: terá de garantir o contraditório.4

b) Se o réu apresentar defesa direta, mas trouxer documentos, deve o magistra-do intimar o autor para manifestar-se sobre eles, no prazo de quinze dias conforme regra extraída do §1º do art. 437 do CPC.

c) Se há defeitos processuais que possam ser corrigidos, inclusive aqueles rela-cionados aos requisitos de admissibilidade do procedimento, deve o juiz providenciar a sua correção (conforme visto no capítulo sobre as invalidades processuais), fixando, para tanto, prazo não superior a trinta dias (art. 352, CPC).

d) Se houver revelia, deve o magistrado verificar a regularidade da citação.5

e) Se, não obstante a revelia, a presunção de veracidade dos fatos afirmados pelo autor não se tiver produzido (essas hipóteses foram expostas no capítulo sobre a resposta do réu), deve o magistrado intimar o autor para especificar as provas que pretende produzir em audiência (art. 348 do CPC). O prazo para especificação das provas é de cinco dias, aplicando-se a regra supletiva do art. 218, §3º, CPC, tendo em vista o silêncio da lei sobre o assunto.6

4. Sobre o tema, SICA, Heitor. O direito de defesa no processo civil brasileiro, cit., p. 270; REDONDO, Bruno Garcia. “Réplica, tréplica e quadrúplica no direito processual civil: esmiuçando o estudo de relevantes institutos des-prestigiados”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2013, n. 215, p. 88 e segs.

5. PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil, 9ª ed., cit., v. 3, p. 431-433.6. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro, 23ª ed., cit., p. 60.

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f) Se a revelia decorrer de citação ficta ou se o réu revel for preso, deve o ma-gistrado designar o curador especial (art. 72, II, CPC).

g) Se o réu reconveio, deve o magistrado intimar o autor para contestar a recon-venção, em quinze dias.

h) Se o réu promover uma denunciação da lide ou um chamamento ao proces-so, o magistrado tomará as providências inerentes a essas intervenções, como, por exemplo, determinar a comunicação do terceiro cujo ingresso no processo se pleiteia.

i) Se o réu requereu a revogação da justiça gratuita concedida ao autor, o juiz, após ouvi-lo, decidirá a respeito; se revogar a gratuidade da justiça, caberá agravo de instrumento (art. 101 e art. 1.015, V, CPC).

j) Se houver alegação de incompetência, o juiz decidirá sobre a sua competên-cia. Se reconhecer a sua incompetência, determinará a remessa dos autos ao juízo competente.

k) O juiz decidirá sobre eventual impugnação ao valor da causa apresentada pelo réu na contestação.

l) O magistrado deve verificar se é caso de intervenção do Ministério Públi-co (art. 178 do CPC), da Comissão de Valores Mobiliários (CVM, art. 31 da Lei n. 6.385/1976), do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE, art. 118 da Lei n. 12.529/2011) ou de qualquer outro órgão/entidade cuja presença no processo seja obrigatória, por força de lei.

2. JULGAMENTO CONFORME O ESTADO DO PROCESSO

O julgamento conforme o estado do processo pode assumir diversas feições.

Depois de cumpridas as providências preliminares, ou não havendo necessidade delas, o juiz examinará o processo para que tome uma dessas decisões:

a) extingue-o sem resolução do mérito (art. 485, c/c o art. 354 do CPC);

b) extingue-o com a resolução do mérito, em razão de autocomposição total (art. 487, III, c/c o art. 354 do CPC);

c) extingue-o com resolução do mérito pela verificação da ocorrência da deca-dência ou prescrição (art. 487, II, c/c o art. 354 do CPC);

d) julga antecipadamente o mérito da causa (art. 355 c/c art. 487, I, do CPC);

e) profere decisão de saneamento ou organização do processo, com ou sem audiência para produzi-la em cooperação com as partes (art. 357, CPC).

As hipóteses “a”, “b”, “c” e “d” permitem decisões parciais, que digam respeito a apenas parte do processo (arts. 354, par. ún., e 356, CPC). Nesse caso, teremos uma decisão interlocutória, impugnável por agravo de instrumento.

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As hipóteses “a”, “b”, “c” e as decisões parciais serão estudadas no capítulo de-dicado à extinção do processo, neste volume do Curso, para onde remetemos o leitor.

Neste momento, cuidaremos das hipóteses “d” e “e”.

3. JULGAMENTO ANTECIPADO DO MÉRITO

Conforme visto no item anterior, após as providências preliminares, o juiz deve proferir uma decisão, que se denomina julgamento conforme o estado do processo. O julgamento antecipado do mérito da causa é uma das possíveis decisões que podem ser tomadas nesse momento do processo.

Trata-se de decisão de mérito em que o magistrado decide o objeto litigioso, jul-gando procedente ou improcedente a demanda formulada. Perceba-se que, em outras duas variantes do julgamento conforme o estado do processo, também há exame de mérito: a) extinção por autocomposição (reconhecimento da procedência do pedido, transação ou renúncia ao direito sobre o que se funda a demanda), art. 487, III, CPC; b) extinção pelo reconhecimento da prescrição ou decadência, art. 487, II, CPC. Nessas situações, só há julgamento de mérito nos casos da letra “b”; nos casos da letra “a”, há homologação da autocomposição, sem julgamento.

No julgamento antecipado do mérito, porém, o magistrado julga o mérito com base no inciso I do art. 487 do CPC.

Uma observação é necessária: a decisão judicial com base no inciso I do art. 487 do CPC pode ocorrer em improcedência liminar do pedido, julgamento antecipado do mérito ou após a realização da audiência de instrução e julgamento.

Assim, o julgamento conforme o estado do processo pode implicar decisão de mérito tomada com base em qualquer dos incisos do art. 487 do CPC.

O julgamento antecipado é uma decisão de mérito, fundada em cognição exau-riente, proferida após a fase de saneamento do processo, em que o magistrado reco-nhece a desnecessidade de produção de mais provas em audiência de instrução e jul-gamento (provas orais, perícia e inspeção judicial). “O juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo sentença com resolução do mérito”, diz o caput do art. 355 do CPC.

