8
Cadernos Benjaminianos | Augusto Leite Cadernos Benjaminianos, n. 5, Belo Horizonte, jan.-jun. 2012, página 1-8 1 © Cadernos Benjaminianos ISSN 2179-8478 Hospitalidade linguística e tradução: digressões acerca da tarefa do tradutor Augusto Leite, UFMG Resumo: O presente artigo busca contribuir para a discussão do texto “A tarefa do tradutor” de Walter Benjamin, a partir da leitura do filósofo francês Paul Ricœur do texto de Benjamin em questão. Pretende-se desenvolver, ainda, as implicações teóricas das propostas contidas no texto sobre a tarefa do tradutor, particularmente a ideia de língua pura reine Sprache. Palavras-chave: Benjamin; tradução; língua pura. Aus beiden Sprachen baut er etwas auf und kann gemeinhin schon von Glück sagen, wenn sein Gerüst ein wenig länger als ein Kartenhaus sich hält. (BENJAMIN, 1991, vol. III, p. 40; grifo nosso) [A partir de ambas as línguas ele está construindo algo; e pode dizer ainda sobre felicidade se sua espinha dorsal sustém algo mais que um castelo de cartas.] O ensaio “A tarefa do tradutor” 1 de Walter Benjamin é talvez um dos mais comentados textos de sua juventude. Nele, assertivas sobre o caráter messiânico da língua pura, ou língua da verdade, expressam com grande intensidade o teor teológico de sua teoria da linguagem. Esse caráter messiânico é comumente entendido como aquele que expressa uma afinidade meta-histórica das línguas e assegura a realização integral dessa afinidade em uma língua futura, que redimiria as línguas naturais de suas falibilidades. Existiria uma intimidade entre as línguas anunciadora da língua pura que, antes da confusão entre as línguas que se averigua, era a língua que guardava a verdade, injustiçada pelas decadentes línguas naturais contemporâneas. Porém, seria possível compreender de outra maneira esse caráter messiânico da teoria benjaminiana: não enquanto promessa, porvir, mas enquanto realização no presente. Sobre essa fraternidade linguística e a promessa que nela contém, o filósofo Paul Ricœur dedica três pequenos ensaios na compilação Sobre a Tradução. Em “Desafio e Felicidade na Tradução”, “O Paradigma da Tradução” e “Uma ‘Passagem’: traduzir o intraduzível”, Ricœur realiza uma crítica à teoria messiânico-linguística de Benjamin que, de alguma forma, poderia ser uma releitura da mesma. Em “Desafio e Felicidade na Tradução”, Ricœur diz, tomando emprestadas suas próprias palavras, das grandes dificuldades e das pequenas felicidades da tradução. Tradução que, assim como na acepção da tarefa Aufgabe benjaminiana, pode ser um trabalho Arbeit de luto, ou de lembrança, em suas acepções freudianas: luto do original traduzido, e lembrança da perda inerente à tarefa, que também é, justamente, renúncia. A ideia de tradução de Ricœur assume um caráter semelhante à e distante da ideia de tradução de Benjamin no labor de luto do original a partir da recepção de sua tradução. Para compreensão disso, passa-se aqui à apresentação da ideia de tradução ricœuriana.

LEITE_Augusto - Hospitalidade Linguística e Tradução

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Hospitalidade linguistica e tradução em Walter Benjamin e Paul Ricoeur

Citation preview

  • Cadernos Benjaminianos | Augusto Leite

    Cadernos Benjaminianos, n. 5, Belo Horizonte, jan.-jun. 2012, pgina 1-8 1

    Cadernos Benjaminianos ISSN 2179-8478

    Hospitalidade lingustica e traduo: digresses

    acerca da tarefa do tradutor

    Augusto Leite, UFMG

    Resumo: O presente artigo busca contribuir para a discusso do texto A tarefa

    do tradutor de Walter Benjamin, a partir da leitura do filsofo francs Paul

    Ricur do texto de Benjamin em questo. Pretende-se desenvolver, ainda, as

    implicaes tericas das propostas contidas no texto sobre a tarefa do tradutor,

    particularmente a ideia de lngua pura reine Sprache.

