Leonard Cohen

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Os beijos começaram nos nossos lábios / E foram terminar em todo o lado /

Citation preview

  • FERNANDO DE PAULO KOPROSKI

    FLORES DAS FLORES PARA HITLER: 13 POEMAS TRADUZIDOS DE LEONARD COHEN

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Letras, Curso de Ps-Graduao em Letras, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paran. Orientador: Prof. Dr. Mauricio Mendona Cardozo

    CURITIBA 2007

  • 1

    agradeo quela seo de fotogravuras de um jornal de 1945 que 60 anos depois iniciou o meu aprendizado sobre as flores das flores para Hitler

  • 2

    SUMRIO

    RESUMO............................................................................................................iii ABSTRACT........................................................................................................iv 1 INTRODUO ............................................................................................... 3 1.1 O AUTOR..................................................................................................... 5 1.2 O PROJETO............................................................................................... 12 2 SOBRE TRADUO .................................................................................... 18 2.1 A TRADUO COMO RELAO.............................................................. 18 2.2 A TRADUZIBILIDADE E INTRADUZIBILIDADE DA POESIA .................... 25 3 FLORES DAS FLORES PARA HITLER....................................................... 31 3.1 A IDENTIDADE JUDAICA DE COHEN ...................................................... 31 3.2 O DESENVOLVIMENTO DA IDENTIDADE JUDAICA EM THE GENIUS.. 38 3.3 A QUESTO DO JUDEU DE DACHAU ..................................................... 45 3.4 FLORES PARA HITLER............................................................................. 48 4 POEMAS....................................................................................................... 96 REFERNCIAS.............................................................................................. 125

  • 3

    RESUMO O presente trabalho prope a traduo brasileira para treze poemas publicados pelo escritor canadense Leonard Cohen. Esses poemas so selecionados para a prtica de traduo em funo de se revelarem representativos da temtica do holocausto ou indicativos da identidade judaica abordada na obra potica do autor. Inicialmente, realiza-se uma reflexo terica sobre traduo literria, baseando-se no conceito de traduo como relao de Antoine Berman. Em seguida, reflete-se sobre a questo da traduzibilidade e da intraduzibilidade da poesia. Posteriormente, realiza-se uma leitura crtica de poemas selecionados do livro Flowers for Hitler de Cohen, construindo uma reflexo sobre os cenrios violentos e opressivos da tortura, sobre a natureza do Mal, sobre o horror judaico e sobre o desejo de aniquilao do humano, tal como se apresentam nos poemas de Cohen que tratam do holocausto. Palavras-chave: Literatura canadense, Poesia; Traduo literria; Holocausto;

    Horror judaico.

  • 4

    ABSTRACT This dissertation presents the brazilian translations of thirteen poems published by the Canadian writer Leonard Cohen. These poems were selected from Cohens books of poetry since they portray the theme of holocaust or indicate the jewish identity in his works. First, this dissertation reflects on the theory of literary translation, based on Antoine Bermans notion of translation as a relation. Later on, it reflects on the question of translatability and non-translatability of poetry. Afterwards, this dissertation presents a critical reading of selected poems from Cohens Flowers for Hitler, reflecting on the violent and oppressive sets of torture, on the nature of Evil, on the Jewish horror, and on the long for human annihilation, as they are displayed on Cohens poems concerning holocaust. Key-words: Canadian literature; Poetry; Literary translation; Holocaust; Jewish

    horror.

  • 5

    1 INTRODUO

    1.1 O AUTOR

    Estreando na poesia com Let us compare mythologies1 (COHEN,

    1956), o poeta, ficcionista, msico e compositor canadense Leonard Norman

    Cohen (Montreal, 1934) desenvolveu uma trajetria singular dentro dos

    quadros de literatura de lngua inglesa do sculo XX, alcanando diferentes

    geraes de leitores. De fato, ao iniciar sua procura artstica como poeta,

    Cohen2 destilaria em uma dezena de livros de poemas sua lrica singular que

    abarca temas os mais diversos. Reconhecido principalmente por desenvolver

    em sua obra potica temas recorrentes, tais como a perda, o desejo de

    permanncia, a culpa, a beleza e as diversas vicissitudes da arte de amar,

    Cohen igualmente um autor destacado por ousar tratar de situaes

    polmicas em forma de poesia, tais como a condio judaica aps o

    holocausto, ou a possibilidade de erotismo irmanado religiosidade em tempos

    de contnua perda de significao da f.

    Em virtude da continuidade de sua produo potica na dcada de

    1960, representada pela publicao de The spice-box of earth3 (COHEN,

    1961), Flowers for Hitler4 (COHEN, 1964), Parasites of heaven5 (COHEN,

    1966) e, principalmente, devido grande receptividade de sua primeira

    antologia de poemas Selected poems 1956-19686 (COHEN, 1968), Cohen teve

    ampliado consideravelmente seu pblico leitor no Canad, Estados Unidos e

    na Europa durante essa dcada. De fato, Selected poems 1956-1968, em

    funo de apresentar uma seleta de poemas dos quatro primeiros livros de

    poesia do autor e incluir uma seo final com poemas inditos (New poems7),

    foi o livro de poesia de Cohen que obteve melhor resposta comercial na dcada

    de 1960, alm de conferir a Cohen um prestigiado prmio do governo

    1 Utilizarei tradues minhas para as principais citaes em lngua inglesa de obras ainda no traduzidas para o portugus. Nesse caso, Vamos comparar mitologias. 2 A partir daqui, irei me referir ao poeta e escritor Leonard Norman Cohen simplesmente como Cohen. 3 A caixa de especiarias da terra. 4 Flores para Hitler. 5 Parasitas do cu. 6 Poemas selecionados 1956-1968. 7 Novos poemas.

  • 6

    canadense em 1969, o qual ele veio a recusar publicamente8 (The Governor

    Generals Literary Award for English-language poetry).

    Um aspecto indicativo da relevncia e boa recepo crtica da obra de

    Cohen a publicao de Intricate preparations: writing Leonard Cohen

    (SCOBIE et al., 2000), organizado pelo poeta, crtico e membro do corpo

    docente da Universidade de Victoria, Stephen Scobie. Esse volume rene tanto

    ensaios acadmicos quanto discusses informais que procuram traar o

    alcance e a influncia da obra literria e musical de Cohen dentro dos quadros

    de literatura e msica popular contemporneos, incluindo colaboradores de

    universidades da Austrlia, Inglaterra, Frana, Alemanha, Blgica, Noruega,

    Finlndia e, naturalmente, do Canad.

    Em The Phenomenon of Leonard Cohen, o crtico Desmond PACEY

    (1967) avalia a boa recepo crtica da obra de Cohen. Nesse estudo, Pacey

    trata da diversidade da obra do autor, fazendo referncia aos seus primeiros

    livros de poemas. Tal qual o crtico examina: Ao chamar Leonard Cohen de

    fenmeno, sou motivado pela quantidade, qualidade e variedade de sua

    conquista. (...) Seus melhores poemas tm encanto lrico e inevitabilidade

    verbal (PACEY, 1967, p. 5). Nesse estudo, Pacey aponta caractersticas de

    Let us compare mythologies que so recorrentes ao longo da obra de Cohen,

    tais como o controle e modulao quase mgicos da melodia verbal, o fascnio

    por situaes que mesclam violncia e ternura para acentuar o efeito de

    ambas, a busca por um deus perdido ou desconhecido e a associao ntima

    entre sexo e religio. Pacey examina que em The spice-box of earth Cohen

    explora ainda mais essa temtica de afirmao religiosa e sexual. Segundo o

    crtico, nesse livro tambm esto presentes temticas mais sombrias como as

    da vulnerabilidade humana, solido, violncia e crueldade.

    J em relao ao livro Flowers for Hitler, Pacey avalia que h uma

    justaposio de beleza e feira, ternura e violncia, a qual tem sido uma

    caracterstica recorrente na obra de Cohen. Pacey ressalta que o novo

    elemento apresentado por esse livro a averso ambio, hipocrisia e

    8 Em um telegrama bastante divulgado poca, Cohen assim justifica sua recusa em receber o prmio de melhor livro de poesia em lngua inglesa oferecido pelo Canada Council: Embora uma grande parte de mim almeje esse prmio, os prprios poemas me impedem completamente. (Though much in me craves this award, the poems themselves absolutely forbid it). (NADEL, 1994, p. 91)

  • 7

    crueldade da poltica do sculo XX. Para o crtico, Cohen em seus poemas

    mais polticos incute a idia de que os horrores de nossa poca fazem com que

    os das geraes passadas paream insignificantes.

    Stephen Scobie tambm avalia a boa recepo crtica da obra de

    Cohen. Em seu estudo intitulado The Counterfeiter Begs Forgiveness: Leonard

    Cohen and Leonard Cohen, SCOBIE (1993) ressalta a singularidade da obra

    de Cohen: Pode ser que o estilo de Cohen seja muito singular, para no dizer

    peculiar, para que possa ser copiado com sucesso; qualquer tentativa acabaria

    como pardia ou pastiche. Outro aspecto apontado por Scobie a

    desconstruo da figura do poeta como fonte de expresso e significao. O

    crtico examina que essa desconstruo do autor empreendida por Cohen em

    seus livros de poemas, em especial a partir de Flowers for Hitler. Conforme

    SCOBIE (1993) expe:

    Os atos extravagantes contra a beleza em Flowers for Hitler; a natureza casual, fragmentria e, de fato, parastica de Parasites of heaven; a brevidade de New poems de Selected poems 1956-1968 tudo conduz ao que eu consideraria agora como a grande trilogia da auto-desconstruo de Cohen: The energy of slaves, Death of a ladys man e Book of mercy. O mais importante sobre cada um desses trs livros no so tanto os poemas especficos deles, tampouco suas declaraes temticas (sobre poltica, religio, ou problemas do casamento moderno), mas antes a postura de cada livro: a posio que cada um assume diante da crescente problemtica sobre a figura do autor.9

    Outro aspecto indicativo da relevncia da obra potica e ficcional de

    Cohen a publicao de mais de uma centena de tradues de seus livros

    para vrios idiomas, tais como o francs, italiano, alemo, polons, espanhol,

    hebraico, chins, sueco, dinamarqus, russo, holands, noruegus, finlands,

    tcheco, turco, croata, srvio, romeno, esloveno, bsnio, islands e o persa.

    Ao longo da dcada de 1960, com seus poemas recebendo seguidas

    premiaes10, o autor fez por expandir ainda mais sua presena nos cenrios

    9 A seguir, essa passagem conforme apresentada originalmente: The extravagant gestures against beauty in Flowers for Hitler; the casual, fragmentary, and indeed parasitical nature of Parasites of heaven; the brevity of the 1968 New poems all these lead into what I would now see as the major trilogy of Cohens self-deconstruction: The energy of slaves, Death of a lady's man, and Book of mercy. What is most interesting about each of these three books is not so much any individual poems in them, nor even their thematic statements (on politics, religion, or the problems of modern marriage), but rather the overall stance of each book: the position each one envisages for the increasingly problematic figure of the author. (SCOBIE, 1993) 10 Em 1959, devido receptividade de seu primeiro livro de poemas (COHEN, 1956), Cohen foi premiado com uma bolsa pelo Canada Council, o que o permitiu viajar para a Inglaterra em

  • 8

    de literatura ao publicar duas instigantes obras de fico: The favourite game11

    (COHEN, 1963), um notvel romance de formao, ao que se segue a

    publicao do romance experimental Beautiful losers12 (COHEN, 1966).

