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Conto de Airton Uchoa Neto sobre pesadelos e redes sociais

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Já havia muito tempo eu não enviava nem rece-bia mais mensagens. Os assuntos que eu precisava resolver se limitavam aos poucos contatos fixos e transitórios anotados na agenda telefônica. Os con-tatos fixos se referem ao trabalho, à minha irmã que me dá notícias de como está a vida no interior da ilha e a alguns poucos amigos. Os contatos transitórios são transitórios, e não chegam a dez ligações antes de serem cautelosamente armazenados no meu ar-quivo morto.

O funcionário responsável pela manutenção dos computadores achou estranho que eu lhe pedis-se para limpar a minha máquina de tudo que fosse moderno mas, ao meu ver, supérfluo. Bastava, para mim, um programa antigo de planilhas e nada mais do que isso. Na função de burocrata eu não julgava precisar de mais que isso.

“E a internet? Você pode precisar da internet.”

“Era muito interessante quando eu era jovem. E eu não sou mais jovem.”

De repente, nas chamadas redes sociais, um número assustador de desconhecidos solicitava a confirmação da minha amizade. Isso me incomoda-va. Não julgo precisar conhecer mais pessoas do que já conheço. As que conheço ultimamente ficam pouco tempo. Além disso, acabei por me perguntar quantas pessoas adicionadas na minha lista de con-tatos eram realmente conhecidas e com quantas eu tinha falado pelo menos uma vez. Quantas não te-riam morrido sem ninguém saber e delas só restava um emaranhado vazio de contas na internet? Quem pagaria esse saldo devedor?

Esse tipo de problema, de caráter filosófico mes-mo, era muito interessante quando eu era jovem. Mas eu não sou mais jovem.

Eu passava as noites de sexta no Malecón, espe-rando que alguma coisa acontecesse. E, às vezes, alguma coisa acontecia. As reformas feitas na ave-nida, depois da abertura democrática definitiva, da nossa adesão completa ao capitalismo, tornaram o lugar chique e bem frequentado. A desigualdade so-cial não se resolveu. Alguns dizem que piorou. Mas os turistas estrangeiros não se incomodam com

isso. Nos bares do Malecón eu encontrava os ami-gos que restavam dos velhos tempos e tentava se-duzir mulheres solitárias. Como fazia boa parte dos meus amigos. O amor, entre nós, se tornou bastan-te civilizado, egoísta, burguês e ocidental: tínhamos casos rápidos e não deixávamos saudades. Não sa-bíamos e talvez não quiséssemos mais ser familiar-mente felizes, e fingíamos que nossa solidão prote-gida era o que havia de mais charmoso. Também nos vestíamos da maneira mais apropriada, com ternos brancos de xangô e chapéus do Panamá na verdade importados do Chile ou não sei de onde. As mulhe-res… as mulheres se vestiam de flor… e buscavam os últimos colibris que ainda podiam atrair.

Parei de buscar amores envenenados porque algo me chamou a atenção, e não me abandonou desde então. Levantei os olhos do caderno de notas e ao deparar com a segunda dose de rum como com um objeto inédito, percebi que no canto superior es-querdo se desenhava uma legenda em caracteres sóbrios e diretos. As palavras estavam escritas no ar, de forma transparente, ou pelo menos assim me pareceu. Meus dedos podiam atravessá-las, mas não

apagá-las ou dissipá-las como fumaça. Lá vinha ins-crita a marca do rum com o nome em baixo, como no rótulo original, e um estranho convite ou chamado para que eu curtisse, compartilhasse e comentasse a bebida. Eu não estava bêbado ainda e não conse-guia acreditar na possibilidade de ter enlouquecido de uma hora para a outra, mas isso deve acontecer com os loucos repentinos.

Quando levantei os olhos para as outras mesas a coisa toda piorou. As informações textuais, da mesma natureza, se multiplicaram infinitamente, em camadas sobre camadas. Sobre a cabeça de cada pessoa, uma foto dela própria ou alguma imagem que cada um escolhera para representar a si mes-mo, seus respectivos nomes, o número de amigos que tinham em comum comigo e a opção de solici-tar a sua amizade. Mas eram todos desconhecidos e conhecer pessoas novas podia ser interessante na juventude. Eu mesmo não era mais jovem.

