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Aparencia. Mera aparencia. Afinal, bem examinadas, a completude, a perfei~áo, sáo nostalgias c1ássicas, substan- cialistas, de harmonia e reconcilia~áo, num mundo como o nosso, !!jco e dilacerado, s6 habitado pelas aleg6ricas ruínas b~njaminianas (tra~o insinuante da Der~stencia moderna e contemporanea do Barroco...). Num certo sentido (num sentido admonit6rio, que con- jura as veleidades e convida a reflexáo), prefiro recapitular as palavras de Gottfried Benn, na sua conferencia de 1951, Prob/eme der Lyrik (Gottfried Benn, o nietzscheano poeta das Desti//ationen, fascinado pelo "complexo Jigúrico"~um poeta que partilhava com o nosso Faustino "uma amizade pelo azul" / eine Befreundung für B/au): Nenhum, mesmo dentre os maiores líricos de nosso tempo, deixou mais do que seis a oito poemas perfeitos; os restantes podem ser interes- santes do ponto de vista da biografía e da evolu~ao do autor, mas aqueles que encerram em si mesmos e de si irradiam um fascínio plenamente du- radouro sáo poucos - e no entanto, para esses seis poemas, trinta a cinqüenta anos de ascese, sofrimentos e luta. 212 16. UMA LEMINSKÍADA BARROCODÉLICA'" o Catatau, de Paulo Leminski, está sendo relan~ado. Publicado em 1975, em Curitiba, por uma pequena editora, teve, por assim dizer, um exito de camera. O que se costu- ma chamar "sucesso de estima", junto a um pequeno círcu- lo de aficcionados. A seu redor criou-se, como seria de es- perar, a legenda negra da ilegibilidade. Para isso contribuiu o pr6prio autor, que, numa advertencia inicial, proc1amava: "Me nego a ministrar c1areiras para a inteligencia deste ca- tatau que, por oito anos, agora, passou muito bem sem ma- pas. Virem-se". E houve quem se virasse, como prova a pe- quena mas expressiva "Fortuna Crítica" que acompanha es- ta reedi~áo, na qual se destaca, pelo detalhe analítico, o en- saio "Catatau: Cartesanato", de Antonio Risério. Mas o pr6prio Leminski, antes de ser fulminado pela cirrose pro- metéica que o roubou de nosso convívio, teve tempo de re- considerar sua primeira atitude de desafio ao leitor. Prepa- rou para a nova edi~o uma introdu~áo ao livro, sob o título I · Publicado originalmente em Letras, Folha de S. PauJo, 02.09.1989. 213

Leminskiada Sarduy Haroldo

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Page 1: Leminskiada Sarduy Haroldo

Aparencia. Mera aparencia. Afinal, bem examinadas, acompletude, a perfei~áo, sáo nostalgias c1ássicas, substan-cialistas, de harmonia e reconcilia~áo, num mundo como onosso, !!jco e dilacerado, s6 habitado pelas aleg6ricas ruínasb~njaminianas (tra~o insinuante da Der~stencia moderna econtemporanea do Barroco...).

Num certo sentido (num sentido admonit6rio, que con-jura as veleidades e convida a reflexáo), prefiro recapitularas palavras de Gottfried Benn, na sua conferencia de 1951,Prob/eme der Lyrik (Gottfried Benn, o nietzscheano poetadas Desti//ationen, fascinado pelo "complexo Jigúrico"~umpoeta que partilhava com o nosso Faustino "uma amizadepelo azul" / eine Befreundung für B/au):

Nenhum, mesmo dentre os maiores líricos de nosso tempo, deixoumais do que seis a oito poemas perfeitos; os restantes podem ser interes-santes do ponto de vista da biografía e da evolu~ao do autor, mas aquelesque encerram em si mesmos e de si irradiam um fascínio plenamente du-radouro sáo poucos - e no entanto, para esses seis poemas, trinta acinqüenta anos de ascese, sofrimentos e luta.

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16. UMA LEMINSKÍADA BARROCODÉLICA'"

o Catatau, de Paulo Leminski, está sendo relan~ado.Publicado em 1975, em Curitiba, por uma pequena editora,teve, por assim dizer, um exito de camera. O que se costu-ma chamar "sucesso de estima", junto a um pequeno círcu-lo de aficcionados. A seu redor criou-se, como seria de es-perar, a legenda negra da ilegibilidade. Para isso contribuiuo pr6prio autor, que, numa advertencia inicial, proc1amava:"Me nego a ministrar c1areiras para a inteligencia deste ca-tatau que, por oito anos, agora, passou muito bem sem ma-pas. Virem-se". E houve quem se virasse, como prova a pe-quena mas expressiva "Fortuna Crítica" que acompanha es-ta reedi~áo, na qual se destaca, pelo detalhe analítico, o en-saio "Catatau: Cartesanato", de Antonio Risério. Mas opr6prio Leminski, antes de ser fulminado pela cirrose pro-metéica que o roubou de nosso convívio, teve tempo de re-considerar sua primeira atitude de desafio ao leitor. Prepa-rou para a nova edi~o uma introdu~áo ao livro, sob o título

I · Publicado originalmente em Letras, Folha de S. PauJo, 02.09.1989.