O juiz, no caso, entende ser possível proferir decisão de mérito apenas com base na prova documental produzida pelas partes. O julgamento antecipado do mérito é, por isso, uma técnica de abreviamento do processo7. É manifestação do princípio da adaptabilidade do procedimento (ver capítulo sobre as normas fundamentais do processo civil), pois o magistrado, diante de peculiaridades da causa, encurta o pro-cedimento, dispensando a realização de toda uma fase do processo. É bom frisar que

7. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro, 23ª ed., cit., p. 95-96.

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o adjetivo “antecipado” justifica-se exatamente pelo fato de o procedimento ter sido abreviado, tendo em vistas particularidades do caso concreto.

O art. 355 do CPC prevê as hipóteses em que se admite o julgamento antecipado do mérito da causa. Convém transcrevê-lo:

Art. 355. O juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo senten-ça com resolução de mérito, quando: I – não houver necessidade de produção de outras provas; II – o réu for revel, ocorrer o efeito previsto no art. 344 e não houver requerimento de prova, na forma do art. 349.

É preciso fazer algumas anotações sobre esse artigo.

a) Em primeiro lugar, o princípio da cooperação impõe que o magistrado comu-nique às partes a intenção de abreviar o procedimento, julgando antecipadamente o mérito. Essa intimação prévia é importantíssima: i) evita uma decisão-surpresa, que abruptamente encerre o procedimento, frustrando expectativas das partes; ii) se a parte não concordar com essa decisão, sob o fundamento de que ela cerceia seu direito à prova e, por isso, invalida o procedimento, deve registrar o inconformismo, nos termos do art. 278 do CPC – se não o fizer, não poderá, posteriormente, alegar, na apelação, cerceamento de defesa pela restrição que se fez ao seu direito à prova, em razão da preclusão.

b) Essa possibilidade de abreviação do procedimento deve ser utilizada com cautela e parcimônia, não só porque pode implicar restrição ao direito à prova, mas também porque, sem a audiência de instrução e julgamento, podem os autos subir ao tribunal, em grau de recurso, com insuficiente conjunto probatório.8 Como não é praxe, em órgãos colegiados, a realização de atividade de instrução probatória com-plementar (não obstante isso não esteja vedado pelo sistema, conforme se vê do arts. 932, I, e 938, §3º, CPC), é possível que, diante de um processo mal instruído, o tribunal resolva anular a sentença, para que se reinicie a atividade probatória – e isso não é desejável.

c) O inciso I do art. 355 autoriza o julgamento antecipado quando não for ne-cessária a produção de provas em audiência, ou seja, quando a prova exclusivamente documental for bastante para a prolação de uma decisão de mérito.

d) Cabe julgamento antecipado se houver revelia. Para que isso aconteça, é preciso que a revelia tenha implicado a presunção de veracidade dos fatos afirma-dos pelo autor – e, por isso, não haja necessidade de produção de mais provas, pela incontrovérsia dos fatos (art. 374, III, CPC) – e o revel ainda não tenha intervindo no processo, solicitando a produção de provas nos termos do art. 349 do CPC.

8. Com essa preocupação, GRINOVER, Ada Pellegrini. “O julgamento antecipado da lide: enfoque constitucional”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 1977, n. 5, p. 101-113; ANDRADE, Luís Antônio de. Aspectos e inovações do Código de Processo Civil (processo de conhecimento). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1974, p. 171-172.

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No capítulo sobre a resposta do réu, vimos que nem sempre a revelia gera presunção de veracidade dos fatos afirmados pelo autor. É possível, ainda, que, não obstante a revelia e o julgamento antecipado do mérito, o autor perca a causa; nada impede que o magistrado julgue improcedente o pedido, a despeito de reputar exis-tentes os fatos alegados pelo autor – p. ex., os fatos deduzidos não têm aptidão para conferir ao autor o direito afirmado9.

e) Não se permite que o juiz, no julgamento antecipado do mérito da causa, conclua pela improcedência, sob o fundamento de que o autor não provou o alegado. Caso convoque os autos para julgamento antecipado, supõe-se que o magistrado re-puta provados os fatos alegados. Entende, enfim, que não há necessidade de prova. Essa decisão impede comportamento contraditório do juiz (venire contra factum pro-prium); há preclusão lógica10 para o magistrado, que, então, não pode proferir decisão com aquele conteúdo. A sentença de improcedência por falta de prova, em julgamen-to antecipado do mérito da causa, além de violar o dever de lealdade processual, a boa-fé objetiva (art. 5º, CPC) e o princípio da cooperação (art. 6º, CPC), poderá ser in-validada por ofensa à garantia do contraditório, em sua dimensão de direito à prova.11

f) Quando for o caso, o “julgamento antecipado não é faculdade, mas dever que a lei impõe ao julgador”,12 em homenagem aos princípios da duração razoável do processo e da eficiência.

g) Admite-se o julgamento antecipado parcial (art. 356, CPC). Nesse caso, por não encerrar o procedimento, a decisão é impugnável por agravo de instrumento (art. 356, §4º, CPC).

Admite-se decisão líquida ou ilíquida (art. 356, §1º, CPC). Esse dispositivo deve ser interpretado em conjunto com o art. 491 do CPC: somente será possível julgamen-to antecipado parcial ilíquido nas hipóteses dos incisos I e II do art. 491. Realmente, não há sentido em proibir, em regra, decisões ilíquidas (art. 491) e, ao mesmo tempo, permitir, em regra, decisões ilíquidas, se proferidas em julgamento antecipado parcial (art. 356, §1º) – seria uma distinção sem qualquer critério.

9. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro, 23ª ed., cit., p. 98.10. Admitindo a preclusão lógica para o juiz, embora sem fazer menção a esse exemplo, corretamente, NEVES,

Daniel Amorim Assumpção. Preclusões para o juiz. São Paulo: Método, 2004, p. 42-46.11. Neste sentido, no STJ, 3a T., REsp 649.191/SC, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. Em 19.08.2004, publi-

cado no DJ de 13.09.2004, p. 241; 1a T., REsp n. 443.171/SC, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 10.02.2004, publicado no DJ de 25.02.2004, p. 101; STJ, 3ª T., REsp n. 1.228.751/PR, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. em 06.11.2012, publicado no DJe de 04.02.2013. Também assim o enunciado n. 297 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “O juiz que promove julgamento antecipado do mérito por desnecessidade de outras provas não pode proferir sentença de improcedência por insuficiência de provas”.

12. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Código de Processo Civil anotado. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 255. Tam-bém assim, CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, 9ª ed., v. 1, cit., p. 360; STJ, 4 T., Resp n. 2.832/RJ, publicado no DJ de 17.09.1990; Resp n. 5.640/RS, publicado no DJ de 24.06.1991; STJ, 3a T., AgRg no Ag 481607/DF, rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, j. em 18.03.2004, publicado no DJ de 12.04.2004, p. 205; STJ, 6a T., REsp nº 102.303/PE, Rel. Min. Vicente Leal, j. em 27.04.1999, publicado no DJ de 17.05.99; 1a T., AgRg no REsp n. 579.890/AC, rel. Min. José Delgado, j. em 05.02.2004, publicado no DJ de 05.04.2004, p. 214.

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Trata-se de decisão parcial definitiva, apta, portanto, à liquidação e à execução definitivas (art. 356, §§2ºe 3º, CPC), à coisa julgada e, consequentemente, a ser alvo de ação rescisória (art. 966, CPC).

Cabe julgamento antecipado parcial se um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles i) mostrar-se incontroverso ou ii) estiver em condições de imediato julgamento nos termos do art. 355 (art. 356, I e II, CPC). Na primeira hipótese, não há propriamente julgamento antecipado do mérito: há resolução parcial do mérito, em razão da autocomposição parcial (art. 487, III, CPC). Na segunda hipótese, está-se, aí sim, diante do mesmo julgamento antecipado do mérito da causa, restrito, porém, a um ou alguns dos pedidos cumulados ou a parcela deles.

4. DA DECISÃO DE SANEAMENTO E ORGANIZAÇÃO DO PROCESSO

4.1. Generalidades

Se não for caso de extinção do processo sem resolução do mérito, nem de extin-ção do processo com resolução do mérito (prescrição/decadência, autocomposição ou julgamento antecipado do mérito da causa), deverá o magistrado proferir uma decisão de saneamento e organização do processo (art. 357, CPC).

Note que estamos diante de uma situação em que o órgão jurisdicional terá de resolver o objeto litigioso, mas ainda não há elementos probatórios nos autos que lhe permitam fazer isso – terá, pois, de preparar o processo para a atividade instrutória.

Esta é uma das mais importantes decisões proferidas pelo órgão jurisdicional. A boa organização do processo interfere diretamente na duração razoável do processo e na proteção ao contraditório.

Nessa decisão, o órgão jurisdicional:

I - resolverá as questões processuais pendentes, se houver: com isso, deixará o processo apto ao início da audiência de instrução, para colheita de novas provas. Este é um capítulo da decisão dedicado ao saneamento de defeito processual que porventura tenha permanecido, após a fase das providências preliminares, ou que tenha aparecido (art. 357, I, CPC).

II - delimitará as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos: é neste momento que o órgão jurisdicio-nal identificará os fatos controvertidos e determinará qual meio de prova serve a cada um deles. Com isso, organiza-se a atividade instrutória (art. 357, II, CPC).

Caso tenha sido determinada a produção de prova testemunhal, o juiz fixará prazo comum não superior a quinze dias para que as partes apresentem rol de testemunhas (art. 357, §4º, CPC). O número de testemunhas arroladas não pode ser superior a dez, sendo três, no máximo, para a prova de cada fato (art. 357, §6º, CPC).

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O juiz poderá limitar o número de testemunhas em consideração à complexidade da causa e dos fatos individualmente considerados (art. 357, §7º, CPC). Embora o CPC fale em “limitar”, que dá a ideia de restringir, o juiz também pode ampliar o número de testemunhas, tendo em vista as particularidades da causa13.

É conveniente que o juiz determine que a parte informe o fato sobre o qual re-cairá cada testemunho: isso é importantíssimo para a organização da instrução.

Caso tenha sido determinada a produção da prova pericial, o juiz observará o disposto no art. 465 e, se possível, estabelecerá, de logo, calendário para sua realiza-ção (art. 357, §8º, CPC).

III – definirá a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373: este é mo-mento propício para a eventual redistribuição judicial do ônus da prova, feita nos ter-mos do §1º do art. 373, CPC (art. 357, III, CPC). Sobre a distribuição dinâmica do ônus da prova, ver o capítulo sobre a teoria da prova, no v. 2 deste Curso.

Se for caso de aplicação de convenção sobre ônus da prova, o órgão jurisdicio-nal esclarecerá isso neste momento (art. 373, §§3º e 4º, CPC). Se não for redistribuir o ônus da prova, o órgão jurisdicional dirá isso nessa decisão. Contra a decisão que redistribui o ônus da prova, nos termos do art. 373, cabe agravo de instrumento (art. 1.015, XI, CPC); contra a que não acolhe o requerimento de redistribuição do ônus da prova não cabe agravo de instrumento.

IV – delimitará as questões de direito relevantes para a decisão do mérito: além de definir as questões fáticas controvertidas, o órgão jurisdicional definirá as ques-tões de direito relevantes para a solução da causa (art. 357, IV, CPC). Essas questões não se limitam àquelas suscitadas pelas partes, mas é imprescindível que todas elas constem da decisão de saneamento e organização do processo.

Essa regra concretiza o art. 10 do CPC, que impõe ao órgão jurisdicional o dever de consultar as partes sobre qualquer questão relevante para a solução da causa, inclusive as questões jurídicas. Essa delimitação expõe às partes o que o órgão juris-dicional entende como questão jurídica relevante para a solução do objeto litigioso; por isso, se trata de delimitação que vincula a atividade jurisdicional: o juiz decidirá a causa apenas com base nessas questões Se, futuramente, o órgão jurisdicional vis-lumbrar outra questão jurídica relevante para o julgamento da causa, terá de intimar às partes desta espécie de aditamento à sua decisão de organização do processo, para que possam manifestar-se.

V – designará, se necessário, audiência de instrução e julgamento: a depender dos meios de prova que serão produzidos (inciso II), o juiz já marcará a data audiên - cia de instrução e julgamento (art. 357, V, CPC). Entre uma audiência de instrução e outra, haverá intervalo mínimo de uma hora (art. 357, §9º, CPC).

13. Nesse sentido, enunciado n. 300 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “O juiz poderá ampliar ou restrin-gir o número de testemunhas a depender da complexidade da causa e dos fatos individualmente considerados”.