    Palavras-chave: Benjamin; traduo; lngua pura.

    Aus beiden Sprachen baut er etwas auf und kann gemeinhin schon von Glck

    sagen, wenn sein Gerst ein wenig lnger als ein Kartenhaus sich hlt.

    (BENJAMIN, 1991, vol. III, p. 40; grifo nosso)

    [A partir de ambas as lnguas ele est construindo algo; e pode dizer ainda

    sobre felicidade se sua espinha dorsal sustm algo mais que um castelo de

    cartas.]

    O ensaio A tarefa do tradutor1 de Walter Benjamin talvez um dos mais

    comentados textos de sua juventude. Nele, assertivas sobre o carter messinico da

    lngua pura, ou lngua da verdade, expressam com grande intensidade o teor teolgico de

    sua teoria da linguagem. Esse carter messinico comumente entendido como aquele

    que expressa uma afinidade meta-histrica das lnguas e assegura a realizao integral

    dessa afinidade em uma lngua futura, que redimiria as lnguas naturais de suas

    falibilidades. Existiria uma intimidade entre as lnguas anunciadora da lngua pura que,

    antes da confuso entre as lnguas que se averigua, era a lngua que guardava a verdade,

    injustiada pelas decadentes lnguas naturais contemporneas. Porm, seria possvel

    compreender de outra maneira esse carter messinico da teoria benjaminiana: no

    enquanto promessa, porvir, mas enquanto realizao no presente.

    Sobre essa fraternidade lingustica e a promessa que nela contm, o filsofo Paul

    Ricur dedica trs pequenos ensaios na compilao Sobre a Traduo. Em Desafio e

    Felicidade na Traduo, O Paradigma da Traduo e Uma Passagem: traduzir o

    intraduzvel, Ricur realiza uma crtica teoria messinico-lingustica de Benjamin

    que, de alguma forma, poderia ser uma releitura da mesma.

    Em Desafio e Felicidade na Traduo, Ricur diz, tomando emprestadas suas

    prprias palavras, das grandes dificuldades e das pequenas felicidades da traduo.

    Traduo que, assim como na acepo da tarefa Aufgabe benjaminiana, pode ser um

    trabalho Arbeit de luto, ou de lembrana, em suas acepes freudianas: luto do

    original traduzido, e lembrana da perda inerente tarefa, que tambm , justamente,

    renncia. A ideia de traduo de Ricur assume um carter semelhante e distante da

    ideia de traduo de Benjamin no labor de luto do original a partir da recepo de sua

    traduo. Para compreenso disso, passa-se aqui apresentao da ideia de traduo

    ricuriana.

  • Cadernos Benjaminianos | Augusto Leite

    Cadernos Benjaminianos, n. 5, Belo Horizonte, jan.-jun. 2012, pgina 1-8 2

    Cadernos Benjaminianos ISSN 2179-8478

    A partir da reflexo sobre o ensaio Cultura e traduo na Alemanha romntica, de

    Antoine Berman, Ricur, inicialmente, problematiza a figura do estrangeiro. Segundo

    o filsofo francs, dois parceiros so de fato colocados em relao pelo ato de traduzir,

    o estrangeiro [...] e o leitor2; entre esses dois, averiguasse o tradutor. O estrangeiro seria

    a figura original, aquele que levado at a presena do leitor, ento, pelo trabalho do

    tradutor. Para tanto, esse tradutor, o meio entre esses dois, realiza um trabalho, uma

    tarefa-renncia, na qual tanto autor vai at o leitor, quanto leitor vai at o autor. Como na

    mxima de Friedrich Schleiermacher, lembrada por Ricur, que diz: levar o leitor ao

    autor, levar o autor ao leitor: o original e o traduzido se encontram nesse terceiro

    plano, o plano da traduo. Nele, no encontro, ocorreria, segundo o raciocnio

    ricuriano, uma resistncia conscincia da perda, tanto da traduo em relao ao

    original, quanto do original em relao traduo.

