Limites Da Arte e Do Mundo

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    A partir da anlise da obra de Piero Manzoni intitulada Base do Mundo, o estudo trata da com-

    preenso de como se efetuam algumas relaes entre arte e no-arte e a verificao dos limites. Por

    outro lado, buscam-se alguns parmetros que permitam uma abordagem da arte contempornea e de

    seus espaos de apresentao, bem como interrogar seus possveis limites.

    Perguntamos: existiria a possibilidade de que neste momentofizssemos parte de uma obra de arte, mesmo que ns no soubssemos disso?Pois, com quantas situaes podemos estar relacionados no mundo nestemomento, sem que saibamos e sem que tenhamos uma idia de suas impli-caes? Com quantas coisas convivemos, e quantas delas utilizamos sem sabercomo funcionam, sem saber de seus efeitos sobre ns?

    Ento, existiria a possibilidade de que fssemos arte neste instante?E talvez no somente aqui e agora, mas amanh no incio da tarde, ou ontem

    ou anteontem dentro de um nibus ou no meio de um trabalho? Haveriaa possibilidade de pensar que seria arte o gesto de levantar hoje pela manh,sentir o cheiro do caf, de abrir a janela? Mas, tambm, por que no, o cami-nhar pela rua, observar o verde da grama na praa, escutar algum que assobiasentado num de seus bancos e a cidade onde ele se encontra? Haveria a possi-bilidade de que fosse arte mesmo um gesto ou um estado de indefinio?

    Uma obra nos instiga a comear este pensamento. Trata-se de Basedo Mundo1, do artista italiano Piero Manzoni, realizada em 1961, e que seencontra atualmente na cidade de Herning, Dinamarca.

    Construda em ferro e bronze, medindo 1m x 1m e tendo 82cmde altura, Base do Mundo , como o nome diz, uma base, uma espciede pedestal utilizado para a colocar, sustentar ou receber esculturas. Coma diferena de que, num primeiro momento, parece no haver nada sobre ela.

    Ao nos aproximarmos, entretanto, podemos ver mais detalhadamente queexistem letras e frases afixadas num de seus lados. Tentamos ler as palavras,mas ocorre uma pequena dificuldade: as letras esto viradas, foram escritasde cabea para baixo. Dobrando um pouco o pescoo podemos ler: Base domundo, base mgica n3 de Piero Manzoni, 1961, Homenagem a Galileu.A base f oi invert ida: sua parte supe rior es t a o co ntrr io, em contat o co ma terra.

    Assim como uma moldura, uma vitrine ou uma fita de demarcao ,uma base de escultura poderia ser definida como uma borda, como um artifcioque relaciona um espao interno e um espao externo, ou que produz uma

    Helio Fervenza LIMITES DA ARTE E DO MUNDO:APRESENTAES, INSCRIES,INDETERMINAES

    Helio Fervenza, Transposies do Deserto, 2003

    1 Sobre Manzoni, ver ocatlogo Piero Manzoni.Londres: SerpentineGallery, 1998.Informaes podem serobtidas tambm no site

    www.pieromanzoni.org.

    - Piero Manzoni, Base do

    Mundo (Base do mundo,

    base mgica n3 de Piero

    Manzoni, 1961,

    Homenagem Galileu),

    ferro e bronze, 82 x 100 x

    100 cm. Museu de

    Herning, Dinamarca.

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    (e no mesmo gesto, coloca tambm o modernismo de cabea para baixo).Podemos tambm considerar que o gesto de Manzoni, ao virar a posio dabase e utiliz-la como um indicador, enfatiza tambm um gesto deapresentao. Algo como: Vejam, isto arte. Vale aqui a meno tambm simportantes experincias do artista argentino Alberto Greco9 que, a partir de1962, tambm assinaria, indicaria com um gesto ou apresentaria pessoas nasruas como obras de arte.

