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28 | Conhecimento Prático | LÍNGUA PORTUGUESA Conhecimento Prático | LÍNGUA PORTUGUESA | 29 As questões relativas à educação linguística estão em franca expansão — e, hoje, o texto visual é uma realidade comunicativa. || por Francisco Edmar Cialdine Arruda* N a edição nº 5 da revista conhecimento prático LíNGUA PORTUGUESA, havia uma matéria traçando o perfil de Roland Barthes. Ao ler aquele texto, me surpreendi como a linguagem era muito mais complexa que imaginava. A partir de então, comecei a fazer estudos relacionados a signo linguístico e sig- nificado das coisas — enfim, sobre Semiótica. Um dia, deparei-me com uma teoria que contempla as imagens nos estudos de textos e, principalmente, como o texto verbal se articula com o chamado “texto visual,” para cumprir uma função comunicativa plena. Foi, então, que eu percebi: estudar a lingua- gem, o signo e seus sentidos é muito mais do que entender “significante e significado” de Saussure, é estar atento às várias maneiras e modos com os quais nos comunicamos. A fala aliada aos gestos e ao tom de voz, as roupas que usamos, tudo pode dizer mui- to mais do que parece, pois a linguagem faz usos de várias modalidades semióticas em maior ou menor grau. Esta é a Teoria da Multimodalidade, base da Semiótica Social, campo de estudo que vem chamando a atenção de muitos pesquisadores, a ponto de hoje discutirmos a importância do “le- tramento visual” para a educação. O mais espetacular de tudo foi que, quanto mais estudava sobre esses temas, mais eu me lem- brava do que Paulo Freire queria dizer ao usar a expressão ler o mundo a”. Mas creio estar me precipitando, vamos começar do início. *Francisco Edmar Cialdine Arruda ([email protected]) é mestrando em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Lexicografia, Terminologia e Ensino (LETENS), atuando principalmente com os temas Terminologia, Ensino, Lexicografia, Surdez, Multimodalidade e Latim. IMAGENS LER a ler o mundo Paulo Freire defendia que, muito antes de aprendermos a ler as letras, nós já éramos leitores do mundo. Já líamos o céu cinza indicando chuva, já líamos a febre indicando doença etc. % MULTIMODALIDADE $ Divulgação

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  • 28 | Conhecimento Prtico | Lngua Portuguesa Conhecimento Prtico | Lngua Portuguesa | 29

    As questes relativas educao lingustica esto em franca expanso e, hoje, o texto visual uma realidade comunicativa. || por Francisco Edmar Cialdine Arruda*

    Na edio n 5 da revista conhecimento prtico Lngua Portuguesa, havia uma matria traando o perfil de Roland Barthes.

    Ao ler aquele texto, me surpreendi como a linguagem era muito mais complexa que imaginava. A partir de ento, comecei a fazer estudos relacionados a signo lingustico e sig-nificado das coisas enfim, sobre Semitica. Um dia, deparei-me com uma teoria que contempla as imagens nos estudos de textos e, principalmente, como o texto verbal se articula com o chamado texto visual, para cumprir uma funo comunicativa plena. Foi, ento, que eu percebi: estudar a lingua-gem, o signo e seus sentidos muito mais do que entender significante e significado de

    Saussure, estar atento s vrias maneiras e modos com os quais nos comunicamos.

    A fala aliada aos gestos e ao tom de voz, as roupas que usamos, tudo pode dizer mui-to mais do que parece, pois a linguagem faz usos de vrias modalidades semiticas em maior ou menor grau. Esta a Teoria da Multimodalidade, base da Semitica Social, campo de estudo que vem chamando a ateno de muitos pesquisadores, a ponto de hoje discutirmos a importncia do le-tramento visual para a educao. O mais espetacular de tudo foi que, quanto mais estudava sobre esses temas, mais eu me lem-brava do que Paulo Freire queria dizer ao usar a expresso ler o mundo a. Mas creio estar me precipitando, vamos comear do incio.

    *Francisco Edmar Cialdine Arruda ([email protected]) mestrando em Lingustica Aplicada da Universidade Estadual do Cear, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Lexicografia, Terminologia e Ensino (LETENS), atuando principalmente com os temas Terminologia, Ensino, Lexicografia, Surdez, Multimodalidade e Latim.