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"Descordenadas Artesianas", na qual abre o jogo e contaum pouco da história de sua história. "Por fim a cobra mor-de o próprio rabo", diz ele. E passa a referir que a "intui~aobásica" do Catatau Ihe viera em 1966, enquanto ministravaurna aula sobre os holandeses no Brasil, o estabclecimentode Maurício de Nassau em Pernambuco, apoiado cm forteaparato naval e militar. Discorria sobre a urbaniza~ao doRecife; a. Mauritzstad ("cidade de Maurício") na ilha deAntonio Vaz; o palácio de Vrijburg, onde o príncipe invasorinstalara sua corte ilustrada de artistas e sábios. Nesse cená-rio real, irrompe a fic~ao. Oeorreu-Ihe urna hipótese (falsa,mas verossímil): que aconteceria se René Descartes, queservira a Nassau na Holanda, o filósofo Cartesius do Discur-

so sobre o Método, o físico empenhado em dar urna expli-ca~ao mecanicista, una e sistemática, ao Universo, tivesseacompanhado o conquistador em sua empreitada nos trópi-cos? HypotlJeses non jiflgo ("Nao elaboro hipóteses"), ex-clamou Newton, numa célebre refuta~ao a Descartes, aquem nao repugnava o raciocínio hipotético, desde que asdedu~óes nele fundadas fossem convalidadas pela experien-cia. Leminski nao concorda com Newton e vai elaborandosua hipótese ficcional e laborando nela através das duzentase tantas páginas do Catatau, confiado nao tanto na expe-riencia quanto no verbo... E eis Cartésio na Mauriciolandia,no parque do pa~o de Vrijburg, sob urna árvore folhuda,ele, o experto em Dioptria (refra~ao da luz), co", suas len-tes e lunetas, observando a paisagem, as naus no porto e osbichos no zoo ou a solta. Ei-Io, fumando marijuana ("taba-quea~o de toupinambaoults") e fundindo a cuca na desme-sura nao geometrizável das formas vegetais e animais,quando urna pregui~a Ihe alveja o cocuruto com um disparofecal, como fez o urubu comMacunaíma. "Ora, senhorapregui~ vai cagar na catapulta de Paris!", reclama o filóso-fo, embarcando, agosto ou a contragosto, no seu sonho psi-codélico. Melhor dizendo, barrocodélico, pois de um come-timento neobarroco, de um ensaio de liqüefa~ao do métodoe de prolifera~áo das formas em enormidades de palavra, éque se trata1.

l. 00010 ensaio de Roberto Romano, "A Razáo Sonhadora", Revisla USP. n9

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A Lenga/engagem do DeUrio

Catatu, segundo o Caldas Aulete e o Aurélio, significa: ."Discurso enfadonho e prolongado; discurseira, béstia". Ésinónimo de "pancada" ou de "calhama~o". Reconcilia asnO\róes contraditórias de "sujeito de pequena estatura" e"coisa grande e volumosa". Também quer dizer "catana"(espada curva), urna palavra que os portugueses importa-ram do Oriente (do japones, kataná). "Ir num catataé é omesmo que "falar sozinho", como "meter a catana" equiva-le a "dizer mal de outrem". Dessa polissemia está bemeónscio Leminski, que arrola várias dessas acep\róes em suaintrodu~o. De todas elaS parece ter tirado partido, literalou metafórico, no que chama uma ego-trip: sua delirante"lengalengagem". Pois tanto o narrador, Cartesius, o pen-sador puro excedido pelo absurdo tropical, como seu alterego, parceiro ambíguo e depositário da explica~o do texto,o artimanhoso Artysehewsky (figura inspirada na de umherético fidalgo polones, general a servi\ro de Nassau), am-bos tem muito a ver com o próprio Leminski..Sáo registroscomplementares de sua voz escritura!.

o Catatau - argumenta Leminski - é a história de uma espera. Opersonagem (Cartésio) espera um explicador (Artyschewsky). Espera re-dundAncia. O leitor espera uma explica\;áo. Espera redundAncia, tal comoo personagem (isomorfismoleitor/personagem). Mas s6 recebe infor-ma\;Oesnovas.Tal comoCartésio.

o verdadeiro protagonista do texto, no entanto, é Oc-cam (Ogum, Oxum, Egun, Ogan), uma espécie de "monstrosemiótico", inflado e voraz como Orca, a baleia assassina,e pouco disposto a submeter-se a disciplina met6dica deseu homónimo, o monge-fil6sofo Guilherme de Occam(1280-1349), cuja navalha afiada se propunha rasourar todae qualquer entidade inútil, hipoteticamente complexa e náoavalizada pela experiencia. Ao invés, é da paral6gica, do pa-radoxo, das associa\róes de som e sentido, das frases feitas edesfeitas, dos contágios pseudo-etimoI6gicos, dos jogos po-

8, Sáo Paulo, dez.-jan.-fev. 1990-1991, enfocando a pn:sell9l do "caos barroco" em

Descartes, poderia n:spaldar, por um viés filosófico, a fabula~o leminskiana...

