Ler Os Classicos de Direito - Paulo Ferreira Da Cunha

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    Revista Campo Jurdico N. 01 Maro 2013

    RELER O DIREITO CLSSICO:UM DESAFIO JURDICO DO SC. XXI.

    GRCIA E ROMA, FONTES E EXEMPLOSDA JURIDICIDADE

    Paulo Ferreira da Cunha1

    Resumo: O presente artigo empreende um retorno aos clssicos gregos eromanos, os quais podem servir de fonte de inspirao para demandasjurdicas futuras. Em um momento histrico onde o Direito se interdis-ciplinariza, sensibilizando-se a outros aportes e lgicas, pode-se trilharum caminho diferenciado rumo a um novo paradigma jurdico. Nessesentido, o texto realiza uma anlise do legado helnico, da autonomiza-o do Direito em Roma, chegando-se a uma observao dos smbolos epalavras jurdicas, visando-se suscitar questes que podem servir de pro-legmenos para o Direito futuro.

    Palavras-chave: Histria do Direito; Grcia; Roma; Juridicidade; Autono-mizao Jurdica.

    Abstract: This article initiates a return to the Greek and Roman classics,which can serve as inspiration for future legal demands. In a historicmoment where the law becomes interdisciplinary, sensitizing them toother inputs and logics, one can tread a different path towards a newlegal paradigm. In this sense, the text makes an analysis of the Greeklegacy, empowerment law in Rome, coming to an observation of legalsymbols and words, aiming to raise questions that can serve asprolegomena for future law.

    Keywords: History of Law; Greece; Rome; Legality; Legal Empowerment.

    1 Doutor das Universidade de Paris II e de Coimbra. Catedrtico e Diretor do Instituto JurdicoInterdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Da Academia Paulista deLetras Jurdicas, Prof. Visitante da USP, Prof. Honorrio da Univ. Mackenzie, Prof. Associado Univ. Laurentienne / Laurentian Univ. Professor Universitrio em Portugal.

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    Sumrio: I. Do Futuro ao Passado; II. A Grcia Antiga e o Direito; II.1.Do Legado Helnico; II.2. A Tragdia Helnica; III. Da Autonomiza-o do Direito em Roma; III.1. O Caminho do Ius redigere in artem roma-no; III. 2. Os Smbolos e as Palavras do Direito, ilustrao da autonomi-zao jurdica; IV. Final e Futuro

    I. DO FUTURO AO PASSADO

    O sc. XXI ser certamente um sculo de sntese e de progresso jurdico.J comeamos a sentir os ventos do novo sculo. Ventos negativos,

    com avassaladoras crises financeiras, que acarretam as econmicas e soci-ais e arriscam a levar de vencida o direito constitudo, os direitos adquiri-dos, mesmo as Constituies. Perante a fora pseudo-normativa de algunsfactos, e de alguns pseudo-factos que se publicam e nos martirizam, numdiscurso legitimador da catstrofe, at as clusulas ptreas parecem claudi-car, e ser erodidas.

    Mas ao mesmo tempo que tal ocorre, sinais de profunda esperanasurgem no terreno prprio do Direito e das suas margens e pontes. O Direi-to est a deixar, lentamente, e a comear por alguma doutrina e algunsprofessores, aquele ar agelstico, rgido, a mumificao ou pinguinizao(para lembrar Luis Alberto Warat) que fora seu timbre. O Direito interdi-cisplinariza-se, sensibiliza-se a outras aportaes e lgicas, e est a cami-nho de encontrar como norte um novo paradigma, que se substituir aos dodireito objectivo e do direito subjectivo. Pode ser que seja um direito comum nome ainda no sonhado, qui ele venha a ser at inslito para a nossasensibilidade. Mas ser certamente social, humanstico e fraterno.

    Nesta senda de encontrar o lugar do Direito no futuro, h um traba-lho, que no mero exerccio, que precisa ser empreendido. Encontrar nasprofundas razes do Direito o que lhe conatural, essencial. uma espciede busca de ADN.