    O crtico Guy Brett observa paradoxos e contradies em algumas

    propostas de transformao das categorias tradicionais de pintura e esculturaocorridas nos anos 1950 e 60 nas obras de artistas como Lucio Fontana, YvesKlein ou Piero Manzoni. Essas contradies ocorreriam no fato de que, se porum lado esses artistas negavam o objeto de arte e afirmavam a vida, por outro,exageravam o mito do artista como mestre e nico autor. Mas, talvez, diz GuyBrett, essa exagerao era ela mesma irnica10.

    Especificamente, pensamos que essa afirmao seria mais adequada sdiversas produes de Manzoni. Mas estes aspectos da autoria e da assi-natura de que nos fala o crtico seriam efetivamente sem conseqnciassobre o conjunto das prticas artsticas na contemporaneidade?

    A Base do Mundo abre ento a possibilidade para se pensar ouconceber que qualquer coisa ou qualquer um pode ser arte. Isso ocorre a par-tir do momento em que essa borda, representada pela base e por sua indicao,

    tem suas capacidades restritivas e demarcatrias absurdamente limitadas pelaenorme extenso e pelas hiperblicas implicaes daquilo que ela est indi-cando, e que finalmente a engloba. Ela se torna um objeto a mais entre tantosoutros com os quais se relaciona.

    Estar no mundo poder ser arte? Mas somente se quisermos? Nomomento em que quisermos?

    O lugar a partir do qual a Base do Mundo instaura essa possibilidade ainda o mesmo espao da arte delimitado pelo museu ou galeria, mesmo queeste seja um espao externo, no caso, o do jardim do Museu de Arte deHerning. Entretanto, o alcance da proposio de Manzoni, relacionandoo mundo todo e tudo o que a se encontra, faz com que esses limites vazemconstante e indefinidamente. A proposiovaza, transborda o espao do museu,deslocando-se para outras situaes no necessariamente artsticas ou no

    necessariamente dentro dos limites de concepes e de atuao dessa insti-tuio ou de seus modelos.Diante da imensido das possibilidades, essa base pode ser justamente

    o que sobra, l longe. Situada h milhares de quilmetros, possvel queapenas saibamos de sua existncia, pois pode ocorrer de nunca termos estadode fato diante dela. Sobra essa base, artifcio de indicao, instrumento demediao, j longe, j minscula, se comparada ao planeta. O que equivalea dizer que o que sobra pouca coisa, ou derrisrio, para a qual, mesmo distncia, poderemos sorrir ou gargalhar. O que, certamente, nodesagradaria a Manzoni.

    Fervenza

    separao entre espaos, aos quais seriam atribudos estatutos diferentes.Ao relacionar esses espaos nos diz o Grupo 2 em seu Tratado do signovisual , este signo, que a borda, no delimita nada de maneira rigorosa:ele indica, o que no quer dizer a mesma coisa3. Um artifcio de apresentaoe de indicao, o qual est ao mesmo tempo includo e excludo do espaoindicado, permitindo afirmar que uma base seria ao mesmo tempo umlimite e um lugar de passagem, ou ainda um instrumento de mediaoentre o espao interior, ocupado pelo enunciado, e o espao exterior4. Basese molduras funcionariam como indicadores, apontando e apresentando o queseria a obra e o que estaria fora dela, o que seria arte e no-arte. Sendo que umenunciado pode ser reconhecido l onde um conjunto de signos est separadodo mundo circundante por um feixe redundante de contornos, seja ou no estademarcao sublinhada por uma borda5.

    O aparecimento e o uso de artifcios, configurando uma funo deborda, no ficam restritos s molduras ou s bases para esculturas. Eles podemadquirir diferentes formas em consonncia com determinadas circunstncias:Como todo sistema semitico, o da borda varia ento no tempo e nasociedade6. Outros signos ento poderiam preencher essa funo: o halo deluz de uma lamparina, por exemplo, sobre uma pintura parietal. Dessa forma,segundo o momento histrico e a circunstncia pragmtica, um dado objetopode, por conseqncia, ter uma maior ou menor potncia indicial7.

