Leitura brasileira

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    Da geografia s geo-grafias:um mundo em busca de novas territorialidades

    Carlos Walter Porto Gonalves*

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    queles que j nos viam vivendo futuramente no puro universo virtual das redes,queles que diziam que o horror vivido nesse dia j tinha sido previsto pelos filmesde catstrofe, o dia 11 de setembro [de 2001] fez lembrar, em primeiro lugar, queainda vivemos e trabalhamos em edifcios de ferro, pedra e vidro, cuja resistnciae cujo desgaste nada tm a ver com as telas ou os efeitos especiais, e que, quando

    desabam, desabam de fato.Jacques Rancire

    De epistemes e de territrios

    L

    imite entre saberes, limite entre disciplinas, limite entre pases. Por todo ladose fala que os limites j no so rgidos, que os entes j no so to claros,

    distintos e definidos como recomendara Ren Descartes. Cada vez mais sefala de empresas internacionais, ou transnacionais ou multinacionais, assim como sefala de interdisciplinaridade, transdisciplinaridade ou multidisciplinaridade. Enfim,por todo lado so usados os prefixos inter, trans ou multi indicando que as fronteiras,sejam elas epistmicas, sociolgicas ou geogrfico-polticas, se que podemossepar-las, so mais porosas do que se acreditava.

    Com isso entra em crise toda uma tradio inventada pelos europeus desde aRenascena com Ren Descartes, Galileu Galilei, Francis Bacon, Isaac Newtone Jean Bodin entre outros nomes em torno dos quais se constituiu a base doconhecimento cientfico moderno. Conhecimento moderno esse, diga-se depassagem, que se quer um saber universal e no um saber histrica egeograficamente situado, isto , europeu. Diramos que esconder a provncia

    * Gegrafo e Doutor em Cincias pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Professor doPrograma de Ps-graduao em Geografia da Universidade Federal Fluminense; Autor de vriosartigos e livros entre os mais recentes Geo-grafas: movimientos sociales, nuevas territorialidades ysustentabilidadyAmaznia, Amaznias .

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    geogrfica de sua origem a primeira condio para se apresentar como um saberque se quer universal, isto , aquele que parece no ser de lugar algum, atpico,que, assim, surge negando os mltiplos saberes locais e regionais construdos apartir de mltiplas histrias locais e regionais que se desenvolveram at 1492quando se inicia, ento, aquilo que o filsofo poltico estadunidense ImmanuelWallerstein designar sistema-mundo.

    Assim, o pensamento moderno europeu coloca-se a si prprio como um sabersuperior no mesmo movimento que qualifica todos os outros saberes como locais,regionais ou provincianos. Sabemos como esse movimento de colonizao doconhecimento pelo pensamento moderno europeu se constri numa duplaconfigurao territorial: uma interna aos estados territoriais nascentes, na medidaque o outro, interno, qualificado como provinciano, regional ou que sequer falauma lngua tendo, no mximo, um dialeto; e outra externa na medida que aconstituio da unidade territorial interna se d seja pela expulso do outros dosmouros no caso dos dois primeiros estados territoriais modernos (Portugal eEspanha) ou com o encontro com o outro externo que vai perder suas diferentesqualidades (astecas, maias, guaranis, bantos, ashantis ...) para serem chamados,pelos europeus, por um nome geral indgena ou aborgene que os unifica atodos. ali, todavia, que o europeu se descobre branco para se distinguir do ndioe, depois, se descobre europeu se distinguindo da Amrica inaugurando ochamado novo mundo e, assim, tambm se distinguindo do mundo muulmano.As regies geo-culturais do mundo comeam a se desenhar com suas assimetriascaractersticas civilizado e brbaro (no esqueamos que o brbaro de ontem aEuropa no-romana, bem pode ser o civilizado de hoje).

    O pensamento moderno europeu pouco a pouco vai construir uma geografiaimaginria onde as diferentes qualidades dos diferentes povos e culturas, que1492 ps em assimtrica relao, sero dispostas num continuum linear que vaida natureza cultura, ou melhor, da Amrica e da frica, onde esto os povosprimitivos mais prximos da natureza, Europa, onde est a cultura, acivilizao. E dominar a natureza, sabemos, o fundamento da civilizaomoderna construda pelos europeus sua imagem e semelhana e, para isso, ospovos a serem dominados foram assimilados natureza comeando porconsider-los selvagens que significa, rigorosamente, os que so da selva, logo,aqueles que devem ser dominados pela cultura, pelo homem (europeu, burgus,branco e masculino). V-se, logo, que a inveno do europeu civilizado , aomesmo tempo, a inveno do selvagem e, assim, a inveno da modernidade inseparvel da inveno da colonialidade.

    El xito de la ciencia dio al Estado moderno um modelo legitimador en latoma de decisiones racionales. El descubrimiento de los hechosverdadeiros llevaba a tomar las acciones correctas. En otras palabras, loVerdadero conduca al Bien. La racionalidad se convirti en sinnimo de

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    racionalidad cientfica y el conocimiento fue sinnimo de conocimientocientfico. Otras formas de conocimiento e otras apelaciones a laracionalidad, como el conocimiento prctico agrcola, medicinal oartesanal, fueron considerados de segunda categora (Funtowicz e deMarchi, 2000: 58).

    A universalidade pretendida pelo pensamento moderno europeu se fezabdicando do espao geogrfico concreto de cada dia, lugar da co-existncia dodiverso, onde co-habitam diferentes qualidades animais, plantas, terra, gua,homens e mulheres de carne e osso com as suas desigualdades sociais e suasdiferenas culturais e individuais de humor e de paixes para se abstrairmatemtica onde essas qualidades so postas em suspenso, assim como opensamento se separa da matria. R. D. Laing quem nos lembra que

    ... essa situao provm de algo que ocorreu na conscincia europia napoca de Galileu e Giordano Bruno. Esses dois homens so eptonos de doisparadigmas Bruno, torturado e queimado na fogueira por afirmar que haviaum nmero infinito de mundos; e Galileu, dizendo que o mtodo cientficoconsistia em estudar este mundo como se nele no houvesse conscincia oucriaturas vivas. Galileu chegou a afirmar que somente os fenmenosquantificveis eram admitidos no domnio da cincia. Ele disse: Aquilo queno pode ser medido e quantificado no cientfico; e na cincia ps-galilaica isso passou a significar: o que no pode ser quantificado no real. Esse foi o mais profundo corrompimento da concepo grega danatureza como physis, que algo vivo, sempre em transformao e nodivorciado de ns. O programa de Galileu nos oferece um mundo morto,desvinculado da viso, da audio, do paladar, do tato e do olfato e juntocom isso se relegou a sensibilidade tica e a esttica, os valores, a qualidade,a alma, a conscincia, o esprito. A experincia foi lanada para fora dombito do discurso cientfico. certo que nada modificou tanto o nossomundo nos ltimos quatrocentos anos quanto o audacioso programa deGalileu (R.D. Laing citado por Capra, 1988: 108-9).

    Esse pensamento moderno europeu, hoje em crise, na sua busca de umaverdade objetiva distinguiu objetos claros e definidos, retirou o sujeito1 darelao que, assim, de fora, pelo mtodo cientfico, isto , racional, desvendariaos mistrios da natureza para melhor domin-la. Assim, se ergue todo umconjunto de categorias dualistas caractersticas do pensamento moderno europeunatureza e cultura; sujeito e objeto; matria e esprito; corpo e mente; razo eemoo; indivduo e sociedade; ser e pensamento que, sobretudo depois de

    Heisenberg, com seu princpio de incerteza2, j no se sustenta e se v obrigadoa reconhecer que na Physis alm de leis da natureza, ordem ecausalidade/necessidade h, tambm, indeterminao, acaso e caos; que, alm doconhecimento cientfico, existem outras formas de conhecimento e, mesmo, que

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    o conhecimento est, no mnimo, inscrito na vida (bios)3 e, mais ainda, que essepensamento atomstico-individualista (Gonalves, 1989) que opera pordicotomias mais caracterstico desse pensamento moderno europeu do que dopensamento selvagem, aqui para ficarmos com a expresso de Lvy-Strauss(Lvy-Strauss, 1989).

    O conhecimento do paradigma emergente tende assim a ser umconhecimento no dualista, um conhecimento que se funda na superaodas distines to familiares e bvias que at h pouco considervamosinsubstituveis, tais como natureza/cultura, natural/artificial,vivo/inanimado, matria/mente, observador/observado, subjetivo/objetivo,coletivo/individual, animal/pessoa. Este relativo colapso das distinesdicotmicas repercute-se nas disciplinas cientficas que sobre elas sefundaram. (de Sousa Santos, 1996: 39-40).

    Explicitemos uma tese central que at aqui est subjacente: os paradigmasno caem do cu. Os paradigmas so institudos por sujeitos social, histrica egeograficamente situados e, deste modo, a crise desse paradigma , tambm, acrise da sociedade e dos sujeitos que o instituram (Gonalves, 2001b). No nossurpreendamos, portanto, quando vemos emergir novos paradigmas e junto comeles novos sujeitos que reivindicam um lugar no mundo. Ou, dito de outra forma,esses sujeitos que muitos chamam novos, embora no o sejam tanto4, pem emdebate outras questes, outras relaes, ele(a)s que tiveram que se forjar emsituaes assimtricas de poder mas que nem por isso se anularam e, mais do queresistir, R-Existiram, se reinventaram na sua diferena, assim como o europeu ,tambm, uma inveno na diferena embora na condio de polo dominante nosistema-mundo. Afinal, desde que se deu esse extraordinrio encontro

    moderno-colonial (1492), Etienne la Botie (Botie, 1982) diria mal-encontro,emergiram culturas e povos diferentes (Baraka) mostrando-nos um mundo muitomais diverso do que faz crer o olhar colonial eurocntrico ou que v mais a lgicado capital do que as lgicas dos que a ele resistem.