    Nessa demanda de guas lustrais, de razes, de fontes castlicas, demanhs frescas na Histria jurdica que nos permitam repensar o Direitono futuro, sem renegar o que de positivo se fez (e em muitos casos foi olvi-dado) est o back to the classics. Temos de recuar aos clssicos gregos e roma-nos, que nos inspiraro na sua demanda de futuro.

    Outras dmarches so, obviamente, necessrias. Mas hoje esta queempreendemos.

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    II. A GRCIA ANTIGA E O DIREITO

    Chez les Hellnes, la philosophie du droit renvoie lidede justice formule partir du regard qui est jet sur le

    monde. Linstant du regard est celui de lmerveillementqui fait natre la philosophie comme theria.

    Stamatios Tzitzis

    II. 1. DO LEGADO HELNICO

    O legado da Hlade para a reflexo sobre a Justia imenso, masinegavelmente muito complexo. Comea tudo com o rigor das palavras edas ideias: Phusys, cosmos, taxis, dikaion (para no falar j em paideia, polis,politeia) todas estas expresses gregas no so realmente o que parecem, ea sua traduo latina, e depois nas lnguas modernas , em regra, empobre-cedora. Sem dominarmos o universo de significaes dos gregos, no sere-mos capazes de aceder ao seu pensamento. por vezes confrangedor veralgumas tradues literarizantes de clssicos, que retiram s expresses ori-ginais toda a carga original, e as atualizam normalmente, com evidenteanacronismo conceitual e institucional.

    H matrias em que no se pode seno ficar no peristilo, reverente-mente. Sabendo que h todo um templo de saber diante de ns, mas para oqual ainda no nos encontramos suficientemente preparados. A jurisfiloso-fia helnica parece ser um desses casos: devemos saber que existe, mas smais tarde estaremos preparados para a apreciar devidamente.

    Os pr-socrticos do-nos um sem-nmero de intuies mas aindamuito centrados no cosmos. H contudo um pulsar latente da questo daJustia.

    Os sofistas so importantes. At porque nos permitem ver, no passa-do, os tempos atuais em que se pode dizer tudo e o contrrio de tudo. E emque h uma desconfiana letal quanto verdade, e a persuaso (de qual-quer tipo) tudo.

    Nos sofistas principalmente vemos aquelas duas teorias perversssi-mas (mas to inteligentes e to bem observadas que parecem realmenteespelhar o que se passa) sobre a Justia: a de Trasmaco, para quem o direi-to, e especificamente as leis, so apenas expresso dos interesses e da vonta-de do mais forte; e a de Calicles, segundo o qual elas so engenho dos maisfracos para conseguirem lugar ao sol, retirando aos ricos o que seria seu,diramos hoje, com Darwin, por seleco natural. No primeiro, no po-

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    demos deixar de ver a muito ulterior crtica marxista comum ao direitocomo expresso da vontade e do interesse da classe dominante, e o segundopoder qui lembrar Nietzsche, a propsito de outros assuntos, tambmmuitos sculos depois.

    Plato, sobre cujas ideias jurdicas (e sobretudo polticas) correramrios de tinta, subordina a questo do justo da cidade justa, e por issonavega para as guas da utopia, na sua Politeia, conhecida normalmentepela traduo derivada da latina, Repblica. Ideias que depois reveria deforma mais modesta e realista. Aristteles vai estilizar o Direito, recort-lona sncrise inicial. Dos demais gregos, vamos preferir a filosofia que se diriaimplcita explcita: falaremos em seguida da tragdia, que de forma maissimples e directa nos d filosofia jurdica. Fiquemo-nos para j com ela, atestarmos prontos2.