    IMAGENSLER

    a ler o mundoPaulo Freire defendia que, muito antes de aprendermos a ler as letras, ns j ramos leitores do mundo. J lamos o cu cinza indicando chuva, j lamos a febre indicando doena etc.

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    A SEMITICA E A MULTIMODALIDADE

    De modo bem prtico, a Semitica um campo de estudos sistematizado por Charles Sanders Peirce a no in-cio do sculo XX e trata do processo se-mitico, isto , como o processo de dar significado s coisas ao nosso redor. Um exemplo bem prtico desse processo seria a imagem da fumaa. Quando a observa-mos, logo vem nossa mente fogo. No que a fumaa seja o fogo, mas, para nossa interpretao, a fumaa representa, indica que h fogo. E, assim, para Peirce, tudo sig-nifica algo: a febre significa uma doena; a cor vermelha pode dar uma ideia de revo-luo, de sangue, mas tambm de amor e sensualidade; um filme pode ser baseado em um livro, que, por sua vez, o retra-to de uma sociedade; a carteira de moto-rista, alm de significar a prpria pessoa, pode significar que ela maior de 18 anos e, portanto, j deve possuir o ttulo de eleitor tambm. Entretanto, o maior dos signos a a linguagem, pois ela es-sencialmente simblica. Com a linguagem podemos falar sobre qualquer coisa sem estar presente, podemos falar sobre coisas do passado, cogitar sobre o futuro e, at mesmo, falar sobre si ou consigo mesmo.

    O problema foi que nos habituamos a achar que lngua, ou melhor, a lingua-gem verbal, a nica forma de linguagem ou, pelo menos, a nica que mereceria ateno. Porm, no isso que acontece. certo que a linguagem verbal foi por mui-to tempo a principal forma de linguagem utilizada e estudada pelo homem; contu-do, hoje, com o advento de novas tec-nologias de produo de textos a, a linguagem visual vem ganhando espao cada vez maior basta observar os gne-ros eletrnicos.

    Os recursos disponibilizados nos am-bientes virtuais propiciam novas formas de comunicao. Podemos, ao mesmo tempo, ler um texto, ouvir msica e interagir com uma pessoa a quilmetros de distncia. Os textos so repletos de cores, formas e at movimento. E, ao contrrio do que muitos podem pensar, esses recursos no esto l

    toa; eles tambm carregam alguns sig-nificados. E o tema no para a: os textos impressos tambm sofreram influncia desses recursos visuais (basta voc prestar ateno nos textos desta revista). Assim, alguns pesquisadores comearam a perce-ber que esses recursos tambm comuni-cavam. Numa tentativa de sistematizar a maneira como as pessoas tendem a usar esses recursos na produo de um texto visual, Gunther Kress e Theo van Leewen escreveram o livro Reading Images: the grammar of visual design (Lendo ima-gens: a gramtica do design visual, in-dito no Brasil) em 1991, em que descre-vem a Teoria da Multimodalidade e a Semitica Social.

    Na verdade, a Semitica Social ir se preocupar com o papel do signo den-tro das interaes sociais, ou melhor, na comunicao em todas as suas formas e modos da a relao da Teoria da Multimodalidade e a Semitica Social. Dentro de um processo comunicativo, usamos ao mesmo tempo a fala, gestos dentre outros recursos. H, inclusive, pes-quisadores que afirmam que toda comu-nicao , em maior ou menor grau, multimodal a. O centro de todas essas questes estaria naquilo que leva o produ-tor do texto a usar certos recursos no lu-gar de outro. Buscando descrever padres de uso, os autores descreveram como a linguagem visual usada por ns, ociden-tais. Assim, aquilo que queremos dar mais destaque fica ao centro da pgina; se que-remos que a imagem seja mais prxima da realidade no iremos exagerar nas cores; se um personagem olhar diretamente para ns diferente de ele nos olhar por baixo ou nos olhar por cima. Tudo isso ir in-fluenciar na construo do sentido do tex-to. Vejamos como alguns exemplos podem esclarecer melhor.