    Entretanto, certas obras colocam o problema da ausncia ou do

    enfraquecimento de uma redundncia de contornos que as delimite de umamaneira inequvoca do mundo que as circunda. Nesse sentido, o Grupo analisa o Jardim de Stonypath do artista Ian Hamilton Finlay, onde se encon-tra, no meio de ervas, uma pedra gravada com o monograma de Albrecht Drer.Duas leituras seriam possveis, dizem-nos os autores. Uma delas seria consi-derar o enunciado como constitudo somente pela pedra, separada da erva,a qual configuraria apenas um fundo sobre o qual a outra se destaca. Essainterpretao guiar-se-ia por uma oposio entre natureza e cultura. A segundaleitura incluiria ambos os elementos, pedra gravada e grama, no mesmo enun-ciado. Este seria guiado no por uma oposio naturezaversus cultura, mas porum saber intertextual, dado pelo conhecimento da aquarela de Drer. Mas,perguntam-se os autores, existiria uma demarcao que isolaria do mundocircundante o enunciado pedra + erva?. Ao que eles respondem: A nica

    demarcao fornecida pelo enunciado de Drer, que ns sobrepomos ao deFinlay. Mas ela no revezada por nada. A redundncia falta e o conjuntodelimitado est fora de foco (flou): no h nenhuma razo imperiosa de reter aproduo com contornos totalizantes. , ento, todo o ambiente que conta-minado pelo enunciado de Finlay8.

    Ao inverter a posio do pedestal em Base do Mundo, Manzonicoloca o mundo inteiro sobre o pedestal e, num gesto simblico, transformatudo o que a est em arte. Ele se utiliza de uma conveno do mundo da artepara vir-la literalmente de cabea para baixo, instaurando o mundo como arte

    2 O Groupe (Centrode estudos poticos,

    Universidade de Lige,Blgica) formado por

    Francis Edeline,Jean-Marie Klinkenberg

    e Philippe Minguete desenvolve trabalhosinterdisciplinares em

    esttica, teoria da comu-nicao ling stica ouvisual e semitica.

    3. GROUPE . Traitdu signe visuel

    Pour une rhtoriquede limage. Paris:

    Seuil, 1992, p. 380.

    4. Idem, p. 381.

    5. Idem, p. 384.

    6. Idem, p. 381.

    7. Idem, ibidem.

    8. Idem, p. 385.

    9. Para um melhorconhecimento dotrabalho de AlbertoGRECO, ver seusescritos: Arte latino-

    americana: Manifestos,documentos e textos depoca / I Bienal do

    Mercosul. ContinenteSul Sur.n. 6. Porto

    Alegre: InstitutoEstadual do Livro,1997, p. 259;In: CIPPOLINI, Rafael(Org.). Manifiestosargentinos Polticasde lo visual 1990-2000. Buenos Aires:

    Adriana HidalgoEditora SA, 2003,

    p. 300, 308, 317, 322.

    10. BRETT, Guy . Lifestrategies: overview andselection / Buenos Aires London Rio deJaneiro Santiago deChile, 1960-1980. In:SCHIMMEL, Paul(Org.). Out of actions:between performanceand the object, 1949 -1979. Londres: Thamesand Hudson, 1998,

    p. 201.

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    a esse mbito. Temos, ento, relacionados no somente aspectos formais oumateriais, mas aspectos sociais, culturais e histricos. Esses dois artistas desen-volveram de uma fo rma peculiar uma p roblemtica que tambm f oi abordadade outras maneiras por outros artistas em distintos perodos, como Malevich,Tatlin, Duchamp, Lygia Clark, Hlio Oiticica, Allan Kaprow, MarcelBroodthaers, Fluxus, e a lista bastante extensa.

    Entretanto, podemos nos perguntar sobre a situao atual da artecontempornea. Ser que as produes artsticas encontram-se efetivamentemais permeveis em suas prticas, numa atuao de fato mais expandida emoutras reas, e no unicamente nos limites dos circuitos que reconhecidamenteconstituem o campo artstico e seu sistema?

