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No ano passado, testamos a prática de leitura de férias e gostamos muito
do resultado alcançado. Crônicas são uma maneira eficaz de aproximar o leitor
da literatura e este se diverte enquanto lê, por isso estamos repetindo a
experiência, agora inserida no projeto “O XIX tá Russo”.
Neste ano, você, aluno do 9º, 1º e 2º ano, terá a oportunidade de aprender
mais ao ler os seguintes textos:
* Futebol na Raça
* A Realeza de Pelé (Nélson Rodrigues)
* Sem exagero (Luís Fernando Veríssimo)
* Flamengo Sessentão (Nélson Rodrigues)
* As expressões da bola (Ruy Carlos Ostermann)
* O Juiz Ladrão (Nélson Rodrigues)
* O Torcedor (Mário Filho)
* Complexo de Vira-Latas (Nélson Rodrigues)
* Manual de Instrução (Tostão)
* Iniciada a peleja (Fernando Sabino)
* Dez Motivos (José Roberto Torero)
* Juiz (João Antônio Ferreira Filho)
Boa leitura! Na primeira semana de agosto, teremos atividades avaliativas
envolvendo estas crônicas. Retorne preparado!
Leitura de Férias 2018
Crônicas sobre Futebol - 9º, 1º e 2º ano
Crônica
Futebol na Raça (Adaptação da Revista Veja, edição 1528, 07/01/98)
Ano da copa tem fribrilação própria – a expectativa nervosa de todo um
país pendurado em chuteiras. Todos se preparam para entrar em campo junto
com a seleção. A Copa pode até não ser nossa, mas o futebol já é, sempre foi.
Criado na Inglaterra em 1863, ele desembarcou no Brasil 31 anos depois,
na forma de uma bola trazida debaixo do braço pelo estudante paulista Charles
Miller. Chegou elitista, racista e excludente. Quando se organizaram os primeiros
campeonatos, lá pelo começo do século, era esporte de branco, rico, praticado
em clubes fechados ou colégios seletos. Negros e pobres estavam simplesmente
proibidos de chegar perto dos gramados, mas, mesmo a distância, perceberam
o jogo e dele se agradaram.
Já em 1910, surgiu em São Paulo o Corinthians, o primeiro clube fora do
circuito restrito clube-fechado, colégio-seleto. Abriu caminho para o Vasco, que,
escandalizando, se apresentou para disputar o campeonato carioca de 1923 com
um time de mulatos, negros e pobres. Ganhou o campeonato e repetiu a dose
no ano seguinte com a mesma receita. Os brancos, ricos e grã-finos ainda
tentaram resistir e inventaram uma regra especial: quando um branco cometia
falta violenta num jogador negro, o juiz marcava falta e o jogo continuava.
Quando o negro cometia falta violenta num branco, o juiz apitava a falta e, antes
de ser cobrada, o branco tinha o direito de revidar a violência. Às vezes até a
torcida e a polícia entravam em campo para surrar o infrator escuro. Deu no que
deu. Para escapar das surras dos brancos, os negros preferiram evitar as
divididas. Inventou-se, assim, o drible, trazendo-se para o campo a ginga que o
negro da senzala já empregava na dança, na capoeira, em seus rituais religiosos.
Começava a surgiu um estilo brasileiro de jogar futebol, rebelde e
anárquico, inventivo e travesso, diferente dos ingleses, que inventaram um jogo
sempre em linha reta e para a frente, de preferência com bolas altas e longas.
Do ponto de vista da exigência de habilidades física e de biótipo, o futebol
é um esporte único. O basquete, o vôlei e até a natação pedem gente de bom
tamanho. Nas corridas, os velocistas são fortes e altos, enquanto os
maratonistas são miúdos e leves. As ginastas são feitas sempre em miniatura.
O futebol não aceita enquadramentos dessa natureza.
A mescla de raças dotou o brasileiro de múltiplas qualidades que fazem
dele a matéria-prima ideal para jogar futebol. Os hábitos e costumes
completaram o trabalho. A mania de chutar bola com pé descalço, fruto da
informalidade e da pobreza brasileiras, por exemplo, desenvolveu uma
intimidade entre o pé e a bola que chuteira nenhuma do mundo é capaz de
substituir. A iniciação precoce, o ambiente impregnado de futebol são outros
fatores que condicionam o brasileiro. Ganhando bola desde o primeiro Natal de
sua vida e chutando tudo que se move à sua frente, o brasileiro começa a treinar
antes mesmo de se dar conta disso.
Melhor indicativo de como o futebol se infiltrou na vida brasileira está na
linguagem diária do povo. Expressões nativas dos gramados invadiram as
conversas em todos os setores. Qualquer trama é uma “jogada”. Fazer algo
bem-feito é “marcar um gol de placa”. Deixar de resolver um problema é “chutar
para o alto” e salvar uma situação é “colocar para escanteio”. E por aí vai. Quem
está a perigo vai para a “marca do pênalti”. Dar uma mancada é “pisar na bola”.
Quem é ríspido “entra de sola” e tudo termina no “apito final”.
A cultura brasileira retribuiu e com frequência recorre ao futebol como
fonte de inspiração ou objeto de homenagem. O cinema brasileiro realizou
setenta filmes, entre documentários e obras de ficção, sobre o futebol, a maioria
de nossos melhores compositores gastou inspiração com o jogo de bola, a
literatura inicialmente hesitou em aderir, mas também ingressaram pela grande
área do futebol muitos autores. Artistas plásticos também pintaram e bordaram
sobre os gramados.
Ao se instalar no país, o futebol se espalhou e se infiltrou em todos os
setores até criar espaço e mercado próprios. Calcula-se que o futebol empregue,
direta ou indiretamente, 300.000 pessoas no Brasil.
Uma pesquisa da UERJ constatou que cada um dos 5.507 municípios
brasileiros está provido de três instalações imprescindíveis: a igreja, a cadeia e
o campo de futebol.
De que o Brasil é o país do futebol parece não haver dúvidas, assim como
não há menor dúvida de que o futebol é o esporte mais popular do mundo
Como acontece desde 1950, o Brasil já é apontado entre os prováveis
vencedores desta próxima Copa. Será o hexacampeonato?
A Realeza de Pelé (Nelson Rodrigues)
Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu
personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence
chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um
susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis.
Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa
ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem
anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um
rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racionalmente perfeito, do
seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — Ponham-no em
qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em
derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de todo, um estado de alma. E
Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se
sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário,
é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu
personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já
lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a
ênfase das certeza eternas: — “Eu”. Insistiram: — “Qual é o maior ponta do
mundo?”. E Pelé: — “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir.
Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém
reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as
posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o
incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e
quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou
a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano
doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”. De
certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro
no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para frente
e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer
tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o
terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a
ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica
da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém
para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa.
E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e
encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol.
É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, certeza, de otimismo,
que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é,
justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba
intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade
de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível em
qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os
húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de
ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim,
amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos
adversários uns pernas-de-pau.
Sem exagero (Luis Fernando Veríssimo)
Fizeram um encontro meu com o Abel Braga quando ele estava treinando
o Internacional, e descobrimos uma coincidência. O primeiro jogo que ele viu no
Maracanã, ainda garoto, ao lado do pai, foi o último que eu vi, já nada garoto,
perto de me casar. Santos e Milan, novembro de 1963.
Até então eu não perdia jogo do Botafogo, da seleção ou do Santos no
Maracanã. Morava no Leme e pegava o ônibus Leme-Triagem, atravessava a pé
a Quinta da Boa Vista e ia para a arquibancada. Sim, o Santos jogava suas
partidas decisivas no Maracanã. O Maracanã enchia para ver o Pelé. Mas no jogo
que o Abel, eu e uma multidão vimos o Pelé não jogou. O herói da noite foi o
Almir. O Pelé da noite foi o Almir.
Volta e meia, vem a discussão. Pelé era mesmo tudo que se diz dele? O
Maradona era melhor? O Messi é melhor?
Meu testemunho não interessa. Ele reinou quando já havia videotape. Seus
feitos estão bem documentados. Você não precisa recorrer à literatura para
contar às crianças como era o seu futebol — ao contrário das façanhas de gente
como Ademir e Zizinho, que ficaram na memória dos velhos e em filmes
desbotados, nenhuma das duas coisas muito confiável.
E o grande mérito de Pelé é que ele resiste ao videotape completo. Se
tivesse ficado só em filme, só os seus grandes momentos estariam registrados.
Já o videotape completo traz tudo: o passe errado, o tombo sentado, a chuteira
desamarrada. E Pelé resiste aos detalhes. Ele era bom até amarrando a chuteira.
Com o futebol aconteceu um pouco do que aconteceu com a guerra:
quanto mais realista a sua reprodução, mais difícil romanceá-la.
Quando só se viam cenas de guerra em quadros épicos em que até os
cadáveres colaboravam na composição, ela podia ser glorificada sem
contestações, salvo as estéticas. Fora as gravuras de Goya, não se conhece um
quadro sobre a guerra, antes da invenção da fotografia, que não a exaltasse.
A fotografia primitiva roubou da guerra a cor e a composição artística, o
filme e o tape dinamizaram o horror, o zoom destacou o detalhe. Ainda há quem
ame a guerra, mas nunca mais a percepção dela foi a mesma.
E o futebol também mudou, o que só aumentou a dificuldade em julgar
jogadores antigos pelas precárias imagens que ficaram deles e pelo que contam
— com o inevitável toque romântico do exagero — os que os viram jogar.
Algumas das grandes reputações do passado sobreviveriam aos cinco no meio e
à marcação no campo todo de hoje?
Pelé pegou o começo do futebol sem espaço. Não só se impôs como deixou
o exemplo de como sobreviver no sufoco. A extrema objetividade (nunca se viu
um drible do Pelé apenas pela satisfação do drible, era sempre um espaço
conquistado), a antecipação da jogada seguinte antes mesmo de a jogada
presente começar, a solidariedade, a simplicidade. Melhor do que Maradona,
melhor do que Messi, e dou fé.
Flamengo Sessentão (Nélson Rodrigues)
Corria o ano de 1911. Vejam vocês: — 1911! O bigode do kaiser estava,
então, em plena vigência; Mata-Hari, com um seio só, ateava paixões e
suicídios; e as mulheres, aqui e alhures, usavam umas ancas imensas e
intransportáveis. Aliás, diga-se de passagem: — é impossível não ter uma funda
nostalgia dos quadris anteriores à Primeira Grande Guerra. Uma menina de
catorze anos para atravessar uma porta tinha que se pôr de perfil.
Convenhamos: — grande época! grande época!
Pois bem. Foi em 1911, tempo dos cabelos compridos e dos espartilhos,
das valsas em primeira audição e do busto unilateral de Mata-Hari, que nasceu
o Flamengo. Em tempo retifico: — nasceu a seção terrestre do Flamengo. De
fato, o clube de regatas já existia, já começava a tecer a sua camoniana tradição
náutica. Em 1911, aconteceu uma briga no Fluminense. Discute daqui, dali, e é
possível que tenha havido tapa, nome feio, o diabo. Conclusão: — cindiu-se o
Fluminense e a dissidência, ainda esbravejante, ainda ululante, foi fundar, no
Flamengo de regatas, o Flamengo de futebol.
Naquele tempo tudo era diferente. Por exemplo: — a torcida tinha uma
ênfase, uma grandiloquência de ópera. E acontecia esta coisa sublime: —
quando havia um gol, as mulheres rolavam em ataques. Eis o que empobrece
liricamente o futebol atual: — a inexistência do histerismo feminino. Difícil, muito
difícil, achar-se uma torcedora histérica. Por sua vez, os homens torciam como
espanhóis de anedota. E os jogadores? Ah, os jogadores! A bola tinha uma
importância relativa ou nula. Quantas vezes o craque esquecia a pelota e saía
em frente, ceifando, dizimando, assassinando canelas, rins, tórax e baços
adversários? Hoje, o homem está muito desvirilizado e já não aceita a ferocidade
dos velhos tempos. Mas raciocinemos: — em 1911, ninguém bebia um copo
d’água sem paixão.
Passou-se. E o Flamengo joga, hoje, com a mesma alma de 1911. Admite,
é claro, as convenções disciplinares que o futebol moderno exige. Mas o
comportamento interior, a gana, a garra, o élan são perfeitamente inatuais. Essa
fixação no tempo explica a tremenda força rubro-negra. Note-se: — não se trata
de um fenômeno apenas do jogador. Mas do torcedor também. Aliás, time e
torcida completam-se numa integração definitiva. O adepto de qualquer outro
clube recebe um gol, uma derrota, com uma tristeza maior ou menor, que não
afeta as raízes do ser. O torcedor rubronegro, não. Se entra um gol adversário,
ele se crispa, ele arqueja, ele vidra os olhos, ele agoniza, ele sangra como um
césar apunhalado.
Também é de 1911, da mentalidade anterior à Primeira Grande Guerra, o
amor às cores do clube. Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma
gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo, a camisa é tudo. Já tem
acontecido várias vezes o seguinte: — quando o time não dá nada, a camisa é
içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juizes, bandeirinhas
tremem então, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em
que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada.
Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a
camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.