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De acordo com o enunciado n. 295 do Fórum Permanente de Proces-sualistas Civis: “As regras sobre intervalo mínimo entre as audiências do CPC só se aplicam aos processos em que o ato for designado após sua vigência”.

Proferida a decisão de saneamento e organização do processo, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de cinco dias, findo o qual a decisão se torna estável (art. 357, §1º, CPC). A estabilidade da decisão de saneamento é fundamental para evitar retrocessos processuais. Por isso, o legisla-dor autorizou que as partes solicitem ajustes ou esclarecimentos, em cinco dias. Isso pode ser feito por uma petição simples – não se trata de embargos de declaração, razão pela qual não se devem exigir maiores formalidades. Não havendo impugnação, a decisão transita em julgado e vinculará a atividade jurisdicional a partir daí.

Mas há algumas observações que precisam ser feitas.

a) A preclusão, prevista no §1º do art. 357, CPC, refere-se à organização da ati-vidade instrutória – delimitação dos fatos probandos, ordem de produção das provas, marcação da audiência etc. Se houver decisão sobre temas que podem ser objeto de agravo de instrumento (art. 1.015, CPC) ou de apelação (art. 1.009, §1º, CPC), não haverá preclusão nesse momento.

b) É por isso que se, na decisão de saneamento e organização do processo, houver capítulo em que o juiz redistribua o ônus da prova, nos termos do art. 373, §1º, do CPC, caberá agravo de instrumento (art. 1.015, XI, CPC).

c) O prazo de cinco dias a que se refere o §1º do art. 357 somente se aplica se a decisão de saneamento e organização do processo for proferida por escrito. Se feita em audiência, com a presença das partes, os esclarecimentos devem ser solicitados até o fim da sessão, sob pena de preclusão14.

A decisão de saneamento e organização do processo é, claramente, um marco de estabilização do processo que deve ser prestigiado. Não por acaso o legislador so-mente permitiu ampliações ou alterações objetivas do processo até o esse momento (art. 329, II, CPC).

4.2. Audiência de saneamento e organização em cooperação com as partes

O §3º do art. 357 prevê a audiência de saneamento e organização feitos em cooperação com as partes. Trata-se de uma regra que concretiza o princípio da coope-ração (art. 6º, CPC), sendo uma das principais inovações do CPC.

Prescreve esse dispositivo que “se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja

14. Neste sentido, Daniel Mitidiero, em conversa eletrônica travada com o autor deste livro.

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feito em cooperação com as partes”. Determina ainda que, “nesta oportunidade, o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações”. As partes trarão para essa audiência o rol de testemunhas (art. 357, §5º, CPC)15.

Não é raro o juiz deparar-se com causas extremamente complexas, as quais se revelam incompreensíveis para ele, um terceiro estranho ao litígio. É inegável que as partes são os sujeitos que mais bem conhecem a controvérsia. O saneamento em diálogo com as partes tende a ser muito mais fácil e útil.

Mais bem organizado o processo, com a delimitação tão precisa quanto possível do cerne da controvérsia, evitam-se provas inúteis ou desnecessárias, aumenta-se a chance de autocomposição e diminuem as possibilidades de interposição de recurso16 fundado em equívoco na apreciação pelo juiz ou invalidade por ofensa ao contraditó-rio – como a organização foi produzida plurilateralmente, em diálogo, não será possí-vel alegação posterior de equívoco, se a decisão se basear no que foi acordado. Sim, acordado: está-se diante de um negócio jurídico processual plurilateral – sobre o tema, ver capítulo sobre a teoria dos fatos jurídicos processuais, neste volume do Curso.

Embora o §3º do art. 357 preveja a audiência de saneamento e organização do processo em cooperação com as partes apenas em “causas complexas”, não há qualquer restrição para que o juiz a determine em causas não tão complexas. O sa-neamento compartilhado tende a ser mais frutuoso sempre17. No mínimo, serve como mais um momento processual que favorece a autocomposição18.

4.3. O acordo de organização do processo

O §2º do art. 357 permite que as partes levem ao juiz, para homologação, uma or-ganização consensual do processo. Eis o texto do §2º do art. 357: “As partes podem apre-sentar ao juiz, para homologação, delimitação consensual das questões de fato e de di-reito a que se referem os incisos II e IV, a qual, se homologada, vincula as partes e o juiz”.

Note que, neste caso, temos um negócio bilateral, em que as partes chegam a um consenso em torno dos limites do seu dissenso – uma litiscontestatio19 contem-porânea. Ou seja: as partes concordam que controvertem sobre tais ou quais pontos.

15. Inegável a influência da obra de Paulo Hoffman nesta inovação legislativa (HOFFMAN, Paulo. Saneamento com-partilhado. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 138 e segs.).

16. WAMBIER, Luiz Rodrigues. “A audiência preliminar como fator de otimização do processo: o saneamento ‘com-partilhado’ e a probabilidade de redução da atividade recursal das partes”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2004, n. 118, p. 142; HOFFMAN, Paulo. Saneamento compartilhado, cit., p. 139; ANDRADE, Érico. “As novas perspectivas do gerenciamento e da ‘contratualização’ do processo”, cit., p. 189.

17. Assim, enunciado n. 298 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A audiência de saneamento e organização do processo em cooperação com as partes poderá ocorrer independentemente de a causa ser complexa”.

18. Entendendo que o saneamento e a organização do processo deve ser sempre em audiência, HOFFMAN, Paulo. Saneamento compartilhado, cit., p. 140.

19. Negócio processual previsto no processo civil romano (no período das ações da lei e no período do processo formulário), pelo qual as partes definiam o objeto litigioso a ser julgado posteriormente pelo iudex; em razão

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Além disso, as partes delimitam consensualmente as questões jurídicas que reputam fundamentais para a solução do mérito. Podem, por exemplo, negociar qual o Direito aplicável ao caso. Observados os pressupostos gerais da negociação proces-sual (art. 190 do CPC), o juiz fica vinculado a essa delimitação.

Nada impede que, nesse acordo, se encartem outros negócios processuais, típi-cos (convenção sobre ônus da prova, art. 373, §§3º e 4º, CPC, p. ex.) ou atípicos (art. 190 do CPC).

