LILITH E O ARQUÉTIPO FEMININO CONTEMPORÂNEO

Embed Size (px)

Citation preview

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    1/14

    LILITH E O ARQUTIPO DO FEMININO CONTEMPORNEO

    Ctia Cilene Lima Rodrigues

    Psicloga, Professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestre e

    doutoranda em Psicologia social da Religio pela PUC/SP

    Resumo:

    O trabalho tem por objetivo compreender a simbologia existente nos

    mito Judaico-Cristo de Lilith, primeira mulher de Ado, bem como relacion-la

    com a experincia mtica da mulher em sua vida cotidiana. Para tal, utiliza-se

    de pesquisa terica bibliogrfica e mtodo fenomenolgico de observao com

    anlise de referencial na abordagem da Psicologia Analtica. Uma vez que o

    estudo e anlise dos mitos da cultura de um povo revela o universo simblico

    deste, no que diz respeito s experincias e relacionamentos, e que o contedo

    mtico arquetpico, inconsciente e coletivo, observa-se a atual relevncia do

    papel social da mulher, e evidencia-se a importncia da melhor compreenso

    do universo simblico feminino. Lilith, como primeira companheira de Ado,

    feita do mesmo material que ele, cheia de sangue e saliva, possui sensualidade

    e fora demonacas, que perturbam Ado; mas tambm aquela que lheapresenta o prazer orgstico. O relacionamento perturbado pela imposio

    do homem em permanecer por cima da mulher, ao que ela no aceita e por isto

    dele se afasta. Este mito simboliza, entre outros aspectos, a instintividade

    feminina manifestada em sua sensualidade, bem como a reivindicao por

    igualdade sexual e social contra o machismo. Desta forma, observa-se que o

    mito traa um panorama de controle, submisso, represso sexual e luta por

    igualdade sexual e social femininas. A feminilidade um todo, porm este mitoenfatiza um plo de uma ciso: o lado da mulher sensual, a prostituta, porm

    com a fora da autonomia e dignidade, presentes na busca feminina

    contempornea por equilbrio nas relaes afetivo-erticas.

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    2/14

    Abstract:

    This paper works the simbolysm present on the Liliths mith and his

    connect with the mistical experience of moderm womam, througt of the

    phenomenological method and the Analitical Psycology. It follows that the mith

    denote one view of the control, submission, sexual repression and fight for

    sexual and social equality to the woman into the companionship.

    Palavras Chaves: feminino, simbologia, mitos.

    A mitolgica personagem Lilith no explicitamente apresentada nas

    escrituras Judaico-Crists, porm est presente na tradio popular e,

    conforme Vera Paiva (Paiva apud Sicuteri, 1998), vem sendo estudada em

    textos da antigidade, principalmente da Torah assrio-babilnica e hebraica,

    alm de outros textos apcrifos.

    Lilith a primeira companheira de Ado, criada do mesmo material que

    ele, igual a ele. Para melhor elucidar o mito, ser apresentado aqui as lacunas

    bblicas que permitem a hiptese da retirada desta personagem do texto, alm

    do mito em si e as anlises pertinentes Psicologia.

    O mito de Lilith pertence grande tradio dos

    testemunhos orais que esto reunidos nos textos da sabedoria

    rabnica definida na verso jeovstica, que se colocada lado a

    lado, precedendo-a de alguns sculos, da verso bblica dos

    sacerdotes (...) a lenda de Lilith, primeira companheira de

    Ado, foi perdida ou removida durante a poca de transposio

    da verso jeovstica para aquela sacerdotal, que logo aps

    sofre as modificaes dos pais da Igreja.

    (Sicuteri, 1998, p23)

    Sendo assim, anterior na redao jeovstica, o mito de Lilith arcaico e

    precede o mito de Eva: Lilith a primeira companheira de Ado. De acordo

    com Cavalcanti (1987), tal mito possui grande contedo revolucionrio,

    expressando a problemtica feminina em busca da sua identidade,

    denunciando a necessidade da sociedade patriarcal de sujeitar e invalidar a

    presena da mulher. O grande mal em Lilith est em sua desobedincia aomasculino.