As Expressões da Bola (Ruy Carlos Ostermann)
O poeta Paulo Mendes Campos, se bem me lembro, certa feita se deu o
trabalho de ter todos os jornais e ouvir as transmissões de rádio, não sei bem
se durante uma semana ou mais, com a intenção de observar quantas vezes a
palavra bola era citada.
Surpreendeu-se: ela quase não aparecia, mas, em seu lugar, surgiam as
mais variadas expressões. O poeta achou graça. Mas a verdade é que este objeto
de mediação entre 22 jogadores e o público, força e graça do futebol, só poderia
mesmo ser tratada assim. Quem sabe seja um esforço coletivo de melhor
assegurá-la, de tomar intimidades, um desejo de posse quase incontrolável.
A pedido, fiz um pequeno inventário. Não me vali de anotações, nem fiz
consultas. Fui puxando pela lembrança mais próxima. E, então, a partir de seu
nome próprio, que é bola, e que me parece merecer o direito de verbete num
dicionário sobre gíria futebolística (que ainda não foi escrito), encontrei, por
aproximação – bolão (Foi um bolão! – quer dizer uma bola superior, e por
extensão, uma jogada magnífica ou uma partida excelente), - bolinha (Vamos
bater uma bolinha? - ou seja, trocar uns passes, dar uns chutes, brincar), -
balão de couro (expressão genuína dos narradores de rádio, de circulação
restrita), - couro (uma forma contracta daquela), - número 5 (referência do
tamanho da bola e o critério numérico adotado pelos fabricantes – por sinal, a
número 4 é recomendável para as mesmas 30 peladas de fim de semana...), -
pelota (expressão já em desuso, mas corrente na década passada: - Pelota com
Didi! Lá vai Garrincha! Atenção...), - redonda (Mata a redonda no peito, põe o
pé em cima...), - Leonor (uma das tantas expressões carinhosas, mas com o
sentido comum que à bola se dá nestas circunstâncias – a Leonor está no fundo
das redes! – de perda, traição, desdita), - criança (É preciso botar a criança no
chão – o que significa simplesmente jogar com a bola na grama, sem pressa,
carinhosamente outra vez), - esférico (preciosismo transcrito da expressão usual
que se dá à bola, na Rádio Nacional de Lisboa), - ela (Ela é minha, cai fora! –
substitutivo dos mais comuns, especialmente entre jogadores que lhe dão força
de entidade pessoal), - menina (O time pegou a menina, e ninguém mais jogou
– outra vez o tratamento afetivo), - francesa (expressão surgida por causa das
bolas francesas, utilizadas na Copa do Mundo, no México, e que, segundo os
entendidos, sob todos os aspectos, são perfeitas), - guria (Ele sabe o que faz
com a guria, é um elogio ao bom jogador, que joga bem e, por consequência,
trata com afeto a bola).
Há mais expressões, inúmeras, incontáveis. Mas para uma amostragem,
e atendendo à sugestão de leitores, aí está uma contribuição.
O Juiz Ladrão (Nélson Rodrigues)
De vez em quando, eu esbarro num saudosista. É um sujeito esplêndido,
que vive enfiado no passado. Direi mais: — vive feliz e realizado no passado
como um peixinho num aquário de sala de visitas. E convenhamos que isto é
bonito, é lindo. Outro dia, um deles atracou-se comigo no meio da rua; arrastou-
me para o fundo de um café, e, lá, com o olho rútilo e o lábio trêmulo, pôs-se a
falar de Marcos de Mendonça, o “Fitinha Roxa”; da “espanhola”; do assassinato
de Pinheiro Machado e do campeonato que o Botafogo tirou em 1910. Mas, nos
vinte minutos da conversa retrospectiva, já lhe pendia do beiço uma grossa,
uma espuma bovina, uma baba elástica. De mim para mim, compreendi essa
nostalgia, louvei essa fidelidade ao passado. Amigos, eis uma verdade eterna:
— o passado sempre tem razão.
Por exemplo: — o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenômeno vital muito
mais rico, complexo e intrincado. Hoje, os jogadores, os juizes e os bandeirinhas
se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Não encontramos, em
ninguém, uma dessemelhança forte, crespa e taxativa. Não há um craque, um
árbitro ou um bandeirinha que se imponha como um símbolo humano definitivo.
Outrora havia o “juiz ladrão”. E hoje? Hoje, os juizes são de uma chata,
monótona e alvar honestidade. Abrahão Lincoln não seria mais íntegro do que
Mário Vianna. E vamos e venhamos: — a virtude pode ser muito bonita, mas
exala um tédio homicida e, além disso, causa as úlceras imortais. Não acredito
em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera.
Mas ponha-se um árbitro insubornável diante de um vigarista. E
verificaremos isto: — falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida
variedade do vigarista. O profissionalismo torna inexequível o juiz ladrão. E é
pena. Porque seu desaparecimento é um desfalque lírico, um desfalque
dramático para os jogos modernos.
Vejam vocês que coisa melancólica e deprimente: — um jogo de futebol
tem 22 homens. Com o juiz e os bandeirinhas, 25. Acrescentem-se os gandulas
e já teremos um total de 29. Vinte e nove homens e nem um único e escasso
canalha, nem um único e escasso vigarista! Eis a verdade, que levaria um Balzac
ao desespero e à úlcera: — as condições do futebol contemporâneo tornam
impraticável a existência do canalha. Ou por outra: — o canalha pode existir,
mas contido, frustrado, inédito, sem função e sem destino.
Mas em 1918, 17 ou 16, os gatunos constituíam uma briosa fauna, uma
luxuriante flora. Evidentemente, havia as exceções. Mas os salafrários podiam
apitar as partidas e com que glorioso, com que genial descaro! Certa vez, foi até
interessante: — existia um juiz que era um canalha em estado de pureza, de
graça, de autenticidade. Um domingo, ele vai apitar um jogo decisivo. Que fazem
os adversários? Tentam suborná-lo. Ora, o canalha é sempre um cordial, um
ameno, um amorável. E o homem optou pela solução mais equânime: — levou
bola dos dois lados. Justiça se lhe faça: — roubou da maneira mais desenfreada
e imparcial os dois quadros. Ao soar o apito final, os 22 jogadores partiram para
cima do ladrão. Mas o gângster já se antecipara, já estava pulando muros e
galinheiros. Era uma figurinha elástica, acrobática e alada. Isto foi em 1917. O
juiz gatuno está correndo até hoje.