    Hoje possvel defrontarmo-nos com a emergncia de matrizes deracionalidades outras tecidas a partir de outros modos de agir, pensar e sentir, sejana Amrica Latina, na frica, na sia, entre segmentos sociais no-ocidentaisnos Estados Unidos, no Canad e at mesmo na Europa, com diversas populaesindgenas e de afrodescendentes, que clamam por se afirmar diante de um mundoque se acreditou superior porque baseado num conhecimento cientfico universal(imperial) que colonizou o pensamento cientfico em todo o mundodesqualificando outras formas de conhecimento.

    interessante observar que grande parte desse encontro (mal-encontro)venha a ser questionado a partir de uma categoria a natureza da qual as cinciashumanas e sociais ficaram apartadas e as cincias naturais a dividiram e adissecaram disponibilizando suas descobertas ao capital para que melhor

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    exercesse sua dominao. interessante observar que a descoberta das leis danatureza constitua-se num fundamento objetivo que legitimava a sua dominaoe, deste modo, a ordem social (moderna) que da emanava era uma ordem naturalporque emanada das leis da natureza.

    Deixar fora a natureza tem enormes e graves conseqncias para as cinciassociais, para no dizer para a sociedade mesma. Afinal, significou deixar de foratodo um conjunto de lugares, de regies e de seus povos e culturas que seforjaram a partir de mltiplas matrizes de racionalidade contribuindo, assim, paraa idia de que havia uma nica matriz de racionalidade a europia queresumiria no universo de significaes que co-mandam suas prticas todas ascontradies do mundo moderno e contemporneo (liberalismo-socialismo, porexemplo). Assim, a relao capital-trabalho passou a comandar a dinmicasocietria subestimando o significado da natureza e a importncia dos povos queconstruram suas prticas e significaes numa relao com-a-natureza e no-contra-a-natureza (Serge Moscovici), como a sociedade europia. Na economia,esse debate, por exemplo, se deu desqualificando os pensadores fisiocratasporque defenderiam no s que a natureza fonte de riqueza mas, tambm,porque estariam Quesnay, Turgot e Petit defendendo as classes ligadas agricultura que, por seu turno, estariam condenadas ao desaparecimento em nomedo progresso da indstria e da cincia-tcnica (e da burguesia industrialemergente, se diz menos).

    A natureza volta hoje a ser fonte de intenso debate que pe em xeque maisesse par de categoria dualista do moderno pensamento europeu, qual seja, adicotomia natureza e cultura. A diviso do trabalho cientfico entre as cinciasnaturais e as cincias humanas fica suspensa quando a mudana climtica globaldeixa de ser um tema exclusivo de gegrafos, fsicos e meteorologistas e se tornaobjeto de debate poltico pondo em xeque a atual matriz energtica fossilista visa vis o futuro da humanidade e do planeta. Acrescente-se, ainda, o enormeinteresse que instituies de pesquisa de ponta, como a NASA, vm manifestandopelo elevadssimo ndice de acerto na previso do tempo meteorolgico quefazem peritos das populaes tradicionais do serto semi-rido do nordestebrasileiro,peritos esses que nunca entraram numa escola formal. A diversidadebiolgica torna-se um tema no s biolgico, quase sempre destinado aos grandesgrupos empresariais mas, tambm, tema de interesse daquelas populaes quedetm conhecimentos preciosos sobre espcies animais e vegetais e que hojedisputam os direitos de propriedade intelectual. Como se v ficam indefinidosno s os limites entre as cincias mas, tambm, entre diferentes modos de

    conhecer, j no sendo possvel traar com tanta certeza o limite entre quem sabee quem no sabe.

    E aqui, sabemos, aqueles que at admitem que j no so to rgidos oslimites entre as disciplinas cientficas tal e qual foram sendo institudos no

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    impor que o ser sofista e ser retrico passam ser vistos de modo negativo, apesarde sofista derivar de sabedoria (sofia) e a retrica ser a arte da argumentao, artedo dilogo. So esses novos brbaros, como diria Nietzche, zapatistas,seringueiros, indgenas, descapacitados, mulheres, ecologistas, migrantes, sem-documentos, homossexuais, camponeses, negros, hip hopers, operrios e jovensque voltam cena poltica, que recolocam a gora, isto , o lugar da polticanovamente em debate. Mas para que isso se d, claro, pressupe-se que osinterlocutores sejam a priori considerados qualificados como para o debate, quetenham o direito fala, gora e, para isso, preciso admitir-se que os outrospodem ter razo, mesmo sendo outros, e que a razo habita esse mundo, que elano vem de fora, mas, ao contrrio, que ela se instaura entre os seres mortais quepovoam a physis.

    Cornelius Castoriadis (Castoriadis, 1982) insistia que um importante legadoque os antigos gregos nos haviam deixado reside na idia de que so os prprioshomens e mulheres que criam seu prprio mundo e nesse magma de significaesa razo adquire um lugar destacado. Registre-se que a razo aqui , sempre,passvel de crtica e, por isso e para isso, razo e gora, enquanto locus dessedebate, se pressupem. Nenhuma razo fundamental est livre da crtica racional,at mesmo a razo do Rei-filsofo. Eis uma questo que ora se coloca at mesmopelos fundamentalismos de vrias ordens que nos ameaam de todos os lados e atodos (de Mercado, Islmicos, Destinos Manifestos e quetais).

    Numa poca, como a nossa, em que todos os limites esto sendo postos emcausa preciso recuperar a idia que limite emana de plis, de onde vem apoltica, como nos ensinam os antigos gregos. que plis significavaoriginariamente no a cidade como nos ensinaram mas, sim, o limite, o muro quesepara a cidade do campo. S num segundo momento plis passou a designar acidade, ou seja, o que est contido nos muros, nos limites. Mas no olvidemosque poltica exatamente a arte de definir os limitesix e, assim, para os gregos,polis e poltica se pressupem, assim como cidade e cidadania.

    Os Estados territoriais

    Desde 1648, com a Paz de Westflia, que uma ordem internacional vemsendo instituda consagrando o Estado Territorial como forma geogrfica deorganizao das sociedades modernas e contemporneas. Diga-se, de passagem,que poca ainda no era possvel falar de Estado Nacional posto que o soberanoera o Monarca que se afirmava sobre um espao delimitado por fronteiras

    forjadas por meio de alianas (casamentos) e guerras. Soberano era o Prncipe oEstado que reinava sobre um territrio. poca ainda se acreditava que os Reiseram Reis porque ungidos pelos Deuses (todos com maisculas) e, at mesmo,porque tinham sangue azul. O Estado Territorial Moderno, essa inveno

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    genuinamente europia e constitutiva do mundo moderno-colonial, tem essamarca originria de um Estado que nasce como um poderoso instrumento decontrole da multido (Negri e Hardt, 2001), conforme veremos com mais detalhesadiante. Destaquemos, por ora, que essa nova forma de organizao do espaoinstituda com o Estado Territorial Moderno no por acaso recupera o DireitoRomano e a idia de que os prncipes e os reis eram por si legibus solutus, isto, isentos de restries legais (Anderson, 1984: 27) e, assim, a Razo de Estadose coloca acima dos homens e mulheres comuns, e um direito que se queruniversal, o Romano, se coloca acima dos direitos consuetudinrios das gentes.Aqui temos a Poltica sem a gora, a Cidade sem Cidadania, A Razo de Estadocontra os de baixo. Voltaremos a isso mais adiante.

    Destaque-se, ainda, que 1648 um Tratado entre brancos europeus que estopactuando entre si, em Westflia, uma reordenao jurdica de uma ordem

    internacional que mudara radicalmente com a inundao de metais preciosos quefez explodir a ordem mercantil pelo mundo com a explorao da natureza ouro,prata, especiarias vrias, assim como o acar entre outras matrias por meio daservido indgena e da escravido dos negros vinda da Amrica, da frica e dasia. Este era o Novo Mundo. Os princpios de Westflia esto ainda hojepresentes consagrando uma moderno-colonialidade onde a Europa, de um lado,mantinha a Amrica e grande parte da frica ao sul do Saara sob seu domniocolonial e, de outro lado, o norte da frica e um Oriente, que a Europa no lograradominar, que abrangia o resto do Mundo Antigo (Oriente Prximo, Oriente Mdioe Extremo Oriente), cujos limites, diga-se de passagem, passaram a constituir aEuropa, sempre preocupada com a ameaa do Grande Turco. No difcil ver aquia verdadeira obsesso do novo que vai caracterizar a Europa (notas 4 e 6).

    no interior desse novo containnerde poder (Giddens, 1989) os EstadosTerritoriais Modernos que as lutas sociais por liberdade, igualdade efraternidade tero que se haver nesse mundo moderno-colonial. Essa ordemgeogrfica e poltica instituda pelos protagonistas que se fazem a si prprios pormeio dos Estados Territoriais Nacionais ganha seus contornos mais avanadosrecentemente com a criao da Organizao das Naes Unidas aps a 2a GuerraMundial. que o nacionalismo expansionista imperialista havia levado o mundoa duas guerras em cerca de 20 anos (1914-1918 e 1939-1945) envolvendodiretamente os territrios dos Estados Nacionais situados no polo dominante daordem moderno-colonial e, somente por isso, se entende que tenham sidochamadas Guerras Mundiais. A partir daqui se esboa a configurao de umanova territorialidade que Negri e Hardt chamaro de Imprio, que no reconhecenenhuma externalidade, e se quer, portanto, trans-nacional, global e planetria. A

    partir de ento passamos a uma ordem internacional instvel convivnciacontraditria entre protagonistas que se fazem a si mesmos por meio de distintosregimes de produo territoriais de poder como os Estados Nacionais, oImperialismo e o Imprio instaurando um verdadeiro caos sistmico

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    Trata-se de uma situao de falta total, aparentemente irremedivel, deorganizao. Trata-se de uma situao que surge por haver uma escalada doconflito para alm do limite dentro do qual ele desperta poderosastendncias contrrias, ou porque um novo conjunto de regras e normas decomportamento imposto ou brota um conjunto mais antigo de regras enormas, sem anul-lo, ou por uma combinao dessas duas circunstncias. medida que aumenta o caos sistmico, a demanda de ordem a velhaordem, uma nova ordem, qualquer ordem! tende a se generalizar cada vezmais entre os governantes, os governados, ou ambos. Portanto, qualquerEstado ou grupo de Estados que esteja em condies de atender a essademanda sistmica de ordem tem a oportunidade de se tornarmundialmente hegemnico (Arrighi, 1994: 30).