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    3/14

    A existncia de tal mito no texto sagrado da tradio Judaico-Crist se

    fortifica ao analisar-se mais atenciosamente seus trechos. Embora diversas

    culturas considerem o primeiro homem (ou o homem original) como um ser

    andrgino - o que pode significar um trao divino na natureza humana ou a

    completude entre macho e fmea com princpios masculino e feminino no sexo

    oposto (Anima e Animus) - e esta possibilidade tambm exista na interpretao

    dos textos da referida cultura, partamos da verdade contida nos testemunhos

    orais que evidenciam a existncia de um ser feminino anterior Eva nas

    origens humana.

    Em Gnesis I,27, verifica-se a criao do homem segundo imagem

    divina, homem e mulher ou macho e fmea, o que sugere a androginia de

    Ado ou a existncia da entidade feminina junto a ele que no trata-se de Eva.

    Isto porque apenas no captulo posterior, aps ter sido concluda toda a

    criao, que Ado solicita uma companheira e Deus ir produzir Eva da

    costela de Ado.

    Gnesis I, 26: Deus disse: faamos o homem nossa

    imagem, segundo a nossa semelhana

    Gnesis I, 27: Deus criou o homem sua imagem,

    imagem de Deus o criou; macho e fmea os criou

    Gnesis I, 28: Deus os abenoou e Deus lhes disse:

    crescei e multiplicai-vos

    Assim, nestas trs fases, vemos aparecer o homem com

    indivduo composto de duas partes. O pronome que muda do

    singular ao plural revelador do conceito de hermafroditismo

    ou androginia, ou ento se deve, com certeza, pensar que se

    tratava nem mais nem menos do verdadeiro casal distinto,

    Ado e a primeira companheira, isto , Lilith.

    (Sicuteri,1998, p 20)

    Em Gnesis II, entre os versos 7 e 20, observa-se que primeiro Deus

    modelou o homem a partir do p, soprando-lhe a vida e, aps a criao total e

    completa, verifica-se a solido do homem e, ento, deseja-lhe criar uma

    companheira, fazendo-o depois que o homem conhecera todos os animais eno encontrara nenhum conveniente a si.

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    4/14

    Nesta passagem bblica reconfirmado que Ado

    estava s e tinha dado nome aos animais, isto , os havia

    conhecido no acasalamento. Somente de tal modo havia

    compreendido a necessidade da diferenciao(...) neste

    ponto exato do mito que Ado abandona o carter de

    identificao com o divino exprimido pela androginia e supera a

    sexualidade animal como ser vivente. o momento no qual

    pedido a Deus a companheira mulher.

    (Sicuteri, 1998, p 20)

    O fato de o mito de Lilith ser encontrado em textos da Torah e Midrash

    (O ensinamento e A Procura para os Judeus), textos repletos de f, mas

    tambm de testemunhos, sagas, lendas mitos e folclore, fortifica mais a

    expresso arquetpica no mito religioso: Lilith nasce, segundo Sicuteri (1998),

    de uma necessidade ou fantasia coletiva(p25).

    Assim, nas lacunas em Gnesis, pode-se dizer que a prpria cultura

    harmonizou as duas verses, pois Deus criou o homem e os abenoou, macho

    e fmea, e depois criou Eva para a solido de Ado. De modo que, excluindo a

    androginia como arqutipo celeste refletido no ser terrestre, logo pensa-se na

    existncia de dois seres diferentes, mas com a mesma natureza feminina.

    Outro trecho bblico que remete a uma experincia de Ado com o universo

    feminino precedente Eva encontra-se em Gnesis II., 22-25, quando ele

    expressa alegria com uma mulher que derive dele, ou seja, que ele conhea e

    que domine, ao invs de algum como ele.

    R. Jehudah em nome de Rabi disse: no princpio a criou,

    mas quando o homem a viu cheia de saliva e de sangue

    afastou-se dela, tornou a cri-la uma segunda vez, como est

    escrito: Desta vez. Esta e aquela da primeira vez.

    (Bresit-Rabb apud Sicuteri, 1998, p 27)

    A mulher da primeira vez Lilith, que provoca em Ado uma sensao

    angustiante, que lhe amedronta. O sangue mencionado na citao acima

    sugere a menstruao, uma caracterstica carnal e instintiva da mulher, alm

    da ausncia de pudor e tabus de Lilith, que apresenta-se livremente ao homem,

    disposta tambm experincia sexual no ciclo menstrual. A saliva refora ocarter sexual simblico, remetendo uma idia de secrees erticas. Deste

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    5/14

    modo, fica evidente a condio sensual e libertada dos preconceitos dentro do

    universo simblico feminino em Lilith; essa atuao sexual, que leva o

    homem ao xtase e fora do controle sobre si mesmo, o que amedronta o

    universo simblico masculino expressado em Ado: por isto, ele se afasta e

    busca uma companheira adequada - ou seja, submissa, obediente, que sinta-

    se inferior.