Os objetos insistiam em se tornar mais a propa-ganda de si mesmos do que eles mesmos, e ficou claro que podiam não ser tão inofensivos. Não es-tavam sob o meu controle. Não se calavam. Tentei

não entrar em pânico, mas tudo me incomodava de uma forma tal que não seria possível disfarçar por muito tempo. Quando vi o garçom, que eu não sabia como se chamava, resolvi chamá-lo pelo nome que aparecia pairando sobre sua cabeça. Ele me atendeu prontamente. Paguei, tentando ignorar os ícones do governo e do banco central que apareciam a partir das notas, e fui embora.

Na rua, os lugares traziam as mesmas indica-ções. Os bares se ofereciam para serem curtidos e seguidos. Eventos futuros e presentes se anun-ciavam do nada e mapas de catálogos telefônicos cobriam todo céu. Suas referências se misturavam e se confundiam com as estrelas. Nas esquinas e ruas mais mal afamadas, as pessoas e as portas tra-ziam a indicação de que só podiam ser acessadas por maiores de 18 anos, enquanto cenas pornográ-ficas gravadas de forma caseira se repetiam no ar. Eu precisava urgentemente de um táxi, mas quan-do eu vi o número de informações sobre cada carro acabei desistindo. E fui para casa a pé, enfrentando uma floresta de signos.

Em casa as coisas não se deixavam esquecer

para que eu me lembrasse delas só quando fosse necessário. Elas se anunciavam, para além da fami-liaridade indiferente que eu esperava delas. O mais estranho é que, mesmo depois de comprados, os ob-jetos se insinuavam como se estivessem à venda em vitrines ou mercados virtuais, e daquele modo mais sedutor: deixando o preço por último, para quando você já está completamente seduzido. As informa-ções ao redor dos lugares e mesmo das pessoas não eram diferentes disso em nada.

E os dias seguintes foram iguais. Eu dormia mal, porque todas as informações do mundo agrediam os meus olhos incessantemente. Sei que se trata-va de uma luz sutil, mas eu não conseguia ignorar que estavam lá, as palavras, no ar, nomeando tudo o tempo todo.

E todos os dias, diante do espelho, eu via, pairan-do sobre minha cabeça, invertidos, o meu próprio nome e o número dos amigos adicionados e dos as-sinantes, além do número incomodamente crescen-te de pessoas que eu não conhecia, mas que que-riam que eu as adicionasse em redes sociais que eu mantinha abertas, mas nem usava mais.

Eu ia confessar a um amigo, na semana seguin-te, o que estava acontecendo comigo, quando voltei ao bar original porque ele me chamou. Em vez disso preferi perguntar como tínhamos nos conhecido.

“Participamos da mesma comunidade, não lem-bra? Torcíamos pelo…”

Um time brasileiro obscuro que já tinha acabado. Éramos órfãos do futebol que se dedicavam às gló-rias do passado. Criamos conjuntamente uma pági-na e começamos a elaborar a infindável historiogra-fia do clube, não ignorando anedotário, polêmicas, datas, estatísticas, biografias de cada jogador, téc-nico, dirigente e até mesmo dos funcionários mais inexpressivos. Toda semana tínhamos novidades.

O tempo passou e acabei me acostumando com todas aquelas palavras como quem se acostuma com os sintomas amenizados de uma doença crôni-ca. Aquilo podia se tornar uma rotina. Dizem que as rotinas não são saudáveis. Jovens tendem ou dizem tender a se entediar com a rotina. Mas eu, eu não era mais jovem. Já fazia muito tempo que eu não era mais jovem. Eu já era o tipo de pessoa que precisa-

va de uma rotina, o tipo de pessoa que cultiva, pre-serva e protege uma rotina. Aquela rotina, porém, eu não queria para mim. Não estava angustiado nem deprimido com aquilo tudo, mas no final isso é que era o pior.