    Um fantasma de uma traduo perfeita, nas palavras de Ricur, juntamente com os

    lapsos de intraduzibilidade, engendraram um drama trgico no qual aqueles espritos

    totalizantes, tais como Goethe, Schiller, Novalis, so os personagens que estariam em

    busca de uma potica da traduo universal, absoluta. Os textos de filosofia e,

    especialmente, os de poesia eram alvo de teorias e mais teorias sobre a traduo,

    justamente por eles, os textos poticos e filosficos, comportarem todos os elementos da

    linguagem: a sonoridade, o significado, o significante e uma semntica rigorosa. Porm,

    esses espritos totalizantes no chegam a nenhuma ideia alm daquelas em que apenas a

    traduo perfeita interessa. Ricur no se interessa pela traduo perfeita. A proposta de

    Ricur passa pela aceitao de que no ato de traduo a perda incontornvel; assim,

    no h traduo perfeita. A traduo comporta, ela mesma, o seu maior defeito: no ser o

    original; e isso no devido a inexorvel perda inerente a ela. Mas, por outro lado,

    precisamente nessa perda em que, paradoxalmente, ganha-se a conscincia da tarefa-

    renncia do tradutor. Seria preciso, segundo Ricur, fazer o luto desse ganho sem perda,

    desse sonho da traduo perfeita onde no h diferena entre original e traduo. O luto,

    ou processo de conscincia da perda, seria um processo-chave para o alcance da

    felicidade na traduo. esse luto da traduo absoluta que faz a felicidade de

    traduzir.3

    Ricur credita teoria benjaminiana da lngua pura essa vontade de alcance de uma

    traduo sem perda; o que, como j dito, tarefa impossvel. O filsofo francs acredita

    que uma conscincia de perda e seu respectivo luto daria relao entre o prprio e o

    estrangeiro o ganho da convivncia, da coexistncia. A proposta final de Ricur, em seus

    contornos ltimos polticos, seria a de uma convivncia na diferena.4 Dessa forma,

    pode-se traduzir

    sem esperana de eliminar a distncia entre equivalncia e adequao total.

    Hospitalidade lingustica portanto, onde o prazer de habitar a lngua do outro

    compensado pelo prazer de receber em casa , a acolhida de sua prpria morada,

    a palavra do estrangeiro. 5

    A crtica de Ricur, assim, dirige-se diretamente ao carter messinico da filosofia da

    linguagem de Walter Benjamin. Nela, o exegeta francs encontra ecos de um

    romantismo, cuja busca pelo absoluto, em suas palavras, no obteve nada seno a

    intolerncia diante da perda. Essa postura intolerante diante da perda que, por um lado,

    sobrevaloriza o original, pode tanto insuflar o amor pelo estrangeiro pelo outro, pelo

    original estrangeiro quanto desvaloriz-lo; a ponto de, em ltimo caso, no aceitar sua

  • Cadernos Benjaminianos | Augusto Leite

    Cadernos Benjaminianos, n. 5, Belo Horizonte, jan.-jun. 2012, pgina 1-8 3

    Cadernos Benjaminianos ISSN 2179-8478

    existncia. traduo perpassa a questo da relao entre o prprio e o outro e, em seu

    estudo, Ricur est atento a isso.

    Em O Paradigma da Traduo, o autor se dedica ao comentrio de uma passagem

    bblica que, tal como a passagem do Gnesis sobre a criao do homem e sua atualidade

    divino-criativa tratada por Benjamin no texto sobre a linguagem em geral e a linguagem

    do homem, sintetiza um problema que, antes de ser prprio literatura judeo-crist, seria

    prprio humanidade. O texto de que se fala a passagem sobre Babel: a construo da

    torre que iria ao encontro de Deus nos cus e, por conseguinte, a confuso que assolou a

    terra aps o prprio Deus destituir a humanidade de sua lngua nica, confundindo as

    lnguas e lbios dos homens. Cita-se:

    Ora, toda a terra tinha uma s lngua e um s idioma.6 E deslocando-se os

    homens para o oriente, acharam um vale na terra de Sinar; e ali habitaram.