    II. 2. A TRAGDIA HELNICA

    Disse-se do regime poltico da Atenas clssica que era uma teatrocra-cia. E, na verdade, o teatro a desempenhou um papel relevantssimo: nos de grupo testemunha sociolgico, como de vector de mudana, de opi-nio pblica (veja-se o coro!), de laboratrio de ideias, de discurso legitima-dor, de dilogo profano com o divino. E, sem dvida, tambm, de catarsecolectiva. Alis, nem por ser teatro, e portanto literatura, esse tipo de refle-xo (dialogada, encenada) deixa de ser Filosofia, e filosofia do direito e dapoltica. Estas filosofias (como outras) no escolhem gneros. possvelfilosofar-se em tratado ou ensaio ou monografia especfica, ostentando t-tulo revelador, fanrico (filosofia explcita), como possvel usar-se outrotipo de gnero: reconhece-se sem polmica, por exemplo, o dilogo (comoos de Plato), ou o poema (como o de Parmnides). Mas poderia pensar-sena novela, ou no conto (Voltaire, por exemplo, tem obras dessas), ou noromance (Sartre, ou Camus para falar apenas em grandes do sc. XX). Eobviamente o teatro no pode ser excludo, precisamente desde os clssicoshelnicos.

    2 Para mais desenvolvimentos, v. TZITZIS, Stamatios Introduction la philosophie du droit, Pa-ris, Vuibert, 2011, p. 9 ss. (so quase cem pginas de jurisfilosofia helnica: coisa rara em livrosintrodutrios, e de saudar); BARROS, Gilda Nacia Maciel de A Constituio dos Lacedemnios Seu Valor Heurstico para a Iniciao na Leitura de Textos Antigos, in Fontes e Mtodos em Hist-ria da Educao, org. de Clio Juvenal Costa et al., Dourados, MS, UFGD, 2010, p. 111 ss.

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    Tem especificamente a tragdia (que ter nascido cerca do sc. V a.C.)um sem-nmero de funes polticas (e jurdicas, ou, no mnimo, parajur-dicas), a primeira das quais poder bem ser a da humanizao dos deuses ea sua vinculao com a Justia. No esqueamos que Pisstrato, elevado aopoder pelas classes rurais menos abastadas, ser o grande instituidor dosconcursos dramticos que tm uma funo tambm claramente cvica, e deformao poltica.

    squilo vai ser o grande fundador da tragdia grega, embora no hajasido, como bvio, o primeiro dramaturgo. Mas com ele se eleva e conso-lida o gnero. O Prometeu Agrilhoado comea por colocar em cena uma pu-nio: a do tit que ousara furtar o fogo divino e d-lo aos Homens. Atrilogia da Oresteia toda uma teia de crimes sucessivos, que comeamcom o homicdio de Agammnon por sua mulher, Clitmnestra, vingado,por sua vez, por seu filho Orestes. Mas o desfecho, com o clebre deus exmachina, um excelente ponto de reflexo: as vingadoras Erneas que per-seguem Orestes pelo seu crime acabam por transformar-se nas justas Eu-mnides (na pea homnima). Da simples vingana de talio, se passa auma Justia mais elaborada que admite causas de desculpao, atenuantes,e, afinal, o prprio perdo. A nossa civilizao tem demorado sculos aefectivar plenamente o que j se encontrava anunciado nesta sucesso dra-mtica.

    Com Sfocles, a tragdia atinge uma maturidade clssica, e os temasda Justia e da Poltica nele alcanam o n do problema: por um lado einevitvel hibridao do jurdico e do poltico; e, por outro, a reivindicaoda Justia no Direito e na Poltica. Em dipo Rei (Oidipus tyranus) a trgicasituao do criminoso que (sem o saber) investiga o seu prprio crime e a simesmo acaba por punir: em certo sentido a fundamental ideia, prvia aqualquer julgamento, de que a Justia tem acima foras (eventualmente damoira, do destino, ou dos deuses em geral: tudo fora previsto pelo orculode Delfos) que no domina, e no pode ser completamente justa porque asaces humanas no so completamente, inteiramente, limpidamente vo-luntrias. A tragdia mesmo isso: homens de grande relevo, da realezanormalmente, tratados em grande medida como joguetes da sorte. Mas istocompreendido, em Antgona, que poderamos dizer a grande pea da filoso-fia do Direito (que dar lugar a toda uma posteridade de outras peas not-veis, desembocando na recriao notabilssima de Jean Anouilh no finaldos anos 50 do sc. XX), v-se que h uma enorme margem de manobra

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    para o livre arbtrio. E que podemos desobedecer a leis ou ordens injustasdo poder, como faz a herona Antgona, pagando por isso com a prpriavida. O poder pode sempre abusar, agir contra o direito. Mas a justiasempre encontra algum que seja a sua voz e que se lhe oponha. Aindaque para o martrio imediato. A Justia sempre um alm a alcanar, etodos os dias os poderes a atropelam, pelo que todos os dias os cavaleiros(e as amazonas) da Justia, como Ssifo, tm de subir de novo a encostareivindicando-a.