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lilíngües, que se alimenta o Occam do Catatau. Um insaciá-vel abantesma grafomaníaco, que reduz ao absurdo o dis-curso metódico no tacho fumegante do trópico.

Sérgio Buarque de Holanda, em Ra(zes do Brasil, refereurna curiosa explica~ao antropológica para o insucesso dapoderosa empreitada holandesa em nossas terras.

Ao contrário do que sucedeu com os holandeses, o portugues entrouem contacto íntimo e freqüente com a popula~¡¡o de coro Mais do que ne-nhum outro povo da Europa, cedia com docilidade ao prestígio comunica-tivo dos costumes, da linguagem e das seitas dos indígenas e dos negros.Americanizava-se ou africanizava-se, conforme fosse preciso.

E mestre Sérgio prossegue:

A propria língua portuguesa parece ter encontrado, em confrontocom a holandesa, disposi~¡¡o particularmente simpática em muitos desseshomens rudes. Aquela observa~áo, fOrmulada séculos depois por um Mar-tius, de que, para nossos índios, os idiomas nórdicos apresentam dificul-dades fonéticas praticamente insuperáveis, ao passo que o portugues, co-mo o castelhano, Ihes é muito mais acessível, puderam fazé-Ia bem cedoos invasores.

Mesti~gem. Miscigena~ao de corpos e línguas. Eis odispositivo que teria animado a "guerra de guerrilhas" con-tra a qual o exército orgulhoso e bem aparelhado da NovaHolanda acabou por deixar-se abater. Leminski tenta de-monstrar isso na linguagem. Ou como ele mesmo resume:"O Catatau é o fracasso da lógica cartesiana branca no ca-lor, o fracasso do leitor em entende-Io, emblema do fracas-so do projeto batavo, branco, no trópico".

Uma Feira Livre Maca"onica

As influencias nessa Leminsk{ada, como eu aqui a bati-zo, sao muitas. Algumas óbvias. Como Joyce. Mais que o doUlysses, o do Finnegans Wake, ou Finicius Revém, já frag-mentariamente abrasileirado por Augusto de Campos e pormim na antologia Panaroma (111edi~ao, 1962). Nada a es-tranhar, diga-se de passagem, nessa aclimata~ao do fine-ganes joyceano ao brasilírico portugues. Basta dizer que é omesmo Sérgio Buarque, em Visao do Parafso, quem registra

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a presen~ das peregrina~óes de Sao Brandal e da para-disíaca ilha Brasil, High Brazil ou O'Brazil, em trechos daobra máxima do irlandes ecumenico. Evidente, também, é ocontributo do Grande Sertao rosiano: modos de dizer, cir-cunlóquiqs, cadencias. Mas out ros condimentos sao igual-mente importantes no sarapatelleminskiano. O sermonáriobarroco de um Vieira, por exemplo, cujo estilo engenhoso,a contrapelo do "bom senso" cartesiano, foi tiío bem estu-dado por A. J. Saraiva ("No discurso engenhoso, as palavrasnao sao representantes mas seres autanomos, que comomatéria podem ser recortados para formar outros, e temem si rela~óes que lembram muito mais os elementos dacomposi~ao musicaL"). O latim escolástico e o latinóriodas tertúlias coimbras também nao Ihe sao estranhos. Esteúltimo deu em nossa literatura as abstrusas composi~óesburlescas da Maca"onea Latino-Portuguesa, él imita~o dobeneditino Folengo. Sobretudo, porém, me parece presente,na prosa travada de armadilhas de Leminski, um livro inse-minador, a Feira dos Anexins, do seiscentista D. FranciscoManuel de Melo. Essa obra, Alexandre Herculano reputa-va-a um verdadeiro manual para os escritores do "generocamico". Trata-se de um fascinante repertório de metáforase locu~óes populares. Dividido em tres se~óes, com subtítu-los como "Em metáfora de cabelos", "de testa", "de olhos"etc., tem coisas desabusadas como esta: "Isso de o/ho tra-zeiro, nao me cheira; porque os malvistos tem cinco o/hos; eos que enxergam bem, com os o//zos que tem na cara, teraotres: mas ter no trazeiro um o//tO, e outro no rosto, é serPolifemo a torto e a direito". A fun~ao do provérbio, comoo principal recurso de engendramento e articula~iío do li-vro, já foi aliás salientada por Regis Bonvicino ("ComQuantos Paus se Faz um Catatau", artigo de 1979).