    Disseram uns aos outros: Eia pois, faamos tijolos, e queimemo-los bem. Os

    tijolos lhes serviram de pedras e o betume de argamassa. Disseram mais: Eia,

    edifiquemos para ns uma cidade e uma torre cujo cume toque no cu, e

    faamo-nos um nome, para que no sejamos espalhados sobre a face de toda a

    terra. Ento desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos

    homens edificavam; e disse: Eis que o povo um e todos tm uma s lngua; e

    isto o que comeam a fazer; agora no haver restrio para tudo o que eles

    intentarem fazer. Eia, desamos, e confundamos ali a sua linguagem, para que

    no entenda um a lngua do outro. Assim o Senhor os espalhou dali sobre a

    face de toda a terra; e cessaram de edificar a cidade. Por isso se chamou o seu

    nome Babel7, porquanto ali confundiu o Senhor a linguagem de toda a terra, e

    dali o Senhor os espalhou sobre a face de toda a terra.8

    Essa narrativa falaria de uma humanidade que, ao buscar o conhecimento das coisas

    divinas, confunde-se pela ao da prpria divindade. Literal e imediatamente, a passagem

    trata da existncia de uma lngua nica e o surgimento de lnguas diversas aps a ao de

    Deus sobre os homens. A narrativa bablica faria mais sonhar do que propriamente

    conduziria a alguma soluo sobre a questo da dificuldade comunicativa entre as

    lnguas, segundo Ricur. Diferente da corriqueira interpretao da pequena estria, onde

    se v na disperso-confuso uma catstrofe irremedivel, o que Ricur enxerga nessa

    narrativa o chamado do homem em forma de parbola: o chamado traduo.

    A narrativa bablica sintetizaria, para Ricur, a tarefa a que a humanidade fora

    chamada, a traduo. Traduo aqui se encerra no sentido mais amplo de compreenso.

    O livro de George Steiner, Aps Babel, citado algumas vezes por Ricur, sempre se

    presta a enfatizar o fato de que traduzir inerente vida humana; que traduzir seria o

    mesmo que conscientizar-se ou compreender. Ricur no l Babel enquanto mito de

    condenao da humanidade eterna incompreenso e estado blico, mas, sim, como

    constatao de uma separao original, sem condenao. Um mito que aponta para a

    tomada de conscincia do carter diverso e idiossincrtico de cada sujeito, cada lngua,

    cada experincia.

    Sobre a experincia, Ricur no fala propriamente. Porm, ao relacionar os pequenos

    ensaios aqui apreciados com outra obra do autor, a trilogia Tempo e Narrativa, uma

    percepo dessa experincia pode ter lugar. A experincia seria o mediador entre original

    e traduo. O tradutor s traduz porque compartilha uma experincia comum ao original

    e traduo. O tradutor seria aquele quem compreende as experincias que se

    entrecruzam e que, numa linguagem ricuriana, podem ser configuradas numa narrativa

  • Cadernos Benjaminianos | Augusto Leite

    Cadernos Benjaminianos, n. 5, Belo Horizonte, jan.-jun. 2012, pgina 1-8 4

    Cadernos Benjaminianos ISSN 2179-8478

    tal que compreenda tanto o teor de experincia do original quanto o teor de experincia

    da traduo, articulando-as em signos, regras, normas, mediatizveis e coapresentveis.

    Para o filsofo francs, traduzir um projeto tico. A fraternidade entre as lnguas que

    se anuncia no ato da traduo seria mais um esforo dos poliglotas de configurar uma

    experincia limiar chamada traduo, do que um dado a priori, um destino suspenso, a

    espera de se realizar. E a tica da traduo residiria, especialmente, na conscientizao da

    impossibilidade da traduo perfeita; seu luto e a consequente convivncia na diferena.

    Nesse sentido, apesar de a ideia de uma traduo perfeita, propriamente dita, ser

    impossvel, o ato de traduzir guarda essa potencialidade, a de se realizar, mesmo de

    forma falha, e, por outro lado, a de no se realizar plenamente, indicando o caminho da

    hospitalidade lingustica como sada para a questo. Assim, de alguma maneira, a ideia

    benjaminiana messinica de redeno presente na traduo ainda persiste em Ricur.