    EXEMPLOS PRTICOSComecemos pelo uso das cores e o discur-

    so veiculado por tais escolhas. Observemos as edies 8 e 10 da conhecimento prti-co Lngua Portuguesa. Na primeira, notrio o uso de tons de vermelho e verde

    na capa e na matria de capa. E por que isso? So as cores mais presentes na bandeira de Portugal e a matria de capa era sobre o novo acordo ortogrfico e tinha como cha-mada a nova cara do portugus. bem verdade que, se as cores fossem diferentes, a leitura seria outra. J na edio 10, o uso das cores na capa serviu para representar a realidade bilngue existente em algumas lo-calidades do Brasil. Havia trs bonecos re-presentando uma famlia, sendo que a me era azul e vermelha; o pai, amarelo e verde, e, a filha, verde e azul. Ainda usando as mes-

    mas edies, na 8 temos um garoto-propa-ganda, enquanto, na outra, temos os trs bonecos simbolizando pessoas a. A relao entre os bonecos e o que eles repre-sentam muito mais simblica que o garoto-propaganda. Alis, a relao entre este e o que ele representa extremamente concreta, por semelhana fsica mesmo. Isso aproxima muito mais o leitor do tema que na situao anterior. Poderamos, inclusive, dizer que isso ocorre porque a realidade do acordo ortogrfico est muito mais prxima e emer-gente que o contexto bilngue.

    a CharlesSanders Peirce

    Charles Sanders Peirce (Cambridge, 10/09/1839 19/04/1914, Milford) teve toda sua vida dedicada criao de uma teoria que tratasse da Lgica e dentro de uma teoria geral dos signos que ns chamamos hoje de Semitica. Apesar de sua extensa produo cientfica (aproximadamente 80 mil manuscritos, dos quais 12 mil pginas foram publicadas), s veio a se tornar famoso aps sua morte. Ainda hoje tipo como base, ou mesmo ponto de partida, para quaisquer estudos relacionados Semitica.

    a em maior ou menorgrau, multimodal

    Um texto, como um panfleto de propaganda poltica, repleto de diferentes semioses: h cores variadas, imagens etc. J um texto acadmico usa poucos recursos multimodais, como itlico, negrito etc.

    a trs bonecossimbolizando pessoas

    Na comunicao visual, segundo essa gramtica, temos dois tipos de participantes: os participantes interativos (o produtor e o leitor do texto) e os participantes representados (o assunto da comunicao), que podem ser pessoas, animais ou seres inanimados. Nos exemplos apresentados, temos o garoto-propaganda, os trs bonecos e a moa no campo de trigo. Com isso, temos vrios tipos de interao: o produtor interage com o leitor, o leitor interage com os participantes representados e os participantes representados podem interagir entre si.

    a signosDe modo geral, o signo algo que est no lugar de outra coisa e que representa esta outra coisa. Tal representao pode acontecer porque o signo simboliza essa coisa (como uma bandeira simboliza um pas); ou porque o signo indica esta coisa (como uma pegada indica que algum passou por l); o at mesmo porque o signo se parece com essa coisa em algum aspecto (como uma foto e a pessoa da foto).

    a novas tecnologias deproduo de textos

    Hoje em dia, o computador e a web so dois grandes recursos utilizados na produo de textos: isso deu origem aos hipertextos e aos gneros eletrnicos. Sobre o primeiro assunto, leia reportagem na edio 14 da ConheCimento PrtiCo Lngua PortugueSa. J os gneros eletrnicos so produzidos em meio eletrnico, principalmente no universo da web. Alm de tudo isso, a computao grfica se tornou uma ferramenta imprescindvel para a produo de diversos gneros, principalmente o publicitrio.