Urna coisa, porém, é certa. Quaisquer que sejam as ex-travagancias, anomalias ou disrup~óes do projeto lemins-kiano, trata-se, fundamentalmente, de um projeto de prosa.Um projeto ambicioso, levado minuciosamente él conse-cu~ao, no qual a poesia (para falar como W. Benjamin) éapenas o método (nao-cartesiano) da prosa. Urna prosa quepende mais para o significante do que para o significado,mas que regurgita de vontade fabuladora, de apetencia épi-

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ca, de estratagemas retóricos de dila~o narrativa. A poesia,ao contrário, ainda quando se sirva da prosa como "exci-piente", parece dar-se melhor com a imagem, com a visao,com o epifánico. É uma distin~o tendencial, ressalve-se,nao categórica. As fronteiras sao móveis, podendo tornar-semais e mais rarefeitas.

o Bardo Ubaldo e o Rapsodo Leminski

Escrevendo sobre o Catatau, me veio a mente um para-lelo que poderá parecer surpreendente para alguns, masque, para mim, se impóe. Trata-se de Viva o Povo Brasi/eiro(1984), de Joao Ubaldo. Obras que nao tem nada a ver,uma com a outra, e tem tudo. Nao falo aqui de influencias(nem caberia). Tudo as separa e tudo as aproxima. O com-pacto, complexo, as vezes tautológico livro-limite de Le-minski e o desmedido, exorbitante, caudalosoromance-riode Ubaldo. O sucesso de estima de um. O sucesso de públi-co de outro. O significado, a mensagem prometida e sone-gada pelo enigmático exegeta Artyschewsky, é a voca~o la-tente de Paulo Leminski, ostensivo romancista do. signifi-cante, da materialidade do signo. O significante, a elabo-ra~ao verbal, o gozo da palavra, o "prazer do texto", eis, tal-vez, a mais profunda pulsao escritural de Joao Ubaldo, fa-bulista do significado,atento, por um lado, a intriga,afun~ao narratológica (da qual Jorge Amado, o contador demil-e-uma histórias, é manipulador eximio); por outro, pro-penso a interrogar o "quem" da linguagem, como o Rosa daprosa eJisinou. Veja-se, por exemplo, o esplendido Cap. 14da gesta ubáldica. Datado do "Acampamento de Tuiuti, 24de maio de 1866", nele se relata o embate entre os soldadosbrasileiros e o exército paraguaio, narrado agora em termosde refrega homérica, com apurados giros estilísticos, substi-tuindo-se os deuses do panteao grego pelas divindades docéu iorubá, com seus vistosos atributos e nomes sonoros.Mas, sobretudo, considere-se o come~o cinematográfico deViva o Povo, quando a "primeira encarna~o" do AlferesJosé Francisco Brandáo Galvao, em pé, na brisa da Ponta.das Baleias, está prestes a receber contra o peito e a cabe~aas bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardetas

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J

da frota portuguesa, quase entrada na Baía de Todos osSantos. Coteje-se esse início com outro lance panorámico,este racontado em primeira pessoa pelo Descartes tropica-listas do Catatau:

Ergo sum, aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aqui pre-sente, neste labirinto de enganos deleitáveis, - vejo o mar, vejo a bala evejo as naus. Vejo mais [...] Do parque do príncipe, a lentes de luneta,CONTEMPLO A CONSIDERAR O CAIS, O MAR, AS NUVENS, OSENIGMAS E OS PRODIGIOS DE BRASiLIA.

. Destaque-se, agora, o final,soberbo,de Vivao Povo. Oalegórico "Poleiro das Almas", suspenso no espa~o cósmi-co, "vibrando de tantas asas agitadas e tantos sonhos bran-didos ao vento indiferente do Universo"; as "alminhas bra-sileirinhas, táo pequetitinhas que faziam pená", descididas adescer, lutar de novo, enquanto o sudeste bate, cai a chuva"em bagas grossas e ritmadas" e, como ninguém olha paracima, n.inguém ve "o Espírito do Homem, erradio mascheio de esperan~a, vagando sobre as águas sem luz dagrande baía". Compare-se esse final com aquele outro, in-tensíssimo, do Catatu (onde ecoa o apelo extremo de Joyceao leitor, no Finnegans: "...torturas tántalas, e há alguémque me entenda?"):

É esta terra: é um descuido, um acerca, um engano da natura, umdesvario, um desvío que s6 nao vendo. Doenc;;ado mundo. E a doenc;;adoendo, eu aqui com lentes, esperando e aspirando. Vai me ver com ou-tros olhos ou com os olhos dos out ros? AUMENTO o telesc6pio: na su-bida, Iá vem ARTYSCHEWSKY. E como / Siojoaobatavista / V~m b~-bado, ArtyscheWsky b~bado... B~bado como polaco que é. B~bado, quemme compreenderá?

Náo por acaso, nos dois livros, a antropofagia é temati-zada como processo simbólico. Na irreverente devora~áocanibal, a História Brasílica (num caso), senáo o próprioLogos do Ocidente para aqui transplantado (no outro), sáoobjeto de tritura~áo. Digesto indigesto. Por um lado, o "ca-boco" Capiroba, guloso da carne macia e branquinha dosholandeses, cria~áo rabelaisiana do bardo Ubaldo. Por ou-tro, o monstro Occam, ogre filológico, mastigador de textos,papa-letras e papa-línguas, fantasmagoria sígnica do rapso-

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do Leminski. Por cima das muitas diferen~as de concepc;aoe de fatura, esse vínculo voraginoso é mais um elo em.blemático que os liga.