Homologado, o acordo se estabiliza e vincula as partes e o juiz, nos exatos termos em que vincula a decisão de saneamento e organização do processo proferida solita-riamente pelo julgador. Essa vinculação estende-se a todos os graus de jurisdição, caso contrário não faria sentido; o propósito é estabilizar o processo dali em diante. Por isso, essa vinculação limita a profundidade do efeito devolutivo de futura apelação: somen-te as questões ali referidas serão devolvidas ao tribunal, caso seja interposta apelação.

Além de poder controlar a validade desse negócio jurídico processual, o que sempre lhe compete, pode o juiz não homologá-lo, caso não haja o mínimo de ve-rossimilhança nos fatos consensualmente havidos como ocorridos20. A necessidade de homologação serve exatamente para que não se imponha ao órgão julgador o dever de julgar com base em um absurdo.

A homologação não impedirá, no entanto, a alegação de fatos que lhe sejam supervenientes: a homologação estabiliza o processo tendo em vista as circunstân-cias que até aquele momento existiam.

4.4. O calendário processual

Neste momento, sobretudo na audiência de saneamento e organização do pro-cesso em cooperação com as partes, pode-se celebrar outro negócio jurídico plurila-teral típico: o calendário processual (art. 191, CPC).

Trata-se de um agendamento para a prática de atos processuais, feito de comum acordo entre partes e órgão julgador e em atenção às particularidades da causa. Nor-malmente relacionado à prática dos atos instrutórios, o calendário também pode ter por objeto atos postulatórios (entrega de razões-finais, p. ex.), decisórios e executórios21.

Disso decorre uma questão importante: como compatibilizar a possibi-lidade de calendário processual, acordado pelo juiz e pelas partes, com o respeito à ordem cronológica de conclusão? Seria possível previr no

dela, estabilizava-se o processo.20. Nesse sentido, Paula Costa e Silva e Leonardo Greco, em palestras apresentadas no seminário “Negócios jurí-

dicos processuais no novo CPC”, realizado na Associação dos Advogados de São Paulo, em 06.03.2015.21. Sobre a calendarização da execução, COSTA, Eduardo José da Fonseca. “A ‘execução negociada’ de políticas

públicas em juízo”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2012, n. 212; DIDIER Jr., Fredie; ZANETI Jr., Hermes. Curso de direito processual civil. 9ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014, v. 4, p. 367-368.

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calendário uma data para a prolação da sentença, sem observância da ordem cronológica?

Como uma convenção processual não pode lesar terceiros, há duas alternativas: a) ou no calendário se marca uma audiência para a prola-ção da sentença, de modo a que se subsuma à regra exceptuadora do inciso I do § 2º do art. 12; b) ou a prolação da sentença não é ato que possa ser inserido no calendário.

O calendário pode ser fixado em qualquer etapa do procedimento. A referência à fase de organização e saneamento do processo se justifica apenas porque a consi-deramos o momento mais propício para esse agendamento. Do mesmo modo, nada impede que o juiz marque uma audiência apenas para negociar com as partes a fixação do calendário22, que pode ser muito útil.

É possível cogitar a possibilidade de o calendário ser feito já na audiên-cia de mediação ou conciliação, que é anterior à defesa (art. 334, CPC). Para que isso aconteça, é preciso que o órgão jurisdicional esteja pre-sente, tendo em vista que o negócio envolve autor, réu e juiz. Sucede que o juiz somente participará se não houver, na comarca, mediador ou conciliador cadastrado (art. 334, §1º, CPC).

Não se admite o calendário por imposição oficial, nem mesmo por força do poder de “velar pela duração razoável do processo” atribuído ao juiz pelo inciso II do art. 139 do CPC. O calendário sempre resultará de acordo entre os três vértices do processo: autor, réu e juiz.

O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais, devidamente justificados (art. 191, §1º, CPC). Isso significa que o juiz fica vinculado ao agendamento – o desrespeito ao que ficou acordado é clara hipótese de cabimento de representação contra o juiz por excesso de prazo (art. 235, CPC).

Dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato processual ou a reali-zação de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário (art. 191, §2º, CPC) – essa é a sua principal utilidade: a economia processual que ele gera, além de eliminação de “tempos mortos”, que costumam aparecer entre a determinação de uma intimação pelo juiz e a sua concretização23. Além de ser instrumento para a

22. Assim, enunciado n. 299 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “O juiz pode designar audiência também (ou só) com objetivo de ajustar com as partes a fixação de calendário para fase de instrução e decisão”. Consi-derando contraproducente essa medida, pela ótica da aceleração do processo, PICOZZA, Elisa. “Il calendario del processo”. Rivista di Diritto Processuale. Milano: CDEAM, 2009, LXIV, n. 6, p. 1.654. Para a autora, é possível, com base no direito italiano, calendário por determinação oficial; no Brasil, o calendário é sempre negocial.

23. O instituto foi inspirado no direito estrangeiro, sobretudo o francês. A observação de Remo Caponi sobre o tema é bem interessante: “Quem analisou esta experiência constata que o conteúdo destes acordos é muito variado de uma sede judiciária para outra, mas geralmente apresenta muitas vantagens, sobretudo para os advogados, que conhecem precisamente quando a causa será tratada e não são expostos a surpresas, com

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aceleração do processo, o calendário processual é técnica que serve à organização e à previsibilidade do processo24.

O calendário previsto no art. 191 não se confunde com o calendário da perícia, que pode ser imposto pelo juiz na decisão de saneamento e organização do proces-so, nos termos do art. 357, §8º. O calendário para a perícia pode ser determinado pelo juiz e refere-se apenas à realização da perícia; nesse caso, exatamente por ser imposto pelo juiz, não há dispensa de intimação das partes acerca da realiza-ção dos atos periciais agendados. O calendário regulado pelo art. 191 é diferente: a) resulta de um acordo plurilateral; b) pode ter por objeto, a princípio, qualquer ato processual; c), não se restringe necessariamente à prática de um ato (embora isso possa acontecer); d) dispensa as intimações processuais respectivas. Nada impede, porém, que, no calendário geral, haja também a calendarização da perícia.

As partes precisam ser capazes para a celebração deste acordo. Vale aqui tudo o quanto se disse sobre a capacidade processual negocial, no capítulo sobre a teoria dos fatos jurídicos processuais.