    Conforme os estudos da pesquisadora e escritora Anne Cauquelin, emseu livro Arte Contempornea: uma introduo, isso no estaria ocorrendo.Apesar do cresciment o da produo ter si do multipl icado do ponto de vista desua recepo, constatar-se-ia um grande distanciamento com o pblico, ouseja, com os cidados comuns. Essa acelerao da produo teria sido provo-cada pelos efeitos da comunicao e das redes no sistema e no mercado da arte,onde se incluem, numa lista no-exaustiva, artistas, colecionadores, curadores,galerias, museus, centros culturais, encomendas pblicas. Mas esses efeitos,por sua vez, incluiriam outros, entre os quais o de bloqueio. Este seria definidocomo uma circularidade total do dispositivo: vem-se expostas vista do pbli-cono tanto obras singulares, produzidas por autores, mas uma imagem da rede

    propriamente dita15.A autora afirma em seu estudo que os esquemas utilizados nocorrespondem de uma forma literal ao que ocorre na arte contempornea. Elesserviriam para melhor descrever as alteraes ocorridas no campo da atividadeartstica nos ltimos vinte anos. Embora seu estudo se limite a uma situaoeuropia e americana, possvel detectarmos caractersticas similares em partesignificativa dos circuitos artsticos no Brasil.

    Gostaria de falar agora de algumas produes artsticas desenvolvidaspor mim, onde a problemtica instala-se tambm numa relao de limites entrearte e no-arte, ou entre arte e mundo, tanto no que diz respeito s possveisdisciplinas relacionadas como aos espaos de atuao, de inscrio e circulaodessas propostas.

    Esclareo que algumas dessas preocupaes j se manifestavam ante-riormente em meus trabalhos, como, por exemplo, nas diferentes atividades,

    viagens, dilogos, processos de c riao, textos, correspondncias e ex posiesque constituram Ilimites, um projeto ocorrido entre 1996 e 1997, concebidoconjuntamente por mim, por Maria Ivone dos Santos e pelo artista uruguaioFelipe Secco.

    Ilimites comeou a tomar forma num encontro realizado em dezem-bro de 1996, na fronteira entre Brasil e Uruguai (Sant'Ana do Livramento /Rivera), mais precisamente a uns vinte quilmetros do permetro urbano, noCerro do Chapu, em pleno campo. Esse encontro foi decisivo, sob muitosaspectos, pois foi a partir dessa experincia que surgiu essa noo de ilimites ,a qual impulsionou nossas produes e as diferentes atividades no projeto.

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    O filsofo Ludwig Wittgenstein escreveu: Que o mundo seja meuprp rio mundo, eis o que se mostra no fato que os limites da linguagem(da nica linguagem que eu compreenda) signifiquem os limites de meuprprio mundo11.

    At que po nto, ento , os limites da a rte no seriam de fato aquilo queno arte, ou seja, o mundo, mas os limites das linguagens e das convenesdomundo da arte?

    A Base do Mundo, como j vimos, coloca abertamente o problemados limites: onde comea e onde termina a obra? O que faz parte dela e o queno faz? Qual o tamanho de uma obra de arte, ou de uma proposio em arte,ou de um gesto em arte? Qual o alcance e a rea de atuao de uma produoartstica? Com o que a arte se relaciona e como ela se relaciona? O que arteafinal, e o que no , e quem o artista e o que ele faz?

    O artista Daniel Buren, por outro lado, num de seus escritos de1970 intitulado Limites crticos12, realiza uma anlise de diferentesprticas, denominaes ou correntes artsticas, tais como, por exemplo,a pintu ra, o objeto, a escultura, o ambiente, aArte Povera, a arte tecnolgica,a Land Art, o Readymade, em relao s posies e aos lugares a partir dos quaiselas adquirem visibilidade.