    De acordo com Sicuteri (1998), a lenda da criao de Lilith relata que ela

    fora criada assim como Ado, porm sendo utilizado por Deus fezes ao p.

    Deste modo, a mulher buscava a igualdade junto ao homem, rejeitando a

    condio de submisso ao masculino, pois nascera impura, porm das mos

    divinas como Ado.

    Nos relatos no citados no texto sagrado, e de acordo com Sicuteri

    (1998), desde o incio Lilith fora chamada demnio, seja por sua fora

    instintual, seja por ter sido criada logo aps Ado nas ltimas horas do sexto

    dia, juntamente com os demnios no incio das trevas. A criao se finda no

    sexto dia, pois no stimo dia Deus descansara.

    Os dois protagonistas esto no palco do mundo. Ado e

    Lilith, aquela que primeiro exprimia a seu homem algo de

    importante, de fundamental no que diz respeito sua relao

    de criaturas viventes; de homem e mulher

    (Sicuteri, 1998, p 29)

    Deste modo, Ado e Lilith consumaram sua relao nas trevas, na

    escurido do Sbado, o stimo dia, em que Deus descansou: dia sagrado aos

    hebreus. O homem sente a potncia feminina/demonaca, que provoca o

    prazer e o descontrole da situao. Lilith lhe apresenta isto. Para Sicuteri

    (1998), Neste ponto, digamos que o mito de Lilith representa certamente o

    arqutipo da relao homem-mulher, ao nvel mais primitivo no sentido

    evolucionista(p. 30).

    Lilith apresenta-se, ento, cheia de desejo e sensualidade, sedutora,

    gemendo e oferecendo um ofuscamento de conscincia, um orgasmo ao

    homem: uma mulher que demnio. o sonho ertico que perturba a noite

    do homem-Ado, apresentando-lhe a potncia da energia vital1.

    1Sicuteri, 1998, p 33

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    6/14

    A relao entre o casal original indica ser total, intensa, um amor que

    foge ao controle, muito bom, de dimenso divina. uma unio alqumica que

    no uma oposio, mas uma perfeita complementao. Nisto se d a

    perturbao ao universo masculino: o macho perde o controle na relao e sua

    grande intimidade com o Criador ferida, uma vez que a mulher lhe apresenta

    um amor de intensidade e dimenso semelhante.

    Deste modo, a unio carnal/sexual de Lilith e Ado, a princpio to

    prazeirosa, perturba-se. Ado busca uma unio carnal sobre a mulher, e Lilith

    torna-se descontente. De acordo com Sicuteri (1998):

    todos os seres praticam o ato sexual com a cara de um

    voltada para as costas do outro, afora dois que se unem dorso

    a dorso: camelo e co, e afora trs, que se unem cara a cara,

    porque a Presena divina lhes falou, e so o homem, a

    serpente e o peixe(p 33).

    Assim, Ado a procura sexualmente numa posio em que os parceiros,

    de frente, permaneam ele em cima e ela por baixo.

    Tal trecho do mito exprime o desejo de controle, no s sexual, mas

    social do macho, bem como seu receio quanto instintividade da fmea. Ficar

    por cima dela significa domin-la e submet-la a seu controle; porm, a

    primeira mulher no aceita tal condio.

    Assim perguntava a Ado: - Por que devo deitar-me

    embaixo de ti? Por que abrir-me sob teu corpo? Talvez aqui

    houvesse uma resposta feita de silncio ou perplexidade por

    parte do companheiro. Mas Lilith insiste: - Por que ser

    dominada por voc? Contudo eu tambm fui feita do p e por

    isto sou tua igual. Ela pede para inverter as posies sexuais

    para estabelecer uma pariedade, uma harmonia que deve

    significar a igualdade entre os dois corpos e as duas almas.

    Malgrado este pedido, ainda mido de calor splice, Ado

    responde com uma recusa seca: Lilith submetida a ele, ela

    deve estar simbolicamente sob ele, suportar seu corpo.