    Podemos ver agora que a configurao geopoltica da chamada Guerra Fria,conformando um determinado regime de produo de poder reduzido ao binmioCapitalismo e Socialismo ou Estado e Mercado (mais uma par daquelascategorias dualistas que to bem caracterizam o pensamento europeu ocidental),nem de longe conseguia dar conta das mltiplas manifestaes de desejo deliberdade, justia e igualdade que veremos explodir e que vm cena polticaenquanto desplazados, refugiados, migrantes, estes cada vez em maior nmero,ou enquanto movimentos sociais que clamam por demarcao de territrios(camponeses, indgenas, comunidades negras, entre outros); que apontam paraoutras formas de re-ligao (re-ligare) tnico e/ou religiosa; outros que apontampara as desigualdades sociais, de gnero ou, ainda, todo o quadro de dilapidaodas condies naturais da existncia postas em risco por um poderoso sistemacientfico-tcnico-informacional moderno-colonial que j mereceu de alguns

    tericos, como U. Beck (Beck, 1992), a caracterizao de sociedade de risco10

    .Assim, diante do que Arrighi chamou de caos sistmico preciso ver mais

    do que um Estado ou grupo de estados que venha a exercer a hegemonia e, sim,ver que qualquer configurao territorial que venha a se estabelecer enquantouma determinada ordem sistmica ser instituda por protagonistas histrica egeograficamente situados que so esses que esto buscando re-significar o mundoe, assim, toda a questo dos limites que est posta. E limites, j o vimos, aprpria natureza da poltica.

    Vimos como, para os gregos, Cidade e Cidadania ou Polis e Poltica no seexcluem assim como Esprito e Matria, e que so muito menos ntidos do que seacreditara os limites que separam o logos, a razo, da emoo, da paixo. Destemodo, no s a diviso do trabalho cientfico as diversas disciplinas, por

    exemplo est posta em xeque mas, tambm, a relao do conhecimentocientfico com outras formas de conhecimento e, por conseqncia, com aquelesque so portadores desses outros conhecimentos, com todas as implicaes sociale poltica que essa questo nos coloca.

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    So novos territrios epistmicos que esto tendo que ser reinventados juntamente com os novos territrios de existncia material, enfim, so novasformas de significar nosso estar-no-mundo, de grafar a terra, de inventar novasterritorialidades, enfim de geo-grafar.

    Recuperando o espao geogrfico para uma teoria social crtica

    ... a formao dos discursos e a genealogia do saber devem ser analisadasa partir no dos tipos de conscincia, das modalidades da percepo oudas formas de ideologia, mas das tticas e estratgias de poder. Tticas eestratgias que se desdobram atravs das implantaes, das distribuies,dos recortes, dos controles dos territrios, das organizaes de domniosque poderiam constituir uma espcie de geopoltica, por onde minhaspreocupaes encontrariam os mtodos de vocs (gegrafos). H um temaque gostaria de estudar nos prximos anos: o exrcito como matriz deorganizao e de saber a necessidade de estudar a fortaleza, acampanha, o movimento, a colnia, o territrio. A geografia deve estarbem no centro das coisas de que me ocupo

    Michel Foucault

    H na tradio hegemnica do pensamento europeu ocidental umasupremacia do tempo em relao ao espao, sobretudo na moderno-colonialidade.O progresso , quase sempre, algo que se d enquanto mudana qualitativa notempo, da poder dizer-se que aquele povo ou aquela regio atrasado/a ouadiantado/a, como se houvesse um relgio ou, mais precisamente, um cronmetro

    cultural. No s a Europa ocupa o panteo da civilizao diante dos outros povose das outras regies que vivem mais perto do estado de natureza, no continuum j aludido, como, tambm, o progresso est num plo ativo a Europa NorteOcidental, os Estados Unidos, o Japo de onde se expandir, ao longo do tempo,para os outros lugares que, assim, so passivos.

    At mesmo a utopia um no-lugar, ou melhor, um lugar imaginrio que se situanum outro tempo melhor que o nosso tempo, longe do nosso espao do aqui-e-agora.

    O time is money, uma das mximas centrais de uma sociedade mercantil quese institui a partir da Renascena s mais uma das indicaes dasobrevalorizao, nesta sociedade, do tempo sobre o espao. Afinal, no se dizspace is money, muito embora saibamos que no sendo a riqueza redutvel suaexpresso simblica o dinheiro a constituio da sociedade mercantil europia

    implicou, desde o incio, a conexo com outros mundos de vida de onde provinhaa matria tangvel (ouro e prata, por exemplo).

    A produtividade, outro desses categoremas que constitui o magma designificaes do mundo moderno-colonial , tambm, temporal, pois indica um

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    quan tu m produzido numa determinada unidade de tempo, assim como arentabilidade s pode ser apreciada num marco temporal.

    Considere-se, ainda, a velocidade, essa verdadeira obsesso do capitalismomoderno-colonial, e l veremos, tambm, a busca, a todo custo, da supresso doespao pelo tempo. Afinal, se tanto mais veloz quanto mais espao percorremosna mesma unidade de tempo quilmetro/hora, metro/segundo. nesse contextode significaes que faz sentido chamar algum, desqualificando-o, de atrasadoou lento.

    At mesmo a coordenada geogrfica a latitude e a longitude que enquadrao espao o faz por meio do tempo, isto , em grau, minuto e segundo 11.Consideremos, de passagem, que estabelecer o parmetro do tempo do mundopelo meridiano de Greenwich um marco de afirmao de uma Europa Norte

    Ocidental que, assim, se distingue, sob o manto da Cincia, de uma outra Europa,a Mediterrnea Ibrico-genovesa, cuja hegemonia se afirmou, sob a bula de umPapa de Roma, dividindo o mundo pelo meridiano de Tordesilhas. Sempre ummeridiano marcando o mundo, geografando. A partir de ento o relgio12,mquina do tempo e, segundo Lewis Mumford (Mumford, 1973), a primeiramquina verdadeiramente moderna, consagra a hegemonia do tempo comocategoria hegemnica sob o ponto de vista do plo hegemnico da moderno-colonialidade.

    Nem mesmo um pensador marxista da estatura de L. Althusser escapou a essatradio que desqualifica o espao: O recurso s metforas espaciais, de que [...]o presente texto faz uso coloca um problema terico: o das suas condies deexistncia em um discurso com pretenso cientfica. Este problema pode ser

    exposto da maneira seguinte: por que um certo tipo de discurso requernecessariamente o uso de metforas retiradas de discursos no cientficos?(Foucault, 1976).

    Assim, o espao como o aqui-e-agora e, platonicamente, l o c u s d a simperfeies mundanas, parece nos condicionar e, assim, nos impedir de serlivres. A idia da liberdade como um pssaro voando mais uma dessas imagensfortes que privilegia o tempo em detrimento do espao diz-se, o tempo voa,muito embora sejamos obrigados a lembrar, com Imanuel Kant, que o vo dopssaro, por mais que implique o afastamento do espao concreto do dia a diacom suas coaes, s possvel pelo atrito do pssaro com o ar. No h liberdadesem atrito. No se escapa da materialidade voando.

    Associe-se a essa imagem uma outra, igualmente forte na tradio europia

    ocidental, do intelectual que deveria se retirar da vida mundana o espao nossode cada dia- para, pelo pensamento livre de qualquer coao, aceder verdade.So enormes os efeitos que da advm como a sobrevalorizao do trabalhointelectual, abstrato, em relao ao trabalho braal, concreto, assim como toda

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    uma topologia inscrita no discurso poltico entre o superior e o inferior, entre osde baixo e os de cima, entre aqueles que vem longe porque vem do alto(panopticum) e os que tm viso curta porque no tm horizontes amplos.

    O filsofo Michel Foucault teve o mrito de recuperar o significado doespao e o fez no como uma categoria antagnica ao tempo. ele quem nos dizque

    Seria necessrio fazer uma crtica dessa desqualificao do espao que vemreinando h vrias geraes. [...]. O espao era o que estava morto, fixo,no dialtico, imvel. Em compensao o tempo era rico, fecundo, vivo,dialtico.

    A utilizao de termos espaciais tem um qu de anti-histria para todos queconfundem a histria com as velhas formas de evoluo, da continuidade viva, do

    desenvolvimento orgnico, do progresso da conscincia ou do projeto daexistncia. Se algum falasse de espao, porque era contra o tempo. porquenegava a histria, como diziam os tolos, porque era tecnocrata. Eles nocompreendem que, na demarcao das implantaes, das delimitaes, dosrecortes de objetos, das classificaes, das organizaes de domnios, o que sefazia aflorar eram processos histricos certamente de poder. A descrioespacializante dos fatos discursivos desemboca na anlise dos efeitos de poderque lhe esto ligados (Foucault, 1979: 158-9).

    Eis o cerne da questo captado por Foucault a relao ntima entre espao epoder que j havamos adiantado. E aqui toda a questo do poder se revela namedida que as delimitaes, os recortes de objetos, as classificaes, asorganizaes de domnios sendoprocedimentos de poderafirmam o poder ainda

    mais quando a descrio espacializante dos fatos discursivos [que nosproporcionaria] anlise dos efeitos de poder que lhe esto ligados no considerada, como nos disse acima Foucault.

    A geografia foi um desses saberes prticos que renasceu na constituio domundo moderno-colonial antes mesmo de a Geografia se constituir como umsaber com pretenses cientficas no sculo XIX13.A palavra gegrafo aparece em1537 para designar o funcionrio do Rei fazer mapa, ou seja, aquele especialistaem re-presentar o espao, em delimitar as fronteiras para o Estado Territorialnascente. No olvidemos que ao mesmo tempo que o espao se tornafundamental para o controle por parte do Estado Absolutista nascente,exatamente por isso, se coloca muito mais como uma questo prtica, deprocedimentos de controle, do que de interesse terico. O espao, como o poder

    absoluto, no est em discusso.A perspectiva, outro saber que se desenvolve a partir da Renascena como

    olhar matemtico, se quer, por isso, objetiva. Todavia, perspectiva ,paradoxalmente, olhar a partir de um ponto de vista e, com isso, trs desde a

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    origem um sujeito que observa que, assim, se esconde por trs da objetividade daabstrao matemtica. Mais tarde, com a ajuda da estatstica (staat + istik, doalemo) cincia de estado, os gegrafos se encarregaro de proporcionar ascondies para a organizao do espao14 (amnagement du territoire, dizem osfranceses) para que o Estado Territorial Moderno se afirmasse (Gonalves, 1996).