    E talvez a boa lio desta dialctica sem fim seja que em cada novaperda de direitos, recuo da justia, quando esta recobra nimo e triunfa denovo, ainda que efemeramente, ganha um pouco mais de terreno ao arb-trio. Notemos que cada constituio (salvo obviamente os interregnos deretrocesso, que os h) recomea a liberdade e os direitos um pouco acimada anterior, prevenindo com garantias e cuidados que se no caia de novonos erros, desvios, recuos do passado anterior.

    Eurpides viver tempos de problematizao e, em certo sentido, dedeclnio. Os veredictos que a posteridade literria e filosfica sobre esteautor foram proferindo (a Histria no profere uma nica e definitiva sen-tena) seriam muito diversos. Talvez porque em Eurpides esto as profun-das contradies do seu tempo, e as suas prprias as reflectem.

    H no teatro de Eurpides aquele lado dionisaco que perturba e lan-a o mistrio. No deixa de estar presente o destino e a sorte nesse minueteda morte que Os Sete contra Tebas. Ora um e outra so, em princpio (cre-mos que s Francine Lachance na sua utopia contempornea Qubcie da-ria da sorte uma viso mais simptica e mais jurdica), so o contrrio daordem prpria do Direito e da Justia. Medeia uma vingana terrvel, des-sas vinganas autodestruidoras, que sempre do pssimos resultados, mes-mo quando se trate apenas da posio burguesa empedernida de um her-deiro, como conta Antnio Alada Baptista (essa obstinao o teria mesmodecidido a deixar de ser advogado), ou ecoa em Bleak House, de CharlesDickens. Do mesmo modo, o Direito parece ser mais o (algo ingnuo) reiPenteu dessa tragdia estranha que so As Bacantes. O Direito lida mal comrealidades menos palpveis. , afinal de contas, uma arte prosaica...

    E por isso, de todos, no meio termo de Sfocles que colhemos aslies mais claras para o Direito e a sua Filosofia.

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    III. DA AUTONOMIZAO DO DIREITO EM ROMA

    deinde cum populus sediciosos magistratus ferre nonposset, Decemviros legibus scribendis creavit.

    Isidoro de Sevilha Etimologias, V, 1, 3.

    III. 1. O CAMINHO DO IUS REDIGERE IN ARTEM ROMANO

    Em certo sentido, o Direito uma especificao da Poltica. Se a Fi-losofia Poltica mais helnica, o Direito profundamente romano na suagnese. Foram os romanos que, com inspirao grega (sublinhe-se), auto-nomizaram o Direito enquanto disciplina cientfica (ou afim), enquantoscientia ou episteme, por um processo histrico a que se chama ius redigere inartem, ou Isolierung. A primeira expresso descreve o processo (quase alqu-mico) pelo qual o direito passa a ser uma arte (no sentido prprio, tcnico,que ars tem em Latim e na civilizao romana); a segunda, em alemo,alude ao isolamento que corresponde autonomia (que implica separao)do Direito face ao caldo de cultura sincrtico da primeira funo dos indo-europeus.

    Na verdade, antes da separao operada pelos Romanos, na depoischamada (anacronicamente) funo soberana da ideologia (melhor sediria, tambm, cosmoviso indo-europeia) conviviam unidos aquilo a quehoje chamamos religio (com elementos mticos, mgicos, litrgicos ou ri-tuais, etc.), moral, poltica e direito.