O Torcedor (Mário Filho)
Um torcedor que assina “o torcedor do espelho” pergunta-me, por carta,
com ar quase de zanga, porque eu, quando citei o caso do torcedor do bodoque,
atrás do gol da piscina, lá em Campos Salles, não citei o caso dele: o caso do
“torcedor do espelho”. Ele tinha tanto direito quanto o outro. E talvez mais. A
pedrinha atirada pelo bodoque poderia “até” machucar. O espelho, não. E, além
disso, o espelho era uma arma muito mais perfeita do que o bodoque. O bodoque
acertaria ou não acertaria. Em São Januário, por exemplo, o bodoque não
adiantaria de nada. E o espelho foi aplicado, com absoluto êxito, de “qualquer
ponto” de São Januário. Amado ia defender uma bola e o reflexo do sol batendo
sobre o espelho — um espelho de bolso, pequeno, leve, cômodo — cegou
Amado. Gol do Vasco. “O senhor não se lembra? Pois o torcedor do espelho era
eu.”
Naturalmente que eu me lembro do torcedor do espelho. Durante um certo
tempo os torcedores do espelho se multiplicavam como vaga-lumes. A gente
olhava para as arquibancadas e via tudo faiscando. De repente, o goleiro
passava a mão pelos olhos. Qualquer pessoa, porém, podia levar um espelho
para o campo. E a arma passou a não valer de nada. Se um torcedor do Vasco
botava o reflexo do espelho em cima da cara do goleiro do Flamengo, o torcedor
do Flamengo esperava o primeiro ataque contra o gol do Vasco e toca a cegar o
goleiro do Vasco, o beque do Vasco, qualquer coisa do Vasco. E um dia um
chofer, em São Januário, arrumou os faróis de um carro em direção ao arco do
Flamengo. A polícia prendeu o chofer. O carro. Os faróis.
O que me impressionou mais na carta do torcedor do espelho foi o
anonimato. Ele protestou porque eu não tinha citado o nome dele. Qual é o nome
dele? Torcedor do espelho não se parece com nome de ninguém. E, no entanto,
eu sei que basta. O “torcedor do espelho” agora mesmo está sorrindo.
Encantado. Como se bastasse isso — a citação de um torcedor, que aliás não
era um, era uma multidão — para identificá-lo. Ele pode pegar o pedaço de
jornal e mostrá-lo a todo mundo. Hoje é dia de festa na casa do “torcedor do
espelho”. “Você já leu a Primeira Fila?” — ele indagará de companheiros de
repartição, de amigos, de vizinhos. — “Pois não perca a de hoje. Está boa. Cita-
me”.
Eu um dia estava sentado diante de uma mesa redonda, escrevendo,
escrevendo. Aí, apareceu um homenzinho, com um embrulho debaixo do braço.
Dentro do embrulho estava um pacote de cinco contos de réis. O homenzinho
encontrara o embrulho não sei onde e se apressara em vir entregá-lo. “Eu sou
pobre, mas honesto” — declarou ele, com convicção. Com uma satisfação íntima,
profunda, tomaram nota. Nome. Endereço. Tudo. Levaram o pacote para dentro.
E o homenzinho começou a ficar nervoso. Ele vestira o terno dos domingos e
feriados, mandara engraxar os sapatos, cortar os cabelos e nenhuma fotografia?
Eu o vi querer dizer uma coisa. Não disse. Ou, por outra, só disse quando abriu
a porta para sair: “Assim, sem fotografia nem nada, nem vale a pena ser
honesto. Até desanima a gente”. E bateu a porta com violência. Em sinal de
protesto.
O nome em jornal há de ter o seu encanto. Há de ter. Mesmo quando é
uma indicação: “Leônidas fazia-se acompanhar por um amigo”. Quantos
apontam a linha em corpo sete para dizer: “o amigo era eu”? Assim, não é difícil
compreender o caso do “torcedor do espelho”. Eu, inclusive, devia a ele uma
crônica. Quem me forneceu o motivo foi ele. Realmente, há uma porção de
torcedores que intervêm em uma jogada, em um match, que decidem uma
partida. Uns violentos. Os que levam tijolos para o campo. Os que bebem soda
só para ficar com a garrafa na mão para o que “der e vier”. E outros maliciosos.
Levando um espelho. Um bodoque. Um apito.
Antigamente, no mais aceso de um ataque, se ouvia o trilar de um apito,
estridente. E uma parte da torcida gritava: “offside! pênalti!” O jogo parava. E
o juiz tinha de dar bola ao alto. Com o tempo o apito — o “cesar” tudo, de um
trocadilhista que queria ser agradável ao César Ladeira — perdeu o prestígio. E,
às vezes, o juiz apitava, apitava, e não adiantava. Os jogadores continuavam
jogando até que a bola entrasse, que a bola saísse. Ninguém “caía” mais no
conto do apito. A não ser um de fora.
Carreiro costumava fazer isso. Ele, de boca fechada, dando um jeito
qualquer na língua, produzia um som absolutamente igual ao de um apito. Uma
vez ele marcou um gol porque, na hora que o beque ia rebater, ele “apitou”. O
beque desistiu da rebatida. Carreiro invadiu a área, pegou a bola e colocou-a no
cantinho. Por isso, se fala tanto hoje em gol anulado, apesar de o juiz ter apitado
antes. Ninguém obedece, que não é besta. Quem sabe se o apito não foi o apito
de torcedor?
Há torcedores, aliás, com força moral sobre o juiz. Com uma voz poderosa
de comando. Uma voz assim de Victor McLaglen. Grossa. Estentórea. Hipnótica.
O juiz não quer apitar e apita a ordem de offside! hands! foul! corner! Contra
isso o juiz não pode lutar. Trata-se de alguma coisa mais forte do que ele.
Felizmente, são raros os torcedores privilegiados com uma voz de comando. E,
além disso, os que têm a voz de comando, não a gastam assim, sem mais nem
menos. Guardando-a para ocasiões solenes. Quase cívicas.
Os torcedores do bodoque, do espelho, do farol de carro, do tijolo, do
desaforo, da garrafa de soda ou de cerveja, do apito, são os torcedores por conta
própria, que não se integram na multidão, que não se perdem no meio da
multidão, que se destacam, conservando a personalidade. A maioria é parte de
um todo, sentindo emoções em conjunto, não se dando ao luxo de vibrar só,
como indivíduo. Depois da exibição de um escrete austríaco em Londres, cinco
mil torcedores ingleses, sem aviso prévio, um não conhecendo o outro, não se
cumprimentando sequer, atravessaram a Mancha para ir ver o Wonderful Team
jogar em Bruxelas. Eu não conheço exemplo mais maravilhoso do homem
massa, do homem multidão.