    Buren constri esquemas e demonstraes de como essas produesmascarariam seus suportes, seus limites e seus contextos. Seria como um jogode limites sucessivos, onde a sada de um deles pode revelar o prximo, mas que

    na maior parte das vezes so deliberadamente ignorados ou encobertos. Aquiloque em certas circunstncias da histria da arte no sculo XX tentou-se elimi-nar, como o quadro ou sua moldura, encontra-se logo depois dentro de umamoldura maior. Essa moldura maior seria a do museu ou da galeria. As produ-es da decorrentes s adquiririam sentido, e sobretudo o artstico, a partir doponto de vista, das concepes e da ideologia do Museu ou da Galeria ou detodo e qualquer lugar artstico definido, visto que eles compartilhariam ummesmo sistema. O Museu/Galeria, nos diz Buren, torna-se o revelador comuma toda forma de arte13. Essa moldura seria delimitada por uma outra, a qualconstituiria um limite ltimo. Este seria o dos Limites Culturais ou doConhecimento, definidos de uma forma geral pela poca e de uma forma maisparticular pelas mdias, como a tev, as revistas, os jornais. Assim, o LimiteCultural surge como o limite mais estrito e que permanece at esse momentocomo o mais camuflado14.

    Para Buren, a histria da arte, compreendida como a histria de suasformas, seria a histria dos sucessivos encobrimentos, da mesma maneira comouma tela de pintura encobre seu avesso, aquilo que a sustenta. A histria daarte, ento, seria a histria do lado frontal das obras. A histria dos avessos,e da produo das condies de possibilidade de existncia dessa frente dasobras, ainda estaria por ser escrita.

    Manzoni e Buren, com suas contribuies, exemplificariam, atravs deabordagens diferenciadas, sucessivas rediscusses dos limites entre umaproduo artstica e aquilo que num primeiro momento pareceria no pertencer

    11. WITTGENSTEIN,Ludwig. Tractatus

    logico-philosophicus.Paris: Gallimard,

    1989, p. 86.

    12. DUARTE, PauloSergio (Org.). Daniel

    Buren: textos e entre-vistas escolhidos (1967-

    2000). Rio de Janeiro:Centro de Arte

    Hlio Oiticica, 2001,p. 63, 79.

    13. Idem, p. 70.

    14. Idem, p. 77.

    15. CAUQUELIN, Anne.Arte contempornea:uma introduo.So Paulo: MartinsFontes, 2005, p. 74.

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    Desertos me interessam no apenas porque so grandes espaosrelativamente vazios, mas por serem espaos de grande adversidade. Vivemosnum espao de adversidades, em que so produzidos vazios a todo instante.Vazios econmicos, por exemplo. Mas tambm vazios produz idos por excessos,como o vazio provocado pela acumulao de imagens.

    Os cartes no so o trabalho, a obra. Os cartes so uma proposio.Algo pode ocorrer no momento de sua entrega, ou mesmo aps: dilogos,observaes, idias, reaes, outras iniciativas... Isso o trabalho. Eles apre-

    sentam uma situao. No h nada conclusivo ali. No h uma viso a ser dada.Os cartes podem ser aquilo que encaminha, que prepara para a arte.O trabalho pode no ocorrer. Isso tambm est implcito. H uma

    fronteira instvel na possibilidade da apario da arte. Ela pode no ocorrer.Ou, se ela ocorre, quando ela ocorre?

    O ltimo trabalho sobre o qual gostaria de deter-me chama-seTransposies do Deserto. Ele ocorreu em 2003 dentro das atividadesdo Projeto Areal17, e foi realizado mais uma vez na fronteira entre Brasile Uruguai, isto , na fronteira que separa as cidades de Sant'Ana do Livramentoe Rivera. A partir do convite de Celina Albornoz, santanense e incentivadorado Areal, para lanarmos as publicaes do projeto, foi-me oferecida tambma possibilidade de realizar alguma atividade relacionada ao que vinha desenvol-vendo ness e mbito.