    Albert Nollan3, para citar apenas um exemplo, chama a ateno parao facto, surpreendente para muitos, mesmo cultos, de que, na sociedade emque viveu Cristo no havia distino entre religio e poltica, e s assim secompreende, em tenso com o que ia ocorrendo do lado de Roma (natural-mente numa situao complexa, porque em sede de direito das gentes, emcontato com povos no romanos nem realmente romanizados), a ida deJesus de Herodes para Pilatos (em conflito de jurisdies), e finalmente aescolha da amnistia a Barrabs, que seria hoje um criminoso poltico, e aefectivao da execuo do primeiro, que, afinal, respondia por delito deopinio, mas que hoje, certamente, seria coberto pelo manto protetor daliberdade religiosa.

    3 NOLLAN, Albert Jesus Before Christianity, Nova Iorque, Orbis Books, 2007, trad. port. comPrefcio de Eugnio da Fonseca, Jesus antes do Cristianismo, Prior Velho, Paulinas, 2010.

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    No pode deixar de pensar-se tambm na condenao de Scrates,por no venerar os deuses e corromper a juventude, numa Grcia aindasem Direito propriamente dito. O primeiro delito religioso, e o segundo(nos seus termos clssicos ambguo) ser, qui, aos nossos olhos de hoje,uma questo de moral...

    Mas Roma no teria chegado afirmao da autonomia do Direito,ao arrancar da juridicidade do bloco informe do misto religioso-moral-poltico-normativo sem, por um lado, a prpria experincia grega e a suareflexo filosfica, muito em especial de Aristteles, como veremos.

    E tambm, como bvio, os Romanos criaram afinal o Direito comoresposta cultural e civilizacional aos seus desafios de eficcia administrati-va e de secularizao. Eles mesmos tinham afinal antes da converso deConstantino, que ter sido, para muitos, uma manobra poltica uma reli-gio cvica. O que, se baixa a tenso do mstico e do numinoso, melhor secompatibiliza com o fenmeno laicista, que chegava ao sincretismo de dei-xar um altar vazio para um novo deus desconhecido que chegasse de qual-quer ponto dos confins do Imprio.

    Por outro lado, os Romanos tinham tambm a experincia de mausmagistrados (como lembra, alis, Isidoro de Sevilha, numa passagem signi-ficativa: deinde cum populus sediciosos magistratus ferre non posset, Decemviroslegibus scribendis creavit Etimologias, V, 1, 3) sem um corpo sistemtico leise sem um contexto institucional e mental o que procuraram suprir. Ospretores foram busc-los ao exrcito, os jurisconsultos foram sendo forma-dos, e o foro foi-se distanciando da gora ateniense, domnio dos vendedo-res de palavras, os loggrafos (que mais que os sofistas eram o que hojechamamos sofistas), e a balana romana passou a ter um fiel (represen-tando precisamente o pretor, condutor supremo do processo), sendo direitoo que ocorre quando o mesmo cai a prumo, de-rectum. Na Grcia, sem fiel,os processos eram decididos em muitos casos (mesmo os polticos, de votoao ostracismo) em grandes assemblias. E no havia, de incio, corpos es-pecializados de magistrados, advogados, etc. Devendo at o ru defender-se a si mesmo. Por isso, temos a ficcionada Apologia de Scrates, de Plato,em que o filsofo maldito de Atenas a si mesmo se defende. Bem no planodos princpios, mas muito mal no quanto necessrio para persuadir umaassembleia de juzes.

    Mas mais razes tero levado criao do Direito. Uma delas polti-ca. Esses perversos magistrados que torciam o direito, no eram seno agen-

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    tes polticos perversos, prevaricadores. A intromisso excessiva da polticana justia foi sem dvida outra razo para que se autonomizasse o mundodo Direito.