    Portanto: existe um imperativo, uma ordem que no lcitotransgredir. A mulher no aceita esta imposio e se rebela

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    7/14

    contra Ado. a ruptura do equilbrio. Qual a ordem e a

    regra do equilbrio? Est escrito: o homem obrigado

    reproduo, no amulher.

    (Sicuteri, 1998, p 35)

    Deste modo, a primeira companheira de Ado afasta-se aps sua

    recusa, provocando nele a sensao de abandono ao descer das trevas do

    stimo dia. No encontrando Lilith, Ado sente desespero e amargor pela

    perda, recorrendo ao Pai: ao desafiar o homem, a mulher desafia o Divino -

    assim, Lilith afirma-se um demnio, pois profana o nome do Pai. Torna-se a

    serpente-demnio, veculo do pecado e da transgresso, numa busca instintual

    pela igualdade sexual. Eva, tambm de natureza feminina, tenta ato

    semelhante, porm o desfecho de cada ato as diferencia miticamente.

    Em Lilith h o pedido da inverso das posies sexuais

    equivalentes aos papis, enquanto em Eva h o ato de

    transgresso da rvore, em obedincia serpente (...) Lilith

    pede para ser considerada igual, Eva pensa que no h morte

    ao assumir a sabedoria proibida. Lilith desobedece

    supremacia de Ado, Eva desobedece proibio. Ambas

    assumem um risco, mediante um ato.

    (Sicuteri, 1998, p 37/38)

    Aps o afastamento de Lilith, Deus lhe ordena que volte para Ado,

    porm ela no o deseja mais e se nega a realizar a ordem divina, neste ponto

    do mito, Lilith definitivamente transforma-se, preferindo permanecer na regio

    dos demnios do Mar Vermelho. Torna-se ela tambm um ser demonaco,

    lascivo, sedutor.

    H uma tentativa no mito de resgate da mulher por parte dos anjos de

    Deus, mas sem sucesso eles a ameaam de morte; porm ela os desafia,

    posicionando-se em seu papel: E como poderei morrer, se Deus mesmo me

    encarregou de me ocupar de todas as crianas nascidas homens, at o oitavo

    dia de vida, a data da circunciso, e das mulheres at os seus vinte anos? 2.

    Assim, por vontade divina, assume o papel de serpente-demnio; mas Deus a

    pune, exterminando seus filhos da face da terra.

    2Ibidem, p 39

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    8/14

    No h uma concluso. Lilith permanece na prpria

    liberdade endemoniada, quem sabe rainha no palcio do

    Demnio, com o seu esprito feminino. Do momento em que

    declara guerra ao Pai, e o Pai a sujeita ao papel, desencadeia

    sua fora destrutiva e desde aquele dia no h paz para o

    homem

    (Sicuteri, 1998, p 40)

    A concluso do mito no ocorre, pois o prprio mito est ocorrendo at

    os dias atuais. Toda energia libidinal e sensual de Lilith transforma-se em

    volpia.

    O mito simboliza a fora sexual e psquica feminina, que amedronta o

    universo masculino pela sensao de impotncia que tal fora lhes gera. Na

    tradio sumrico-acadiana, Lilith descrita como principal demnio feminino,

    sensual, caracterizada por sua vagina vibrante, seios rutilantes, ventre e

    coxas iminentes, um vampiro que suga os fludos vitais3. Desta forma,

    Sicuteri (1998) descreve que ela causa aos homens a sensao de impotncia

    absoluta, onde os indivduos no se sentiam livres, pelo contrrio, percebiam

    logo a ameaa de uma feitiaria(p. 49).

    Lilith est por trs dos fenmenos histricos, a partir da represso da

    sexualidade, que origina somatizaes e enfermidades. ela a responsvel

    pela desunio da famlia, seja projetada em uma amante sedutora que tira e

    rouba o marido da esposa, seja projetada na rebeldia da esposa que no

    suporta o no de seu marido-Ado. Esse mito representa toda a

    irracionalidade gerada quando as proibies sociais so colocadas como

    barreiras realizao dos desejos.

    Contudo, tambm representa uma ciso do arqutipo da Grande me,

    uma vez que Lilith tambm projetada na lua, sendo o lado negro do satlite:

    assim, demnio terrestre e divindade celeste. Na antigidade egpcia e greco-

    romana, Lilith no aparece como demnio, mas identificada com divindades

    destas culturas: o momento da histria humana ocidental em que a

    sexualidade no considerada um perigo, mas fonte de prazer.