    Como eu nasci e vivi durante anos nessa fronteira, tendo a realizadooutras experincias e no querendo produzir mais um objeto, imagem oumonumento relacionado singularidade desse lugar, interessaram-me mais aspossibilidades existentes nas relaes entre os moradores de ambos os lados,suas caractersticas e culturas. Fiz uma proposio, ento, de que ocorresseuma troca entre escolas situadas de um lado e outro da fronteira. Durantealguns meses, de uma forma muito simples, estabeleceram-se conversas,consultas e contatos com escolas e professores. medida que as pessoasaceitaram a proposta inicial e envolveram-se no projeto, este foi sendo elabora-do e modificado. Ele consistiu, finalmente, na realizao de uma troca deprofessoras entre uma escola situada do lado brasileiro e uma escola situadano lado uruguaio. Durante um mesmo perodo, e simultaneamente, estasproferiram em suas lnguas respectivas uma aula de geografia sobre desertos.

    As aulas oco rreram ent re 9h e 10h do dia 21 de novembro de 2003, uma sexta-feira. Elas foram realizadas na Escola Rivadvia Corra, em SantAna doLivramento, pela Professora Beatriz Tarocco, e no Colegio Rod, em Rivera,pela Professora Carmozina.

    Por conseguinte, vrias trocas ento ocorreram, tanto simblicasquanto culturais e sociais: troca entre pases, entre lnguas, ou seja,espanhol e portugus, troca entre uma escola da rede pblica e uma escolaprivada. Mas tambm ocorreram trocas entre diferentes abordagens de ummesmo assunto, o deserto, o qual foi desenvolvido pelas duas professoras sobvrios ngulos, como, por exemplo, o de sua constituio fsica, o de sua

    Fervenza88

    Durante essa caminhada, nosso olhar se deteve prolongadamentesobre a geografia existente de um lado e de outro da fronteira, a qual muitosimilar em ambos os lados. Por vezes, no meio do campo, a demarcao dafronteira no era visvel e ocorriam momentos de grande indefinio. Assim,vagvamos algum tempo sem saber nossa posio em relao a esses limites.Ocorria ento que quando encontrvamos alguma referncia a essa fronteira,o tempo havia passado, as idias no eram as mesmas, as linguagens semisturavam e as conversas iam longe. Subjetivamente j no ramos os mesmose a fronteira no tinha o mesmo sentido. A essa situao de indefinio que nosinterrogava, ns chamamos ilimites.

    Mais recentemente, alguns aspectos e noes sintetizam o andamentoe o estado atual de meu trabalho e de minha pesquisa.

    A noo de vazio, por exemplo, tem sido fundamental em meustrabalhos. Nesse sentido, importante lembrarmos uma expresso do tericofrancs Franois Cheng, a qual especifica que em tudo, o Cheio faz o visvelda estrutura, mas o Vazio estrutura o uso 16. Essa constatao levou-nos aoestudo - sobretudo a partir das produes artsticas pessoais - das diferentescaractersticas, qualidades e possibilidades de uso do vazi o. O que ampliae redimensiona no campo experimental a constatao de Cheng. Como o vazioem relao forma seria uma espcie de contraforma (na falta de termo maisapropriado), interessou-me de uma maneira reiterada no tanto o que o vazio,mas quando ele ocorre. Assim, seu uso em minhas produes artsticas acen-

    tuou ou inter-relacionou-se poeticamente com a noo de intervalo, ou seja,com o modo como so inscritas ou pontuadas interrupes numa certacontinuidade. Criaram-se, ento, situaes com diferentes sentidos,diferentes manifestaes desse vazio, diferentes relaes com a subjetivi-dade e o imaginrio. No poderamos falar de um nico vazio, mas de mltiplasmanifestaes deste.

    A noo de vazio adquiriu fora e desdobramentos imprevisvei s emminha reflexo e em minha prtica quando relacionada ao deserto. Assim, esteaparece, por exemplo, numa proposta desenvolvida por mim desde 2001, intitu-lada Apresentaes do Deserto, que problematiza tambm a apresentaopropriamente dita, a partir da constatao da separao entre a noo deexposio e a noo de apresentao.

    Apresentaes do Deserto consiste, inicialmente, na confeco de

    um conjunto de quatro cartes pessoais de apresentao. Um deles contmmeu nome, endereo e um logotipo. Nos outros trs, o nome pessoaldesaparece e o endereo substitudo pelo nome de um deserto: Atacama, Gobie Kalahari. Os cartes so distribudos dois de cada vez, um com o nomee endereo e o outro com o nome de deserto, ao acaso dos encontros.