    Se o mais importante, aos olhos de hoje, no Direito da AntiguidadeClssica, o esprito e a tcnica do Direito Romano, nem sempre as suassolues e a sua mundividncia nos podem servir. Em alguns aspectos, oDireito que a contemporaneidade precisa precisamente o contrrio doromano. Desde logo, o paradigma fundante dele o direito objetivo, do iusutendi, fruendi et abutendi: usar fruir e abusar da sua propriedade, segundo odireito dos Quirites (ex iure quiritium). Ora, nos tempos atuais, j mesmo oparadigma seguinte, que devemos modernidade, do direito subjetivo, pa-rece conter a multiplicidade, contraditoriedade e fluidez das relaes inter-pessoais e entre pessoas e o mundo que o direito procura ir explicando eregulando com a sua linguagem prpria. certo que, como afirma justa-mente Miguel Reale, Os juristas falam uma linguagem prpria e devem terorgulho de sua linguagem multimilenar, dignidade que bem poucas cinci-as podem invocar4. E essa linguagem, na base, e sobretudo no mundo dodireito privado, romana. Porm, o direito privado tem cedido muito opasso ao direito pblico (Francisco Puy afirma que s o direito administra-tivo mais de meio direito), que no s foi criando outra linguagem, comoat princpios por vezes opostos ao simples negcio entre particulares.

    A Filosofia do Direito, porm, precede o Direito como entidade se-parada e cientificamente estruturada e livre de tutelas porque ela , antesde mais, filosofia da normatividade em toda a sua dimenso.

    E esse sonho de autonomia ou purificao ser certamente um sonhosem fim, nem mesmo realizado pela tentativa de Hans Kelsen de uma ReineRechstlehre teoria pura do Direito, que acabaria colocando-o sob a aladodo Estado. Mais uma razo para se entender a necessidade e a justeza daanlise conjunta do filosofar poltico e jurdico.

    III. 2. OS SMBOLOS E AS PALAVRAS DO DIREITO, ILUSTRAODA AUTONOMIZAO JURDICA

    O intelectual comum, e a fortiori o jurista comum de hoje (houve tem-po em que os juristas eram muito cultos: ainda no h muito tempo...) noesto familiarizados com uma categoria da cultura que durante sculos teve

    4 REALE, Miguel Lies Preliminares de Direito, 10. ed. revista, Coimbra, Almedina, 1982, p. 9.

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    uma importncia capital e ainda vai tendo, embora obnubilada pela cul-tura ferica do efmero. Quando, na Idade Mdia, as catedrais abriam di-ante dos olhos de todos poderosas e eloquentes Bblias de pedra, era pelosimbolismo das imagens que instruam o povo analfabeto5.

    Obviamente que no este o lugar para colmatar essa terrvel falhageral da nossa cultura, em geral6. Devemos contudo chamar a ateno paraa fundamental expressividade dos smbolos, que ao mesmo tempo ocultame revelam...

    E precisamente a autonomizao do Direito pode ser contada pelaestria dos smbolos grego e romano do Direito7. A qual se liga incindivel-mente s palavras que hoje usamos para a nossa rea epistmica: palavrasdo campo semntico de Direito e de Jurdico...

    Sabemos que, se no multiplicaremos desnecessariamente as distin-es (entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem), jurdico e de direito sohoje sinnimos. Contudo, no tm exactamente a mesma conotao emtermos histrico-etimolgicos.

    Na Roma antiga, dizia-se directum ou derectum (palavras de que derivaDireito) do fiel da balana que simbolicamente pesava as ac-es no tribu-nal. Um fiel a prumo, direito (derectum, directum), signifi-cava que os pratosda balana estavam equilibrados isto , que se tinha feito justia, colocandonum prato os bens, ou os cargos, ou as penas corresponden-tes ao direito dosujeito em julgamento.

    Na Grcia antiga, por seu turno, sem fiel na balana, o que contavaera que eles estivessem nivelados, isos: expresso de onde derivam outras

    5 Esta uma das escassas referncias explcitas importncia dos smbolos que recordamos donosso Liceu. Que, contudo, ficava quase sem consequncias no estudo destas matrias. Noadmira, pois, o desespero contido de alguns professores de Historia de Arte (alm de Direito,cursmos Histria, variante Arte e tambm Desenho: diga-se para a declarao de interesses)ao verem a total incultura simblica. Assim como h uma iletracia plstica gritante. Cf., v.g,.KERCKHOVE, Derrick de The Skin of Culture (Investigating the New Electronic Reality), Toron-to, Somerville House Books, 1995, trad. port. de Luis Soares e Catarina Carvalho, Lisboa,Relgio Dgua Editores, 1997.