4.5. Eficácia preclusiva da decisão de saneamento e de organização do proces-so em relação ao reexame das questões que podem ser decididas a qualquer tempo pelo órgão jurisdicional

4.5.1. Consideração introdutória

Conforme já se viu, a decisão de saneamento e organização do processo, uma vez estabilizada, vincula as partes e o juiz – por isso, ela é também um estímulo à organização consensual do processo.

Este item tem o objetivo de examinar a seguinte questão: o juízo de admissibi-lidade positivo do processo, que se costuma fazer na decisão de saneamento, tem eficácia preclusiva? Proferido o juízo de admissibilidade positivo, é possível que a questão decidida possa ser reexaminada, ainda no mesmo processo?

A doutrina não costuma atentar para uma circunstância bastante relevante: con-cluindo pela admissibilidade ou inadmissibilidade, o juízo que o magistrado faça so-bre a validade do procedimento é o mesmo, não se altera de acordo com a conclusão alcançada. Se o juízo de admissibilidade é uma decisão (e parece indiscutível que o seja), positivo ou negativo, pouco importa, deverá submeter-se à preclusão. É o que ora se defende. As razões serão examinadas no item seguinte.

notável economia de tempo e um melhor emprego de energias”. (CAPONI, Remo. “Autonomia privada e pro-cesso civil: os acordos processuais”. Pedro Gomes de Queiroz (trad.) Revista de Processo. São Paulo: RT, 2014, n. 228, p. 370; “Autonomia privata e processo civile: gli accordi processuali”. Civil Procedure Review, v. 1, n. 2, 2010, p. 52, disponível em http://www.civilprocedurereview.com, consultado em 16.04.2014).

24. PICOZZA, Elisa. “Il calendario del processo”. Rivista di Diritto Processuale. Milano: CDEAM, 2009, LXIV, n. 6, p. 1.652.

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4.5.2. O juízo de admissibilidade positivo e a preclusão.

Prevalece, na doutrina brasileira, a concepção de que a decisão judicial que reconhece a presença dos requisitos de admissibilidade do processo (a decisão de saneamento e organização do processo, pela qual o magistrado declara a regularida-de do processo) não se submete à preclusão25 : enquanto pendente o processo, será sempre possível o controle ex officio dos requisitos de admissibilidade, inclusive com o reexame daqueles que já houverem sido objeto de decisão judicial.

O fundamento legal dessa concepção é o § 3º do art. 485, que teria imunizado as decisões sobre os requisitos de admissibilidade do processo à preclusão. Afirma-se que o enunciado n. 424 da súmula do STF,26 embora ainda em vigor, não se aplicaria a esse tipo de questão.27 Fala-se que não se pode cogitar preclusão para as matérias que podem dar ensejo à ação rescisória.

Não é essa a concepção adotada neste Curso28.

25. Adotando essa concepção, valiosa a leitura de NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Preclusões para o juiz. São Paulo: Método, 2004, p. 233-255, em que há bela resenha da doutrina brasileira sobre o tema. Seguem essa linha, entre outros: LACERDA, Galeno. Despacho saneador. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1953, p. 162-168; FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 435-436; NERY Jr., Nelson e NERY, Rosa. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 8 ed. São Paulo: RT, 2004, p. 183; TUCCI, José Rogério Cruz e. “Sobre a eficácia preclusiva da decisão declaratória de saneamento”. Saneamento do processo. Estudos em homenagem ao Prof. Galeno Lacerda. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (org.). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 275-290; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 5 ed. São Paulo: RT, 2004, p. 242; ALVIM, José Manoel. Manual de Direito Processual Civil. 8 ed. São Paulo: RT, 2003, v. 2, p. 393; ARAÚJO, Mauro Alves de. Extinção do processo – saneamento. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 180; TALAMINI, Eduardo. “Saneamento do processo”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 1997, n. 86, p. 102-104; WAMBIER, Luiz Rodrigues. “Despacho saneador irrecorrido – possibilidade de o juiz decidir contrariamente na sentença”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 1992, n. 67, p. 227-231; SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de direito processual civil. 5 ed. São Paulo: RT, 2000, v. 1, p. 211; ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. “Preclusão (Processo civil)”. Saneamento do processo. Estudos em homenagem ao Prof. Galeno Lacerda. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (org.). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 173-174; ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: RT, 1979, p. 155; GONÇALVES, Marcus Vinícius. Novo Curso de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 1, p. 248-249; MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 3 ed. São Paulo: RT, 2004, p. 667; SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de Direito Processual Civil. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 405-406; CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 9 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, v. 1, p. 364-365; MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2005, v. 1, p. 246.

26. “Transita em julgado o despacho saneador de que não houve recurso, excluídas as questões deixadas, explí-cita ou implicitamente, para a sentença”.

27. STJ, 4ª T., REsp 343750-MG, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 21.05.2002, DJ de 10.02.2003, p. 215.28. Adota-se, em parte, o posicionamento de Barbosa Moreira (O novo processo civil brasileiro. 22 ed. Rio de Ja-

neiro: Forense, 2002, p. 54). Além desse autor, outros defendem a eficácia preclusiva da decisão sobre questão de admissibilidade do processo: PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 500 e segs.; CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 1998, v. 1, p. 456-457; LIEBMAN, Enrico Tullio. Anotações às Instituições de Direito Pro-cessual Civil de Giuseppe Chiovenda. Campinas: Bookseller, 1998, v. 1, p. 456, nota 225; COSTA, Alfredo Araújo Lopes da. Direito Processual Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: José Konfino, 1946, v. 3, p. 109-111; MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1974, v. 2, p. 166-172; GOMES, Fábio Luiz. Co-mentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2000, v. 3, p. 46; MALACHINI, Edson Ribas. “Do julgamento conforme o estado do processo”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 1977, n. 6, p. 107-108; NUNES, Dierle José

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a) Em primeiro lugar, convém precisar a correta interpretação que se deve dar ao enunciado do § 3º do art. 485 do CPC. O que ali se permite é o conhecimento, a qualquer tempo, das questões relacionadas à admissibilidade do processo – não há preclusão para a verificação de tais questões, que podem ser conhecidas ex officio, até o trânsito em julgado da decisão final, mesmo pelos tribunais.

Mas não há qualquer referência no texto legal à inexistência de preclusão em torno das questões já decididas.