Pode-se dizer que há uma enorme diferença entre o torcedor inglês e o
torcedor brasileiro. Um, torcedor de futebol, apenas. E o outro, torcedor de
clube. De camisa. O torcedor inglês não intervém no match. Manifesta agrado
ou desagrado com sobriedade. Valorizando a palma. Em um match Itália x
Tchecoslováquia, porém, quando Plánička ia fazer uma defesa no canto, recebeu
uma pedra atirada por um bodoque de torcedor, bem na nuca. Ele, no ar, em
pleno salto, teve que coçar o pescoço. A bola entrou. Os tchecos, porém, se
recusaram a continuar o jogo. A polícia andou prendendo tudo o que era torcedor
mal-encarado. Com jeito de fazer uma coisa daquelas.
Em alguns momentos, quando as coisas estão pretas, a torcida resolve dar
uma mão ao time. Quando os brasileiros foram disputar com os argentinos, no
campo do Barracas, em Buenos Aires, o último jogo do Sul-Americano de 25,
Friedenreich marcou um, dois gols, e, quase na hora de marcar o terceiro,
recebeu um pontapé pelas costas. Era o sinal. Senão combinado, pelo menos
entendido. O torcedor entrou em campo e tocou o braço nos brasileiros.
Amansando-os. Deixando bem claro que não se podia fazer, impunemente, uma
porção de gols em cima dos argentinos. Os brasileiros não caíram na tolice de
marcar mais gols. E os argentinos empataram o jogo. Que diabo: eles eram os
donos da casa, não eram?
Eu ia me esquecendo do torcedor fotógrafo que leva magnésio para o
campo e resolve bater uma chapa de uma defesa sensacional do goleiro
“contrário”. Do “outro” não interessa. Uma vez o Vasco jogava não sei com
quem. Talvez com o Flamengo, porque quase todos os fotógrafos torcem pelo
Flamengo. O caso é que Rey ia segurar a bola quando se ouviu uma explosão
medonha. Parecia de bomba. Rey tremeu, largou a bola, julgou que tinha sido
alvejado por um bacamarte. E eu só vi vascaíno pulando para a pista e o
fotógrafo correndo, gritando que tinha sido sem querer. Hoje, é proibido levar
magnésio para o campo. Quem quiser bater fotografia de jogo noturno, têm de
comprar lâmpada. Por quatro ou cinco mil réis. Mais barato do que um tiro de
magnésio.
Complexo De Vira-Latas (Nélson Rodrigues)
Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os
jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a
esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem
esbraveje: “O Brasil não vai nem se classificar!”. E, aqui, eu pergunto:
— Não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e
envergonhado?
Eis a verdade, amigos: — desde 50 que o nosso futebol tem pudor de
acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda
faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional
que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos
digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um
escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão
sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros,
Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse “arrancou” como poderia dizer: —
“extraiu” de nós o título como se fosse um dente.
E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: — é ainda a
frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas
o que nos trava é o seguinte: — o pânico de uma nova e irremediável desilusão.
E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: —
se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que
escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de
brasileiros iam acabar no hospício.
Mas vejamos: — o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades
concretas? Eu poderia responder, simplesmente, “não”. Mas eis a verdade: —
eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: — sou de um patriotismo inatual e
agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto jogadores de outros
países, inclusive os exfabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-
enxertado do Flamengo. Pois bem: — não vi ninguém que se comparasse aos
nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi,
um Leônidas, um Jair, um Zizinho.
A pura, a santa verdade é a seguinte: — qualquer jogador brasileiro,
quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de
único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: — temos
dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas
qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de “complexo de vira-latas”.
Estou a imaginar o espanto do leitor: — “O que vem a ser isso?”. Eu explico.
Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro
se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores
e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica
inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês,
louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente
e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de
50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do
empate. Pois bem: — e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito
simples: — porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.
Eu vos digo: — o problema do escrete não é mais de futebol, nem de
técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O
brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol
para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que ele se convença disso, ponham-
no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da
anedota. Insisto: — para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.
Manual de Instrução (Tostão)
Numa de suas deliciosas crônicas, Luis Fernando Veríssimo conta que
um pai deu uma bola de presente ao filho. O menino perguntou: "Onde é que
liga?". O pai explicou-lhe o que era uma bola e para que servia. O garoto, mais
curioso, indagou: "Tem manual de instrução? É em inglês?".
Na Inglaterra, os torcedores agora terão de assinar um código de
comportamento no momento em que comprarem ingressos para uma partida.
Aproveito a crônica do Veríssimo e a resolução da Federação Inglesa para
sugerir um manual de instrução para as pessoas que trabalham no futebol.
O jogador será obrigado a tratar a bola com carinho. Quase como se ela
fosse a mulher amada. Chute de bico e de canela só para fazer gol, como faz o
Romário e o Dadá Maravilha. "Não existe gol feio. Feio é não fazer gol." (Dadá)
Os jogadores estarão livres para imaginar, criar, arriscar e não apenas
para seguir as ordens do "professor".
O atleta, principalmente o de meio-de-campo, terá de atuar com a cabeça
em pé, sem olhar para a bola. Assim como o goleiro, o armador não poderá
demorar mais do que seis segundos para dominar a bola, girar o corpo, pensar
e dar o passe.
Como diz a regra, na cobrança do pênalti, o goleiro só poderá dar um
passo para frente quando o cobrador tocar a bola.
A malandragem do goleiro, ao se mexer, é interessante e criativa. Fazer
isso em todas as cobranças é trapaça.
Será proibido dar carrinhos pela frente, por trás, de lado, na canela, nos
testículos, pênis e em qualquer outra parte do corpo.
O zagueiro que der carrinho sem necessidade terá pena de suspensão
dobrada, por violência e burrice.
O lateral não será obrigado a fazer sempre a mesma coisa: correr e jogar
a bola na área. Sem ver. Ele também poderá driblar, passar e tabelar, além de
cobrir os zagueiros.
Os volantes treinarão como passar a bola com mais de dez metros de
distância, duas horas por dia, inclusive aos domingos e feriados. E ficará
estabelecido: se não aprenderem em um ano, serão transferidos para uma
equipe da Série B.
O jogador rápido, habilidoso, driblador, que cruza bem, magrinho, de
canela fina e com menos de 50 kg, terá o direito de jogar na ponta. Não poderá
ser transformado em atacante ou armador.
Os treinadores serão multados se mandarem parar as jogadas de qualquer
maneira. O jogador poderá entender que vale tudo. Até morder. Literalmente.
Como diz a regra, os treinadores não poderão permanecer na linha lateral
de campo. Darão as instruções e retornarão ao túnel. Lá, prestarão atenção no
jogo, em vez de xingar árbitros e auxiliares.
Os técnicos só poderão dar show diante das câmeras de TV cinco minutos
antes e após o jogo. No lugar de fazer cara feia nas entrevistas, terão de explicar
suas condutas e analisar a partida. Os torcedores têm o direito de saber.