    6 Outras faltas essenciais existem. Por exemplo, e isso em Portugal muito patente, a falta desensibilidade ironia. Que tem consequncias catastrficas, por exemplo em poltica, mas tam-bm no debate intelectual (que quase no existe em certas reas) e ainda no terreno judicial.

    7 A questo foi aflorada por Radbruch, tratada por vrios autores, mas adquiriu em SebastioCruz uma teorizao com uma fora persuasiva (derivada, certamente da grande beleza damesma, aliada lgica da argumentao) que ser fundamentalmente recordando a lio destenosso Mestre que aqui colocaremos o problema, com alguns acrescentos e moderaes danossa prpria lavra: pois o tema nos apaixonou e acabmos por nos dedicar ao seu estudo porlargos anos.

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    nossas, que remetem para a ideia de uma certa paridade ou igualdade, comoisonomia.

    O fiel da balana pode representar a figura do pretor, que inexistia nanormatividade helnica, de julgamentos colectivos, por vezes mesmo porassembleias.

    O termo jus, de onde deriva jurdico e afins, tem origem mais eru-dita. Muitos pensam que seria derivado do prprio nome do pai dos deuses,Jpiter, Jovis ou Jove, do qual deriva a justia. Assim, jus seria o direitoordenado por Jove.

    A imagem clssica do Direito como deusa com uma balana re-vela-nos o mesmo que algumas simbologias moder-nas, que representam o di-reito sob a forma de tringulos. Tm razo. A deusa pesa o que est em doispratos. O juiz tambm uma espcie de vrtice do tringulo. Os actores dajustia so, desde sempre, os litigantes (as partes) e o juiz. So trs, como oslados ou ngulos do tringulo.

    Mas dos smbolos mais clssicos passou para as artes plsticas maismodernas (sobretudo para a escultura, mas tambm para a pintura) umexcesso de informao simblica que alm do mais errneo do ponto devista histrico e simblico. Demasiadas representaes da Justia, mesmoem tribunais e escolas de direito, nos apresentam a deusa da Justia (umadeusa indiferenciada e inominada, em geral) com espada, balana e venda.

    Dos trs elementos, apenas a balana comum, e, como dissemos, agrega no tem fiel e a romana tem-no.

    A justia grega (Themis, Dik), menos intelectualizada, tem ainda es-pada. A romana (Iustitia), menos de preocuparia com a punio que com ajusta deliberao de direito, por isso, desprovida dela. Recordemos que oprocesso romano comea pela questo de direito e s depois passa ao apu-ramento dos factos.

    De modo semelhante, ilustres autores, entre os quais Sebastio Cruz,tm referido que a venda seria apangio da justia romana, mais preocupa-da com a imparcialidade, a no acepo de pessoas, enquanto a justia gre-ga olharia os cus (ou o Olimpo) em busca de inspirao, de olhos bemabertos.

    Estampas de vrias pocas, mas sobretudo a partir do sc. XVI, mos-tram uma justia com duas cabeas, uma vendada e outra sem venda, jque tambm se compreendeu a limitao do smbolo do toldar o olhar:uma justia justa teria ao mesmo tempo que ver e no ver.

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    Mas a grande questo que nos parece ainda subsistir se, realmente,haveria mesmo venda na justia romana. H quem diga, como Radbruch,que a justia vendada uma pardia que depois se foi recuperando e assi-milando. Seria como o rei ou o imperador vendado... O certo que aindano encontramos nenhuma escultura ou pintura romanas representando aJustia com venda. Fica o desafio para novas pesquisas...

    IV. FINAL E FUTURO

    H no direito clssico desafios permanentes. Basta que pensemos nomito de Antgona, e na plasticidade que ele revela a encarnar as questes da(in)justia em todos os tempos. Mas o nosso tempo tempo mais que todosde Antgonas.

    Mas tambm a polmica da venda no direito clssico, toeloquentemente presente ou ausente se nos revela uma alegoria plena depotencialidades, mesmo heursticas, para a explicao da necessria cegueirae da urgente viso por parte da Justia. O que se deve ver ou no ver emDireito e pelo Direito no pequeno problema.

    Daqui mil questes decorrem. So apenas prolegmenos para oDireito futuro.

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