    Capas das edies 8, 10 e 13 da Conhecimento Prtico Lngua Portuguesa (anteriores reformulao do projeto

    grfico): exemplos de aplicao da Teoria da Multimodalidade

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    PubOutro detalhe que chama ateno da gramtica visual a direo do olhar. Comparemos agora a edio 8 com a edio 13. Na primeira, o participante representa-do, isto , o garoto-propaganda, olha dire-tamente para o leitor, o que chamamos de pedido ou interpelao, isto , ele se dirige diretamente ao leitor, forando-o a intera-gir. Essa ideia enfatizada pelo close dado. J na edio 13, o que temos chamado oferta. O participante representado no interage di-retamente com o leitor atravs do olhar, na verdade, como se ele nem mesmo ligasse para o leitor, ou melhor, quisesse causar in-veja no leitor, para que este desejasse estar no lugar dele. Isso ressaltado pelo contexto da imagem: um campo aberto e muito con-vidativo. O mesmo no se pode dizer da edi-o 8, cujo pano de fundo apenas uma pa-rede verde. Um ltimo detalhe interessante. Na edio 10, mesmo no sendo seres reais, os participantes representados interagem entre si, basta notar que os bonecos esto to prximos que parecem tocar um ao outro, dando uma ideia de unio (o que caracteriza uma famlia ideal).

    SugeSteS de leituraApesar de Peirce ser considerado o Pai da Semitica, os estudos sobre o

    signo e o sentido que damos s coisas muito mais antigo. Na antiguidade, Plato j discutia isso em sua obra Crtilo ou o sentido das coisas. At mes-mo Saussure, que, apesar de ter sido contemporneo de Peirce, nunca travou contato com ele, criou bases para estudos da Semitica, que ele chamava de Semiologia. Hoje em dia, existem muitas teorias para os estudos semiticos, a Semitica Social apenas mais uma delas.

    Para saber um pouco mais sobre as demais teorias existentes, recomenda-mos algumas leituras:

    Panorama da Semitica e Semitica no Sculo XX, ambas obras de Winfried Nth lanadas pela editora Annablume. A primeira traa um breve histrico da Semitica desde a Antiguidade at Peirce, finalizando com algumas contribuies dos estudos cognitivos para a Semitica peirceana. J a segunda obra trata, em cada captulo, de uma teoria diferente da Semitica. Ela fala de Saussure, Hjelmeslev, Barthes, Humberto Eco e muitos outros.

    Outras duas obras que recomendamos so da pesquisadora Lcia Santaella, grande expoente dos estudos semiticos no Brasil, ambas seguem uma linha peirceana. A primeira, O que Semitica, da coleo Primeiros Passos, des-taco seu captulo final em que sugere e comenta vrias outras obras clssicas. E, por fim, a segunda, Semitica Aplicada, da editora Thompson Pioneira. O interessante desta obra a aplicao que dada Semitica: vemos, por exemplo, como essa teoria pode ser til na escolha de uma logomarca.

    SAIBA +n Panorama da SemiticaWinfried North (Annablume, 2003, 150 pgs.)

    n Semitica no Sculo XXWinfried Nth(Anablume, 2003, 314 pgs.)

    n O que SemiticaLcia Santaella(Brasiliense, 2003 [2 ed.], 86 pgs.)

    n Semitica AplicadaLcia Santaella(Thomson Pioneira, 2002, 186 pgs.)

    LETRAMENTO VISUALE A EDUCAO

    Esses so apenas alguns exemplos bsicos: a gramtica visual aborda muito mais assun-tos. Entretanto, sua importncia maior que chama a ateno para o que denominei no in-cio de letramento visual. H uma necessidade cada vez mais crescente de fazermos com que nossos alunos tenham um nvel de letramen-to pleno, e isso engloba a leitura dos aspectos visuais nos diversos gneros existentes in-clusive para poder produzi-los ou mesmo cri-ticar o seu discurso. Alm disso, o professor no pode ignorar que, da mesma forma que as imagens no esto aleatoriamente dispostas nos exemplos mostrados, os recursos visuais existentes nos livros didticos podem servir de importantes ferramentas para o desenvol-vimento do aluno nesse sentido. Infelizmente, esses temas apresentados so muito mais co-muns na rea de Publicidade e Propaganda que nos cursos de licenciatura (sim, licenciatu-ras como um todo, afinal, o livro de Portugus no o nico que contm recursos visuais), mas preciso que a escola abra os olhos para mais essa questo. n

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    Dentro de um processo comunicativo, usamos ao mesmo tempo a fala, gestos dentre outros recursos. H, inclusive, pesquisadores que afirmam que toda comunicao , em maior ou menor grau, multimodal.