Os árbitros não poderão ter dois pesos e duas medidas. Terão de ser
profissionais.
Os auxiliares treinarão a marcação de impedimento durante duas horas,
todos os dias. Até conseguirem aprender.
Estarão abolidas as relações espúrias e fisiologismos entre Confederação
Brasileira de Futebol, federações e clubes.
O calendário será cumprido, mesmo que uma equipe como a do Flamengo,
clube de maior torcida do Brasil, tenha de ser rebaixada.
Dirigentes e empresários que fizerem vendas "por debaixo do pano", falsificarem
passaportes, explorarem menores, contratarem jogadores para beneficiar
intermediários e muitas outras coisas que as CPIs estão investigando serão
processados e expulsos do futebol.
Os comentaristas esportivos não poderão ser bairristas nem parciais.
Torcer somente com o microfone desligado. Não será permitido, durante um
jogo ou programa esportivo, ser jornalista e garoto-propaganda ao mesmo
tempo.
Os torcedores poderão gritar, pular, cantar, vaiar, xingar até a mãe, soltar
flatos e outras diversões. Somente é proibido brigar e incitar a violência.
Será criado um conselho para elaborar um manual, não de notáveis, mas de
esportistas anônimos e independentes. Seus nomes não serão revelados.
Poderá também ser criado um megapsicodrama, como promove a atual
Prefeitura de São Paulo, com intenção de discutir a ética. É uma idéia criativa e
eficiente.
O megapsicodrama aconteceria sempre uma hora antes das partidas de
futebol, na porta dos estádios.
Com um megafone, todos os presentes discutiriam e reclamariam de tudo
e de todos. Seriam convidados dirigentes de clubes e federações, torcedores,
redes de televisão, empresários, jornalistas, Ricardo Teixeira, Pelé, Sócrates,
Eurico Miranda...
Se der certo, o projeto seria estendido para todos os setores da sociedade,
inclusive Brasília, com a presença de deputados, senadores, FHC, ACM, Jader
Barbalho...
Seria uma catarse coletiva nacional, para salvar e criar uma nova ética no
futebol e no país.
Estou delirando!
Iniciada a Peleja (Fernando Sabino)
Justamente na hora do primeiro jogo de nosso selecionado na Europa
(referência ao jogo amistoso preparatório à Copa de 58 realizado em Florença,
Itália, em 29/05/1958, contra o A.C. Fiorentina), realizava-se uma reunião da
diretoria do banco, a que ele não poderia deixar de comparecer. Não teve
dúvidas: arranjou emprestado um radiozinho transistor, com dispositivo de se
adaptar ao ouvido para audições individuais, meteu-o no bolso e bateu-se para
a reunião.
– Que é isto? – estranhou um dos diretores. – Você ficou surdo?
Acomodou-se junto à mesa: a reunião já havia começado e o jogo
também. Didi passa para Mazzola, este para Pepe, Pepe novamente para
Mazzola. Proposição de um dos diretores sobre o incremento do crédito agrícola.
Escapada de Garrincha pela direita. Estamos certos de que nossos colegas
aprovarão as medidas que permitam a imediata normalização das operações.
– Aprovado.
– Aprovado.
– Impedimento!
– Como?
– Nada não. Aprovado.
A pelota é devolvida à circulação: os produtores não poderão obter senão
um empréstimo equivalente ao valor de sua remissão que será adicionado ao
montante da dívida. Falta perigosa a ser cobrada nos limites da grande área. O
débito remanescente e oriundo do financiamento previsto na lei representa um
perigo para a cidadela brasileira, defendida por Gilmar. A dívida será computada
no ano imediatamente posterior à safra liberada. Cobrada a falta. Defesa es-pe-
ta-cu-lar de Gilmar!
– A menos que a garantia oferecida, nos termos da Portaria número
quatro...
– Centra logo, homem de Deus!
Didi recebe de Bellini e organiza novo ataque. Os lavradores beneficiados,
quaisquer que sejam os termos da dívida assumida...
– É agora! Vai chutar.
– Perdão?
– Não entendi o seu aparte.
– Ah, desculpe...Pode prosseguir: foi fora. Os termos da dívida assumida...
– O senhor está me ouvindo bem aí?
– Perfeitamente. Por quê?
– Esse seu aparelhinho no ouvido... Muito bem: prossigamos.
A reunião prosseguiu sem novidades até que Garrincha se apoderasse
novamente da bola. Mazzola prepara-se para chutar...Pânico na defesa italiana.
– Gol do Brasil! – berrou ele, incontido.
Os outros diretores se voltaram, estupefatos. Tornou a desculpar-se como
pôde, acomodou-se novamente na poltrona e continuou a participar da reunião,
que prosseguia agora sob estranheza geral: os lavradores, em face dos
dispositivos que regulam o débito consignado no exercício anterior...Ele foi-se
erguendo lentamente da poltrona, braço estendido, fisionomia aparvalhada.
– Que está acontecendo, afinal?
– Esperem, esperem – pediu, olhos esbugalhados, imóvel como um
perdigueiro ao amarrar a caça, e contendo com sua postura de estátua a
curiosidade dos demais: Pepe continua avançando, dribla os dois zagueiros,
invade a área, tira o goleiro da jogada...
– Mais um! – saltou ele na cadeira. – Agora não tem mais perigo: podemos
prosseguir.
Os comentários corriam em torno à mesa: que diabo de rádio é esse?
Deixa ver, que coisa interessante...Tão pequenino. Eles já não sabem mais o
que inventar. Liga aí para a gente ver. Quanto está? Gol de quem?
– De Pepe. Espetacular.
– Mais para cá, que eu também quero ouvir.
– Põe no meio da mesa logo de uma vez.
Pôs o radiozinho no meio da mesa, e a diretoria, por decisão unânime, em
face de tão grave conjuntura para os destinos de nossa nacionalidade, concedeu-
lhe primazia entre os assuntos em pauta. Mazzola era um gigante dentro de
campo. Didi, um verdadeiro assombro.
– Olha só esse passe.
– O homem está em todas.
Ao fim, os diretores, esquecidos do que dispõe a Lei nº 2697, sobre a
concessão de crédito agrícola em face da safra liberada no ano anterior,
congratulavam-se, entusiasmados: havíamos vencido por quatro a zero.
– Eu sempre disse que o problema de Feola estaria no ataque.
– Gilmar foi o maior, senhores.
– Você viu aquela defesa?
– A leitura do relatório, em face das circunstâncias, a meu ver deverá ficar
para a próxima reunião.
Aprovada a proposição, deram por encerradas as atividades daquele dia e
foram, incorporados, tomar um uísque para celebrar.