    The favourite game um Bildungsroman sobre um jovem em busca de

    sua identidade atravs da escrita. O romance se desenvolve em Montreal,

    cidade natal de Cohen, e apresenta a histria de Lawrence Breavman,

    personagem que, de maneira similar aos dados biogrficos do prprio Cohen,

    nasce e cresce numa famlia judia com boas condies financeiras. Essa

    personagem, tal qual Cohen, perde o seu pai quando criana, e passa a ser

    criada por uma me extremamente exigente. Focalizando o perodo da infncia

    e da adolescncia de Breavman em Montreal, Cohen traa um retrato do

    artista quando cicatriz, atravs dos diversos envolvimentos amorosos que a

    personagem realiza. Ademais, entremeando esse percurso sentimental de

    Breavman, h a sua singular tentativa de interpretao do mundo, a qual

    estimulada principalmente em funo de sua relao de amizade com a

    personagem Krantz.

    J Beautiful losers o romance de Cohen mais afeito a

    experimentalismos de linguagem. Uma diversidade de lnguas e de linguagens

    apresentada pelo autor ao longo da narrativa. Os idiomas que interagem no

    texto so o ingls, francs, grego, latim e o iroqus. J a multiplicidade de

    linguagens alcanada atravs de diferentes formas narrativas exercitadas ao

    longo do romance, tais como a narrativa epistolar, a narrativa histrica,

    fragmentos de dirio, trechos de livros de gramtica, anncios de publicidade,

    listas e catlogos propostos, poemas, alm de fragmentos de linguagem

    cinematogrfica e teatral.

    Nesse segundo romance, que gerou bastante polmica quando de sua

    publicao, o autor desconstri a identidade das personagens principais o

    casal composto por Edith e o narrador, alm de seu amigo F. estilisticamente

    utilizando uma linguagem vertiginosa e, sobretudo, tematicamente novembro desse ano, e em seguida partir para a Grcia no ms de dezembro a fim de escrever os poemas de The spice-box of earth (COHEN, 1961). J em 1961, Cohen premiado com outra bolsa do Canada Council. Em 1969, ele agraciado com o Governor Generals Literary Award for English-language poetry, prestigiado prmio oferecido pelo Canada Council. Nas dcadas seguintes, o autor iria receber outras premiaes e ttulos, denotando a grande receptividade de pblico e o reconhecimento por parte da crtica de seu trabalho. 11 O jogo favorito. 12 Belos perdedores.

  • 9

    entrelaando o erotismo com religiosidade, vislumbrando o sacro no profano e

    vice-versa. Alm do enfoque principal no envolvimento sentimental das

    personagens em um conflitante tringulo amoroso, o romance apresenta como

    pano de fundo uma leitura de Cohen a respeito do mito da primeira santa

    catlica do Canad, Catherine Tekakwitha, que originalmente fora uma ndia da

    tribo dos Iroqueses, nativos que habitavam a provncia de Quebec poca da

    chegada dos primeiros colonizadores franceses no sculo XVII.

    Paralelamente atividade de escritor e em grande parte como

    conseqncia desta, Cohen desenvolve carreira como msico e compositor em

    fins da dcada de 1960. Tendo j realizado diversos recitais de poesia em

    Montreal desde a dcada de 1950, sendo em algumas ocasies acompanhado

    por msicos de jazz, Cohen evolui suas apresentaes em direo msica

    em 1966, a partir de uma leitura pblica realizada em Nova Iorque. Nessa

    ocasio, o autor canta dois de seus poemas para uma audincia da YMCA, um

    dos quais Suzanne, poema includo em seu quarto livro de poemas, Parasites

    of heaven. (COHEN, 1966, p. 67)

    Em 1966, Judy Collins grava Suzanne, o primeiro registro fonogrfico

    de uma cano composta por Cohen, o qual se torna o seu primeiro xito

    comercial, oferecendo a oportunidade para que o compositor assine um

    contrato com a gravadora americana Columbia Records. J no ano seguinte, o

    agora msico e compositor efetua sua estria fonogrfica com Songs of

    Leonard Cohen (1967). Esse primeiro lbum de Cohen apresenta a temtica

    sombria e melanclica das letras que aliada aos vocais baixos e profundos se

    tornariam a marca registrada do compositor. O lbum aclamado entre os

    amantes de msica folk, tornando Cohen um msico cultuado na Inglaterra.

    Durante os anos seguintes, e ao longo de grande parte da dcada de

    1970, Cohen desenvolve sua carreira musical, excursionando por diversos

    pases13 do continente europeu, alm dos Estados Unidos e o Canad. Em

    conjunto, uma sucesso de lbuns do compositor encontra crescente

    receptividade por parte de diferentes pblicos, ampliando a sua influncia nos

    cenrios de msica popular da poca. Dessa forma, so recebidos os

    seguintes lbuns do compositor: Songs from a room (1969), Songs of love and

    13 Em 1973, durante a Guerra do Iom Kipur, Cohen excursionou por Israel, apresentando-se em diversas bases militares, como forma de demonstrar o seu apoio ao lado israelense do conflito.

  • 10

    hate (1971) e New skin for the old ceremony (1974). Em 1977, Cohen lana o

    lbum Death of a ladies man, com produo do aclamado produtor e

    arranjador Phil Spector, que acrescentou elaboradas instrumentaes s

    composies reconhecidamente minimalistas do autor.

    Outros lbuns que receberam crticas favorveis, bem como se

    prestaram a expandir o pblico de Cohen foram Recent songs (1979) e Various

    positions (1984). J Im your man (1988) e The future (1992) foram os lbuns

    que selaram a alta popularidade de Cohen no fim da dcada de 1980 e

    princpio da dcada de 1990, e que muito contriburam para uma renovao de

    seu pblico. A valorizao da carreira musical de Cohen nessa poca em

    grande parte fruto de um re-direcionamento esttico e musical do compositor.

    Um exemplo disso a considervel mudana no arranjo e na estruturao de

    suas canes, as quais presenciaram a substituio do violo folk

    caracterstico dos primeiros lbuns pelo uso de camadas e mais camadas

    sobrepostas de sintetizadores, o que serviu para conferir um toque de

    modernidade s canes desses dois ltimos lbuns do compositor.

    Um aspecto indicativo da importncia e crescente influncia que o

    trabalho musical de Cohen exerceu sobre os quadros de msica folk, rock e

    pop nas dcadas de 1960 a 1980 foi o lanamento de lbuns tributos a fim de

    homenagear o compositor. Em 1987, Jennifer Warnes gravou Famous blue

    raincoat, seu disco de covers de Cohen, ao que se seguiram os lbuns Im your

    fan (1991), com canes de Cohen interpretadas por bandas de rock influentes

    da dcada de 1980 como R.E.M., Pixies e Nick Cave and the bad seeds, e

    Tower of song (1995), com msicas de Cohen gravadas por artistas pop, tais

    como Sting, Elton John e Bono Vox.

    Aps passar cincos anos recluso14 em um mosteiro zen budista

    californiano (Mount Bauldy Zen Center), Cohen ressurge na cena musical com

    o lbum Ten new songs (2001), ao que se segue Dear Heather (2004), o seu

    ltimo lbum editado. Como resultado da redescoberta e de uma crescente

    revalorizao do trabalho musical de Cohen por parte das novas geraes,

    14 Em 1994, aps a tour de divulgao do lbum The future, Cohen entrou em recluso no mosteiro de Mount Bauldy. Em 1996, Cohen foi ordenado monge zen budista de Mount Bauldy. Nessa cerimnia ele recebeu o nome Jikan, o qual significa o silencioso. Cohen deixou o mosteiro em 1999, a fim de retomar a sua carreira artstica.

  • 11

    lanado em fins de 2005 o longa-metragem Leonard Cohen Im your man15,

    uma combinao de documentrio e concerto tributo, dirigido por Lian Lunson,

    com diversos artistas homenageando o compositor. Outro aspecto indicativo do

    reconhecimento da carreira artstica de Cohen a sua incluso no Canadian

    Music Hall of Fame (1991), no Canadian Songwriters Hall of Fame (2006) e,

    principalmente, em funo do recebimento da Order of Canad (2003), a mais

    alta condecorao do governo canadense concedida a um civil.

    Em meio sua bem-sucedida carreira musical nas ltimas dcadas, o

    autor desenvolveu nesse perodo uma atividade literria intermitente. De fato,

    em contraponto intensa atividade literria de Cohen na dcada de 1960, as

    dcadas seguintes presenciaram um desenvolvimento potico do escritor em

    livros lanados de forma descontinuada, mas ainda assim elaborados com o

    mesmo rigor, tais como The energy of slaves16 (COHEN, 1972), Death of a

    ladys man17 (COHEN, 1978) e Book of mercy18 (COHEN, 1984). No incio da

    dcada de 1990, Cohen lanou a sua segunda antologia de poemas Stranger

    music selected poems and songs19 (COHEN, 1993), reunindo em um mesmo

    volume poemas e letras de canes marcantes de sua trajetria artstica. Em

    2006, como forma de comemorao do cinqentenrio da publicao do

    primeiro livro de poesia de Cohen, lanada uma edio especial de Let us

    compare mythologies (COHEN, 1956) e igualmente editado o livro Book of

    longing20 (COHEN, 2006), reunindo poemas inditos compostos pelo autor nas

    duas ltimas dcadas.

    Em relao leitura que realizei da obra potica completa publicada

    por Cohen, observo a existncia de duas temticas principais desenvolvidas

    pelo autor. Primeiramente, h a temtica lrico-amorosa, onde se inserem

    poemas que em linhas gerais tematizam a arte de amar tal como vislumbrada

    pelo autor, ou seja, Cohen desenvolve em sua poesia um verdadeiro percurso

    sentimental dos amantes. Essa temtica lrico-amorosa ainda abarca diferentes

    subtemas, tais como o tema da beleza, da perda, do desejo de permanncia,

    da culpa, bem como do erotismo associado religiosidade. 15 Leonard Cohen Im your man (USA, 2005, 104 minutos, colorido) 16 A energia dos escravos. 17 Morte de um sedutor. 18 Livro da misericrdia. 19 Msica forasteira poemas e canes selecionados. 20 Livro do desejo.