    O espao geogrfico e o territrio se colocam, assim, como conceitos chavespara a compreenso dos complexos processos que ora pem em crise o mundomoderno-colonial at porque so conceitos que historicamente esto ligados aesse mundo que os criou. Afinal, uma das questes centrais que se apresenta nosdias de hoje diz respeito, exatamente, s novas grafias na terra, aos novos limitesterritoriais e, como a definio de limites a prpria essncia da poltica, todaa questo dos protagonistas que est em jogo15. Assim, se impe, de imediato, anecessidade de des-substantivar o espao geogrfico posto que, quase sempre, visto como uma realidade objetiva exterior sociedade.

    A perspectiva tradicional de no considerar a geograficidade do mundo temimplicaes importantes para as cincias sociais, para no dizer para a sociedademesma. O territrio, por exemplo, considerado como um suporte, como se frauma base da sociedade e, como tal, algo sobre o que a sociedade se ergue que,todavia, no tem maiores implicaes sobre o devir. Seus limites fronteirios sovistos como um invlucro externo que delimita a soberania entre Estados comose esse limites externos no contivessem as marcas dos protagonistas internos queos instituram16.

    Ora, preciso considerar que cada sociedade , antes de tudo, um modoprprio de estar-junto (proxemia) o que implica, sempre, que toda sociedade ao

    se instituir enquanto tal o faz construindo o seu-espao no cabendo, pois, umaseparao entre o social e o geogrfico, separao esta que, num segundomomento lgico, serve para estabelecer uma relao de causalidade seja dasociedade para o espao (sociologismo), seja do espao para a sociedade(espacismo, geografismo). O ser social indissocivel do estar.

    A sociedade no seu devir histrico no a-geogrfica. A expresso, por certo,causa um certo estranhamento, embora seja natural dizer-se que o espao quevivemos est impregnado de histria. como se fosse natural falar dahistoricidade do espao geogrfico e no de uma geograficidade da histria.Poderamos, guisa de provocao epistemolgica, afirmar que se a histria sefaz geografia porque, de alguma forma, a geografia uma necessidade histricae, assim, uma condio de sua existncia que, como tal, exerce uma coao que,

    aqui, deve ser tomada ao p da letra, ou seja, como algo que co-age, que age com, co-agente.

    O territrio no simplesmente uma substncia que contm recursos naturaise uma populao (demografia) e, assim, esto dados os elementos para constituir

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    um Estado. O territrio uma categoria espessa que pressupe um espaogeogrfico que apropriado e esse processo de apropriao territorializaoenseja identidades territorialidades que esto inscritas em processos sendo,portanto, dinmicas e mutveis, materializando em cada momento umadeterminada ordem, uma determinada configurao territorial, uma topologiasocial (Bourdieu, 1989). Estamos longe, pois, de um espao-substncia e, sim,diante de uma trade relacional territrio-territorialidade-territorializao. Asociedade se territorializa sendo o territrio sua condio de existncia material. preciso recuperar essa dimenso material sobretudo nesse momento como oque vivemos em que se d cada vez mais importncia dimenso simblica,quase sempre de modo unilateral, como se o simblico se opusesse ao material.

    preciso considerar aqui que a geograficidade vai alm das condiesnaturais, como aceito nas cincias sociais. Com certeza, a natureza faz parte damaterialidade que constitui o espao geogrfico. E aqui no se admite umadistino, to cara ao pensamento dualista dicotomizante, entre o material e osimblico. Consideramos, ao contrrio, que os homens e mulheres s seapropriam daquilo que faz sentido; s se apropriam daquilo a que atribuem umasignificao e, assim, toda apropriao material , ao mesmo tempo, simblica.

    No nos sintamos confortveis com essa observao, como se ela nos tivesselivrado de um empirismo ou de um materialismo vulgar, posto que ela nos colocadiante de enormes desafios tanto tericos como, sobretudo, polticos. Afinal, noestamos habituados a trabalhar com a complexidade da relao entre o material eo simblico e, por isso, ora optamos por um, ora por outro17. Consideremos apalavra gua que, enquanto palavra, o duplo (simblico) da (matria) gua.Embora a palavra seja fundamental para nos relacionarmos socialmente, apalavra gua enquanto tal no pode nos saciar a sede. H uma dimenso damatria que irredutvel ao simblico.

    Por mais que o capital financeiro, dito voltil, queira impor sua lgicasimblica matemtica e abstrata ao mundo h uma materialidade que concerne produo da vida que irredutvel lgica financeira. O Oriente Mdio e, se vagora, a sia Central, so disso a maior expresso na medida que ali dormem asprincipais reservas mundiais de petrleo. Numa outra linguagem, talvez maisesclarecedora, h ali concentrao de energia e, portanto, concentrao decapacidade de trabalho18 como nos ensinam os fsicos. O conhecimento cientficoe a tecnologia para explorar o petrleo, como conhecimento cientfico etecnolgico enquanto tais, no produzem o petrleo na sua materialidade. Naverdade o extrai e somente na medida que tenha o controle jurdico e poltico das

    jazidas e, assim, controle e mobilize o trabalho necessrio para isso e, por a, diante de toda uma territorialidade (no atual contexto, capitalista) que nosencontramos. O conhecimento acerca da molcula de carbono no produz opetrleo que, nas propores existentes nas regies indicadas, foi produzido num

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    tempo geolgico que mineralizou matria viva fotossintetizada h milhes deanos atrs (da dizer-se recurso no-renovvel). Aqueles que detm oconhecimento e o poder econmico de explorao desta riqueza, por mais poderque detenham, e detm bem o sabemos, no tm o poder de produzir o petrleoenquanto tal, nem sua localizao, e essa tentativa de suprimir a geografia pelahistria que toda a histria real e concreta na sua materialidade, na suageograficidade. Toda essa materialidade, todavia, tem tido efeitos dramticos,como os que hoje abalam o mundo, pela centralidade que os combustveis fsseistm no interior do atual complexo industrial e de poder. Deste modo, a geografia,ela mesma sociedade e natureza, teima em co-agir, com sua materialidadeprpria.

    H limites, sempre vagos e imprecisos, claro, entre o material e o simblicoe, por isso, sempre possvel de-signaros entes de modo diferente, dar nomesdistintos, tornados igualmente (socialmente) prprios. E os nomes prprios,sabemos, so apropriaes do mundo, so invenes de mundo. Vejamos o quenos diz a respeito Ernst Cassirer:

    A classificao uma das caractersticas fundamentais da linguagemhumana. O prprio ato de denominao depende de um processo declassificao. Dar nome a um objeto ou a uma ao eqivale a inclu-lo emcerto conceito de classe. Se esta incluso fosse, de uma vez por todas,prescrita pela natureza das coisas, seria nica e uniforme. Entretanto, osnomes que ocorrem na linguagem humana no podem ser interpretadosdesta maneira invarivel. No se destinam a referir-se a coisas substanciais,a entidades independentes que existem por si mesmas. So antesdeterminados por interesses e propsitos humanos, que no so fixos neminvariveis. Nem so feitas ao acaso as classificaes que se encontram nalinguagem humana; baseiam-se em certos elementos constantes, que serepetem, da nossa experincia sensorial. Sem tais repeties no haveriaposio segura nem ponto de apoio para nossos conceitos lingsticos(Cassirer, 1977: 212-3).

    E assim vemos reaparecer a tenso constitutiva (criativa) entre o material e osimblico, entre a linguagem e certos elementos constantes, que se repetem, danossa experincia sensorial19. O gegrafo brasileiro Milton Santos (Santos, 1996)insiste nessa indivisibilidade entre o material e o simblico dizendo que o espaogeogrfico um misto, um hbrido, formado da unio indissocivel de sistemasde objetos e sistemas de aes. Os sistemas de objetos, o espao-materialidade,formam configuraes territoriais, onde a ao dos sujeitos, ao racional ou no,

    vem instalar-se para criar um espao ...O espao geogrfico deve serconsiderado como algo que participa igualmente da condio social e do fsico,um misto, um hbrido. Nesse sentido no h significaes independentes dosobjetos (Santos, 1996: 234 e 70).

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    Estamos assim longe de uma outra caracterstica do pensamento hegemnicono mundo ocidental de se recolher na abstrao matemtica sobrevalorizando aquantidade em detrimento da qualidade. No espao da geometria a quantidadeassinala a variao do mesmo, enquanto o espao geogrfico contm amaterialidade como um atributo onde co-existem os diferentes, diversos entes.Aqui a geografia revela todo o seu desconforto diante do paradigma hegemnicodualista e dicotomizante na medida que a relao espacial, inapreensvel pelasestruturas clssicas de ao e de representao, inteligvel como um princpiode coexistncia da diversidade (Sodr, 1988: 18) e constitui uma garantia doexerccio de possibilidades mltiplas de comunicao (Santos, 1996: 255) o quelevou Muniz Sodr a reconhecer que h uma dimenso territorial ou uma lgicageogrfica da cultura (Sodr, 1988: 15).

    Essa co-existncia do diverso, essa contigidade caracterstica do espaonosso de cada dia, que inspirou Milton Santos a ousar cham-lo espao banal,nos mostra que o espao geogrfico requer uma abordagem complexa que supereo pensamento reducionista atomstico-individualista. Vejamos:

    os economistas tambm se preocupam com essa questo da proximidade, adistncia sendo considerada como um fator relevante na estruturao docomrcio internacional (Berthelot, 1994: 15-16) . Mas a proximidade queinteressa ao gegrafo no se limita a uma mera definio das distncias; elatem que ver com a contigidade fsica entre pessoas numa mesmaextenso, num mesmo conjunto de pontos contnuos, vivendo com aintensidade de suas relaes. assim que a proximidade, diz J.-L. Guigou(Guigou, 1995: 56) pode criar a solidariedade, laos culturais e desse

    modo identidade.O papel da vizinhana na produo da conscincia mostrado por J.

    Duvignaud (Duvignaud, 1977: 20), quando identifica na densidade socialproduzida pela fermentao dos homens em um mesmo espao fechado, umaacumulao que provoca uma mudana surpreendentemovida pela afetividadee pela paixo, e levando a uma percepo global, holista, do mundo e doshomens (Santos, 1996: 255)20.