    As intraduzibilidades so o sinal da possibilidade da traduo e, tambm, de seus

    limites. Os limites da linguagem em geral. A traduo se realizaria nos pequenos

    momentos de felicidade, como diz Ricur. E, essa felicidade, bonheur, mesmo a boa

    hora,9 a hora certa, o momento chave quando a traduzibilidade do texto se encontra com

    sua cognoscibilidade no presente. Apenas nesse breve momento, que a traduo se

    realiza; fugidia, incompleta, imprecisa, dependente da experincia do original e dela

    mesma enquanto traduo. O que se espera, ento, sua conscincia.

    Uma soluo messinica para Babel: hospedar o estrangeiro

    A partir dessa crtica ricuriana teoria da traduo de Walter Benjamin, que suscita

    vrias questes, uma, particularmente, se impe ao trabalho que aqui se realiza, qual seja:

    traduzir ou conviver na diferena?

    Conviver na diferena parece uma sada ideal, visto que as intraduzibilidades, as

    falibilidades, as incomunicabilidades, so tantas! Ora, conviver na diferena priva o

    sujeito de passar pelos desconfortos prprios traduo que, como averiguado, so

    incontornveis. Conviver na diferena exercitaria a tolerncia, virtude diplomtica.

    Conviver na diferena e a consequente tolerncia que dela se pode derivar reservam um

    grande apelo humanstico. Mas como conviver com o outro sem o compreender? Sem a

    traduo, a compreenso entre diferentes impossvel. E a traduo que guarda, ela

    mesma, a chave para a convivncia na diferena, em uma virtude que Ricur nomeou de

    hospitalidade lingustica. Traduzir, assim, , em si, conviver na diferena, quando

    consciente de seus limites. E, em outras palavras, condio ontolgica do conviver na

    diferena: o ato de traduzir.

    Em um mundo bablico, a traduo seria a chave para a compreenso mtua. Visto

    que a comunicao intralingustica j reserva seu teor de incomunicabilidade e a

    comunicao entre lnguas anuncia perigos maiores, como os elencados anteriormente, a

    traduo enquanto compreenso o exerccio que solucionaria, dentro de suas

    possibilidades, essa tenso: a tenso entre o prprio e o estrangeiro. A traduo, assim,

    insere-se nessa tenso como soluo. Ela remarca a afinidade entre as lnguas, lembrando

    que sua possibilidade a prova disso. A traduo torna presente sobre um modo

    somente antecipador, anunciador, quase proftico, uma afinidade que no est jamais

    presente,10 diz Jacques Derrida em seu ensaio Torres de Babel. A traduo, pois,

    acalma a tenso entre as lnguas e seu desentendimento prprio pelo anuncio de suas

    afinidades.

    A leitura que Derrida realiza do ensaio sobre a Tarefa do tradutor atenta a uma

    caracterstica obscura, esotrica, de uma proposio benjaminiana pouco visada, a saber,

  • Cadernos Benjaminianos | Augusto Leite

    Cadernos Benjaminianos, n. 5, Belo Horizonte, jan.-jun. 2012, pgina 1-8 5

    Cadernos Benjaminianos ISSN 2179-8478

    a do carter limiar, intangvel da lngua pura, ou da verdade, que produto do ato de

    traduzir. A lngua da verdade se porta como enigma, intangvel; porm, somente por

    sua existncia que a traduo se torna possvel. Ela no materialmente exprimvel ou

    mesmo poder-se-ia dizer de alguma lgica prpria a ela. No contm uma gramtica, tal

    como a lngua mstica divina de Abrao Abulfia, uma lngua que a referncia realidade

    amlgama da letra ou palavra que nem mesmo a representa, mas ela mesma.

    Aproxima-se da ideia de ideografia Begriffsschrift de Gottlob Frege, lngua que se

    basta por dar a todos os objetos e tropos nomes prprios inconfundveis.