17. ARTE POBRE, TEMPO DE POBREZA,POESIA MENOS.

1.

O "procedimento menos" na literatura brasileira terátalvezuma data privilegiadapara o registro históricode suadiscussao:o ano de 1897,em que SílvioRomero, cont trucu-lenta retórica fisiológica,denunciou o estilo de "gago" deMachadodeAssis: .

o estilo de Machado de Assis, sem ter grande originalidade, sem sernotado por um. forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito,de sua índole psicológica indecisa. Correto e maneiroso, nao é vivaz, nemrútilo, nem grandioso, nem eloqüente. É plácido e igual, uniforme e comopassado. Sente.se que o autor nao dispóc profusamente, espontaneamen-te do vocabulário e da frase. Ve-se que ele apalpa e trope~a, que sofre de

· Texto datado de 1981, publicado na revista Novos Estudos/CEBRAP, vol. 1,nO3, Sáo Paulo, julho 1982; republicado em Roberto Schwarz (org.), Os Pobres noLiteratura Brosi/eira, Sáo Paulo, Brasilicnse, 1983.

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RUMO A CONCRETUDESevero Sarduy

I

Sala de famma, Paris, cerca dos anos trinta - ou final dos vin-te? _: mobiliário burgues, cortinas diante das árvores de alguma avenidado bairro XVI, choveria talvez. No mundo dos funcionários diplomáticosdo tempo, impunham-se os recitais de salao,. nas pausas nostálgicas deIsobremesa, que amenizavam saudades cubanas. O doutor Baralt empreen-dia a declamayao das estrofes mais freqüentadas do romantismo, prolon-gando seu repertório, no curso dos meios-dias chuviscosos,até aos rima.dores da Restaurayao.

Num cenário assim, de exilio atapetado e benévolo, a distancia in-sular mitigadaquem sabe por um odor persistentede frutasimportadase pelo acaju dos móveis, além de algumas "guarachas" fonográficas, foique a Mariano Brull, um poeta camagüeiano nascido no decenio crepus-cular do século e afeto aoS anjos, ocorreu "dar um sentido novo aos ge-neros fanados". A mais velha de suas "formosas meninas", que imaginopara a ocasiao vestida de tules rosados e apropriadamente enigmática,com ademanes helenizantes e excessivamenteortogonais, derivados de al-gum pitagorismo danyável a la Duncan, irrompeu como insuflada por umdemonio dionisíaco na sala e sem mais preambulos "pós-se a gorjear, coma maior desenvoltura, este verdadeiro trino de pássaro", que deixou estu-

,pefatos os assistentes daquele sadio entretenimento:

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Filiflama alabe cundreala alalúnea alíferaalveolea jitanjáforaIi.ris salumba salífera.

Olivia oleo olorifealalai cánfora' sandramilingítara giróforazumbra ulalindre calandra.

Dai que, em agradecimento a tanto deleite fonético, e "escolhendoa palavra mais fragrante daquele ramalhete", Alfonso Reyes passasse achamar "Jitanjáforas;' as fIlhas de Mariano Brull e, ato continuo, esten-desse o termo a todo esse "genero de poema ou fórmula verbal", a essetrabalho textual "que nao se dirige a razao - nem ao sentimento, poderiaacrescentar -, mas antes a sensayao e a fant'clsia.As palavras nao buscamaqui um fIm utilitário. Jogam sOzinhas,quase"l.

PorfIrio Barba Jacob já havia praticado alguns "arranjos silábicos"que, naqueles saraus sonoros, se deixavam recitar sem tropeyos. Ignorose, entre nós, poderiamos remontar mnda a mais longe na arqueologiado genero. .

Numa história coerente da literatura, ou pelo menos num racontoostensivamente lúcido, pouco tem que ver esta olvidávele benigna farsaparisiense, sem dúvida inoperante em um contexto menos protocolar eque se teria desvanecido no anedotário de algum embaixador carente daminuciosa crónica de Alfonso Reyes, com o que duas décadas mais tardeiria acontecer no Brasil, quando tres poetas unidos pela comum aversaoa escritura como puro acaso e pelo mesmo impulso crítico diante do'passado - Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos _ .se reuniram para constituir o Grupo Noigandres.

Seria desejável, sempre nessa óptica linear e lógica do escrever, fazerantes referencia aos modernistas brasileiros dos mesmos anos em que, nosalao diplomático, as aplicadas Jitanjáforas promoviam suas discretas es-caramuyas, á poetas como Oswald de Andrade e, mais tarde, Joao Cabralde Melo Neto; nao obstante, aquelas meninas ortofónicas, reguladase pre-cisas como anas hidráulicas, acabariam sempre por ter lugar numa históriaesgaryáda do texto, sem fIo condutor e ascendente, marcada por hesitayoes.e regressos constantes, por sartos ou repetiyoes ociosas,por paródias e pla-

-- _.-

1. ALFONSO REYES, La experiencia literaria, Buenos Aires, Losada, 1942,p. 194, citado por CINTIQVITIER, Cincuentaaños de poes(a cubana, La Habana,Direcciónde Cultura del Ministeriode Educación, 1952, p. 187.