  • 12

    Em segundo lugar, h a temtica do holocausto, onde se inserem

    poemas que tematizam o momento histrico do holocausto ocorrido durante o

    perodo da Segunda Guerra Mundial, ou seja, Cohen desenvolve sob a forma

    de poesia uma abordagem sobre esse evento catastrfico, enfocando

    diferentes aspectos desse episdio, tais como o ponto de vista dos torturados,

    o ponto de vista dos torturadores, alm de realizar uma considerao sobre a

    culpa coletiva que propagada gerao a gerao entre os descendentes.

    Incluem-se ainda nessa segunda temtica poemas que afirmam a identidade

    judaica do autor, pois conforme observo na obra potica de Cohen, essa

    identidade se v estimulada e fortalecida em grande parte em funo da

    conscincia do escritor a respeito do histrico de perseguies e violncias

    impostas ao povo judeu entre essas se encontram em posio de destaque

    as praticadas pelo regime da Alemanha nazista durante o holocausto.

    1.2 O PROJETO

    Dentre os principais temas desenvolvidos na obra potica de Cohen,

    nota-se que a temtica que alude ao holocausto aliada forte identificao do

    autor com a religio judaica permitem uma abordagem sobre a representao

    do holocausto em sua obra.

    Nesse sentido, entendo como relevante a abordagem que Cohen

    realiza por meio de sua lrica por vezes irnica, incisiva ou mesmo corrosiva

    sobre o tema do holocausto, em razo das conseqncias que esse evento

    causou, no raro conduzindo a intelectualidade e a expresso artstica de

    grande parte do sculo XX, at a de nossos tempos, a continuamente procurar

    refletir filosoficamente, sociologicamente ou artisticamente sobre a natureza

    catastrfica desse momento histrico.

    Entre os quadros de literatura do sculo XX, a literatura que

    desenvolve um trabalho de abordagem, de forma direta ou ainda que indireta,

    do evento do holocausto e de suas conseqncias sobre as diferentes

    geraes conhecida como literatura do testemunho. Segundo informa o

  • 13

    professor, tradutor e ensasta Mrcio Seligmann-Silva em O local da diferena21

    (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 77):

    A literatura de uma era de catstrofes desenvolveu tambm a nossa sensibilidade para reler e reescrever sua histria, do ponto de vista do testemunho. (...) Com relao Shoah surgiram centenas de publicaes de sobreviventes, de membros da segunda gerao e de outros escritores que deixaram em suas obras as marcas de um evento que tambm catalisou a reflexo filosfica, sociolgica, literria e esttica.

    Tal qual apresenta Seligmann-Silva, a literatura do testemunho

    abrange no somente os relatos de sobreviventes de campos de concentrao

    e de extermnio comandados pela Alemanha nazista, mas tambm envolve as

    publicaes de descendentes desses sobreviventes, alm das obras

    construdas por outros escritores (como o caso de Cohen), que procuram

    refletir sua maneira (artisticamente, filosoficamente e/ou sociologicamente)

    esse mesmo momento histrico. Nesse sentido, os poemas de Cohen que

    tematizam o Holocausto, ou a Shoah, permitem que abordemos a obra desse

    autor sob a perspectiva da literatura do testemunho.

    Segundo Seligmann-Silva contextualiza22, essa literatura produzida

    sobre o tema da Shoah de relevncia para a literatura produzida no sculo

    XX. Conforme ele examina, ao invs de visar uma representao do passado,

    a literatura do testemunho tem em mira a sua construo a partir de um

    21 Em O local da diferena, Mrcio Seligmann-Silva apresenta uma coletnea de ensaios que abordam questes da teoria literria, traduo, crtica cultural, filosofia, histria da arte e histria geral. Em seu segundo captulo, o qual intitulado Trauma, testemunho e literatura, Seligmann-Silva realiza uma reflexo abrangente sobre as relaes entre trauma e literatura, enfocando os conceitos de choque e de trauma, bem como reflete sobre a literatura do trauma, abordando a noo do testemunho. A esse respeito, Seligmann-Silva trata especialmente das relaes entre a literatura do testemunho e a tragdia, bem como efetua uma reflexo terica sobre os limites entre a construo e a fico dentro da literatura do testemunho. (SELIGMANN-SILVA, 2005) 22 Para maior compreenso da colocao de Seligmann-Silva, acompanhe-se a contextualizao que ele realiza a respeito da literatura do testemunho: ... a literatura do testemunho (...) talvez seja uma das maiores contribuies que o sculo XX deixar para a rica histria dos gneros literrios. Nesse sentido ela uma filha da prpria histria: pois nunca houve um sculo com tantos morticnios de populaes inteiras como esse. E mais: essa literatura difere das duas grandes linhas que governaram a produo literria at hoje: ela no visa nem a imitao (da natureza, da histria, ou mesmo de ideais) nem a criao absoluta (como na doutrina romntica que levou busca da arte pela arte). Nem privilgio do sujeito, nem do objeto: antes ela implica uma apropriao das lies do Romantismo (e da ironia romntica: no existe um eu estvel, nem um mundo independente de ns, nem uma linguagem independente do mundo) e a afirmao da necessidade de se construir um passado que est fadado a ficar em runas (a esttica das runas, alis, como bem conhecido, tambm romntica nas suas origens). Indivduo e mundo so construdos simultaneamente atravs dessa literatura. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 110)

  • 14

    presente (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 79). Nesse sentido, pertinente

    considerar que os poemas de Cohen que abordam o tema do holocausto

    constroem esse momento histrico, segundo a distinta viso de mundo do

    autor. Ou seja, o autor faz com que sua lrica se aproprie desse tema e o

    escreva segundo sua perspectiva do drama judaico.

    Em relao ao desafio aceito por Cohen de escrever o momento do

    holocausto, h pertinncia no ponto de vista do filsofo, socilogo e crtico

    literrio Theodor W. Adorno, divulgado em seu ensaio Crtica cultural e

    sociedade (ADORNO, 1998), que professava a impossibilidade de se escrever

    poemas aps Auschwitz. A questo de como fazer poesia lrica nessa era

    catastrfica esteve presente nas reflexes empreendidas pelos pensadores da

    escola de Frankfurt, que procuraram conciliar a crtica da cultura com a crtica

    de regimes violentos e totalitrios. A esse respeito, Adorno desenvolveu uma

    reflexo sobre a lrica, que procurava definir qual o papel da poesia em tempos

    de desumanizao provocados pelo avano do capitalismo industrial, bem

    como por experincias de barbrie conduzidas por regimes totalitrios, como

    exemplo o regime da Alemanha nazista. Nesse sentido, em Crtica cultural e

    sociedade (ADORNO, 1998, p. 26), Adorno declarava que escrever um poema

    aps Auschwitz um ato brbaro, e isso corri at mesmo o conhecimento de

    por que hoje se tornou impossvel escrever poemas. Essa impossibilidade

    professada por Adorno, baseia-se em sua considerao de que o valor da

    poesia, aps o advento de experincias violentas e traumticas do sculo XX,

    depende de seu afastamento das convenes mais tradicionais de expresso e

    representao23.

    A estudiosa da obra de Cohen, Sandra Wynands, em artigo intitulado

    The representation of the Holocaust in Flowers for Hitler (WYNANDS, 2000),

    contextualiza essa controvrsia, bastante discutida entre escritores no perodo

    ps-guerra, a qual aventava a hiptese de se utilizar o holocausto como objeto

    de uma obra artstica. Segundo Wynands examina (WYNANDS, 2000, p. 199),

    Adorno contra a representao do holocausto em obra de arte, desaprovando

    a estetizao do evento, em funo dessa representao proporcionar apenas 23 Conforme o professor e pesquisador Jaime Ginzburg aponta em Theodor Adorno e a poesia em tempos sombrios. Nesse artigo, Ginzburg prope uma reflexo sobre idias de Adorno, abordando relaes entre sua concepo de poesia lrica, sua valorizao da Histria e sua crtica da experincia poltica de seu tempo (GINZBURG, 2002).

  • 15

    um simulacro, uma cpia fraca que nunca faria justia ao original, alm de

    possivelmente ser uma ofensa para as vtimas desse evento catastrfico.

    Contra essa objeo de Adorno, Wynands apresenta o argumento dos que

    defendem24 a necessidade de se utilizar o holocausto como objeto de obra

    artstica, baseado no fato de que assim haveria a possibilidade de reflexo

    sobre a catstrofe, evitando que ela casse em esquecimento. Segundo esse

    ponto de vista, a utilizao do holocausto em obra de arte contribuiria para que

    experincias de barbrie, tais como as que ocorreram nesse terrvel evento

    histrico, no ocorressem novamente.

    Em resposta desaprovao de Adorno utilizao esttica do evento,

    Wynands conclui que Cohen evita uma representao mimtica do holocausto,

    em funo de adotar uma postura semelhante apresentada pela literatura da

    decadncia25. Ao efetivar uma inverso de temas comuns romnticos em sua

    obra, Cohen no almeja proporcionar prazer esttico ao leitor. Antes de apelar

    empatia deste, Cohen procura uma desfigurao da obra de arte, afastando-a

    de uma concepo de arte que seja mais familiar ao leitor, muitas vezes

    fazendo com que a mensagem experimentada por este seja desagradvel ou

    mesmo perversa. Dessa forma, o prazer esttico que objetado por Adorno,

    no objetivado nos poemas de Cohen que tratam do holocausto. Ao

    contrrio, em virtude de procurar causar perturbaes, choques na

    sensibilidade do leitor, os poemas de Cohen permitem abrir janelas de

    significao que podem estimular a reflexo desse leitor a respeito do evento

    do holocausto, bem como sobre a funo desses poemas e da prpria funo

    do leitor na contemporaneidade.

    Com base nessas afirmaes pode-se considerar a validade da

    abordagem potica, fruto da incurso lrica, que Cohen realiza sobre o tema do

    holocausto em sua obra. Em funo dos poemas selecionados para a prtica

    24 Em seu artigo, Wynands ilustra esse argumento com uma citao de Wolfdietrich Schnurre: A poesia carnal. Portanto, ela fala de vida. Portanto, ela a defende. E agora, aps uma vitria global da morte como essa, a poesia deve ficar calada?. (Poetry is sensual. therefore it is about life. Therefore it defends it. And now, after such a global victory of death, poetry is supposed to be silent?). (WYNANDS, 2000, p. 199) 25 Segundo Wynands expe, na literatura da decadncia temas comuns romnticos so radicalmente reinterpretados, invertidos de forma a se libertar das limitaes das noes vitorianas e positivistas de progresso e crescimento linear (WYNANDS, 2000, p. 203). Ou seja, privilegiada a concepo esttica de fins do sculo XIX, onde o feio substitui o belo, como objeto de inspirao artstica. Nesse sentido, a potica de Baudelaire serve como exemplo desta concepo artstica.