    Se traduzir uma tarefa possvel, visto que poliglotas existem (sem que

    necessariamente eles sejam esquizofrnicos, como sublinha Ricur), a lngua pura seria

    aquela que liga uma lngua a outra, que fornece s duas seu contedo comum; ela limiar

    Schwelle , transio, fluxo.11 Para se apreender tal lngua, a tarefa-renncia deve ser a

    de trabalhar a palavra, sua sintaxe, at o nvel semntico dos sentidos dos enunciados,

    chama a ateno, Benjamin, ele mesmo, no texto sobe a tarefa do tradutor. Ora, ao se

    traduzir uma obra do grego para o portugus, seria preciso apreender as afinidades entre

    as duas lnguas e, por conseguinte, tornar o portugus o mais grego possvel. um

    trabalho que exige o luto daquele intraduzvel e a doao da forma original traduo,

    que, por fim, faz perviver, sobreviver, o original em sua cognoscibilidade na traduo.

    Aquilo que o grego emprestou ao portugus nessa possvel traduo , justamente,

    fragmento da lngua pura, ou da verdade; fragmento das afinidades entre essas duas

    lnguas; sinal da intimidade que elas tm. A, precisamente, reside a lngua pura em seu

    carter propriamente monadolgico, apreensvel como fragmento, apenas; mas um

    fragmento que diz de sua forma total. Vale, no entanto, atentar para o limite aqui

    anunciado, a saber, o da traduo em par. A traduo, para Benjamin, s seria possvel

    em duplas, ou seja, no mais que duas lnguas devem estar envolvidas.

    A tarefa do tradutor, confinada no duelo das lnguas (nunca mais de duas

    lnguas), d lugar somente ao esforo criador (esforo e tendncia mais que

    acabamento, labor artesanal mais que performance de artista), e quando o

    tradutor cria, como um pintor que copia seu modelo ...]12

    A criao tradutora exige que apenas duas lnguas sejam as envolvidas, pois,

    precisamente de uma lngua para a outra a letra, a palavra e a sentena do original se

    recria, se refigura para, ento, na traduo, tornar-se inteligvel. A traduo da traduo

    seria possvel, mas, no comportaria mais o contedo de verdade do original, e, sim, o

    contedo de verdade da traduo do original. A traduo da traduo no revelaria mais

    nenhuma intimidade com o original; ela gasta, vazia daquele contedo de verdade do

    original, segundo Benjamin. Nela j no mais a experincia contida no original a que se

    anuncia, mas a da traduo do original que, como visto, tem o grande defeito de

    simplesmente no ser o original e, dessa forma, comportar outra experincia: a da

    traduo.

    Em relao traduzibilidade intralingustica, a palavra guarda sua precariedade. A

    palavra que oprime o sentido na prpria lngua no cessa de o oprimir at que seja liberta

    da necessidade de dar sentido a algo. Portanto, apenas na lngua pura, no intercurso da

    traduo que ela cessa seu trabalho opressor, livrando-se do fardo de se referir a algo. A

    liberdade que a lngua pura reserva tambm ndice de sua presena na traduo, livre

    por excelncia. A lngua pura, portanto, limiar que se apreende nos fragmentos de

    contedo de verdade anunciados em cada traduo. O limiar uma zona [...] s vezes

    no estritamente definida como deve ser definida a fronteira ; ele lembra fluxos e

  • Cadernos Benjaminianos | Augusto Leite

    Cadernos Benjaminianos, n. 5, Belo Horizonte, jan.-jun. 2012, pgina 1-8 6

    Cadernos Benjaminianos ISSN 2179-8478

    contrafluxos, viagens e desejos,13 explica Jeanne-Marie Gagnebin. O conceito de limiar

    que expressa, em suma, uma transio, um copertencimento, expresso da traduo. O

    limiar, ento, caracteriza-se por se inserir em um intervalo entre o antes e o depois, o

    antes da lngua original e o depois da traduo; esse hiato que, nele, exercita a

    compreenso prpria tarefa-renncia do tradutor.