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giatos, uma história com poucas datas: visao sincronica de tudo o que foiescrito, se escreve e se escreverá, qual uma rede única em expansáo através '

de todos os tempos e de todas as línguas.Porque antes de que os brasileiros descobrissem o poema como uma

geometria sintática, como um crepitar preciso e programado de ortogonaisbrancas - a árvore de Mondrian avanyando, cada vez mais despojada e des-nuda, cada vez mais ensimesmada, até sua epifania no abstrato -, como,um diagrama prosódico, a palavra, a.matéria mesma do verso teria queabandonar, como na "jitanjáfora", seu lastro conteudista, seu nexo ou li.gadura estreita e como que inC?vitávelcom o referente, seu binarismo pla-toni~~~ferrado a idéia: romper,ou fazer vacilar em direyao ao fOnico -

!e logo em direyao ao gráfIco - o equilibrio estável do signo, abandonar,'obliterar, ou pelo menos.deslocar, transformar, "sacudir" a base do signi-fIcado, o persistente "sentido" sem o qual parece como que se abalar todoo sistema da signifIcayao,vale dizer, da troca: garantia do funcionamentode urna civilizayao assentada - como naquela outra equivalencia: a de pa-pel e ouro' - na correspondencia sem residuos nem abigüidades entre os'.dois termos do signo.

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Desde Enemigo Rumor (1941) até Fragmentos a su imán, obra pós-tuma de 1978, assistimos, na trajetória de José Lezama Lima, a funda~aode uma poética a partir da imagem. A imagem como condensayao ou fI-!xayao hiperbólica do real. Levando a sua melhor defIniyao urna das ver.tentes do barroco, Lezama chega a propor uma leitura da História comosucessao de eras imagip.árias:

De súbito pareceu-meque a imagemalcan~va um sentido, que se encaminha-va em dire~o a algumaparte, que buscavaseu esc1arecimentoe sua finalidade.O quemotivavaessa raiz histórica que a imagemia assim adquirindo? A convic~o de quea imagem se expressavaintensamente em eras imaginárias,em períodos históricosque, sem apresentar grandes poetas, viviam.aplenitude.de urnagrande poesia.DesdeVirgílio até o aparecimento de Dante nao surgem grandes poetas; nao obstante, éurna época de grande poesia. É o período dos merovíngiose a Europa inteira se cu-mula de prodígios e conjuros. O homem do POyOestá convencido de que CarlosMagnoconquistou Sarago\j3quando tinha 220 anos, como os varoesdo AntigoTes-tamento; come\j3mas peregrinac;;óese a constru~o em pedra dosgrandessímbolos2.

2. La imagen como fundamento poético del mundo, por LOLÓ DE LA TOR-RIENTE, artigo e entrevista com Lezama Lima -, Bohemia, La Habana.

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o reino da imagem - que é a hipóstase dos teólogos - o verbo en-carnado - fundamenta um sistema poético que faz do poeta "um volup-tuoso da possibilidade".

Potém a imagem nao é mais do que um correlato da fixidez, no~aonodal do pensamento lezamesco.

A fixidez do mundo, em sua passagemcontínua do fenomenico ao absolutoexterior, daquilo que está na consciencia e é dentro dela mesma intocável, requerpara sua representa~o verbala hipérbole (...). A associa~o hiperbólicadas imagens,reino por antonomásia do possível no homem, outorga um daqueles sucediineosmediante os quais o poeta pode "representar" aquilo que a realidade lhe lan~ co-mo um desafio misterioso. A impossibilidadeda cria"ao nos termos propostos setorna possibilidade,em princípio absoluta, da imagina"ao3.

Estalonga digressao foi-me necessária para criar urna oposi~ao: se atríade imagem/fixidez/hipérbole sustenta o barroco lezamesco, o reversoe o complemento desse zenite encontra-se na concre~ao de Haroldo deCampos: nao a imagem, porém a metáfora, a densidade metafórica comosubstancia do poema; nao a FIXidez,porém a mobilidade, a fuga dos sig-nos, sua rota~ao e expansao na página; nao a hipérbole, porém a parábola,com suas ressonancias mitológicas e bíblicas.

Metáfora: nem tendencia imoderada para o formal, nem maneirismotipográfico, nem prolifera~ao ornamental de alitera~oes ou de brancos na'página: a concretude seria um estado particular de condensafao da ma-téria verbal. de saturac¡:aoou intensidade, de presen~a do significante asi mesmo: desejo de texto em sua corporeidade que pode encontrar-seou coincidir com o efeito barroco. A condensa~ao é urna metáfora: sur-gimento, numa dada cadeia significante, de um significanteprocedente deoutra cadeia: no efeito de nao-sentido que produz essa "disrup~ao" estáa marca ou o testemunho de que o sentido surge antes do que o sujeito,,4 .