    Embora queiramos nesta parte salientar o significado dos conceitos deterritrio e da geograficidade do socio-histrico, talvez valha a pena sublinharque o espao geogrfico do perodo atual , sobretudo, um meio tcnico-cientfico-informacional (Milton Santos). Nele os objetos so, principalmente,objetos tcnicos e, assim, tm dentro de si uma intencionalidade uma hipertelia,

    uma mxima intencionalidade, como nos sugere G. Simondon (Simondon, 1989).Um objeto tcnico concreto (G. Simondon) pretende ser a mais perfeitaconvergncia entre a tecnologia e a funo desejada, perfeio impossvel de seralcanada na natureza (Santos, 1996: 233).

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    Aqui se v que a perfeio do objeto tcnico tanto maior quanto maisreduzido intencionalidade. O que se procura com os objetos tcnicos que cadavez mais povoam nosso cotidiano um aumento da eficcia da ao quedepende do grau de certeza com que exercida just in time, just in space e ainformao contida nos objetos tcnicos procura diminuir a incerteza (Santos,1996: 237-8).

    A tcnica tornada uma espcie de princpio para toda atividade, todacoisa , em si mesma, um princpio de racionalidade, diz Marc Humbert(Humbert, 1991: 54). Investida nos objetos, aparece como uma lgicainscrita, graas ao engenheiro, na natureza das coisas(Latour, 1989: 21;Gras, 1993: 218). H, desse modo, no objeto tcnico, a prviadeterminao de uma racionalidade, uma forma predeterminada de aosobre a natureza graas conexo imediata da tecnologia com as

    atividades prticas da vida (Santos, 1996: 238).

    E Langdon Winner (Winner, 1985) explicita a relao entre a tecnologia,espao e poder, quando nos diz que as inovaes tecnolgicas lembram os atoslegislativos ou polticos que estabelecem um quadro para a ordem pblica capazde resistir s geraes. Por isso a mesma ateno que se d s regras, papis erelaes pblicas deve ser dada tambm s coisas como construo de estradas,criao de redes televisivas e o recorte de traos aparentemente insignificantesem novas mquinas (Winner, 1985: 30-31).

    Devemos, aqui, retomar a idia j vrias vezes invocada que o espaogeogrfico locus de co-existncia do diverso, natureza e cultura ao mesmotempo, lugar dessa contigidade caracterstica que o espao nosso de cada dia.Isto porque

    No lugar, nosso Prximo, se superpem, dialeticamente, o eixo dassucesses, que transmite os tempos externos das escalas superiores e o eixodos tempos internos, que o eixo das coexistncias, onde tudo se funde,enlaando, definitivamente, as noes e as realidades de espao e detempo. No lugar um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas,firmas e instituies cooperao e conflito so a base da vida em comum.Porque cada qual exerce uma ao prpria, a vida social se individualiza;e porque a contigidade criadora de comunho, a poltica se territorializa,com o confronto entre organizao e espontaneidade. O lugar o quadrode uma referncia pragmtica ao mundo, do qual lhe vm o teatroinsubstituvel das paixes humanas, responsveis, atravs da aocomunicativa, pelas mais diversas manifestaes da espontaneidade e da

    criatividade [...] O territrio compartido impe a interdependncia comoprxis, e essa base de operaesda comunidadeno dizer de Parsons [...]constitui uma mediao inevitvel para o exerccio dos papis especficosde cada qual, conforme reala B. Werlen (Santos, 1996: 257-8).

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    Assim, o espao geogrfico uma condio para a ao; uma estrutura decontrole, um limite ao; um convite ao (Santos, 1996: 257). Deste modo,considerar a geograficidade fazer com que a histria se reconcilie com a vidana materialidade da relao sociedade-natureza na medida que o espao incluiessa conexo materialstica de um homem com o outro(Marx e Engels, 1947:18-19).

    Explicitemos, portanto, que a geograficidade nas suas dimenses espacial enatural nos obriga a considerar a simultaneidade dos eventos e no somente asucesso. Assim, nos possvel ver que aquilo que at aqui tem sido consideradomundo moderno, centrado na dinmica europia, estadunidense e japonesa indissocivel da colonialidade pois da Amrica Latina e Caribe, da frica e dasia que proveio grande parte da energia que move esse mundo seja na formada matria petrleo, seja do ouro, da prata, das riquezas minerais ou agrcolas

    que, sabemos, nunca s matria mas, tambm, trabalho (e no h trabalho semenergia) servil, escravo ou sub-assalariado.

    E to importante quanto essa compreenso que inspirou vrios intelectuais ver como todo esse processo percebido por aqueles que, cada vez mais, sofremos efeitos de decises tomadas distncia (televiso21, teledeteco, tele-ao),cujas aes, quase sempre, so tomadas em funo da dimenso econmica. unidimensionalidade dos que tomam as decises se contrape amultimensionalidade da vida inscrita na geografia de cada dia, locus deconformao da subjetividade. A percepo remota, o sensoremento remoto,ignora a percepo imediata do espao vivido.

    Essas tenses de territorialidades nos obrigam a considerar a passagemacusada por Foucault da sociedade disciplinar para uma sociedade decontrole. Assim, os espaos de conformao da subjetividade a famlia, aescola, o asilo, a priso, a fbrica, o estado-nao, o mundo

    ...no [so] mais definido[s] da mesma maneira. A crise significa, emoutras palavras, que hoje os cercados que costumavam definir o espaolimitado das instituies foram derrubados, de modo que a lgica quefuncionava principalmente dentro das paredes institucionais agora seespalha por todo o terreno social (Negri e Hardt, 2001: 216; grifos meus).

    Ou ainda quando nos falam que

    ...a paisagem urbana est mudando do foco moderno da praa comum e doencontro pblico para os espaos fechados dos shopping centers, dasfreeways e das comunidades fechadas. [...] O espao pblico tem sido a tal

    ponto privatizado que j no faz sentido entender a organizao social emtermos de uma dialtica entre os espaos pblico e privado, entre o dentro eo fora. [...] A noo liberal do pblico, o lugar exterior onde agimos napresena de outros, foi universalizada (porque estamos sempre sob o olhar de

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    outros, monitorados por cmaras de sistemas de segurana) e sublimada oudesefetivada nos espaos virtuais do espetculo (Negri e Hardt, 2001: 208).

    Destaco aqui, pela extrema lucidez dessa compreenso, como tudo isso captado a partir de outros lugares. Passemos a palavra a Victor de Gennaro,Secretrio geral da Central de Trabalhadores Argentinos. Em entrevista pesquisadora Ana Esther Cecea (Cecea, 2001) ele nos oferece uma lcidaanlise da implantao do projeto neoliberal na Argentina onde destaca que

    ... la contrarrevolucin no era solamente la represin, era ladesestructuracin social, y vimos que de la clase trabajadora 72% eraprecario. Eran los momentos de mayor auge del pensamiento nico, cuandose pregonaba el fin del trabajo y realmente estaba en cuestionamento hastaeso, si bamos a seguir existiendo como trabajadores. Nosotros apostamos a

    que no, a que no nos iban a hacer desaparecer, a que la riqueza la siguegenerando el trabajo y a idear formas nuevas de organizacin pero desde lamisma esencia, desde la recuperacin de la identidad.

    Reconstituir esto nos abri una nueva mentalidad y descubrimos que elnuevo lugar donde los trabajadores nos nucleamos, donde estamos todoslos dias, es el barrio. Esto se sintetiz en la frase la nueva fbrica es elbarrio. La fbrica o lugar de trabajo donde uno se formaba, dondeaprendia la historia, donde se construa y recuperaba la identidad y lamemoria como trabajador hoy no existe ms. Evidentemente hay que ir aorganizarnos en el barrio y para esto se cre la afiliacin directa para todotrabajador que viva de su trabajo. Se trata de un compaero de clase quetiene que volver a reconstituirse. Fue un tiempo muy difcil y aunque la

    resistencia al modelo de privatizaciones y de exclusin iba teniendoalgunas victorias defensivas, lo ms importante es que empezamos a verque nos devolva a nuestros compaeros: ex metalrgicos, ex textiles, ex,ex, ex trabajadores, empezaban a acercarse y organizarse en calidad detrabajadores precarios.

    Tuvimos experiencias maravillosas como la Federacin de Tierra, Vivienday Habitat que nos acercaba pobladores, trabajadores rurales, sectores quetienen que ver con la tierra, o los aborgenes, o las trabajadoras sexuales,organizaciones que jams hubieran estado como trabajadores en unacentral (Cecea, 2001: 63).

    Observemos, ainda, como um novo espao se coloca no horizonte dosprotagonistas a partir das contradies do prprio processo de reorganizao

    societrio. A seguir, Victor de Gennaro nos brinda com uma clara apreenso deque a diviso setorial, assim como as distines entre trabalhadores, j no podemser tratadas com os mesmos paradigmas no perodo atual que ele, tambm,distingue.

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    La lucha sectorial es una lucha defensiva, ms fcil, que rapidamente lograunificarse en torno a un programa de reivindicaciones. Pero en estasnuevas condiciones es distinto. Por ejemplo, en un hospital, donde todosson trabajadores de la salud, la propensin, si los alienta, es la de marcarlas diferencias: los mdicos son una cosa, las enfermeras son otra, losradilogos otra y los trabajadores de mantenimiento tambin. Pero enrealidad esta etapa del capitalismo, de globalizacin, de concentracin,demuestra que no hay una poltica de salud. Es indispensable unificar atodos los trabajadores tras una gran bandera que es discutir la salud comopoltica. Y discutir todo el sector salud, todo el proyecto de enfermedadque nos venden, no la privatizacin, sino un proyecto de salud, implicabados cosas: unificar a los sectores que iban a recibir salud. Si la comunidadno disputa un tipo de salud diferente y acepta esto que le venden, muy

    dificilmente podemos alcanzar reivindicaiones ms naturales. En sntesis,no habr carrera sanitaria para las enfermeras si no hay posibilidad de queun pueblo pelee por tener salud y ejerza su derecho a la salud (Cecea,2001: 64).