    Deste modo, associa-se as fases lunares ao ciclo de fertilidade da

    mulher, em que a projeo assume um carter numinoso e religioso a partir da

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    9/14

    ferocidade das divindades femininas. Sem ciso do arqutipo, a Lua-Lilith pode

    ser simultaneamente boa ou m, cheia ou negra.

    Desta maneira, o mito simboliza tambm a fertilidade e produtividade

    femininas, mesmo que haja na sua natureza humana um mal implcito, um

    demnio noturno, voraz e insacivel: o instinto. Se Lilith expressa fora sensual

    e mistrio, tambm denota a angstia, o medo da morte, prazeres histricos; o

    instinto pode gerar prazer do polo saudvel , como tambm atravs da luxria,

    perverso e imoderao sexual. Lilith simboliza todas estas possibilidades.

    Entre a Lua cheia e a Lua negra no h um salto: Lilith

    permanece no exlio, mas para a alma grega a potncia do

    instintual negado se manifesta com toda a evidncia na ciso e

    chega a sobrepujar o Eu.

    ( Sicuteri, 1998, p 90)

    A obscuridade e mistrio que geram a incompreenso de Ado em

    relao a Lilith nada mais simbolizam que o temor ao mistrio da feminilidade

    para o macho e, conseqentemente, tal incompreenso gerou supersties nas

    quais o mito fora projetado (amazonas, bruxas, sereias).

    Por que a feminilidade conhece de dentro; quase nunca

    a partir de fora, pois traz em si, no prprio ventre - em sentido

    estrito e metafrico - a mais profunda experincia vital, e

    permanece numa perene, indissolvel unio com sua criatura.

    (Sicuteri, 1998, p 108)

    O perigo psicolgico vivido pelo homem em relao feminilidade est

    no domnio a que ele se submete quando frente aos poderes da seduo da

    mulher que, seduzindo-lhe, fica por cima dele, o que insuportvel ao macho.

    Explica Sicuteri (1998),

    ainda repetitiva e reforada, a rejeio agressiva de

    Lilith. Em consequncia, a mulher opera na imaginao a mais

    cruel desforra. Combatida com a exasperada sublimao

    religiosa e com a desdenhosa razo do homem, a Anima

    enquanto mulher e totalidade instintiva e criativa, volta a

    representar o conto, a protestar, a exigir resposta a sua

    3Ibidem, p 47/48.

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    10/1

    dolorosa pergunta: Por que me dizes no? No somos iguais?

    No sou eu igual a ti?( p. 109).

    Neste contexto, inmeras mulheres sofrendo de conflitos sexuais,

    histricas, ou com mania de perseguio, foram a personificao de Lilith para

    a obsesso masculina durante a Idade Mdia. De modo que, a caa s

    bruxas nada mais significou que a concretizao do desejo de controle

    masculino, com o domnio do macho sobre a crena da inferioridade da mulher.

    A sensualidade, que gera tanto prazer, gera tambm o temor ao universo

    simblico masculino; assim, o objeto de sensualidade ao homem, a mulher-

    Lilith, deve ser exterminada.

    Retorna ao pecado original, a Eva, para preparar o

    processo contra a sensualidade feminina e, no Malleus

    Maleficarum, sustenta-se que o pecado que comeou com a

    mulher um inimigo branco e oculto cuja concupiscncia

    carnal insacivel.

    ( Sicuteri, 1998, p 114)

    A sensualidade feminina tem, para o universo simblico masculino,

    poder equivalente ao poder do falo e, quando exercida, o homem perde sua

    condio de poder e controle sobre si e sobre a relao, entregando-se. Ao se

    entregar ao prazer promovido pela mulher, o homem sente-se dominado por

    ela, necessitando destruir tal sensualidade para comprovar seu poder flico.

    Assim sendo, reprimir a feminilidade significa afirmar o poder masculino.

    De acordo com Sicuteri (1998), a figura da bruxa certamente um

    smbolo sexual:

    O ungento, o basto, o cavalo, o vo, levam-no a

    pensar no frenesi sexual, a ereo, o esfregar os genitais, as

    posies animais do coito, o voar como smbolo do 6extase do

    orgasmo, de polues ou de masturbao(p. 124).

    Frente ao medo que a sensualidade feminina que era socialmente

    repudiada pelo homem, mas desejada inconscientemente por ele, surge o

    sadismo e as milhares de mortes que ocorreram contra as bruxas, a piorpersonificao de Lilith que a histria j conheceu.