    A lngua pura, ou da verdade, copertenceria, a partir do entendimento de seu carter

    limiar, a todas as lnguas. E nelas, ela est. Nelas, a lngua pura se estende em fragmentos

    apresentveis na e pela traduo. Nessa traduo, que seria nada mais que o trabalho de

    hospedar o estrangeiro, hospedagem lingustica, realizar-se-ia a conscincia desse

    copertencimento, uma pertena recproca Zusammengehrigkeit14 que nada mais

    que compreenso. Partindo da ideia de que a lngua pura benjaminiana no pressupe

    uma fraternidade universal a priori entre as lnguas, mas anuncia sua criao,

    artificialmente, pela via da traduo, essa, sim, possibilidade e propriedade a priori das

    lnguas, poder-se-ia ter na traduo, nela mesma, a prpria realizao de um ideal

    messinico; ideal no qual o teor fraternal das lnguas no seria uma mera promessa, no

    mbito da crena, mas realidade.

    Abstract: This paper aims to contribute to the discussion of Walter Benjamins

    text "The Task of the Translator" through the reading of the french philosopher

    Paul Ricur. It is intended to develop also the theoretical implications of the

    proposals contained in the text on the translator's task, particularly the idea of

    pure language - reine Sprache. Keywords: Benjamin; Translation; Pure language.

    Referncias bibliogrficas

    BENJAMIN, Walter; TIEDEMANN, Rolf; SCHWEPPENHUSER, Hermann.

    Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991. 7 v.

    BENJAMIN, Walter. Origem do drama trgico alemo. Trad. Joo Barrento. Belo

    Horizonte: Autntica, 2011.

    BENJAMIN, Walter; TIEDEMANN, Rolf; BOLLE, Willi; MATOS, Olgaria C. F.;

    ARON, Irene. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; So Paulo: Imprensa Oficial

    do Estado de So Paulo, 2006.

    BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem: (1915-1921). So Paulo: Duas

    Cidades: Ed. 34, 2011.

    BENJAMIN, Walter. The correspondence of Walter Benjamin, 1910-1940. Chicago:

    University of Chicago Press, c1994.

    DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

  • Cadernos Benjaminianos | Augusto Leite

    Cadernos Benjaminianos, n. 5, Belo Horizonte, jan.-jun. 2012, pgina 1-8 7

    Cadernos Benjaminianos ISSN 2179-8478

    GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Histria e narrao em W. Benjamin. Campinas, SP: So

    Paulo: Perspectiva / FAPESP / UNICAMP, 1994.

    GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Sete aulas sobre linguagem, memoria e historia. Rio de

    Janeiro: Imago, 1997.

    LEVY, Gabriel. Prophecy, Written Language, and the Mimetic Faculty: Benjamins

    Linguistic Mysticism as Cure of the Language Myth. Epoch: The University of

    California Journal for the Study of Religion, v. 24, p. 19-48, 2006.

    LWY, Michael; BRANT, Wanda Nogueira Caldeira.; GAGNEBIN, Jeanne-Marie;

    MULLER, Marcos Lutz. Walter Benjamin: aviso de incndio: uma leitura das teses

    'Sobre o conceito de histria'. So Paulo: Boitempo, 2005.

    MACHADO, Francisco de Ambrosis Pinheiro. Imanncia e histria: a crtica do

    conhecimento em Walter Benjamin. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

    MOSS, Stphane. LAnge de lHistoire. ditions Gallimard, 2006.

    OTTE, Georg; SEDLMAYER-PINTO, Sabrina; CORNELSEN, Elcio Loureiro. Limiares

    e passagens em Walter Benjamin. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

    REIS, Jos Carlos. Histria da 'conscincia histrica' ocidental contempornea: Hegel,

    Nietzsche, Ricur. Belo Horizonte: Autntica, 2011.

    RICOEUR, Paul; LAVELLE, Patrcia. Sobre a traduo. Belo Horizonte: Editora

    UFMG, 2011.