  • 16

    tradutria e das discusses por esses poemas apresentadas e estimuladas, a

    obra potica de Cohen indica que, apesar da impossibilidade adorniana,

    possvel escrever poemas sobre os campos de extermnio da Alemanha

    nazista, e de certa forma construir o evento catastrfico do holocausto sob a

    forma de poesia. Ou seja, em funo da postura romntico-decadente adotada

    por Cohen26, que no almeja causar prazer esttico no leitor, Cohen antes

    procura efetuar uma aspirao ao horror em seus poemas, de forma a indicar

    os diversos atos de desumanizao praticados pelo regime nazista. Nesse

    sentido, compreendo que atravs dos poemas de Cohen que tematizam a

    Shoah, possvel realizar uma abordagem sobre o holocausto e, por meio

    dessa, estimular a reflexo do leitor a respeito dessa experincia de barbrie e

    violncia.

    Tendo em vista a prtica tradutria dos poemas de Cohen que

    tematizam a Shoah, realizo uma leitura crtica sobre os aspectos brbaros e as

    diversas atrocidades praticadas contra aqueles judeus que sofreram

    perseguies, torturas e outras mutilaes por parte do regime nazista,

    propondo ao leitor uma reflexo sobre a meticulosa campanha de aniquilao

    do humano promovida por tal regime. Considero a necessidade de se realizar

    esta abordagem sobre o holocausto a fim de melhor estudo e compreenso

    dos poemas selecionados para meu projeto de traduo.

    Assim sendo, apresento no captulo 2 uma reflexo terica sobre

    traduo. Inicialmente, apresento a traduo como relao, tal como

    conceituada por Antoine Berman no texto A traduo em manifesto de seu

    livro A prova do estrangeiro (BERMAN, 2002, p. 11-25). Este o conceito que

    pretendo considerar em meu estudo. Em seguida, trato da natureza paradoxal

    da atividade do tradutor de poesia, ou seja, da questo da traduzibilidade e da

    intraduzibilidade do gnero poesia. Considero necessrias essas reflexes

    sobre traduo a fim de melhor fundamentar terica e criticamente a prtica de

    traduo.

    No captulo 3, apresento uma leitura crtica sobre treze poemas

    integrantes da obra potica de Cohen, selecionados para a prtica de traduo

    em funo de se revelarem representativos da temtica do holocausto ou

    26 Tratarei mais detalhadamente da postura romntico-decadente, ou do romantismo sombrio, adotado por Cohen no tpico 3.2. O desenvolvimento da identidade judaica em The genius.

  • 17

    indicativos da identidade judaica abordada em sua obra. Nessa leitura crtica,

    trato de diferentes aspectos abordados em relao ao tema do holocausto na

    obra de Cohen. Dessa maneira, realizo uma leitura crtica tratando

    primeiramente da identidade judaica do autor e, em seguida, ressaltando o

    desenvolvimento dessa identidade no poema The genius (COHEN, 1961, p.

    15). Na seqncia, abordo a questo do judeu de Dachau. Posteriormente,

    realizo uma leitura de poemas selecionados do livro Flowers for Hitler de

    COHEN (1964), construindo uma reflexo sobre os cenrios violentos e

    opressivos do ambiente de tortura, sobre a natureza do Mal, sobre o horror

    judaico, bem como sobre o desejo de aniquilao do humano, tal como pode

    ser observado nos poemas de Cohen em relao ao genocdio comandado

    pelo regime da Alemanha nazista.

    No captulo 4, apresento os textos originais em lngua inglesa de

    Cohen, bem como a traduo proposta para esses treze poemas focalizados

    em minha leitura crtica. Esses poemas so: City Christ, do livro Let us

    compare mythologies (COHEN, 1956); The genius, do livro The spice-box of

    earth (COHEN, 1961); A note on the title, Folk, Heirloom, The failure of a

    secular life, What Im doing here, Hitler the brain-mole, All there is to know

    about Adolph Eichmann, Opium and Hitler e A migrating dialogue, do livro

    Flowers for Hitler (COHEN, 1964); I am a priest of God, do livro Parasites of

    heaven (COHEN, 1966); e Not a Jew, do livro Book of longing (COHEN, 2006).

  • 18

    2 SOBRE TRADUO

    2.1 A TRADUO COMO RELAO

    Opto por considerar nesse projeto de traduo de poemas de Cohen a

    traduo tal como foi conceituada pelo tradutor e terico francs Antoine

    Berman no texto A traduo em manifesto que faz as vezes de prefcio de

    seu livro A prova do estrangeiro (BERMAN, 2002, p. 11-25), ou seja, tratarei a

    traduo como sendo um texto que procura estabelecer com o texto original

    uma espcie de relao.

    Em A prova do estrangeiro, Antoine Berman apresenta um estudo

    sobre a cultura e traduo na Alemanha romntica, examinando teorias de

    autores como Herder, Goethe, Schlegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher e

    Hlderlin. Em A traduo em manifesto, Berman realiza uma reflexo a

    respeito de questes fundamentais sobre traduo como, por exemplo,

    procurar definir que lugar ocupa a traduo em nosso campo cultural.

    Conforme Berman expe: a essncia da traduo ser abertura, dilogo,

    mestiagem, descentralizao. Ela relao, ou no nada (BERMAN, 2002,

    p. 17). A construo dessa relao, espcie de dilogo proposto entre o texto

    traduzido e o texto original, o que objetivo nesse estudo.

    Nesse projeto de traduo de poemas da obra de Cohen, compreende-

    se a relao proposta por Berman, como uma relao que seja representativa

    de minha leitura crtica da obra de Cohen. Ou seja, tendo em vista a prtica

    tradutria de poemas da obra do autor que tematizam o evento da Shoah, irei

    realizar uma traduo a partir do desenvolvimento de uma abordagem crtica

    dos diversos aspectos do holocausto nos poemas de Cohen. Atravs dessa

    leitura crtica da obra do autor, procuro estabelecer em meu texto em traduo

    uma relao entre nossa cultura contempornea e a cultura canadense, tal

    como foi articulada e desenvolvida sob a forma de poesia por Cohen.

    A conceituao da prtica tradutria como sendo forma de dilogo

    proposto entre duas lnguas (e duas culturas) defendida no s por Berman,

    mas encontra ecos no cenrio brasileiro, mais especificamente no discurso do

    poeta e tambm tradutor Rgis Bonvicino. Em entrevista ao Jornal Rascunho

  • 19

    (BONVICINO, 2005, p. 14), Bonvicino discorre a respeito da questo da

    fidelidade ou no do texto em traduo em relao ao texto original, afirmando

    a sua concepo de traduo como sendo dilogo. Essa afirmao ilustra

    perceptivelmente a consonncia do discurso de Bonvicino ao de Berman.

    Conforme o poeta explica nessa entrevista (BONVICINO, 2005, p 14):

    A rigor, no existe fidelidade possvel entre lnguas diferentes. por isso que a traduo sempre um desafio, um problema, um fracasso. Os conceitos de fidelidade e de traio so um pouco moralistas no que se refere traduo. Penso que traduzir dialogar com modelos [grifo meu]. E isso muito importante para uma literatura, embora sujeito ao fracasso, como eu disse.

    De maneira similar que se pretende o projeto de traduo

    desenvolvido nesse estudo, ou seja, objetiva-se construir em lngua portuguesa

    um texto em traduo que dialogue com o texto original de Cohen,

    estabelecendo com ele, conforme Berman postula, uma relao. Assim sendo,

    pretende-se escrever, ou melhor, re-escrever em portugus um texto que

    dialogue com o modelo Cohen e que estabelea uma relao com a lrica

    traduzvel do autor canadense.

    Nesse sentido, objetiva-se que essa traduo possa se relacionar com

    o modelo Cohen, a fim de estabelecer atravs dessa relao no A

    correspondncia, mas uma espcie de correspondncia sensvel aos diversos

    procedimentos lingsticos e estilsticos utilizados pelo autor que possam ser

    observados em meu ato de leitura e interpretao do texto original. Pois

    compreendo que ao objetivar re-escrever um texto em portugus que dialogue

    com o modelo Cohen preciso estar cnscio de que o olhar do tradutor fruto

    de uma comunidade interpretativa especfica e que faz referncia indelvel

    poca, lugar e cultura em que este tradutor existe e atua. Assim sendo, o que

    se prope nesse estudo no a traduo dos poemas de Cohen, mas uma

    traduo possvel dos poemas de Cohen, fundada em minha leitura crtica

    dessa obra, pois conforme Berman examina em A traduo em manifesto de

    seu livro A prova do estrangeiro (BERMAN, 2002, p. 18):

    A dialtica reversvel da fidelidade e da traio est presente neste ltimo [o tradutor] at na ambigidade de sua posio de escrevente: o puro tradutor aquele que tem necessidade de escrever a partir de uma obra, de uma lngua e de um autor estrangeiros. Desvio notvel. No plano psquico, o tradutor ambivalente. Ele quer forar dos dois lados: forar a sua lngua a se lastrear de

  • 20

    estranheza, forar a outra lngua a se de-portar em sua lngua materna. Ele quer ser escritor, mas no seno re-escritor. Ele autor e nunca o Autor. Sua obra de tradutor uma obra, mas no A Obra.

    Compreende-se esse projeto de traduo de maneira semelhante. De

    fato, procuro ressaltar nesse estudo que estou ciente de que essa traduo

    proposta fruto de um ato de interpretao especfico e provisrio, isto ,

    sujeita natural transitoriedade que o ato de leitura e interpretao efetivar do

    texto original. Estou, portanto, cnscio de que ao construir significados em

    minha leitura do texto de Cohen, e ao procurar evidenciar esses significados

    em minha traduo, estou inevitavelmente propondo que essa traduo possa

    se relacionar com o texto estrangeiro de forma a possibilitar uma re-escritura

    temporria desse em nossa lngua materna.

    possvel re-escrever em nosso idioma aspectos da obra potica do

    autor, os quais conforme Berman explana mantenham uma relao de

    dilogo e abertura com o texto estrangeiro. Ou seja, segundo a leitura crtica

    que realizo da obra de Cohen, considero possvel re-escrever em meu texto em

    traduo diferentes aspectos da temtica do holocausto, de forma a oferecer

    um recorte dessa obra. Visto que essa leitura crtica devido a um ato de

    interpretao pessoal e especfico, no imagino ser possvel a traduo da

    totalidade da obra isto , traduzir toda a pluralidade de significaes que a

    obra de Cohen permite aos leitores mas certamente considero possvel uma

    traduo desse recorte que efetuo da obra.

    Outro aspecto importante a se ressaltar, ao qual Berman se refere

    pertinentemente em A traduo em manifesto de seu livro A prova do

    estrangeiro (BERMAN, 2002), a conceituao da traduo como sendo

    mestiagem, ou seja, o que se procura permitir a entrada de contedo

    estrangeiro no texto em traduo, objetivando desse modo, que o texto original

    em lngua estrangeira estabelea com o texto em traduo uma relao de

    miscigenao. Sobre essa questo, apropriado lembrar que Berman

    desenvolve em sua concepo de traduo uma considerao terica j

    tratada por Schleiermacher no incio do sculo XIX.