O deslocamento metafórico na poesia de Haroldo de Campos, deintensidade propriamente gongorina, materializa precisamente isto: urnaprodu~ao de sentido que vem antes,'ou procede de fora do sujeito. Essaruptura é rigorosamente paralela a que se produz, contemporaneamentea funda~ao de Noigandres, com a aboli~ao da subjetividade em pintura,subversao mais vinculada a Johannes Itten, Moholy-Nagy, Mondrian ou

'Max Bill; que a posterior apoteose ou até fetichismo da tecnologia, com aqual com freqüenciá e erroneamente se costuma relacioná-Ia:elipse do su-jeito como produtor de conteúdos; organiza~aoe deslócamento, metáforados significantespara convocar o sentido:

3. CINTIO VITIER, JOSÉ LEZAMA LIMA, op. cit., p. 313.4. 'JACQUES LACAN, citado por OSWALD DUCROT e TZVETAN TODOROY,

Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage, Paris, Seuil, 1972, p. 442.

_ O Mar, Galo Sultao com seu cIarim de espanhaSeu triunfo de trezentos potros de ametistaQuando belo e animal r6i as pr6prias entranhasE um punho de sal se abate no horizonte.

_ O Mar em seu decúbito dorsal de folhas verdesSargao de uma long(nqua dinastia'de púrpuraDom diniz lavrador de suas lavrasde espumaFalconeiro, e no ,ombro o seu falcao - a Lua.

- O Mar,Nao esse leao de pedraria que dá as nossas praias

501' hidr6pico, tigreDe tornassol que as mulheres amansam com o trianguloNúbil em seus ventres de benjoim e eletro-(ma5. '

Mobilidade: assim como a imagem implica a fixidez, a metáfora,como substancia do sistema poético, é um convite a constante desloca-~ao dos corpos verbais: planetas desorbitados que abandonam suas elip-Ises para inserir-seem outras: cambiar continuo, traslado e permuta~ao defonemas, deslizamento e fuga que se manifestam sobretudo quando o tex-to voluntariamente limita seu espa~o, desenhando na página urna geome-tria precisa, um contorno nítido, hard edge ou clausura formal cujo tra-~ado detém a ebuli~ao interna dos signos, o faiscamento das' sonoridades,o constante rumor das letras que surgem, a intervalos regulares e mecañi-camente, como num telex, ou 'cambiantes, como no quadro negro eletro-nico de um aeroporto, até chegar a configurar, depois de múltiplas meta-morfoses no limite da significa~aoou da legibilidade, urna nítida mensa-gem, evidente, imediatamente decifrável e eficaz:6

5. Excerto de "Thálassa thálassa" (1951). N.T.: Sarduy ilustra o texto originalde seu estudo com a versiio para o espanhol deste poema, por Antonio Cisneros,Lima, Centro de Estudios Brasileros.1978.

6. N.T.: Segueo cxcerto'imaide "Alea1 - Vi\íiac.xres:sernanticasI urna epi-comédia de bolso" (1962), lnven~áo, n. 6, Sao Paulo, 1966-1967.

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NERUMD I V o L

IVREMLUNDOUNDOLM I V R E

VOLUMN E R ID

MERUNVIL O DDOMUNV R E L I

LUDONR I M E V

MODULV E R I N

LODUMV R E N I

IDOLVRUENMR E V INDOLUMM IN DOLUVREMUNDOL I V R E

Ou entao: o limite exterior desaparece e o contorno se apaga: as le-tras se expandem a partir de um estalo inicial, de um centro pulverizadode hipermatéria fónica, já vazio, cujos fragmentos se vao condensando emnebulosas, em galáxias, se deixam organizar em siste~as autónomos quefogem uns dos outros e se estendem num branco nao preexistente mas poreles mesmos criado em sua fuga e expansao: big bang poético que defineum espa~o e um tempo inerentes ao desdobtar dos signos, conversíveisuns nos outros como "versoes" de urna só energia, e impensáveisantes daexplosao. A matéria - a letra - nasce na incandescerlciae morte ho es-friainento final do universo, porém no entretempo - a dura~ao de ~mciclo na expansao ou na éontra~ao, sístole e diástole - cdmbina-seeminfinitos "desnascimentos" ou "nascimortesh, íris semantico que esplendeno branco, reverbera, deslumbra e se apaga, para a partir dessé novo nadavolver a formar-se:

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senalcemorre nascemorre nasce morre

renasce remorre renasceremorre renasce

remorrerere

desnascedesmorre desnasce

desmorre desnasce desmorrenascemorrenascemorrenascemorrese

Parábola:se o impulso do poema, em Haroldo de Campos, e numaimagem microscópica do texto, é a paronomásia, ou, em sua'última eta-pa - Galáxiás- , a palavra-fusao,a palavra-montagem,a perce~ao ma-croscópica desse livro que é sua biografiaúnica, seu telos geral, desenhariaurna desmesurada parábola. Figura que abarca e define toda essa prod\¡-~ao, em seu progresso rumo a concretude, como um "mundo total de obje-tiva atualidade", apreendido num instante - como se capta um ideogra-ma - , e nao numa série de leituras analíticas, próprias do tempo discur-sivo e de sua equivalencia na sintaxe tradicional.