As questões do §3º do art. 485 podem ser conhecidas a qualquer tempo; o juiz pode controlar a regularidade do processo, mas desde que ainda esteja pendente e que não tenha havido preclusão a respeito.

Não se permite que o tribunal, no julgamento de um recurso, reveja questão que já fora anteriormente decidida, mesmo que se trate de questão afeta à admissi-bilidade do processo, em relação à qual se operou a preclusão. O que se permite ao tribunal é conhecer, mesmo sem provocação, das questões relativas à admissibilidade do processo, respeitada, porém, a preclusão.

Parece haver uma confusão entre a possibilidade de conhecimento ex officio de tais questões, fato indiscutível, com a possibilidade de decidir de novo questões já decididas, mesmo as que poderiam ter sido conhecidas de-ofício. São coisas diversas: a cognoscibilidade ex officio de tais questões significa, tão-somente, que elas podem ser examinadas pelo Judiciário sem a provocação das partes, o que torna irrelevante o momento em que são apreciadas. Não há preclusão para o exame das questões, enquanto pendente o processo, mas há preclusão para o reexame.

b) A preclusão aqui defendida obviamente não se opera tendo em vista fato superveniente. Conforme já se disse, é possível que, por fato superveniente, deixe de existir um requisito de admissibilidade do processo (exemplos: incompetência absolu-ta superveniente e perda da capacidade processual). Exatamente por tratar-se de fato superveniente, a anterior decisão que reconheceu a regularidade do processo não lhe diz respeito, impondo-se nova decisão, que terá outro objeto: a questão nova.29

Não se deve confundir a possibilidade de controle a qualquer tempo da regula-ridade do processo com a inexistência de preclusão a respeito. A confusão é parecida com aquela que se faz em relação à coisa julgada da sentença de alimentos: porque fatos supervenientes podem alterar a realidade sobre que incidiu a primeira sentença, nova decisão deve ser proferida, que cuide desta nova realidade. Isso não retira a força da coisa julgada, que indiscutivelmente recaiu sobre a primeira decisão.

Coelho. “Preclusão como fator de estruturação do procedimento”. Estudos continuados de Teoria do Processo. Rosemiro Pereira Leal (coord.). Porto Alegre: Síntese, 2004, v. 4, p. 203-205.

29. Assim, TUCCI, Rogério Lauria. Do julgamento conforme o estado do processo. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1975, p. 163-164.

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c) O art. 505 do CPC é peremptório ao prescrever que nenhum juiz decidirá de novo as questões já decididas – “precisamente por falar em nenhum juiz o texto dessa disposição abrange também o juiz da causa, manifestamente compreendido na generalidade do advérbio”.30 Esse artigo também se aplica às decisões interlocu-tórias.31 O art. 507 do CPC determina: é defeso à parte discutir, no curso do processo, as questões já decididas, a cujo respeito se operou a preclusão. Nada há em tais artigos que leve à conclusão de que as questões de admissibilidade, mesmo já de-cididas, podem ser rediscutidas.

d) A decisão de saneamento pode ser impugnada na apelação (§1º do art. 1.009, CPC), ressalvada a existência de algum conteúdo que permita a impugnação imediata por agravo de instrumento (art. 1.015, CPC).

Como bem apontou Calmon de Passos, se a decisão é recorrível, não se pode cogitar, no direito brasileiro, a possibilidade de reexame das questões já decididas.32 Se há possibilidade de recurso, há possibilidade de preclusão, não somente para as partes, mas também para o juiz.33

Se a parte não agrava ou apela, conforme o caso, da decisão que resolve uma questão de admissibilidade, há preclusão: não pode o tribunal, ao julgar a apelação interposta contra outras questões, redecidir aquelas cuja solução não fora impugnada.

f) Por imposição do dever da motivação (art. 93, IX, CF/1988; arts. 11 e 489, §1º, CPC), a decisão sobre a validade do procedimento deve ser expressa: não se admite a preclusão do exame de questões implicitamente decididas, até porque não se pode admitir decisão implícita.34 A preclusão somente pode operar-se em relação às questões decididas contra as quais ou não houve interposição de agravo de ins-trumento, se couber, ou de apelação, ou, embora tenha sido interposto, o recurso tenha sido rejeitado.35

30. ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. “Preclusão (Processo civil)”, cit., p. 169.31. ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. “Preclusão (Processo civil)”, cit., p. 169-170.32. Comentários ao Código de Processo Civil. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 3, p. 500.33. Por isso há quem defenda a irrecorribilidade das decisões interlocutórias relacionadas a essas questões: AR-

MELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: RT, 1979, p. 155; JORGE, Flávio Cheim. A nova reforma processual. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 176.

34. TALAMINI, Eduardo. “Saneamento do processo”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 1997, n. 86, p. 103; WAM-BIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 5ª ed. São Paulo, RT, 2004, p. 34.

35. Neste ponto, diverge-se de Calmon de Passos, que admite a preclusão, para o juiz, do exame das questões implicitamente decididas na fase de saneamento (Comentários ao Código de Processo Civil, 9ª ed., cit., p. 500-501). O autor, porém, reconhece que nestes casos não há preclusão do exame da questão para o órgão de segundo grau (ob. cit., p. 504). Não se aceita a conclusão de Barbosa Moreira, de que haveria preclusão “das questões não decididas – desde que antes suscitadas ou simplesmente suscitáveis, ou apreciáveis de ofício – cuja solução cabia no despacho saneador...” (O novo processo civil brasileiro. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 54.) Já que não houve decisão, não se pode falar de preclusão.

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Assim, não há preclusão se o magistrado deixa, na decisão saneadora, ainda que indevidamente, para examinar as questões de admissibilidade por ocasião da sentença.36

f) A função principal da decisão de saneamento e organização do processo é a estabilização desse mesmo processo. Ela serve exatamente para evitar futura mar-cha-a-ré processual. Negar eficácia preclusiva à decisão que reputa presentes pres-supostos processuais de validade é interpretar o Código de modo disfuncional: dá-se ao texto normativo interpretação oposta à função que o instituto a ser aplicado busca alcançar.

g) Há um dado curioso nesta discussão: não se nega a existência de preclusão em torno das questões de mérito já decididas (acolhimento da alegação de prescrição em relação a um dos pedidos, por exemplo), mas, em relação às questões de admis-sibilidade, se permite a rediscussão a qualquer tempo. Dá-se a essas últimas um tra-tamento diferenciado, como se fossem as questões mais relevantes a ser resolvidas pelo Judiciário, que estaria autorizado, mesmo já se tendo manifestado a respeito, a voltar a discutir o tema e concluir pela inadmissibilidade do processo.