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    11/1

    Na atualidade Lilith ainda se manifesta, sombria e negativa, interrogando

    o homem quanto sua igualdade: e j Lilith retorna como amplificao dos mitos

    lunares em conexo com as temticas sexuais4.

    Nos protestos por igualdade sexual, na emancipao d mulher, na

    astrologia, ainda aponta-se para a ciso do arqutipo da Grande me,

    refletindo a represso instintual e sexual da mulher. Os movimentos femininos

    que marcaram o sculo que se finda indicam o despertar e a amplificao da

    conscincia feminina e o questionamento que a mitolgica Lilith faz: Por que

    ficar embaixo de ti?.

    Lilith o lado sombrio de Eva, pois no se submete, porque conhece

    seu poder; De acordo com Cavalcanti (1987), nenhuma deusa jamais se

    submete ou est sob o comando do masculino porque conhece sua fora e seu

    poder(p. 90).

    Aps a revoluo sexual feminina, com auge nos anos 70, o mitologema

    de Lilith no mais encarado como smbolo de represso, mas como

    denncia, numa busca de integrao dos instintos na psique.

    Comea-se a considerar a mitologia do feminino como

    testemunha de uma incansvel luta que o homem trava contra

    o instintivo, e sua conseqente represso (...) E,

    constantemente, se repete o no ao gozo, ao prazer pulsional.

    A criatividade reflui. O objeto do desejo, o ato de desejar e ser

    desejado so danificados pela censura e pela represso e,

    para conseguir este resultado - na vspera das grandes

    descobertas sobre o inconsciente - ainda se atribuem s vrias

    personificaes da nima atributos, qualidades e formas as

    mais desagradveis ou destrutivas, a fim de conseguir a

    repulsa e a rejeio da experincia.

    (Sicuteri, 1998, p 140).

    Consideraes Finais

    O mitoe de Lilith, exatamente por possuir contedos arquetpicos

    (sobretudo dentro do mundo de cultura ocidental), conta histrias de todas as

    mulheres, pois configura narrativa atemporal e impessoal, expressando

    4Ibidem p 139.

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    12/1

    caractersticas coletivas quanto ao universo simblico feminino e a relao da

    mulher com sua feminilidade e com o outro.

    Deste modo, narra a realidade feminina no que diz respeito a gestos,

    emoes, imagens simblicas, etc, que esto no Inconsciente humano. Toda a

    contestao sobre a irracionalidade presente neste mito no importa, pois o

    mito no pode ser lgico: para abranger a totalidade do Real, precisa ser

    simblico. Assim, a questo da existncia efetiva da primeira esposa de Ado

    irrelevante na rea de Psicologia; antes diz respeito a uma questo teolgica.

    Psicologia compete justamente o estudo do que irracional, sem lgica e

    simblico na histria, ou seja, a verdade ltima que ela contm e que expressa

    contedos psquicos coletivos.

    Alm de espelhar o comportamento, sentimentos, imagens

    inconscientes comuns na cultura ocidental de tradio Judaico-Crist, foi

    observado no presente trabalho que este mito tambm foi utilizado como

    modelo e influncia para a manipulao de certos comportamentos, sobretudo

    no que diz respeito ao controle da sexualidade.

    Neste sentido, simboliza diferentes manifestaes da feminilidade na

    mulher (que por serem atemporais, abrangem a mulher atual tambm),

    especialmente quanto vivncia da sexualidade. Os principais contedos

    observados foram o controle, a submisso, e a represso sexual feminina pelo

    universo simblico masculino/machista, bem como a luta por igualdade sexual

    e social da mulher.

    Expressam o no masculino quanto o pedido de igualdade da mulher,

    indicando que no machismo existe grande ansiedade e desejo de poder sobre

    o universo feminino, no que refere-se ao controle da instintividade, denotando o

    temor do homem em relao fora instintiva e a criatividade femininas,

    expressadas principalmente atravs da sexualidade.