    Ana Esther Cecea, que entrevista a Victor de Gennaro, ajuda-nos acompreender a significao do territrio quando nos diz que

    En octubre del ao 2000 La Matanza, un barrio obrero (ahora en granmedida de desempleados) del Gran Buenos Aires, organiz el bloqueo dela carretera ms importante del pas en trminos econmicos. Se trat deuna lucha puebladacomo dicen los argentinos, porque involucr a todoslos integrantes del barrio, con distintas estrategias de sobrevivencia ydistintas modalidades y experiencias de lucha. El episodio de La Matanza

    constituy un aprendizaje en las potencialidades del sentido territorial delas nuevas formas de organizacin de la poblacin, al tiempo que evidenciael carcter antipopular del gobierno, a pocos meses de haber asumido. Elgobierno tuvo que firmar un convenio con los insurrectos de La Matanza,aceptando todas sus exigencias (Cecea, 2001: 65).

    Quase um ano depois, em 24 de julho de 2001, os desempregados, cada vezmais conhecidos como piqueteiros, realizavam no Santurio do Sagrado Coraode Jesus, na mesma La Matanza, um congresso nacional com mais de 2000delegados. Um ex-metalrgico, Claudio Landone, deixa claro de onde essemovimento retira sua fora quando declara eu no posso fazer greve, porque fuidemitido de uma fbrica que faliu. Fao piquetes (Co rreio Brasiliense22/07/01).

    Com esses cortes de ruta, os piquetes, torna-se, pelo conflito, evidente osignificado cada dia maior do espao como um todo la nueva fbrica es elbarrio pela importncia que adquirem a distribuio e a circulao num mundoem que h uma intensa fabricao capitalstica da subjetividade (Felix Guatarri)

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    via mass media . Nesses piquetes a lgica do trabalho abstrato bloqueada poraqueles que no querem se tornar meros objetos e, assim, afirmam suasubjetividade concretamente bloqueando as rotas, bloqueando a velocidade.Afinal, quanto mais os meios de comunicao estimulam simbolicamente osdesejos, menos podem prescindir que os objetos circulem concretamente pelasestradas, pelas vias pblicas. Aqui, pelos piquetes j que eu no posso fazergreve a geograficidade do social na sua subjetividade materializada se mostracomo contradio.

    No caso argentino, e sabemos que no s nele, a subordinao aos ditamesdo mundo financeiro, lgica do dinheiro em estado puro que ignora a complexamaterialidade inscrita no espao geogrfico de cada dia, implicou 30.000compaeros desaparecidos, la mayoria trabajadores ou dirigentes sindicales, msde 100.000 presos y detenidos, ms de 500.000 exilados, pero adems ms demedio milln de delegados activistas despedidos de las fbricas (Cecea, 2001:63). Assim, mais do que um mundo que funciona em rede, que sobrevaloriza omundo da virtualidade onde a fluxo do smbolo-maior o dinheiro se d sematrito, h uma desmaterializao cruel e, at mesmo, macabra.

    Um mundo em busca de novas territorialidades

    Com a criao da ONU que, trs em seu seio o Estado Territorial jconsagrado em 1648, o mundo ps 2 Guerra Mundial v instaurar- s e ,paradoxalmente, o que Giovanni Arrighi chamara de caos sistmico. Aqui preciso saber tomar partido do privilgio do tempo que torna possvel explicitar

    tendncias histricas22

    que poca apenas se esboavam. De fato, a ONU, comtodas as contradies que marcam a sua existncia, indica a passagem de umsistema internacional para um sistema global, imperial, na medida que aponta[...] igualmente para uma nova fonte positiva de produo jurdica, eficaz emescala global um novo centro de produo normativa que pode desempenharum papel jurdico soberano (Negri e Hardt, 2001: 22. grifos meus).

    Esse caos sistmico abriga regimes de produo de poder comconfiguraes territoriais contraditrias como o Estado Nacional, o Imperialismo,o Imprio que se quer uma ordem global supranacional e, ainda, mltiplosprotagonistas (camponesa(e)s, indgenas, negro(a)s, mulheres, ambientalistas,trabalhadore(a)s assalariado(a)s que r-existem com/contra essas diferentes ordense que so portadores de mltiplas territorialidades potenciais.

    Afinal, como falar do fim ou da diminuio do poder dos Estados TerritoriaisNacionais quando, exatamente aps o fim da 2 Guerra Mundial, se multiplica onmero de Estados Territoriais Nacionais ? No entanto, preciso observarmosque o surgimento de mais de uma centena de novos Estados Territoriais Nacionais

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    aps a 2 Guerra se deu, sobretudo, na frica e na sia. Na Amrica Latina oneocolonialismo j havia se instaurado desde o sculo XIX consolidando odeslocamento da hegemonia de Tordesilhas para Greenwich, ou melhor, domundo mediterrneo (Portugal, Espanha e Gnova) para o Mar do Norte(Inglaterra, Frana e, depois, Alemanha). Diga-se, ainda, que os nascentesEstados americanos mantiveram no poder os descendentes dos brancos europeusos crioulos, na Amrica espanhola negando-se aos indgenas e negros atmesmo a condio de assalariados (Quijano, 2000). O colonialismo interno mais do que dominao regional, como quase sempre considerado. H umaclara clivagem racial e de classe que atravessa as novas formaes nacionaistrazendo para o seu interior a clivagem moderno-colonial j vrias vezes aquiinvocada.

    A ordem imperial antes de tudo, financeira

    Desfaamos, logo de incio e ainda que rapidamente, um dos principais mitosque nos tem sido imposto na caracterizao dessa nova configurao de poder,que Negri e Hardt chamam de Imprio, que diz respeito ao do papel que nela jogaa revoluo tecnolgica, sobretudo, a telemtica com tudo que ela implica. Tudoparece derivar do que se vem chamando revoluo tecnolgica em curso sem quese esclarea quem pe em movimento essa revoluo tecnolgica, como se fosseum processo espontneo, natural. Quando observamos os principais setores ondeessas novas tecnologias vm se afirmando o militar, o financeiro e os dos meiosde comunicao de massas j nos indicam possveis protagonistas desseprocesso. Os atentados de 11 de setembro de 2001 sinalizam essa trplice

    dimenso do poder imperial, no s por ter sido atingido o Pentgono, smbolodo poder militar, o Worl Trade Center, smbolo par excellence e do capitalfinanceiro23 transmitido ao vdeo em tempo-real, mas tambm, por indicar queno reconhecendo o Imprio externalidade no h mais um fora e um dentro o eurefora as anlises de Negri e Hardt, ou mesmo de David Harvey (Harvey, 1989),de que nos encontramos diante de novas percepes espao-temporais, outromodo de dizer que nos encontramos diante de novas territorialidades em tenso.

    Essa ordem imperial se apresenta como uma tentativa de superar uma criseprofunda da ideologia nacionalista que havia sido levada ao paroxismo com oimperialismo24 por meio de duas guerras em menos de 40 anos e, maisenvolvendo, o territrio do plo hegemnico da ordem moderno-colonial. Aindaem plena 2 Guerra Mundial comea a se desenhar uma ordem financeira que se

    quer acima dos Estados Territoriais Nacionais e que, contraditoriamente, convivecom o imperialismo dando ensejo, assim, a uma das tenses territoriaisconstitutivas dos dias que correm. Vejamos:

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    De todos os lados do conflito, a ao das classes dominantes ultrapassou oslimites nacionais. [...] os Aliados imprimiram um carter supranacional aoque inicialmente havia sido um mero acordo militar, a Declarao dasNaes Unidas, assinada em janeiro de 1942 por 26 pases, explicitava taisobjetivos. A partir de 1944 foram tomadas medidas para converter asNaes Unidas numa organizao de carter permanente. Noutro plano, aConferncia de Bretton Woods, realizada em julho de 1944, estabeleceu osistema monetrio e financeiro que viria reger o mundo aps o conflito,projetando o Banco Internacional para a Reconstruo e oDesenvolvimento e do Fundo Monetrio Internacional. Qualquer quetivesse sido o vencedor, a paz assentaria em instituies supranacionais.Mais ainda significativos do que a internacionalizao no interior de cadaum dos blocos beligerantes foram os interesse comuns que os uniram a

    todos e os contatos que eles tiveram lugar. [...] Com base nestes interessessociais comuns aos capitalistas de ambos os lados teceram-se, apesar doconflito, e para alm das clivagens militares, polticas e ideolgicas,contatos institucionais permanentes, no mbito do Banco de PagamentosInternacionais. Este banco fora estabelecido em Basilia, na Sua, em1930, para permitir a cooperao tcnica entre bancos centrais dos vriospas, e o seu Conselho de Administrao ainda hoje composto em partepor governadores de bancos centrais (Bernardo, 2000: 52-53).

    Tal como aquele corpo de juristas que a partir do Renascimento recuperara odireito romano para ensejar a nova ordem geogrfica e jurdico-poltica com basena propriedade privada (absoluta) incondicional e na soberania (absoluta)mutuamente excludente que nos deu o Estado Territorial Moderno, vemos

    emergir um novo protagonista que so os gestores financeiros que se colocamenquanto gestores de uma territorialidade imperial que se pensa no imperialista.

    Em que pese o enorme significado poltico desses novos protagonistas dasfinanas mundiais FMI, BIRD, Banco de Pagamentos Internacionais sua lgicacapitalista puramente fundada no dinheiro (DD) no pode prescindir damediao das mercadorias (DMD) e, consequentemente, das implicaesmateriais-simblicas e, portanto, territoriais. Aqui toda a contradio entre odinheiro e a riqueza que est a se manifestar, enfim, a contradio entre aexpresso simblica da riqueza o dinheiro e a riqueza mesma.

    A tenso de territorialidades desencadeada pela hegemonia poltica cada vezmaior dos gestores financeiros se faz sentir com toda a fora quando se tem quereduzir as moedas a uma nica moeda, sobretudo quando essa moeda uma

    moeda nacional, o dlar estadunidense, como tem sido o caso. Assim, a tendnciapara o imprio, caracterstica dos gestores das finanas mundiais, se vcontraditoriamente apoiando o velho imperialismo e, com isso, reavivando algica territorialista nacionalista que, por sua lgica prpria, teria que superar.

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    No sem sentido essa tenso de lgicas territoriais distintas se faz presente comtodo o seu peso na questo energtica. Afinal, se o dinheiro se constitui, por umlado, na energia simblica necessria lgica capitalista, o combustvel fssil ,por outro lado, a energia material que permite aumentar o potencial de produode mais valia de todo o complexo industrial que produz as mercadorias.