    Com a entrega do carto, espaos podem ser configurados: o espao darelao interpessoal, social, profissional e o espao do imaginrio ligado aonome/evocao dos desertos. Mas tambm um espao que surge da inter-relao entre as pessoas no deslocamento de lugar do nome do deserto e dasituao corriqueira do carto de apresentao.

    16 CHENG, Franois.Vide et Plein Le

    langage picturalchinois. Paris:

    Seuil, 1988, p. 30.

    Helio Fervenza,

    Apresentaes do

    Deserto, aes com

    cartes de apresentao,

    2001-06.

    17. Projeto Areal,coordenao de MariaHelena Bernardese Andr Severo.

    Helio Fervenza, Proposta

    Transposies do Deserto,

    para desenvolvimento e

    realizao coletiva entre

    duas escolas na fronteira

    Brasil - Uruguai. Foto:

    Aula Colegio Rod,

    Rivera, Uruguai, 2003.

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    formao, da geografia humana, das questes ecolgicas. Outras trocas por suavez deram-se entre os estudantes, que contribur am com sua pa rticipao, suasperguntas, sua curiosidade, suas opinies.

    A escolha das escolas d eu-se voluntariam ente pelos participantes, quedecidiram tambm qual seria o nvel das turmas envolvidas, no caso umaoitava srie e seu equivalente no outro lado da fronteira, bem como o con-tedo e a maneira de apresentar esse assunto em aula, o qual, de fato, no eraum assunto pertencente ao currculo.

    Ao longo de toda a durao desse processo, que culminou com asaulas, foi muito importante a forma como ele foi vivenciado pelos participantes.Aps a proposta inicia l l anada, o envolvimento das pe ssoas fez com que elese desenvolvesse a partir das decises e das contribuies dos que o acolhe-ram. como se esse processo tivesse adquirido vida prpria atravs de todos.Nesse sentido, a realizao das aulas criou uma situao onde tudo era pbli-co, e ao mesmo tempo no havia pblico. Por outro lado, ningum individual-mente, entre os envolvidos, tinha um controle, conhecimento ou uma viso doconjunto das atividades, nem mesmo eu. Assisti parcialmente s duas aulas,dado que elas ocorreram simultaneamente. Quando viajei para acompanhar suarealizao, o projeto estava de tal forma encaminhado que no dependia maisde mim ou de minha vontade. Ele ocorreria de qualquer maneira.

    Ao chegar s e scolas, as diretoras perguntavam quem era eu e o que

    de fato fazia, se era um gegrafo, pesquisador ou pedagogo. Expliquei-lhes queera um artista, e que participava de um projeto cujo interesse era inscrever-seem situaes ou desenvolver atividades em lugares no destinados s apresen-taes artsticas, quer dizer, fora dos circuitos artsticos. Elas prontamenteaceitaram minhas explicaes. Mas o perturbador para mim foi a perceposimultnea de que se, por um lado, o projeto havia criado vida prpria e ele nodependia mais de mim, por outro, ao enunciar minha condio de artista, e erapreciso faz-lo, a posio a partir da qual isso era enunciado tornava-se aomesmo tempo vazia. Ela no correspondia mais a uma imagem nem a umafuno dada do artista. Era preciso ento produzir outras.

    Durante as aulas no foram feitas filmagens e no se efetivou umaexposio. As poucas fotografias existentes so muito fragmentrias e poucoeloqentes. Elas no do conta da experincia realizada, a qual no foi pensada

    numa continuidade pela imagem, mas como algo que viveu, cresceu, encontrouseu limite e se extinguiu em si mesmo.

    Helio Fervenza artista plstico, concluiu doutorado em Artes Plsticas na Universit de Paris I,Panthon-Sorbonne, em 1995. professor no Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais do Institutode Artes da UFRGS e pesquisador do CNPq. Coordena o grupo de pesquisa Veculos da Arte. mem-bro da ANPAP.

    Dossi Muntadas,breve na ARS