Paráboia que daria -a enteñder o trabalho da escritura e da vida mes-ma do autor, que este vai cifrando - em seu corpo, um hieróglifo invisível.e paciente - como urna gigantesca viagem, inclusive no.sentido alucinó-geno do termo. Viagem homérica ou joyceana, iniciática, lisérgica, espa-cial, amazónica. Exilio - nas Galáxias - através das ilhas que sao comoparenteses no livro domar.

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Ga/áxias:mar, se assim pode dizer-se, em altazor: palavras engasta-das como mantras ou talismas fónicos, ma-rulharde transmuta~oes, "sus-pensáo vibratória na qual os vocábulos parecem reconstituir-se no seio deurna poderosa imanta~ao"7; assim como numa galáxia os.milhares de sis-temas planetários estabilizam e intercambiam seus magnetismos, seus des-locamentos, o funcionamento helicoidal do conjunto, também nas Ga/á-xias, como já o propusera Mallarmé,os milhares de palavrasde urna línguaesUo aparentados entre si8:

multitudinous seas incarnadine o oceano oco e regougo a proa abrindo umsulco a popa deixando um sulco como urna lavra de lazúli urna cicatrizconHnua na polpa violeta do oceano se abrindo como urna vulva violetaa turva vulva violeta do oceano oinopa ponton cor de vinho ou cor deferrugem conforme o sol batendo no refluxo de espumas o mar multitudináriomiúdas migalhas farinh,a de água salina na ponta das maretas esfarelandoao vento iris nuntia junonis cambiando suas plumas mas o mar mas a escumamas a espuma mas a espumaescuma do mar recomet;:ado e recomet;:andoo tempo abolido no verde vário no aquário equ6reo o verde florecomo urna árvore de verde e se ve é azul é roxo é púrpura é iodo é denovo verde glauco verde infestado de azuis e súlfur e pérola e púrpurmas o mar mas o mar poli fluente se ensafirando a turquesa se abrindodeiscente como um fruto que abre e apodrece em roxoamarelo pus de sumoe polpa e vurmo e goma e mel e fel mas o mar depois do mar depois do maro mar ainda poliglauco polifosf6reo noturno agora sob estrelas extremasmas liso e negro como urna pele de fera um cetim de fera um macio depantera o mar poli pantera torcendo músculos lúbricos sob estrelastremulas o mar como um livro rigoroso e gratuito como esse livro ondeele é absoluto de azul esse livro que se folha e refolha que se dobrae desdobra nele pele sob pele pli selon pli o mar poliestent6reo

7. ÁNDR~SSANCHEZROBAYNA, "Larva, concha vacía, nadie", - sobre Lar-va, de lulian Rios. Oblitero voluntariamente neste trabalho, para centrá-lo na pa-rábola da poesia concreta de Haroldo de Campos, um contexto translingüísticoque poderia inscrever-sena dúplice posteridade mallarmeanae joyceana: trabalhosdo significante que em castelhano e em frances ter-se-iamque relacionar e ler para-lela e dia1o~icamentecom as .Galdxias:lulian Rios, construtor do "paideuma" deLarvae lose-MiguelUllán, mais próximo a conceitualidadee ao labor sobre as gran-des unidades da significa,.ao que apura instancia fónica, e em frances o Paradis,dePhili¡>pe Sollers, urna tentativa irónico-enciclopédica, inserível mais diretamente naseqüencia de Finnegans Wake.

8. N. T.: Segue fragmento de Galdxias, datado de 1963. Sarduy transcreve o ex~certo na tradu,.ao para o espanhol de Héctor Olea, Avances/espiral 4, Madri, Edi-torial Fundamentos, 1978.

124.

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As Galáxiasconcluem, de certo modo, a trajet6ria na poesia concre-ta, que se iniciara com a funda~ao de Noigandres.O barroco frondoso, sel-vático, furioso, se deixou decantar numa geometria legível, despojada atéa transparencia do projeto, como as fachadas mineiras do Aleijadinho.Neobarroco, ou melhor, outro classicismo:como se os moldes métricos ouestr6ficos nao implicassemurna tor~ao.ou um resíduo do sentido, porémestivessemprestes a conduzi-Io em toda a sua intensidade.. Voz: com seu texto constantemente m6vel e em progresso chegaHa-roldo de Campos a urna organiza~ao coral e declamát6ria: prolifera~ao detimbres e "cores" diversos, polifonia e elocu~ao dessas texturas e gamasa um s6 tempo apagadas e rugosas, graves, baixas, íntimas, vizinhas aosussurro - a voz de Maria Bethania - que marcam e modulam o portu-

gues da América.A obra de Haroldo de Campos seria como a exalta~ao e o desdobra-

mento de urna regiáoda dic~ao, de um espa~o da fala vasto e barroco co-mo o mapa de seu país: sopro e articula~ao, alento e pronuncia~ao: nas-cimento do discurso.

O poema como sílaba-germe que rebenta, expande~seno volume dapágina e avan~aem dire~ao a concretude.

Saint Uonard, V. 78.

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