    Para aqueles que tm posto o acento no na contradio entre o Imprio e oImperialismo (e o Estado Nacional nele embutido) mas sim no fato de atribuir sgrandes corporaes multinacionais e aos mercados financeiros um poder maiorque o dos seus prprios estados de origem, que teria caracterizado a euforiaamericana dos anos 90, concordamos com Jos Luiz Fiori quando nos diz quepassado o perodo das grandes compras e fuses transnacionais, todos osbalanos feitos indicam que, no caso dos setores estratgicos do ponto de vistatecnolgico e militar, o fator nacional foi decisivo e houve intervenes estatais

    das grandes potncias sempre que alguma de suas grandes corporaes se viuameaada por capitais estrangeiros.

    no campo de ao direta dos gestores das finanas mundiais com sua lgicaimperial o mercado financeiro propriamente dito que reina mais do que emqualquer outro campo, at porque a matria que nele circula realmente25

    simblica, o mundo da comunicao por suporte informtico (telemtico) onde sevaloriza, sobretudo, a existncia de um mundo virtual. Considere-se, ainda, osignificado que tem, nesse mundo e para esses protagonistas, a idia de que noh limite at mesmo para os dias e noites porque as bolsas funcionam 24 horas.Afinal, no h limite para os nmeros e aqui, j o vimos, estamos no mundo daexpresso da riqueza e no da riqueza mesma. Trata-se do que, apropriadamente,tem sido chamado de capital voltil que aquele capital que se desprende da

    materialidade do espao concreto e que tenta submeter as diferentes qualidadesque habitam esse espao sua lgica, lgica da quantidade.

    A mais completa figura em nosso mundo apresentada da perspectivamonetria. Daqui pode-se ver um horizonte de valores e uma mquina dedistribuio, um mecanismo de economia e um meio de circulao, umpoder e uma linguagem. [...]

    As grandes potncias industriais e financeiras produzem, desse modo, noapenas mercadorias mas tambm subjetividades. Produzem subjetividadesagenciais dentro do contexto biopoltico: produzem necessidades, relaessociais, corpos e mentes ou seja, produzem produtores. [...]

    [Assim] um lugar onde deveramos localizar a produo biopoltica de

    ordem nos nexos imateriais da produo de linguagem, da comunicaoe do simblico que so desenvolvidos pelos meios de comunicao. [...]

    A mediao absorvida dentro da mquina produtiva. A sntese poltica doespao social fixada no espao de comunicao. por isso que as

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    indstrias de comunicao assumiram posio to central. Elas no apenasorganizam a produo numa nova escala e impem uma nova estruturaadequada ao espao global, mas tambm tornam imanente sua justificao.O poder, enquanto produz, organiza; enquanto organiza fala e se expressacomo autoridade. A linguagem, medida que comunica, produzmercadorias, mas, alm disso, cria subjetividades, pe umas em relao soutras, e ordena-as. As indstrias de comunicao integram o imaginrio eo simblico dentro do tecido biopoltico, no colocando-os a servio dopoder mas integrando-os, de fato, em seu prprio funcionamento (Negri eHardt, 2001: 51-52).

    Estamos, assim, diante de um deslocamento do locus de produo denecessidades que E. Thompson (Thompson, 1998) nos havia chamado a ateno.No mais exclusivamente nos seio da famlia ou mesmo da escola que se d aconformao da subjetividade que, assim, se desloca para essas mquinas defabricao capitalstica de subjetividade, conforme gostava de chamar FlixGuattari (Guattari, 1982). Mais uma vez, do espao social como um todo queestamos falando e sobre a deciso de coisas to simples, e to fundamentaiscomo o po nosso de cada dia, que estamos tendo que nos reapropriar.

    Esses mesmos meios de comunicao vm caracterizando como movimentosanti-globalizao todo o conjunto de manifestaes que vem se fazendo escala global e que traz em seu bojo movimentos que comportam mltiplasdimenses, inclusive as territoriais. No entanto, esses movimentos sinalizam paraoutros possveis regimes de poder escala global (Milton Santos) indicando,assim, que a escala global, mundial ou planetria se coloca como necessria para

    todo e qualquer protagonista e que j no mais monoplio dos de cima fazerrelaes internacionais, como tem sido at aqui.

    A natureza revisitada

    H um outro campo, ainda, o campo ambiental onde a tendncia para aconformao de uma ordem global (imperial) vem ganhando uma enormelegitimidade, talvez s comparvel aos direitos humanos. E, aqui, no poderia sermaior o conjunto de contradies que faz emergir entre territorialidades distintas.Indiquemos, de incio, que todo um conjunto de idias e prticas que conformamesse campo aponta claramente para uma conscincia planetria e nos convidaa nos sentirmos membros de uma comunidade de destino (Balandier) mundial,

    global, planetria (Gonalves, 2001a). Afinal, estamos diante de riscos globais,havendo at mesmo autores, como Giddens (Giddens, 1991) e Beck (Beck,1992), que vo caracterizar a sociedade moderna como sociedade de risco.

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    No interior desse campo os Estados Nacionais parecem no ter possibilidadesde superar problemas que ultrapassam suas fronteiras posto que as dinmicas danatureza no as respeitam. Todavia, o mesmo poderia ser invocado com relao propriedade privada incondicional e absoluta que, como vimos, um dosfundamentos da constituio do Estado Territorial Moderno. Afinal, numasociedade em que a produo regida por uma lgica da concorrncia que acionauma busca de aumento da produtividade e, assim, um ritmo incessante que tendepara o infinito porque o que busca a expresso quantitativa da riqueza na suaimaterialidade, os tempos naturais, culturais e psquicos acabam por ser atingidosensejando efeitos e contradies vrias. Tudo indica que a propriedade privadaincondicional e absoluta seja mais um dos limites (essncia da poltica, insisto)que precisamos por mais abertamente em debate. O proprietrio privado no podereinar to soberanamente como reinou at aqui, conforme Karl Polanyi (Polanyi,

    1978) j nos havia alertado.Alm disso, esse campo ambiental tambm expe outras e enormes

    contradies que reinam no atual caos sistmico que caracteriza a geografia domundo contemporneo. Destaquemos o fato de 20% da populao mundial serresponsvel pelo consumo (produtivo e improdutivo) de cerca de 80% da energiae das matrias primas manipuladas anualmente em todo o planeta. Informao quepe em xeque o argumento malthusiano to invocado nesse mesmo campo,quando se sabe, com Elmar Altvater (Altvater, 1994), que um estadunidense mdioconsome o equivalente a mais de 170 etopes ou a mais de 50 paquistaneses, osuficiente para indicar que um beb pe mais em risco o planeta quando nasce sobo regime de produo de subjetividades mercantilmente estimuladas. o queAltvater chamou de regime de produo de bens oligrquicos, ou seja, aqueleregime que se funda na produo de bens que s podem existir se for para poucos,pois se todos tm esses bens os riscos de todos aumentam26. toda a ordemmoderno-colonial que se acha, assim, em xeque princpio de igualdade, porexemplo na medida que seu modo de vida impossvel de se generalizar paratodo o planeta. A idia de dominao da natureza, central para o pensamentomoderno europeu, posta em questo no somente porque se aponta a degradaoambiental ou o esgotamento de recursos naturais27, mas porque junto com anatureza emergem mltiplos sujeitos que at aqui vinham se mantendo mantendonos marcos das territorialidades ora em crise.

    H, ainda, no interior desse campo todo um debate acerca da diversidadebiolgica que tem, de uma lado, todo o setor industrial ligado biotecnologia e,por outro lado, proporciona a possibilidade de mltiplos povos e culturas seapresentarem cena poltica como se pode ver por meio da mobilizao de

    populaes camponesas, indgenas ou comunidades negras em amplas regies daAmrica Latina (Mxico, Colmbia, Peru, Equador, Bolvia, Brasil, conformeEscobar, 1996; Leff, 2000; Gonalves, 2001b; Garcia Linera, 2001). At mesmoo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil resignifica suas lutas

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    incorporando-se de modo prprio ao campo ambiental reforando a perspectivasocioambiental que, no Brasil, foi inaugurada pelos seringueiros e teve sualiderana de maior expresso o ecosocialista Chico Mendes (1944-1988)(Gonalves, 2001a e Gonalves, 2001b).

    Destaque-se, ainda, que no interior deste campo ambiental que tem sidogrande a tenso entre gestores territorialistas nacionais, militares sobretudo, egestores territorialistas que operam escala global. As organizaes no-governamentais esto, tambm aqui, fortemente implicadas nessas relaescontraditrias. Afinal, trata-se de determinar usos diferenciados aos recursosnaturais e a natureza, sabemos, alm de portar recursos naturais , tambm,fonte de recursos simblicos, de ideologias romnticas territorializadas, como osnacionalismos e regionalismos (sangue e terra, por exemplo) que, de uma formaou de outra, tm se nutrido, at aqui, do conceito moderno de soberaniamutuamente excludente. E o ambientalismo, por seu lado, tem se inspirado namesma natureza para construir uma ideologia planetarista, da Me Terra emfranco contraste com a Ptria Me.

    O comrcio e a cultura o direito das gentes

    A tenso de territorialidades pode ainda ser observada nas discusses daOrganizao Mundial do Comrcio (ex-GATT) onde a lgica imperial dosgestores financeiros entra em conflito com as diferentes territorialidades queconstituem os Estados Territoriais Nacionais, assim como outras que buscam umlugar no mundo28. Aqui tanto os bens materiais como os imateriais (culturais)

    so objeto de intensas e tensas lutas por/contra barreiras e protees29

    .Nesse mbito ganha particular relevncia o debate sobre a propriedade

    intelectual pelo carter social e coletivo de bens intangveis, como oconhecimento, como no conflito entre aquele(a)s que querem colocar barreiras,por patente, e aquele(a)s que querem garantir acesso livre para sementes ecultivares; quele(a)s que querem colocar barreiras, por patente, ou acesso livreaos remdios e frmacos; ao embate entre o(a)s que querem os softwares livres eaquele(a)s que os querem barrados por patente (Linux-Microsoft); assim como odebate sobre os direitos autorais coloca como interlocutores vlidos, peloconhecimento que produzem, vrias populaes e suas culturas que foram ataqui desqualificadas30.

    interessante observar que nesse seio surge aquilo que parecia impossvel,

    qual seja, uma espcie de internacional camponesa, como a Via Campesina 31.Talvez aqui venha se tornando mais explcito do que em qualquer outro campo atenso de territorialidades e todo o potencial de que nosso mundo est grvido pornovas territorialidades. Aqui est em jogo os diferentes sabores com que nos

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    alimentamos no dia a dia que, sabemos, implica saberes (savoir e saveur) e,assim, toda a cultura que est implicada. At mesmo as paisagens, para nossoconforto e lazer, posto que foram conformadas pelas mais diferentes prticasculturais (da dizer-se agri+cultura) que, assim, estamos vendo, nos oferecemmais do que alimentos e matrias primas. a multifuncionalidade da agricultura,muito prxima do que Enrique Leff vem chamando de racionalidade ambiental,enfatizando seu carter poltico e de justia social, junto com suas dimensestcnica e cultural (Leff, 1994; 1998; 2000 e 2001).