    SCHOLEM, Gershom. O Nome de Deus, a teoria da linguagem e outros estudos de

    cabala e mstica. Judaica II. Ed. Perspectiva: So Paulo, 1999. p. 31-36.

    WITTE, Bernd e CAMPOS, Haroldo de. O que mais importante: a escrita ou o escrito?

    Teoria da linguagem em Walter Benjamin. In: Walter Benjamin. Trad. de Bernd Witte

    por Georg Bernard Sperper. So Paulo: Revista da USP, n. 15, 1992.

    WOHLFARTH, Irvign. On Some Jewish Motifs in Benjamin. In: BENJAMIN, A. (Org.)

    The Problems of Modernity: Adorno and Benjamin, p. 157-215. London: Routledge,

    1989.

    Notas

    1 Die Aufgabe des bersetzers. In: BENJAMIN, Walter; TIEDEMANN, Rolf;

    SCHWEPPENHUSER, Hermann. Gesammelte Schriften. Vol. IV, 1. p 9-21. Traduo

    escolhida em: BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem: (1915-1921). So

    Paulo: Duas Cidades: Ed. 34, 2011.

    2 RICUR. Sobre a traduo. p22.

    3 RICUR. Sobre a traduo. p29.

  • Cadernos Benjaminianos | Augusto Leite

    Cadernos Benjaminianos, n. 5, Belo Horizonte, jan.-jun. 2012, pgina 1-8 8

    Cadernos Benjaminianos ISSN 2179-8478

    4 O professor Jos Carlos Reis, em sua obra Histria da Conscincia Histrica

    Ocidental Contempornea, na qual discute Hegel, Nietzsche e Ricur, e seus respectivos

    projetos de histria, lembra os contornos polticos da proposta ricuriana que se

    posiciona entre a reconciliao total, oferecida pela conscincia absoluta de Hegel, e a

    ruptura total, proposta pela fora-plstica/esquecimento de Nietzsche. Nessa obra

    citada, o historiador avalia Ricur como conciliador. Ver: REIS, Jos Carlos. Histria da

    'conscincia histrica' ocidental contempornea: Hegel, Nietzsche, Ricur. Belo

    Horizonte: Autntica, 2011. p. 318.

    5 RICUR. Sobre a traduo. p. 30.

    6 Saadiah Gaon, estudioso judeo-babilnico medieval, explica que essa mesma lngua

    poderia significar um mesmo ideal, uma mesma ideologia; ou, simplesmente, um mesmo

    discurso.

    7 Derivao de balal que significa misturar at tornar confuso. Essa confuso tal que

    no se pode perceber que essa confuso se passou, pois a origem j se tornou

    inapreensvel.

    8 Gnesis 11: 1 9. Tanakh traduzido da verso hebraica do Mekhon Mamre. Traduo:

    Joo Ferreira de Almeida da Unio Sefardita Hispano-Portuguesa (Israel) com notas do

    Rabino J. de Oliveira. Ver: http://www.judaismo-iberico.org/interlinear/tanakh/

    0111PT.HTM.

    9 Jogo com o vocbulo francs bonheur, realizado por Patrcia Lavelle no prefcio a

    traduo portuguesa dos textos de Ricoeur, Sobre a Traduo. Ali, ela, partindo o

    vocbulo, traduz parte por parte: bon-heur: boa-hora.

    10 DERRIDA. Torres de Babel. p. 44.

    11 BENJAMIN. Passagens. p. 535 (Fragmento O 2a, 1).

    12 DERRIDA. Torres de Babel. p. 62.

    13 OTTE, Georg; SEDLMAYER-PINTO, Sabrina; CORNELSEN, Elcio Loureiro.

    Limiares e passagens em Walter Benjamin. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 14.

    14 Vocbulo utilizado por Benjamin no Prefcio epistemo-crtico para dizer da relao

    intima entre verdade, fenmeno e conceito, na alegoria da constelao e das estrelas j

    anteriormente desenvolvida. Ver: BENJAMIN, Walter; TIEDEMANN, Rolf;

    SCHWEPPENHAUSER, Hermann. Gesammelte Schriften. I,1. p. 215.