Dez motivos (José Roberto Torero)
Leitor (e falo no singular porque sei que só você me lê), tudo na vida
precisa de motivos. Nossas decisões devem ser fruto de uma reflexão prévia,
fundamentada em vários exemplos que nos permitam distinguir a verdade do
erro.
Quantas decisões infelizes não teriam sido evitadas se as pessoas se
dessem ao trabalho de levantar os prós e os contras de uma questão,
esquadrinhando cada aspecto de um problema antes de saírem à luta. E isso
aflige principalmente os jovens, que, impetuosos, normalmente têm hormônios
demais e neurônios de menos.
Dirijo esta crônica ao jovem, sobretudo àquele que sonha em seguir uma
carreira no futebol e ainda não decidiu em que posição jogar.
Leia, compare e depois veja se as vantagens de cada posição coincidem
com o que você espera da vida.
Dez motivos para ser goleiro:
1) o uniforme é diferente;
2) as luvas são charmosas;
3) pode fazer pose para fotos;
4) chama a atenção das mulheres;
5) corre menos;
6) pode tomar um café de vez em quando (vide Marcos);
7) não há responsabilidade na hora do pênalti;
8) pode passar um jogo inteiro sem trabalhar;
9) no fim do jogo, já sabe com quem trocar de camisa;
10) sempre pode dizer que o gol tomado se originou de uma falha dos zagueiros.
Dez motivos para ser zagueiro:
1) destruir é mais fácil do que construir;
2) é permitido e, às vezes, até aconselhável o chutão de bico;
3) dá muitas cotoveladas;
4) dá muitos pontapés;
5) dá muitos carrinhos;
6) toma muitos amarelos. Com isso, pode passar os domingos com a família e
os amigos;
7) faz um gol, e ele é muito festejado;
8) geralmente, ele se torna o capitão do time, ou seja, tem a liberdade para
gritar com todos;
9) tem fama de machão;
10) sempre pode dizer que o gol tomado se originou do mau posicionamento
do meio-campo.
Dez motivos para ser meia:
1) recebe muitas bolas;
2) aparece muito no jogo;
3) aparece muito na televisão. E em closes;
4) tem fama de craque;
5) pode fazer uma firula de vez em quando;
6) não é preciso jogar de costas para o gol;
7) pode indicar o posicionamento dos companheiros.
8) geralmente bate as faltas;
9) não tem a obrigação de marcar, só de cercar;
10) ganha mais que os zagueiros.
Dez motivos para ser atacante:
1) faz mais gols;
2) fica na lembrança durante anos;
3) é reconhecido nas ruas;
4) dá mais autógrafos;
5) tem o nome gritado pelos torcedores;
6) torna-se mais lembrado pelas torcedoras;
7) bate os pênaltis;
8) ganha mais que os meias;
9) aparece em revistas;
10) sempre é lembrado para a seleção.
Dez motivos para ser dirigente:
1) não sua a camisa;
2) pode despedir o técnico;
3) pode ganhar comissão na venda dos jogadores;
4) ganha mais que os atacantes;
5) põe a família para dentro do campo;
6) dá muita entrevista;
7) pode pôr a culpa da derrota no goleiro, no resto do time ou no técnico;
8) vê o jogo sempre do melhor lugar;
9) sabe tudo o que realmente acontece no Clube dos 13;
10) pode conseguir uma cadeira no Congresso.
Dez motivos para ser cronista:
1) não sofre gols;
2) não é expulso;
3) não sofre contusões;
4) não leva pontapés;
5) não perde gols;
6) não é vaiado;
7) não sofre cobranças;
8) não precisa dar explicações após as derrotas;
9) dá palpite no trabalho dos outros;
10) ganha-se a vida fazendo crônicas tolas como esta.
Juiz (João Antônio Ferreira Filho)
— Cachorro!
A multidão ferve e grita. E xinga de vagabundo a homossexual, ladrão e
negro. Passando, naturalmente, por bunda-mole, imbecil, safado, arrombado,
tratante, comprado a vendido.
Debaixo de um mormaço sem brisa, sem árvores e sem refresco, o herói
entra em campo. Antes de qualquer gesto seu, é vaiado por todas as bocas, por
todos os olhos, em saraivada, os punhos da galera socando o ar. O menor dos
palavrões, um xingo grosso mandado, com raiva, pra cima dele:
— Sua mãe está fazendo a vida na casa de Zulmira, vagabundo! Lazarento!
Metido no uniforme preto, certinho, brilhante, mangas compridas, o poeta
do momento sua no pescoço, nuca, carapinha, sovaco, nas partes, nos nove
buracos do corpo e nos quatro cantos do corpo. Procura que procura sem coçar
a carapinha, manter as coisas, sustentar uma categoria e uma limpeza de
caráter que não são suas e lhe estão longe.
Jacarandá sopra o apito, os jogadores se colocam e o jogo começa. Cinco
minutos, não mais, o público do Vitorino dá trégua ao herói, se voltando contra
um bandeirinha a quem atribui novas qualidades infamantes. Sexuais, na
maioria.
No sexto minuto, a peça fraqueja, a primeira vez, deixa de apitar uma
falta do meia-armador visitante. O estágio lhe cai de pau:
— Negro sem vergonha! Ladrão do meu dinheiro!
Suando e correndo, o pinta está a medo e a perigo. O povo engrossa
xingos zangados, primeiros sacos plásticos ameaçam, voando da galera para a
grama, nas laterais.
Parada. Era uma parada. O gajo planejara — seria rápido, mutável,
aparentando firmeza e decisão. Dissimularia. Escalado para apitar aquele jogo,
conhecendo na pele a rixa Londrina-Curitiba, Jacarandá acreditava – a princípio
– na sua picardia e capacidade de manobra, teria um comportamento pendular,
trocaria de política conforme as crises e as mudanças do vento. Acontece que
em Londrina até os ventos são quentes.
Inda mais, o povo-povo não lhe perdoava a cor. Mulato, o poeta tinha pela
frente noventa minutos de taxações violentas. Inda mais. Era encontro do
Londrina contra a equipe forte da capital e o herói tentava compor com os dois
lados, politicamente. Uma vela para Deus, uma vela para o capeta; uma vela
para Deus, uma vela para o capeta.
Destrambelhou-se no sexto minuto e a partir daí meteu o olho arisco em
cima do meia-armador do clube visitante. Na primeira oportunidade meteu-lhe
um cartão amarelo e, manhoso, tratou de expor quase metade do cartão
vermelho no bolso da camisa preta, como lembrança ameaçadora. (Para os
jogadores do clube da capital, é claro).
Vista grossa para os locais, olho vivo e punitivo pregado nos visitantes.