Parece haver uma intenção não-revelada de permitir sempre a possibilidade do não-enfrentamento do mérito, como se isso fosse o desejável, como se isso fosse o mais importante – ignorando o princípio da primazia da decisão de mérito, previsto no art. 4º do CPC.

Bem pensadas as coisas, se o caso é de não existir preclusão, que o seja para as questões de mérito, pois assim se permitiria a revisão de decisões equivocadas ou injustas. Em relação a elas, porém, há indiscutivelmente a coisa julgada. Se há limite para o reexame das questões de mérito (as questões de fundo, o objeto litigioso, o objeto do procedimento, a razão de ser do processo), que deve realmente existir, pois corolário do princípio da segurança jurídica, como não o há em relação a questões processuais já decididas? Por que em relação a elas se permite a instabilidade?

Não há razão para esse tratamento diferenciado. Ao contrário, a preclusão justi-fica-se muito mais em relação às questões processuais. É que, solucionada a questão sobre a regularidade do processo, e ressalvados os fatos supervenientes, ao Poder Judiciário somente restaria o exame do mérito da causa. Isso é positivo, pois resolver o litígio é a tarefa principal da atividade jurisdicional.

h) Esse posicionamento, tomado ao pé-da-letra, ainda gera situações absurdas.

Será, realmente, que, arguido o impedimento (falta de requisito processual, que autoriza inclusive ação rescisória), com decisão do tribunal a respeito, ainda assim

36. Neste sentido, corretamente, MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1974, v. 2, p. 166-172; MALACHINI, Edson Ribas. “Do julgamento conforme o estado do processo”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 1977, n. 6, p. 107-108.

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F r e d i e d i d i e r J r .

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seria possível o reexame da matéria, em outra oportunidade, por esse mesmo tribu-nal? Será que, após o processamento desse incidente, que suspende o andamento do processo e em que se permite a interposição de recursos, seria possível ao litigante arguir a parcialidade do magistrado novamente, pelas mesmas razões, porque não haveria preclusão? Formulam-se as mesmas perguntas, mutatis mutandis, em relação a qualquer outro “pressuposto processual”, pois a falta de qualquer deles autoriza o ajuizamento de ação rescisória (incisos II e IV, especificamente, e o inciso V, generica-mente, todos do art. 966 do CPC).

A circunstância de a questão de admissibilidade poder ensejar ação rescisória não é suficiente para que se impeça a preclusão da decisão judicial a seu respeito. É que o fato de a questão ser decidida no processo originário não impede a propositura da ação rescisória; ou seja, o fundamento para que a questão não se submeta à pre-clusão é bem frágil: permite-se a discussão da questão processual a qualquer tempo, mas não se proíbe, a despeito disso, o ajuizamento da rescisória. A prévia discussão da questão no processo originário não é obstáculo ao ajuizamento da ação autônoma de impugnação.37

Enfim, adotar essa postura é comprometer totalmente a segurança jurídica, além de não se conferir o mínimo de respeitabilidade à decisão judicial sobre questões processuais.38

i) Muitos dos doutrinadores, que defendem a inexistência de preclusão sobre a regularidade do processo (juízo de admissibilidade positivo), seguem orientação diversa em relação ao juízo de admissibilidade negativo. Nesse caso, extinto o pro-cesso pela falta de um “pressuposto processual”, a demanda somente poderia ser reproposta se o defeito fosse corrigido, ou seja, a primeira decisão haveria de ser respeitada, tendo, pois, eficácia preclusiva.

Esse posicionamento foi, aliás, adotado expressamente pelo CPC, no art. 486, §1º, conforme será examinado no capítulo sobre a extinção do processo, neste volume do Curso.

37. Há entendimento, inclusive, em sentido oposto. Segundo o n. 298 da súmula do Tribunal Superior do Tra-balho, o pré-questionamento (o prévio debate da questão) é pressuposto de cabimento da ação rescisória por expressa violação da lei: “A conclusão acerca da ocorrência de violação literal de lei pressupõe pro-nunciamento explícito na sentença rescindenda, sobre a matéria veiculada”. Também neste sentido, STJ, Primeira Seção, AR n. 1.196, rel. p/ acórdão Min. Eliana Calmon, j. 26.03.2003, DJ de 13.09.2004, p. 163. Em outro sentido, não reputando o pré-questionamento um pressuposto de cabimento da ação rescisória, STJ, 5ª T., REsp n. 468.229/SC, rel. Min. Felix Fischer, j. 08.06.2004, DJ de 28.06.2004, p. 384.

38. “Com efeito, inominado absurdo configuraria, sem mais profunda indagação, o fato de, por exemplo, ter o juiz afirmado, quando do saneamento do processo, o interesse processual do autor e, todavia, voltar atrás, posteriormente, em virtude da solicitação do réu, ou mesmo ex officio, e à míngua de qualquer recurso, pro-nunciando-se outra vez sobre matéria já preclusa, imutável dada a formação de coisa julgada formal, e assim afrontando o disposto no art. 473 do Código”. (TUCCI, Rogério Lauria. Do julgamento conforme o estado do processo. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1975, p. 163).

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Páin rN tNá r t S P á N ã ru rNtáN S N J S ãetuNNoi áiNeiáuN i N S otNi Ni Páiá N S Si

A postura revela incoerência: ou a decisão sobre a admissibilidade tem eficácia preclusiva, ou não a tem; essa eficácia não pode ser secundum eventum litis.

O CPC reconheceu a eficácia preclusiva da decisão que reconhece a falta de algum pressuposto processual (art. 486, §1º, CPC). A interpretação de que a decisão que reconhece a presença de pressupostos processuais seria insuscetível de eficácia preclusiva é contrária à unidade do Código; não é sistêmica. Viola, assim, o princípio elementar de interpretação de um Código: o princípio da unidade do Código. O Código deve ser interpretado como um todo.

O art. 507 do CPC corresponde ao art. 473 do CPC-1973.