    Em 1813, o telogo e filsofo alemo Friedrich Schleiermacher

    indicava em seu ensaio Sobre os diferentes mtodos de traduo

    (SCHLEIERMACHER, 2001) quais caminhos so possveis de serem tomados

  • 21

    pelo tradutor. Segundo Schleiermacher, s h dois caminhos possveis: Ou o

    tradutor deixa o autor em paz e leva o leitor at ele; ou deixa o leitor em paz e

    leva o autor at ele (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 43).

    Visto dessa forma, Schleiermacher argumenta que o tradutor ao optar

    pelo primeiro caminho, ponha em prtica um mtodo de traduo

    estrangeirizante, o qual valorize e procure reproduzir no texto em traduo os

    estranhamentos, ou seja, as diferenas culturais do texto estrangeiro.

    Conforme Schleiermacher apresenta, caso opte pelo segundo caminho, o

    tradutor estar utilizando um mtodo de traduo que priorize o abafamento no

    texto em traduo das diferenas e estranhamentos do texto em lngua

    estrangeira.

    Nesse contexto, coerente afirmar que Berman procura desenvolver

    em sua concepo de traduo o primeiro caminho mencionado por

    Schleiermacher. Ou seja, Berman procura evidenciar no texto em traduo as

    diversas diferenas culturais e lingsticas do texto estrangeiro e no apag-

    las, tal como fazem as tradues etnocntricas. Segundo Berman argumenta

    (BERMAN, 2002, p. 16), o prprio objetivo da traduo proporcionar uma

    espcie de relao com o texto em lngua estrangeira, onde esse ltimo atue

    de forma a fecundar o texto em traduo, inseminando este com suas

    especificidades de linguagem, ou seja, com os estranhamentos estilsticos

    caractersticos do autor, os estranhamentos especficos de linguagem que

    possam ser observados no texto estrangeiro. Dessa maneira, nas palavras de

    BERMAN (2002, p. 16):

    A prpria visada da traduo abrir no nvel da escrita uma certa relao com o Outro, fecundar o Prprio pela mediao do Estrangeiro choca-se de frente com a estrutura etnocntrica de qualquer cultura, ou essa espcie de narcisismo que faz com que toda sociedade deseje ser um Todo puro e no misturado. Na traduo, h alguma coisa da violncia da mestiagem.

    Sem dvida, h na traduo alguma espcie de violncia da

    mestiagem. No toa que os puristas de maneira geral, comportem-se de

    forma a proteger a sua lngua materna, criticando a entrada e veiculao de

    eventuais estranhamentos do texto estrangeiro em sua lngua. Conforme

    Berman explicita, toda cultura procura conservar sua estrutura etnocntrica.

    Para tanto, em nome de uma pureza idealizada, age de forma a preservar essa

  • 22

    espcie de narcisismo que a impede de se misturar sem reservas com outras

    culturas. Sob esse ponto de vista, compreende-se que toda traduo

    represente uma ousadia sensvel para a cultura domstica, visto que prope

    uma forma de mestiagem entre essa e a cultura estrangeira. Alie-se a isso o

    fato de que essa mestiagem do texto em traduo no ocorre de forma

    pacfica, mas freqentemente surge com certa violncia, devido ao choque de

    idias e de diferentes vises de mundo, o qual realado em virtude do

    inevitvel contraste que existe entre diferentes culturas.

    Nesse sentido, compreende-se por que os que avaliam tradues

    literrias (leitores, editores e crticos) algumas vezes privilegiem a fluncia de

    certos textos em traduo, e em outras ocasies condenem a estranheza ou

    mesmo a bizarria de linguagem de outros textos, como se o advento desses

    fosse fruto de uma inabilidade ou mesmo incompetncia lingstica do tradutor.

    Ao contrrio do que muitos desses crticos e leitores imaginam, fluncia no

    texto em traduo no significa necessariamente uma maior compreenso do

    texto em lngua estrangeira e, subseqentemente, uma maior competncia do

    tradutor em seu ofcio. Sabe-se que, muitas vezes, em prol de uma maior

    inteligibilidade do texto em traduo, h tradutores que cometem apagamentos

    de determinados estranhamentos de linguagem do texto original, ou at mesmo

    efetuam um ato de sublimao de alguns recursos estilsticos caractersticos do

    autor no raro, optam por evitar evidenciar aspectos contrastantes que

    ocorrem entre diferentes culturas, recusando-se a admitir e a proporcionar uma

    saudvel mestiagem entre essas culturas no texto em traduo. Tais

    tradutores agem dessa maneira de forma a proporcionar uma maior fluncia

    de seu texto em traduo, certos de que essa qualidade seja valorizada em

    seus trabalhos.

    A esse respeito, o professor, tradutor e um dos mais respeitados

    tericos dos estudos da traduo da atualidade, Lawrence Venuti, faz especial

    meno em seu livro The translators invisibility (VENUTI, 1995). Nesse

    trabalho, Venuti mapeia a histria da traduo do sculo XVII atualidade,

    relatando como o aspecto da fluncia prevaleceu sobre outras estratgias de

    traduo quando da formao do cnone de literaturas estrangeiras traduzidas

    para a lngua inglesa.

  • 23

    Segundo Venuti, um texto em traduo julgado aceitvel pelo pblico

    avaliador de tradues (resenhistas, editores e leitores), quando este texto

    lido de maneira fluente. As avaliaes desse pblico baseiam-se na ausncia

    no texto em traduo de peculiaridades estilsticas ou lingsticas presentes no

    texto estrangeiro. Ou seja, para esses avaliadores, um texto em traduo

    satisfatrio quando legvel ou fluente, quando comete apagamentos de

    construes estranhas no texto estrangeiro, tornando-se transparente, isto ,

    dando a impresso de que o texto traduzido faa refletir de maneira

    transparente a essncia do texto original. Pois, a maioria desses avaliadores,

    segundo Venuti, gostaria de ler as tradues como se estas tivessem sido

    escritas em sua prpria lngua, e no receb-las como o fruto de uma cultura

    estrangeira. Nesse sentido, nota-se que o pblico avaliador de tradues

    privilegia o segundo caminho possvel de ser tomado pelo tradutor, tal como foi

    apontado por Schleiermacher anteriormente, em seu ensaio Sobre os

    diferentes mtodos de traduo (SCHLEIERMACHER, 2001). Ou seja, para

    esse pblico avaliador, o tradutor deve deixar o leitor em paz e levar o autor at

    ele, cometendo apagamentos das diferenas e estranhamentos do texto

    estrangeiro, a fim de tornar o texto traduzido mais fluente.

    Dessa forma, com base nesse valorizado aspecto da fluncia, ou

    melhor, da iluso da transparncia do texto em traduo, Venuti elabora em

    seu livro o conceito de invisibilidade do tradutor. Tal conceito por esse

    terico assim apresentado: para esse pblico avaliador de tradues que

    orientado pela iluso da transparncia, ou seja, no percebe que esse carter

    de transparncia um simples efeito do discurso construdo pelo tradutor

    para garantir legibilidade de seu texto, Venuti expe que Quanto mais fluente a

    traduo, mais invisvel o tradutor (VENUTI, 1995, p. 2). Ou seja, para

    Venuti, o ideal da fluncia torna as tradues transparentes, o que acaba por

    ocasionar a invisibilidade do tradutor. Segundo seu estudo, essa invisibilidade

    a situao em que se encontra o tradutor atualmente no cenrio cultural anglo-

    americano.

    De forma a se contrapor a essa tendncia historicamente dominante no

    mundo das tradues e, principalmente, se opor ao autoritarismo da

    transparncia, Venuti prope ento a defesa de uma traduo

    estrangeirizante. Para Venuti, uma traduo estrangeirizante em lngua inglesa,

  • 24

    ou seja, que permita a presena de diferenas lingsticas e culturais, pode ser

    uma forma de resistncia contra o etnocentrismo, racismo, narcisismo cultural e

    imperialismo dos pases de lngua inglesa. nesse sentido que nota-se a

    consonncia do estudo de Venuti com a concepo de traduo de Berman.

    De fato, Venuti ope-se tal como Berman s tradues etnocntricas. Ambos

    fundamentam suas consideraes tericas no ensaio escrito por

    Schleiermacher Sobre os diferentes mtodos de traduo

    (SCHLEIERMACHER, 2001), ou seja, buscam pr em prtica um mtodo de

    traduo estrangeirizante, o qual deixe o autor em paz e leve o leitor at ele. A

    esse respeito, Berman desenvolve, conforme j foi visto, o conceito de visada

    tica do texto em traduo, a fim de evidenciar no texto traduzido uma relao

    com o Outro (BERMAN, 2002, p. 16). J Venuti, como fruto de suas leituras

    crticas de Schleiermacher e de Berman, prope uma prtica tradutria

    estrangeirizante que resista ao ideal de fluncia e de domesticao cultural

    (ou seja, que no cometa apagamentos de estranhamentos e diferenas

    culturais), de forma a se opor iluso da transparncia atualmente em

    vigncia, objetivando dessa maneira tornar visvel o papel do tradutor.

    Com base nessas consideraes apresentadas que direcionam a

    prtica tradutria, compreende-se que a forma de conduta apropriada para

    esse projeto de traduo de Cohen seja a de respeitar as diferenas culturais

    do texto estrangeiro. De fato, o que se pretende nesse projeto de traduo de

    forma alguma, ocasionar ou possibilitar alguma espcie de sublimao ou

    apagamento proposital e sistemtico de qualquer estranhamento de linguagem

    que possa ser observado no texto de Cohen. No objetiva-se nesse trabalho

    desconsiderar especificidades lingsticas observveis no texto estrangeiro,

    nem tampouco procurar desenvolver no texto em traduo procedimentos

    lingsticos que a despeito de eventualmente possibilitarem uma certa

    fluncia, colaborando para criar uma certa iluso da transparncia nesse

    texto, certamente impliquem em um abafamento e apagamento da lrica do

    autor.

    Assim sendo, procura-se construir um texto em lngua portuguesa que

    estabelea uma relao representativa de minha leitura crtica da obra de

    Cohen. Com base nas exposies de Berman (BERMAN, 2002, p. 16), ao abrir

    no nvel da escrita de minha traduo uma certa relao com o Outro, procuro

  • 25

    construir nesse projeto de traduo uma forma de dilogo com a lrica do autor

    que no cometa apagamentos do texto estrangeiro e, sobretudo, represente os

    aspectos observveis em minha leitura crtica da temtica da Shoah nos

    poemas de Cohen, efetivando, portanto, a possibilidade de traduo desse

    meu recorte da obra.