    Fim das fronteiras: para os migrantes, novos muros

    Um dos maiores desafios que se apresenta no desenho possvel de novas

    territorialidades diz respeito ao fenmeno dos enormes deslocamentospopulacionais de nossa poca. Um espectro persegue o mundo, o espectro damigrao. Todos os poderes esto aliados numa impiedosa operao contra ela,mas o movimento irresistvel. Junto com a fuga do chamado Terceiro Mundo,existe um fluxo de refugiados polticos e a transferncia de fora de trabalhointelectual, alm dos movimentos em massa do proletariado agrcola, industrial ede servios. Os movimentos legais e com documentos so esmagados pelasmigraes clandestinas: as fronteiras da soberania nacional so peneiras, e todatentativa de regulamentao completa sofre violenta presso (Negri e Hardt,2001: 233).

    H, aqui, mais do que produo e reproduo da fora de trabalho para ocapital e que tem sido quase sempre analisado pelo prisma da regulamentao das

    condies tcnicas do trabalho pelo capital. H, tambm, um desejo irreprimvelde liberdade. No resta dvida que o que essa multido procura deixar para trsso as condies miserveis, quase sempre derivadas do modo como suascomunidades e regies so envolvidos (na verdade (des)-envolvidos, conformeGonalves, 2001b) pela ordem moderno-colonial e, o que buscam

    ... a abundncia de desejos e a acumulao de capacidades de expresso eproduo que os processos de globalizao determinaram na conscinciade todo indivduo e de todo grupo social e, portanto, uma certa dose deesperana. A desero e o xodo so uma forma poderosa de luta declasses, dentro da ps-modernidade imperial e contra ela. Essa mobilidade,entretanto, ainda constitui um nvel espontneo de luta e hoje leva commuita freqncia a novas condies desarraigadas de pobreza e misria

    (Negri e Hardt, 2001: 233).Nesse contexto dos grandes deslocamentos populacionais do mundo de hoje

    temos tanto as mfias que traficam gente, como cada vez mais se v nosnoticirios, como naqueles caminhes frigorficos que transportavam europeus

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    orientais e asiticos para a Inglaterra; ou navios que vagam sem que os diversosestados queiram receber as massas de refugiados que s aumentam, como,recentemente (outubro de 2001), os afegos que a Austrlia se recusou a receberdesconsiderando a legislao internacional; e, ainda, e numa outra direo, oelevado nmero de uma migrao seletiva de trabalho altamente qualificado(informtica, por exemplo), como a de indianos e paquistaneses trabalhando nosEstados Unidos e na Inglaterra, assim como de africanos com formao superiortrabalhando na Europa (nmeros no muito precisos indicam, nesse caso, mais de100.000) e, assim, temos trabalho qualificado aumentando a produtividade doslugares e regies onde a riqueza mais concentrada reproduzindo a desigualdadeentre pases, regies e comunidades e, assim, reforando o duplo movimento demigrao de gente qualificada e de miserveis.

    Temos, ainda, e num outro sentido, os imigrantes equatorianos na Espanhaque em manifestaes contra sua expulso do pas apresentaram a carta deCristvo Colombo de descoberta da Amrica como o documento que deveriaservir de base para garantir seu direito ao trabalho assim como sua permannciano pas. Na Colmbia, os desplazados j somam 2.000.000 sobre umapopulao total de 30.000.000, indicando um fenmeno novo na medida que,nesse caso, no se trata de migrantes que, de uma forma ou de outra, ainda queimpelidos pela circunstncias, esperam, isto , tm esperana de, com odeslocamento, melhorar suas condies vida. No, os desplazados no esperamcom o deslocamento melhorar as condies de vida. Ao contrrio, exatamenteporque tm a esperana de poder voltar o mais breve possvel para suascomunidades se deslocam, inicialmente, para lugares prximos aos seuspueblos e comunidades. Aqui, se revela todo o limite do Estado nacional

    colombiano para garantir que sua prpria populao possa permanecer ondeestava e a ONU j inicia gestes para atuar nesse campo.

    preciso destacar que a Colmbia o pas que, no mundo, apresenta o maiornmero de desplazados enquanto o Afeganisto apresenta o maior nmero derefugiados do mundo e, nesse momento (2001) seus territrios esto sob a aodireta de um poder imperial que se sobrepe s comunidades e pueblos32, sejaatravs do Plano Estados Unidos/Colmbia (mais conhecido como PlanoColmbia) ou da guerra gontra o terrorismo, o que indica a complexa tenso deterritorialidades, ainda mais se considerarmos o recente atentado contra o WorldTrade Center e o Pentgono que nos d, trgica e espetacularmente, a dimensoglobal dos conflitos.

    Saliento, todavia, o ponto que, acredito, deva ser o alvo de ateno o da

    busca de novos regimes de poder por meio de novas territorialidades. E, aqui,quero me aproveitar dessa dupla dimenso mobilidade-permanncia que estimplicada no s nos mltiplos movimentos que clamam por demarcar suasterras, seus territrios como, tambm, por essa ampla mobilidade populacional.

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    Talvez para isso devamos destacar o caso das comunidades negras da Colmbiae do Brasil com seus p a l e n q u e s e seus quilombos (ou quilombolas),respectivamente. Essas comunidades negras se deslocaram em busca da liberdadecontra a escravido que lhes era imposta quando da constituio do mundomoderno na Amrica Latina. Ali constituram seus territrios revelia do Estadoque, sabemos, no os incorporara enquanto portadores de direitos, at muitorecentemente. Hoje, pelas possibilidades abertas escala mundial pelascontradies de regimes de poder se apresentam como protagonistas polticosreivindicando, exatamente, a consagrao das terras onde constituram seusterritrios de liberdade. Portanto, a questo que se apresenta no simplesmentea do direito de ir e vir, to destacado pelo liberalismo mas, tambm o direito dep e r m a n e c e r. E, mais do que isso, o direito de soberanamentedecidirem/pactuarem o permanecer ou o deslocar.

    Deixando em aberto as novas territorialidades

    As fronteiras, comportam ofronte trazem consigo, sempre, a memria daslutas que as engendraram. Portanto, mais do que o espao absoluto dos territriossoberanos dos Estados modernos destacamos seu carter aberto (poroso) econtraditrio, tanto nofrontinterno como nofrontexterno. H, sempre, por trsdo institudo o processo instituinte e, no caso da fronteira, o limite explicita o seucarter essencialmente poltico.

    Mas se os limites das fronteiras se mostram to explcitos quando separa ofrontinterno do externo, nem sempre o faz to claramente quando se trata de ver

    os processos instituintes, sobretudo, quanto aos seus protagonistas. Por issodestacamos que alm dos limites entre as cincias, cada uma com seus territriosrgidos de conhecimento, devemos estar atentos para outros conhecimentos ataqui considerados numa hierarquia inferiorizante (como o caso das cinciashumanas diante das cincias naturais; da filosofia e da arte diante da cincia) e,indo um pouco alm, devemos atentar, tambm, para outros conhecimentosproduzidos por outros protagonistas com outras matrizes de racionalidade.

    Enfim, todo o processo que oferecemos anlise deve ter em mente ohaitiano Toussaint de LOuverture, os equatorianos que querem que se descubraa Amrica na Espanha de hoje, ou a memria dos negros constitucionalizadoscomo 3/5 de um branco nos Estados Unidos e que esto vivas num mundo quetem um grupo como o G-7 e, ainda, tem o direito de veto sendo praticado no

    Conselho de Segurana da ONU como se, ainda, houvesse pases e povos quevalem 3/5 de outros povos.

    A poca dos descobrimentos europeus e a comunicao cada vez maisintensa entre os espaos e povos da terra, que veio em seguida, sempre

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    carregaram dentro de si um real elemento de utopia. Mas tanto sangue foiderramado, tantas vidas e culturas foram destrudas, que parece muito maisurgente denunciar a barbaridade e o horror da expanso da EuropaOcidental (e tambm dos EUA, dos soviticos e dos japoneses). Achamosimportante, entretanto, no esquecer as tendncias utpicas que sempreacompanharam a marcha rumo globalizao, ainda que essas tendnciastenham sido continuamente derrotadas pelos poderes da soberaniamoderna. O gosto da diferena e a crena na liberdade universal e naigualdade dos seres humanos, prprios do pensamento revolucionrio dohumanismo da Renascena, reaparecem aqui em escala global. Esseelemento utpico da globalizao o que nos impede de simplesmente cairde volta no particularismo e no isolacionismo, em reao s forastotalizantes do imperialismo e da dominao racista, induzindo-nos, em

    vez disso, a forjar um projeto de contra-globalizao, de contra-Imprio.Esse momento utpico, entretanto, nunca deixou de ser ambguo. umatendncia que constantemente entra em conflito com a ordem soberana e adominao (Negri e Hardt 2001: 132).

    H, assim, um novo campo que , ao mesmo tempo, local, regional,nacional33 e global, ou imperial como querem Negri e Hardt que, por sua vez, temensejado a oportunidade histrica para que novos protagonistas locais e regionaisvenham cena poltica. nesse imbricao de escalas que novas territorialidadesdevem ser buscadas. Mais do que a geografia estamos diante de geo-grafias,enfim, do desafio geo-grafar nossas vidas, nosso planeta, conformando novosterritrios, novas territorialidades.

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