“Se cheguei a esse grau de indiferença”, pensei, “então nada mais importa”.

Então fui ao antiquário e disse a ele o que queria.

“Bela escolha, senhor. E essa peça tem a sua his-tória. Uma história trágica, mas… que outro tipo de história se podia esperar?”

Eu não queria saber a história. Não queria a sim-patia do vendedor. Não queria sua cumplicidade, mas ele conseguia insinuar a sua história melhor do que se insinuavam os escritos que pairavam ao seu redor e ao redor de todos os seus objetos.

“Dizem que um antigo teatrólogo brasileiro se suicidou com essa arma.”

“Sério. E como essa arma veio parar em Cuba?”

“Isso seria uma história mais longa. Você já de-via imaginar que as coisas entram e saem da Ilha

das maneiras mais estranhas.”

Paguei e saí. O vendedor não estranhou que eu também quisesse munição mesmo para uma arma tão antiga. E eu não estranhei que ele tivesse mu-nição à venda. Todo mundo sabe que, praticamente desde que nosso país se tornou capitalista, os anti-quários são a forma mais limpa e menos burocráti-ca de se comprar uma arma. Mesmo quando o que você quer não é mais uma peça na coleção ou um objeto nobre para decorar a sala.

Mantive minha rotina quase como se nada tivesse acontecido ou fosse acontecer. Quis um pouco me despedir das coisas e das pessoas, mas isso não era possível, depois de tanto tempo sendo assedia-do pela versão duplicada e às vezes mesmo ideali-zada de suas personalidades. Eu tinha que sair pela porta dos fundos, sem avisar.

Já no meu apartamento…

Eu não queria interromper a música que tocava ao lado. Era uma antiga canção de que eu gostava e que falava que morriam as ilusões e morria o amor. Irônico? Talvez eu precisasse ver as coisas assim.

Peguei a pasta, ainda ouvindo a música, e tirei de lá a arma, um calibre .32. Estava embrulhado num papel velho e grosso, de cor fosca. Aquilo me emocionou, porque o papel não apontava para nenhuma infor-mação nem sobre si nem sobre nada. Justamente um papel, o tipo de suporte em que antigamente as coisas vinham escritas. Talvez toda aquela loucura tivesse acabado e nada mais precisasse falar aque-la linguagem ensurdecedoramente muda.

Quando levantei os olhos para as coisas vi que nada tinha mudado. As coisas continuavam se no-meando e constantemente se vendendo com sua falsa sutileza.

Só me faltava que o revólver, no qual eu ainda nem reparara, trouxesse as mesmas informações sobre si que tudo trazia.

Sim. Pairando no canto à direita e acima da arma, a página do fabricante. Todos os meus amigos ti-nham curtido a página e também os desconheci-dos que queriam que eu os adicionasse. Reconhe-ci muitos deles pelo rosto. E se desenrolou sob os meus olhos uma sequência de fotografias de rostos

familiares e indiferentes. Todos apontavam o revól-ver para a têmpora, sem susto e sem emoção. E lá estava também a minha própria foto, um rosto sem rosto e de pouca história que quase não fui capaz de identificar.

A própria página me indicava como um dos seus seguidores. Eu ainda era jovem e concedera para aquela página meu polegar virtual virado para cima.

E isso tinha sido há muito tempo atrás.

P.-S. Uma advertência tardia. A narrativa se baseia num pesadelo que tive. No pesadelo apenas tive a mesma visão do narrador de que os rostos das pessoas e os objetos apontavam para links que estra-nhamente apareciam no ar. O pesadelo, inclusive, se reduziu a uma cena de poucos segundos que me fez acordar transtornado. O que mais me assustou imediatamente depois de ter acordado foi a certeza fulminante de que não fui o único a ter esse pesadelo, mas me con-formei, feliz, por ter sido capaz de me assustar com a visão que tive. Outros, que tiveram a mesma visão em sonho, podem ter achado que se tratava apenas de um sonho inocente, ou até desejaram que a vida real fosse assim.