    2.2 A TRADUZIBILIDADE E INTRADUZIBILIDADE DA POESIA

    Dentre as diversas particularidades com as quais o tradutor se depara

    em seu ofcio, significativo notar o carter de singularidade que envolve

    aqueles que se propem a traduzir poesia. Nesse sentido, pertinente uma

    considerao a respeito da conscincia do paradoxo que envolve essa

    atividade. Ou seja, tratarei, a seguir, da constatao de que a poesia se revela

    intraduzvel e ao mesmo tempo traduzvel. Para melhor exemplificao,

    considera-se um depoimento do poeta Michel Deguy em relao a este tema

    (DEGUY, 2001, p. 8):

    Quanto poesia, h uma verdade forosamente paradoxal: um poema ao mesmo tempo intraduzvel e traduzvel. Ns no escutamos a lngua do outro na nossa prpria lngua. Se eu no falo russo, no entenderei jamais um poema de Puchkin; se no falo portugus, no entenderei um poema de Pessoa. Uma lngua no fala em outra lngua ela um enclausuramento. Tudo est compartimentado, encerrado, cloisonn (uma das grandes palavras do esprito filosfico contemporneo). Cada lngua forma um meio relativamente independente e relativamente finito dentro de sua infinitude, o que quer dizer que o mundo inteiro se passa na totalidade de uma lngua: se eu no falo uma lngua, eu no compreendo sua verso do mundo.

    H pertinncia na constatao de DEGUY (2001, p. 8) a respeito da

    intraduzibilidade da poesia, em razo dela estar, por natureza, enclausurada na

    lngua em que foi produzida. Sob esse aspecto, posso acrescentar

    considerao de Deguy outra circunstncia a ser observada pelo tradutor de

    poesia. A saber, a percepo de que um poema ainda mais intraduzvel se

    considerarmos todo o sistema fnico que nele habita, em funo tanto da

    complexidade sugerida de associaes de sonoridades, quanto das

    possibilidades de associaes dessas sonoridades com os arranjos de silncio

    que o autor procure articular em sua pea potica. De fato, os recursos sonoros

    dentro de um poema so responsveis por grande parte da capacidade

  • 26

    expressiva desse, pois atravs deles que freqentemente o poeta alcana o

    encantatrio e no raro amplia o poder de sugesto de seus versos. Sob essa

    tica, uma obra potica se revela, essencialmente, intraduzvel. No entanto,

    conforme Deguy explica ao longo de seu depoimento (DEGUY, 2001, p. 8), um

    poema ao mesmo tempo que se revela intraduzvel, tambm revela-se

    traduzvel:

    Mas, por outro lado tudo traduzvel. Tudo est por ser traduzido, no cessamos de traduzir, nada pode ter lugar seno pelo esforo da traduo. Trata-se de uma palavra de ordem: preciso traduzir, o que Benjamin27 chamava das grosse Ausgabe des bersetzers28 (a grande tarefa do tradutor). Eu no o entendo em sua lngua, mas devo me entender com aquilo que foi pensado nessa lngua. Nesse ponto, porm, h uma bifurcao que corresponde justamente literatura, diferena lngua-literatura. Falando de modo um pouco caricatural, importante conhecer o portugus para poder ir a um restaurante ou alugar um carro em So Paulo, mas muito mais importante ler a obra de um grande escritor brasileiro em traduo para lngua francesa. O importante que cada lngua se torne capaz de fazer chegar at si a literatura das outras lnguas. Ento eu diria que, em primeiro lugar, um poema intraduzvel e, em segundo lugar, que tudo est por ser traduzido. Esse o paradoxo.

    Assim sendo, possvel realizar duas constataes a respeito da tarefa

    do tradutor de poesia, ainda que essas se encontrem em ntido paradoxo. A

    primeira constatao a de que uma obra potica intraduzvel porque se

    encontra enclausurada na lngua em que foi produzida, ou seja, se no se fala

    determinada lngua, no se compreende a viso de mundo que esta abriga.

    Dessa forma, um poema se revela decididamente intraduzvel, mas por outro

    lado, esse tambm se apresenta como traduzvel. Utilizando o mesmo

    depoimento de DEGUY (2001, p. 8), pode-se chegar segunda constatao, a

    qual entra em confronto com a primeira, ou seja, a de que tudo traduzvel

    (...), tudo est por ser traduzido, pois h a necessidade de traduo em nossa

    lngua do que foi pensado em outra. A fim de satisfazer essa necessidade, h a

    possibilidade de dilogo desses pensamentos inaugurados em outra lngua

    com pensamentos construdos na nossa lngua. De fato, atravs do que

    27 Benjamin, em seu ensaio A tarefa renncia do tradutor, defende a idia da traduzibilidade das obras. Conforme ele argumenta em certa passagem: vale o princpio: se a traduo uma forma, a traduzibilidade deve ser essencial a certas obras, ou ainda, na concluso de seu texto: todos os grandes escritos contm, (...), a sua traduo virtual entre as linhas. (BENJAMIN, 2001, p. 191, 215) 28 Erro de formulao do texto citado. Onde se l das grosse Ausgabe des bersetzers, leia-se, portanto, die grosse Aufgabe des bersetzers.

  • 27

    Berman conceitua como relao, imperativo elaborar um texto em lngua

    portuguesa que estabelea uma relao de dilogo com o texto estrangeiro.

    Dessa maneira, possvel atravs de um ato de interpretao nico e

    provisrio, construir um texto em portugus que apresente muitas das

    conotaes psicolgicas, sensoriais, musicais e filosficas que possam ser

    interpretadas do texto original. Nesse sentido, portanto, observa-se que um

    poema tambm se revela traduzvel.

    A respeito das particularidades e dos desafios que uma prtica de

    traduo de poesia impe ao tradutor, so relevantes as consideraes que

    Jos Paulo Paes, escritor respeitado no cenrio brasileiro em funo de sua

    atividade como poeta e tambm como tradutor, desenvolve em seu texto O

    tradutor e a formao do leitor de poesia (PAES, 1996). A fim de que no haja

    dvida alguma, Paes anuncia em alto e bom tom o carter no apenas

    singular, mas intenso e cruel da luta empenhada pelos que se propem a

    traduzir poesia. Nas suas palavras: Em nenhum outro setor da atividade

    tradutria a luta contra o impulso isolacionista da linguagem mais

    encarniada do que na traduo de poesia (PAES, 1996, p.14). A atividade

    tradutria conceituada como luta bem explicativa do embate entre duas

    diferentes foras que se realiza na mente do tradutor de poesia. Conforme j

    visto, em relao traduo de poesia, a conceituao do poema como sendo

    intraduzvel conflita com a conceituao do poema como sendo traduzvel,

    revelando a natureza paradoxal da atividade tradutria. Nesse sentido, em

    relao questo da intraduzibilidade e da traduzibilidade da poesia, observa-

    se que o poeta e tradutor Paes apresenta consonncia com o pensamento de

    Deguy, desenvolvendo um ponto de vista similar ao do francs em seu texto.

    Conforme Paes explica (PAES, 1996, p. 14):

    Em outras palavras, cada idioma uma espcie de crculo de giz dentro do qual s h espao de entendimento para os membros da mesma comunidade lingstica. Dele fica excludo o forasteiro ou o intruso que no tenha sido iniciado na esotrica fala da tribo. Desde os seus mais recuados primrdios, a traduo pode ento ser vista como um esforo de fazer o impulso positivo da linguagem para a abertura e a comunicao preponderar sobre a negatividade do seu outro impulso para o fechamento e a excluso. Por sua vez, na condio anfbia de homem de dois ou mais mundos, o tradutor um construtor de pontes lingsticas que ligam umas s outras as ilhas idiomticas fechadas em si mesmas.

  • 28

    Para PAES (1996, p. 14) cada idioma fecha-se sobre si mesmo tal qual

    um crculo de giz, ou uma espcie de ilha, que oferece possibilidade de

    entendimento e comunicao apenas aos membros de sua comunidade. A no

    ser que tenha passado por um processo de iniciao, qualquer estrangeiro,

    forasteiro, ou indivduo no pertencente a esse crculo, encontrar apenas o

    desentendimento e a excluso por parte dos membros da tribo. Nesse sentido,

    sob a perspectiva de Paes, realada a questo da intraduzibilidade de um

    texto, tal qual acontece com a traduo de um poema. No entanto, Paes,

    apesar das adversidades naturais que se apresentam em relao apreenso

    de um idioma para um indivduo forasteiro e aqui interpreto o tradutor como

    um forasteiro em eterno processo de iniciao argumenta a possibilidade de

    entendimento e de dilogo que ocorre devido dedicao desse forasteiro aos

    seus ritos de iniciao na fala da tribo. Dessa forma, que se anuncia a

    possibilidade de comunicao, incluso de um tradutor o forasteiro iniciado ,

    entre os membros da comunidade lingstica daquela ilha. Assim,

    argumentada a questo da traduzibilidade de um texto, tal qual acontece com a

    traduo de um poema, pois conforme Paes defende em seu ponto de vista, o

    tradutor um construtor de pontes. Ou seja, o tradutor possui uma vantagem

    em seu ofcio, pois devido sua condio anfbia, a ele dada a capacidade

    de habitar diferentes mundos, diferentes idiomas. Dessa maneira, em virtude

    de poder trafegar por mundos distintos, possibilitado ao tradutor propor a

    comunicao, ou seja, a construo das pontes, o estabelecimento dos

    dilogos entre esses mundos, essas ilhas, essas lnguas.

    Essa comunicao proposta pelo tradutor em seu ofcio e aqui leia-se

    o projeto de construo das pontes ou, sobretudo, o momento em que se

    traduz apesar da intraduzibilidade s se efetivar devido luta promovida

    entre dois diferentes impulsos: o impulso positivo da linguagem, que conforme

    Paes explica, trata da capacidade de abertura e comunicao de uma lngua, e

    o impulso negativo da linguagem que trata da capacidade de fechamento e

    excluso dessa lngua. Dessa maneira, nessa luta encarniada que a

    traduo de poesia, cabe ao tradutor, fazer com que o impulso positivo

    prepondere sobre o impulso negativo da linguagem. Caso seja bem sucedido

    em seu ofcio, o tradutor visualizar sua ponte articulada entre as ilhas,

  • 29

    possibilitando a ligao entre mundos diferentes, ou seja, para a poesia ele

    tornar realizvel uma traduo apesar da intraduzibilidade.

    Assim sendo, nota-se a consonncia do ponto de vista de Jos Paulo

    Paes com o de Michel Deguy. Sob perspectivas pessoais e, certamente,

    argumentaes diferentes, ambos dividem a opinio de que no processo de

    comunicao, e de, sobretudo, traduo, que ocorre entre lnguas possvel

    verificar a existncia de duas foras que operam em oposio: a questo da

    intraduzibilidade da poesia e, paralela a essa, a questo da traduzibilidade da

    poesia. Ambos concordam que a despeito de, devido sua natureza e origem,

    pertencer a uma ilha fechada em si mesma (Paes), isto , estar enclausurado

    na lngua em que foi produzido (Deguy), um poema traduzvel. Para que isso

    se realize, preciso que o tradutor construa pontes lingsticas entre os

    idiomas (Paes), isto , entenda-se com o que foi pensado na lngua estrangeira

    (Deguy).