    Porm, embora temente em relao instintividade, o universo

    simblico masculino necessita da energia que lhe contrria e que lhe

    completa, proporcionando-lhe o equilbrio no processo de individuao, na

    relao Anima-Animus; deste modo, ainda que negando a satisfao do desejo

    de igualdade da mulher, o homem busca sua companhia. Entretanto, de um

    modo em que esteja por cima, ou seja, no considerando a mulher como suaigual, mas submetendo-a na condio de inferioridade, que ento aceita pela

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    13/1

    mulher. A sexualidade feminina, que expressa poder criativo e gerador, capaz

    de promover um estado de xtase orgstico sem controle sexualidade

    masculina, por ser sua complementao natural, desejo de controle

    masculino.

    A relevncia do tema est na melhor compreenso dos conflitos scio-

    sexuais da mulher moderna, o que poderia sugerir nova dinmica de anlise

    neste sentido. Tal hiptese continua sem comprovao, uma vez que seria

    necessria maior e mais aprofundada observao cientfica sobre o tema.

    Para finalizar, Neumann (1998) reflete:

    Ora, esquerda h uma srie negativa de smbolos, a

    me da Morte, a Grande prostituta, a Bruxa, o Drago, Maloch;

    direita h uma srie positiva, oposta, na qual encontramos a

    boa me que, como Sofia ou a Virgem, d luz e nutre, conduz

    ao renascimento e salvao. L Lilith, aqui Maria. L o sapo,

    aqui a deusa, l um pntano cruento e devorador, aqui o

    Eterno Feminino.

    (Neumann apud Sicuteri, 1998, p 141).

    Deste modo, no trata-se de representaes de mulheres diferentes

    mas, antes, de diferentes aspectos da sexualidade feminina como um todo.

    possvel que em toda a dinmica psicolgica feminina exista os caracteres

    destes mitologemas, por serem arquetpicos. A sensualidade, a instintividade, a

    rebeldia, a submisso, a criatividade e a represso sexual, aspectos

    observados neste mito no se excluem ou so incompatveis de

    simultaneidade; mas ao contrrio, podem indicar as diferentes modalidades de

    manifestao do que prprio ao universo simblico feminino enquanto Psique

    Objetiva. Compreend-las e analis-las fazem parte do processo de integrao

    entre o que simblico e coletivo no psiquismo e o Ego. Neste sentido,

    viabilizaria-se uma melhor elaborao dos aspectos arquetpicos, bem como a

    integrao dos mesmos no contexto de relacionamentos interpessoais da

    mulher, facilitando a reflexo e a ocorrncia do processo de individuao.

  • 5/27/2018 LILITH E O ARQU TIPO FEMININO CONTEMPORNEO

    14/1

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ABELARDO, Pedro. A Histria das Minhas Calamidades. Coleo Os

    Pensadores. So Paulo; Abril Cultural, 1973.

    ARANHA, Maria Lcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando:

    Introduo Filosofia. So Paulo; Moderna, 1986.

    BERGER, Peter L.; Luckmann, Thomas. A Construo Social da Realidade:

    Tratado de Sociologia do Conhecimento. Petrpolis; 17edio, Vozes,

    1985.

    BBLIA SAGRADA, Trad. Dos originais mediante a verso dos monges de

    Maredsous pelo Centro bblico Catlico. So Paulo; Ave Maria, 1993.

    CAMPBELL, Joseph. O Poder Do Mito. Trad. De Carlos Felipe Moiss. So

    Paulo; Palas Athema, 1990.

    CAVALCANTI, Rassa. O Casamento do Sol com a Lua: uma viso simblica

    do masculino e do feminino. So Paulo; Cultrix, 1987.

    ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. So Paulo; Perspectiva, s/d.

    MARTINS, Oliveira. Sistema dos Mitos Religiosos. Lisboa; Guimares Editores,

    1986.

    JUNG, Carl Gustav et all. O Homem e Seus Smbolos. Trad. Maria Lcia Pinho.

    Rio de janeiro; 16 impresso, Nova Fronteira, 1998.

    ____ . Psicologia e Religio. Rio de Janeiro; Psyche, 1963.

    OLIVEIRA, Maria Martha Hbner d. Cincia e Pesquisa em Psicologia: Uma

    Introduo. So Paulo, EPU.1984.

    REIS, Alberto Olavo Advincula et alii. Teorias da Personalidade em Freud,

    Reich e Jung. So Paulo; EPU, 1984.

    SICUTERI, Roberto. Lilith: A Lua Negra. So Paulo; Paz e Terra, 1998.

    WHITMONT, Edward C. A Busca do Smbolo - Conceitos Bsicos de Psicologia

    Analtica. So Paulo; Cultrix, 1969.