Mas os de fora deram pra jogar melhor, investindo sempre e, num lance na
pequena área, em que estava enfiado o meia-armador, houve porrada feia e
Jacarandá não apitou um pênalti contra o Londrina. O clube visitante chiou, o
capitão da equipe, físico taludo, foi às falas com o poeta. Dissimulado, mãos
para trás, feito um colegial, o capitão sapecou-lhe um esporro. Uma esparrela
redonda, arretada, exemplar, inteiriça:
– Cachorro, filho-da-mãe, morfético! Você apita essa porcaria direito ou
vou lhe espetar lá fora. Acabo com sua raça, seu negro!
O meia-armador aproveitou o embalo, serviu-se. Foi-se chegando para a
peça, mãos jogadas para trás:
– Você está na caixinha, safado, negro salafrário! Mas não perde por
esperar.
Jacarandá passou a correr atrás de uma ordem que ele mesmo bagunçou,
no começo. Tropeçando, desnorteando-se em erradas, ia precariamente,
desmoralizado. Dando azar, picotando a partida com interrupções fora de hora,
repetidas, que irritavam. O jogo caiu para o marasmo. Na marca dos trinta
minutos, os jogadores não queriam nada com a bola, o povo vaiava tudo,
incomodado peo calorão do estádio sem árvores e sem brisa. O sol batia de
chapa, castigava as caras aporrinhadas, azedas.
O meia-armador tesourou o centroavante londrinense e Jacarandá vacilou,
deixou correr frouxo. Vacilou, dançou. O povo da galera explodiu:
– Expulsa, ladrão! Bota pra fora! Vagabundo, sua mãe está se virando na
casa de Laura! Lazarento!
O gajo ensaia nova composição. Nuca falta dos visitantes, expulsa um
lateral-esquerdo, até ali o jogador melhor comportado dos vinte e dois. Engole
novo esporro do capitão da equipe que ameaça com um bolo de jogadores.
Forma-se a roda, a casa de caboclo, Jacarandá no centro. Disfarçadamente
alguém lhe chuta o cotovelo e o herói não esconde uma careta.
O tenderepá se dissolve, ele antecipa o final do primeiro tempo, rouba três
minutos, é o primeiro a sair de campo, orelhas ardendo, passo meio corrido.
Nem os bandeirinhas estão falando com Jacarandá e a peça tem quinze minutos
para ouvir, em solidão e medo, no vestiário dos árbitros, os comentários das
rádios, que o taxam de incompetente, pulso frouxo e figura lamentável. A
linguagem esportiva expunha, com gozo, momentos de seu gritado brilhareco
tradicional, empostado, gula para efeitos frenéticos:
– Sua Excelência, Jacarandá Bandeira, é o responsável por uma partida de
futebol que descambará fatalmente ou para o marasmo ou para a violência. Esta
contenda poderá tomar rumos imprevisíveis.
O herói ouvia encolhido, imaginando composições novas com as duas
equipes. Que alguma o salvasse. Voltou a campo e teve, em quarenta e cinco
minutos, que ouvir cerca de duzentas vezes o mesmo xingo. O negro gritado
com nojo e escárnio, acompanhado de vários complementos – safado, ladrão,
cascateiro.
Não se distrair, evitar uma visão e um pensamento que o apavoravam. O
gajo teimava em não olhar para a galera, fixar e dançar os olhos só no jogo.
Mas houve um momento. Deu, sem querer, de olhos para o povo e o pensamento
ruço lhe correu, dando frio no espinhaço. Aquela gente furiosa não iria esfolá-lo
vivo?
A multidão lhe atirava coisas, além de nomes. Perdido o rebolado,
Jacarandá deu para interromper suas corridas, coçar a carapinha já não
disfarçando que tudo estava por um fio. Correu para a marca do escanteio e lhe
acertaram, em cheio, um saco plástico de água que estalou como um soco.
Vinte minutos, nova discussão – expulsou o centroavante dos visitantes. Levou
xingamentos reforçados e ameaças de uma boa surra. Daí para frente, o ritmo
se precipitou. Cartões amarelos, fuás, polícia interferindo, jornalistas botando
mais lenha no fogo com suas máquinas e fios. Jacarandá Bandeira levou dois
trompaços do capitão visitante na marca dos quarenta e cinco minutos finais.
Teria sido surrado não saísse pulando, bufando, suando, escafedendo-se,
enfiando-se no vestiário dos juízes. Ali, escondido, medroso, apequenado,
deixou o tempo correr, banho mais longo de sua vida.
Uns pensamentos lhe batiam, atravessados. Onde, em que teria errado?
Nas composições, nas manobras, na parcialidade – ou não fora nada disso, a
bronca do povo não estaria mais voltada para a cor de sua pele e o errado não
teria sido ele, ao se meter no mundo das arbitragens, jogadas afinal do domínio
dos brancos naquele futebol em que o negro entrava como jogador e força de
trabalho? Isso, talvez isso, certamente assim, nada mais. Onde errara, não havia
feito o joguinho e as vontades da equipe local, não fizera o joguinho que lhe
pediram, as coisas não haviam pendido sempre para o clube da terra? Onde
estava o erro? Mas esses pensamentos não tinham linha reta na cabeça de
Jacarandá, embaralhavam-se repetidamente na carapinha molhada. O herói
talvez desconfiasse, em confusão, que havia feito, de uma maneira ou outra,
bobagem grossa ao se meter em jogadas de brancos.
Contava e já não contava com a proteção policial. A bem dizer, até a temia
– afinal, o jogo não dera um ganhador – e a polícia era local.
Esfriou mais. Um dos bandeirinhas lhe boquejou, baixo, sinistramente.
Provável, na saída do Vitorino. Encontraria um dirigente do clube visitante para
um acerto de contas. Na base do conversar e discutir. Só que o cartola, violento
dono de rinhas, fazia fama pelas soluções lançando mão de um trinta e oito de
cabo de madrepérola. O herói tremia debaixo do chuveiro. Arrepiado,
arrepiadinho.
Jacarandá Bandeira está só. E bem. Dá um tempo. Dá mais um tempo.
Depois mais um.
De tempo em tempo, duas horas, e já com a lua no céu, o gajo enfrentou
a saída do estádio. Lá fora, na noite quente, deu sinal com o braço, o táxi ia
parando.
Aí, saídos Jacarandá não viu de onde, o pegaram.
— Negro safado!
Foi batido até o desmaio e recordado à ponta de cigarro. Descobriram,
furiosos, que só desmaiara e a tunda dobrou, rápida, maciça, antes da chegada
dos cassetetes da polícia.
Então, os surradores deram no pé, em várias direções e um deles ainda
escarneceu numa ponta de rua mal iluminada. O xingo ficou, indo e voltando,
na caixa de pensamento de Jacarandá Bandeira. Doendo.
– Negro!