    Com base nas argumentaes de Deguy e de Paes, compreende-se

    nesse estudo, portanto, que ao objetivar construir no texto em traduo uma

    relao de dilogo com o texto estrangeiro, o tradutor estar objetivando

    procurar traduzir apesar da intraduzibilidade. Assim, portanto, que se

    considera o ofcio do tradutor nesse projeto de traduo dos poemas de Cohen,

    pois conforme Paulo Rnai j argumentava: O objetivo de toda arte no algo

    impossvel? O poeta exprime (ou quer exprimir) o inexprimvel, o pintor

    reproduz o irreproduzvel, o estaturio fixa o infixvel. No surpreendente,

    pois, que o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzvel. (RNAI apud

    CAMPOS, 1992, p. 34)

    Dessa maneira, o que se pretende nesse projeto de traduo de

    poesia, desenvolver uma prtica de traduo cnscia da natureza paradoxal

    da atividade do tradutor de poesia, isto , em funo da reflexo terica aqui

    apresentada, compreende-se o carter intraduzvel, e ao mesmo tempo,

    traduzvel que habita qualquer pea potica. Nesse sentido, procuro traduzir

    treze poemas selecionados de um recorte da obra de Cohen ainda que haja a

    intraduzibilidade do todo. Compreende-se como recorte uma leitura pessoal

    sobre a temtica do holocausto na obra potica de Cohen, embora muitas

    outras leituras sejam possveis sobre esse tema.

  • 30

    Traando um paralelo com a considerao da obra potica de Cohen, a

    qual, conforme j visto, indica que, apesar da impossibilidade adorniana,

    possvel escrever poemas sobre os campos de extermnio da Alemanha

    nazista, a fim de construir o evento do holocausto sob a forma de poesia, nota-

    se que a condio do tradutor de poesia assim se assemelha. Ou seja, apesar

    da questo da intraduzibilidade, considero que possvel traduzir poemas da

    obra de Cohen para a lngua portuguesa. Nesse sentido, compreendo que no

    seja possvel a traduo da totalidade da obra de Cohen (apontando a sua

    intraduzibilidade), mas decididamente compreendo que seja possvel uma

    traduo de um recorte representativo da leitura crtica que se realiza da obra

    do autor, indicando, portanto, a sua traduzibilidade.

  • 31

    3 FLORES DAS FLORES PARA HITLER

    3.1 A IDENTIDADE JUDAICA DE COHEN

    Nascido em 1934 em uma tradicional e conservadora famlia judaica,

    Cohen desde cedo sentiu a questo da religiosidade impondo forte influncia

    em sua formao. De acordo com a biografia de Cohen escrita por NADEL

    (1994), possvel mapear a origem e a intensidade dessa influncia em seu

    quadro familiar.

    Em relao ascendncia paterna de Cohen, seu pai Nathaniel

    Bernard Cohen neto de Lazarus Cohen, comerciante que antes de migrar

    para o Canad em 1869, foi professor do Colgio dos Rabinos de Wolozhin na

    Litunia. Em 1871, Lazarus traz sua mulher e filho Lyon para Maberly, Ontrio,

    posteriormente se estabelecendo em Montreal. Lyon Cohen, av paterno de

    Cohen, alm de desenvolver sensivelmente a atividade comercial do pai,

    participa de maneira influente na comunidade judaica de Montreal,

    desempenhando ao longo de sua vida diversas atividades a ela relacionadas,

    tais como servir ao Congresso Judeu Canadense (Canadian Jewish Congress),

    Organizao Sionista do Canad (Zionist Organization of Canada), fundar o

    jornal The Jewish Times, escrever artigos para a imprensa judaica, alm de

    posteriormente se tornar o mais jovem presidente da maior Sinagoga do

    Canad: Shaar Hashomayim.

    Em relao ascendncia materna de Cohen, sua me Masha Cohen

    filha do rabino Solomon Klinitsky-Klein, o qual escreveu Lxico de

    homnimos hebreus (Lexicon of hebrew homonyms) e O dicionrio das

    interpretaes rabnicas (The treasury of rabbinic interpretations). O rabino e

    igualmente escritor Klein, para quem Cohen viria a dedicar seu segundo livro

    de poemas The spice-box of earth (COHEN, 1961), exerceu uma influncia

    ainda mais notvel sobre Cohen, principalmente em funo das leituras de

    textos sagrados que Klein realizava em conjunto com seu neto, a fim de melhor

    estimular e desenvolver a sua formao religiosa. Uma prova dessa influncia

    o poema Lines from my Grandfathers journal, poema que conclui o livro The

    spice-box of earth (COHEN, 1961). Nesse texto potico, Cohen mimetiza a

    linguagem do av, construindo uma narrativa potica em primeira pessoa,

  • 32

    utilizando a forma de dirio, a fim de tratar dos eventos ocorridos no passado

    de seu av no Canad e, anteriormente, na Polnia, nao de onde Klein

    migrou em 1923.

    Uma maneira de averiguar a fora com que a questo da religiosidade

    em seu quadro familiar se impe na obra de Cohen, observar a ocorrncia

    dessa temtica em muitos de seus poemas. Em relao s significaes do

    nome Leonard Norman Cohen, que de forma quase que predestinada

    caracterizam o escritor como um possvel sacerdote, descendente por direito

    de uma longa linhagem sacerdotal, importante lembrar o poema I am a priest

    of God29, integrante de Parasites of heaven (COHEN, 1966), que de forma

    irnica responde a toda essa carga religiosa embutida em seu nome e, por

    conseqncia, ao papel que a ele historicamente legado.

    Sou um sacerdote de Deus Ando pelas ruas com os bolsos nas minhas mos s vezes sou mau e s vezes sou muito bom Acredito que eu acredito em tudo que eu preciso Gosto de ouvir voc dizer enquanto dana com uma cabea rolando numa bandeja de prata que sou um sacerdote de Deus Achei que estava fazendo outras 100 coisas mas eu era um sacerdote de Deus Amei umas 100 mulheres jamais contei a mesma mentira duas vezes Eu disse Oh Cristo tu s um egosta mas reparti meu po e arroz Ouvi minha voz dizer multido que eu estava s e era um sacerdote de Deus o que me tornou to vazio que at hoje em 1966 no estou certo de ser um sacerdote de Deus30

    De acordo com a biografia de Cohen (NADEL, 1994, p. 17), reporta-se

    que Norman, o seu nome do meio uma forma anglicizada de Nehemiah, o

    qual significa o reconstrutor. Em sua forma hebraica, Elieser, o nome Leonard

    significa Deus meu amparo. J o sobrenome Cohen, significa aquele que

    exerce as funes, o qual segundo as tradies o primeiro a ler a Torah e

    29 Em minha traduo: Sou um sacerdote de Deus. 30 Para acompanhar o texto original em ingls, vide a pgina 93.

  • 33

    oferecer a bno sacerdotal. Historicamente dentro da tradio judaica, ser

    um Cohen significa ser um dos Kohanim, ou seja, integrar uma linhagem

    sacerdotal estabelecida, que de acordo com a Bblia provm desde Aro, irmo

    de Moiss.

    Com base nesses dados, o poema I am a priest of God revela a

    aceitao e ao mesmo tempo uma certa crtica de Cohen funo de

    sacerdote que lhe oferecida, segundo as significaes religiosas de seu

    nome. De fato, nesses versos o autor responde de forma irnica ao papel que a

    ele legado, enquanto passeia resignado pelas ruas, filosofando sobre suas

    aes em um cenrio contemporneo. Em certo momento, por meio de suas

    reflexes, ele chega at a se identificar com Herodes, rei dos judeus que

    governou a Judia entre 37 a.C. e 4 a.C., vislumbrando uma espcie de

    Salom danando com uma bandeja de prata, relacionando portanto essa

    imagem sua sina religiosa, ainda que na parte final do poema, ele comece a

    duvidar dessa funo. Dessa maneira, observa-se claramente a forma com que

    Cohen se relaciona com o legado semntico de seu nome, alm de notar a

    forte influncia que a religio judaica tem em sua obra.

    Nesse sentido, em funo do profcuo histrico religioso da famlia e

    das significaes que dele advm, encontrando expresso at mesmo em

    relao gnese de seu prprio nome, possvel esboar a acentuada

    influncia que a religio judaica ocasionou na formao do jovem Cohen. O

    poema Not a Jew31, integrante de sua mais recente publicao de poesia Book

    of longing (COHEN, 2006), contribui centralmente para esse vis de leitura:

    Qualquer um que diga que no sou um Judeu no um Judeu sinto muito mas essa deciso final32

    Esse poema de Cohen responde enfaticamente aos que possam

    duvidar de sua identidade judaica. Se observar que esse poema foi publicado

    posteriormente ao perodo em que o autor ficou recluso no mosteiro zen

    budista (Mount Bauldy Zen Center), pode-se considerar esse poema como uma 31 Em minha traduo: No Judeu. 32 Para acompanhar o texto original em ingls, vide a pgina 95.

  • 34

    forma de afirmao de sua crena na religio judaica, alm de ser uma

    resposta efetiva aos que vejam nessa sua experincia budista uma negao de

    sua relao com o judasmo.

    Sob esse aspecto, significativo ainda mencionar um fragmento do

    livro Leonard Cohen in his own words (DEVLIN, 1998). Nessa publicao, que

    compila entrevistas de Cohen concedidas ao longo de toda a sua carreira, a

    identidade judaica j era por ele afirmada de forma decidida. Como ele prprio

    ressalta: Sei que sou um Judeu e vim de uma boa famlia Judia, conservadora

    e sim, certamente sinto essa tradio profundamente, eu posso rezar em

    Hebraico, posso falar com o Chefe em Hebraico33 (DEVLIN, 1998, p. 10).

    Atravs dessa declarao do autor e dos poemas considerados, observa-se a

    fora com que o judasmo se insere na poesia de Cohen, estimulando-o a

    afirmar sua identidade judaica.

    Na biografia de Cohen (NADEL, 1994, p. 20) percebe-se que aliado a

    essa identidade judaica h o sentimento de perda ao qual o futuro escritor

    entraria em contato muito cedo. O evento que trata da morte de Nathaniel, pai

    de Cohen, ocorre em 1944, quando este tinha apenas nove anos de idade.

    Nessa poca Cohen j vinha estudando religio na escola judaica da Sinagoga

    Shaar Hashomayim em paralelo a seus estudos primrios, portanto ampliando

    o seu conhecimento a respeito da histria do povo judeu. O sentimento de

    perda ocasionado pela morte do pai, certamente imps ao jovem Cohen um

    contato mais spero com a realidade. Tal sentimento iniciado em relao

    perda do pai, iria se aprofundar ainda mais em razo de Cohen, nessa j difcil

    fase de sua infncia, tomar ento conhecimento da perseguio e do genocdio

    que os judeus sofriam durante a Segunda Guerra Mundial. A conscincia do

    sofrimento e da morte de milhares de judeus na poca de sua infncia

    intensificaria sensivelmente o seu sentimento de perda, o qual se tornaria um

    tema recorrente, desenvolvido de forma singular na obra do futuro escritor.

    Confirmativa desse sentimento a declarao de Cohen, mencionada por seu

    bigrafo (NADEL, 1994, p. 22), na qual o autor afirma que seu verdadeiro

    33 A seguir, essa passagem conforme apresentada originalmente: I know that I am a Jew and I came from a good Jewish family, Conservative and yeah, I certainly feel that tradition deeply, I can pray in Hebrew, I can speak to the Boss in Hebrew. (DEVLIN, 1998, p. 10)

  • 35

    aprendizado comeou quando viu pela primeira vez as fotos de um campo de

    concentrao, em 1945.

    O tema da morte e o tema da perda relacionado ou desencadeado por

    esta, perpassa toda a obra potica de Cohen, encontrando ressonncia at

    mesmo em sua obra ficcional e em letras de canes. Em seu primeiro livro de

    poemas, Let us compare mythologies (COHEN, 1956), Cohen visita este tema

    em poemas tais como Elegy ou Rites, os quais tratam do dolorido episdio da

    morte de seu pai. No mesmo livro de estria, Cohen inicia sua abordagem

    sobre o tema da identidade judaica, anunciando o que se tornaria em sua obra

    uma frutfera investigao a respeito de assuntos relacionados histria e as

    tradies da religio judaica sob a forma de poesia. O poema City Christ34, de

    Let us compare mythologies (COHEN, 1956), ilustrativo desta abordagem

    temtica do autor:

    Aps a guerras incontveis sobreviver, Ele chega cego e desesperadamente mutilado. Ele suporta os bondes ao amanhecer E conta os anos num quarto da rua Peel. Mantido em seu lugar como um judeu da corte, Para aconselhar sobre furaces e pragas, Ele nunca caminha com eles pelo oceano35 Ou adere a seus jogos solitrios nas caladas.36

    34 Em minha traduo: Cristo da Cidade. 35 Para acompanhar o texto original em ingls, vide a pgina 97. 36 Nessa traduo, que a partir desse momento irei chamar de traduo a, optei por priorizar o aspecto rmico e rtmico do poema City Christ, em detrimento do paralelismo formal que pode ser observado em certos versos do texto estrangeiro. Se optasse por traduzir esse poema sob a perspectiva do paralelismo, uma traduo possvel seria: Ele retornou de guerras incontveis,/ Cego e desesperadamente mutilado./ Ele suporta os bondes ao amanhecer/ E conta os anos num quarto da rua Peel.// Ele mantido em seu lugar como um judeu da corte,/ Para aconselhar sobre furaces e pragas,/ Ele nunca caminha com eles pelo oceano/ Ou adere a seus jogos solitrios nas caladas. Como pode-se observar, essa segunda traduo, que a partir desse momento irei chamar de traduo b, ao procurar reproduzir o contedo semntico do poema, o faz de forma literal. A literalidade da traduo b se presta tarefa de reproduzir o paralelismo entre o primeiro verso da primeira estrofe (He has returned from countless wars,), o terceiro verso da primeira estrofe (He endures the morning streetcars) e o primeiro verso da segunda estrofe (He is kept in his place like a court jew,). Um argumento que sustentaria a perspectiva do paralelismo seria a repetio do pronome He no incio de cada um desses versos, aludindo figura do filho de Deus (Ele). Entretanto, ao optar por reproduzir o paralelismo que h entre esses versos, a traduo b no reproduz as rimas que h entre o primeiro e o terceiro verso da primeira estrofe, alm de estender substancialmente o metro do primeiro verso da segunda estrofe, tornando-o desritmado em relao ao resto da composio. Com base nessas deficincias rmicas e rtmicas apresentadas pela traduo b que opto por apresentar nesse estudo minha traduo a. Nessa traduo, procurei reproduzir o aspecto rmico do poema, em especial as rimas que h entre o primeiro e o terceiro verso da primeira estrofe. A fim de satisfazer essa exigncia rmica observada em minha leitura do texto estrangeiro, realizei uma construo frasal em portugus que permitisse as rimas entre wars e

  • 36

    O poema faz meno indisfarvel histria judaica, referindo-se

    diretamente a eventos recentes e traumticos da histria universal, tal como a

    perseguio e o subseqente genocdio sofrido pelos judeus no perodo da

    Segunda Guerra Mundial. Num primeiro momento, observa-se o percurso de

    guerras (countless wars) enfrentado pelo sujeito lrico, percurso pelo qual ele

    no passou ileso, pois foi o responsvel por diversas mutilaes em sua

    existncia. Estas so mutilaes ocorridas no somente no plano fsico, em

    respeito cegueira (blinded), ou seja, a mutilao de sua viso, mas tambm

    mutilaes impostas ao plano mental e sentimental. O desespero ressaltado

    nas mutilaes fsicas (hopelessly lame), fatalmente no se restringe apenas

    superfcie do indivduo, mas alcana cicatrizes mais profundas no plano

    psicolgico deste. nesse lugar que o sujeito lrico ir se encontrar e se

    identificar com uma dor maior, no alheia sua, isto , uma dor anterior e

    histrica, a dor ancestral de seu povo, por onde se incute todo o pesar e o

    dramtico histrico de perseguies imputadas ao povo judeu ao longo da

    histria.

    Em seu romance de estria, The favorite game (COHEN, 1963), Cohen

    desenvolve a imagem da cicatriz, a qual vista como marca herdada de uma

    dor ou uma perda, freqentemente denuncia uma mutilao, seja ela fsica ou

    psicolgica, portanto entrando em concordncia com o contedo semntico do

    poema acima. No incio desta narrativa romanesca, observa-se a seguinte

    passagem: Crianas mostram cicatrizes como se fossem medalhas. Amantes

    as utilizam como segredos a serem revelados. Uma cicatriz o que acontece

    quando a palavra se torna carne37 (COHEN, 1963, p. 7). Explorando

    streetcars, efetivando, portanto, o primeiro verso (Aps a guerras incontveis sobreviver) em rima com o terceiro da mesma estrofe (Ele suporta os bondes ao amanhecer). Alm disso, ao reduzir, sem prejuzo de significao, o metro do primeiro verso da segunda estrofe (Mantido em seu lugar como um judeu da corte,), propus para esse verso uma traduo que no atravessasse, ou melhor, ultrapassasse consideravelmente o ritmo do resto do poema a ponto de torn-lo disforme. No obstante esses esforos para reproduzir o aspecto rmico e rtmico que ressaltam a musicalidade do texto estrangeiro, importante notar que ao apresentar nesse estudo a traduo a, proponho uma traduo para o poema de Cohen que visa no literalidade, mas sobretudo busca destacar o aspecto artstico do poema. Nesse quesito, considero a traduo a mais expressiva artisticamente que a traduo b. Embora esse possa ser visto como um critrio subjetivo, considero-o de grande importncia para minha prtica de traduo, pois tal critrio procura fazer com que o poema original de Cohen possa igualmente se sustentar como poema em lngua portuguesa. 37 A seguir, essa passagem conforme apresentada originalmente: Children show scars like medals. Lovers use them as secrets to reveal. A scar is what happens when the word is made flesh. (COHEN, 1963, p. 7)

  • 37

    prosaicamente a imagtica das cicatrizes, Cohen ressalta no somente a

    possibilidade de existncia de diferentes naturezas de cicatrizes tanto da

    cicatriz heroicamente conquistada e passvel de orgulho relacionada infncia,

    quanto da cicatriz confessional na idade adulta, denunciativa do passado dos

    amantes , como tambm revela o propsito dessas cicatrizes, o qual pode ser

    compreendido igualmente como denunciativo de suas razes como escritor.

    Como o prprio autor declara, investido da posio de narrador desse romance

    de formao: Uma cicatriz o que acontece quando a palavra se torna carne

    (COHEN, 1963, p. 7). Assim sendo, para Cohen as palavras e em

    conseqncia a arte da escrita propriamente dita, dessa maneira se

    apresentam: fsicas, palpveis, transitrias, passveis de violncia, bem como

    de fragilidade, visto que so carne. E com consistncia de carne que Cohen

    explora sua potica, construindo poemas vigorosos, constitudos no de

    retricas ou de artificialismos de linguagem, mas de versos vivos, carnais,

    passveis de vitrias ou fracassos, perdas ou permanncias.

    Escrevendo poemas com carne e sangue38, Cohen trata de assuntos

    dramticos da histria judaica e universal, explorando com extrema coerncia e

    verossimilhana tais assuntos na forma de poesia. O poema City Christ de seu

    primeiro livro anunciativo desses propsitos do autor, em relao

    principalmente bagagem histrica do poema, ou seja, s referidas guerras

    incontveis que o sujeito lrico teve que enfrentar, e as quais ele sobreviveu.

    Entenda-se nesse momento guerras e perseguies poca da Segunda

    Guerra Mundial, bem como guerras e perseguies ancestrais, tais como o

    xodo realizado pelos hebreus do Egito.

    Entretanto, apesar da referncia dolorida ao percurso de guerras

    enfrentado pelo sujeito lrico, percurso pelo qual ele sobreviveu passando por

    terrveis adversidades, o cenrio atual que lhe apresentado no

    reconfortante. Com dureza ele enfrenta a herana que lhe imposta pela

    Histria: o tdio esboado pela lenta passagem dos anos (and counts ages in a

    Peel street room), o desafio de suportar o cotidiano aps todo o fardo que o 38 Sobre o livro Beautiful losers, Cohen j afirmou em entrevista publicada em Leonard Cohen in his own words que: Eu o considero um poema, antes de tudo. Ele foi escrito dessa forma com certeza. Ele foi escrito do jeito que eu sempre escrevi poesia. (I consider it a poem, first of all. It was certainly written that way. It was written in the way that Ive always written poetry). Cohen assim complementa a sua opinio sobre esse livro, afirmando que: Ele foi escrito com sangue. (It was written with blood). [grifo meu]. (DEVLIN, 1998, p. 48)

  • 38

    passado trgico lhe imps a carregar (He endures the morning streetcars), e,

    sobretudo, a posio que ele ocupa na contemporaneidade. Em City Christ,

    esta posio a de um judeu da corte (court jew), ocupao que referida

    com uma sinistra utilidade, pois o sujeito lrico, a despeito do tdio e do fardo

    histrico que tem de enfrentar, mantido nesse lugar a fim de aconselhar

    sobre tragdias e infortnios (to consult on plagues or hurricanes). Entretanto,

    essa funcionalidade a ele sugerida no lhe garante integrao. De fato, apesar

    de perdurar neste estranho espao que lhe ofertado, e fortuitamente poder

    aconselhar essa sociedade da qual ele faz parte em tempos de crise, esse

    judeu da corte no se integra nos quadros propostos, pois no desfruta das

    mesmas possibilidades, tanto das possibilidades de realizao coletivas, ao

    dividir os mesmo caminhos (and he never walks with them on the sea), quanto