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    LNGUA EM

    PERFORMANCE

    Nayara Macedo Barbosa de Brito1

    RESUMO: Diante de dramaturgias que apresentamtraos performativos predominantes sobre os repre-sentacionais; que dramatizam a lngua, tematizando-acomo um con ito, um processo dialtico no interiorda estrutura dramatrgica; que apostam na lacuna queuma mesma palavra enunciada abre entre sua presenasensorial-material e a funo mimtica dos signos a queela refere, compreendemos necessria a anlise crticasobre essa espcie de potica performativa do verbo,que acontece, em diferentes medidas, no conjunto daobra dramatrgica de autores como Roberto Alvim, nocaso do Brasil, Heiner Mller, exemplar da tradio deescrita teatral da ps-modernidade e Gertrude Stein e Valre Novarina em suas manipulaes da lngua. so-bre o trabalho deste ltimo e suas aproximaes como projeto dramatrgico de Alvim que nos deteremosaqui, fundamentando a compreenso de sua escrita apartir da crtica de Angela Materno (2009) e de Stephan

    Baumgrtel (2010; 2012).PALAVRAS-CHAVE: Dramaturgia performativa;Lngua; Valre Novarina; Roberto Alvim.

    1 Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Artes Cni-cas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) -Linha de Pesquisa: Linguagem, recepo e conhecimento em Artes Cnicas. Bolsista da Coordenao de Aperfeioamentode Pessoal de Nvel Superior (CAPES), desenvolve pesquisaem torno da Dramaturgia Brasileira Contempornea. Bacha-rel em Comunicao Social - Habilitao em Jornalismo pelaUniversidade Estadual da Paraba (UEPB).

    ABSTRACT: About dramaturgies which have predo-minant performative traits over the representationalones; dramaturgies that dramatize the language, the-matising it as a con ict, a dialectical process within thedramaturgical structure; betting on the same gap that a word enunciated opens between its sensorial presenceand materiality and its mimetic function of the signs; we propose a critical analysis of this kind of "verbsperformative poetic", that we nd in varying degre-es throughout the dramaturgical work of authors likeRoberto Alvim, in Brazil, Heiner Mller, exemplary ofthe theatrical postmodern writing tradition, and Ger-trude Stein and Valre Novarina in their manipulationsof language. It's about the work of Novarina and hisapproaches to the Alvims dramaturgical project that we will focus in this article, basing our understandingof their writing from the criticism of Angela Materno(2009) and Stephan Baumgrtel (2010, 2012).

    KEYWORDS: Performative dramaturgy; Language; Valre Novarina; Roberto Alvim.

    Teatro se escreve com os ouvidos. A frase tal- vez possa ser entendida como a sntese do que odramaturgo, escritor e pintor francs Valre Nova-rina toma como princpio para a elaborao e cons-truo de seus textos, sejam ou no destinados, apriori, cena.

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    Mas o que isso quer dizer? Ora, bem sabemosque o propsito de toda dramaturgia ser com-pletada no palco, ela que deve ser lacunar, para fa-lar em termos contemporneos colaborando em

    p de igualdade, como ps-modernamente se quer,com os demais elementos da cena para a constru-o da totalidade do espetculo. E essa dramaturgiaquando sobe a palco (vamos atentar para o bvio),ela apreendida por um determinado sentido: sualeitura, ns a fazemos pelos ouvidos, a partir daspalavras articuladas e lanadas pela boca dos atores(salvo nos casos em que a narrativa verbal tambmse apresenta por outros mecanismos tcnicos, comoletreiros e projees). Um texto assim pensado exi-

    ge um tratamento todo diferenciado da linguagem.Da a preocupao com a qualidade sonora daspalavras, utilizadas muito particularmente nas obrasde autores como Novarina, Gertrude Stein, HeinerMller e um caso brasileiro, Roberto Alvim. Nostextos desses autores, cada palavra em si e todas elasesto arranjadas em sequncias onde, no mais das vezes, no prevalece a lgica causal de um encade-amento que permite ao leitor/ouvinte/espectadorapreender facilmente o sentido daquilo que estsendo enunciado. A forma como eles organizam asestruturas lingusticas de cada frase provoca experi-ncias estticas outras que atuam antes na perceposensvel do receptor que no seu raciocnio lgico.

    Veja-se, por exemplo, o caso deVous qui habitezle temps , de Valre Novarina, que assim inicia:

    LE VEILLEUR Mais silence, le voici.

    LA FEMME AUX CHIFFRESL'extrieur est l'extrieur de l'extrieur.L'intrieur n'est l'extrieur de rien. L'intrieurest l'extrieur de l'intrieur. L'extrieur n'estpas l'extrieur de lui. L'intrieur n'est pas l'intrieur de l'extrieur. L'intrieur n'est pas l'extrieur de l'extrieur. L'intrieur n'est pas l'intrieur de rien. L'intrieur est l'intrieur delui. L'extrieur n'est pas l'intrieur de rien. [...](NOVARINA, 2013, p. 3)

    O autor mantm esse jogo pelas 22 linhas se-guintes. A repetio das expresses lextrieur elintrieur dentro de estruturas frasais muito se-melhantes e com basicamente a mesma extenso

    tem como consequncia, pouco tempo depois deiniciada a leitura/audio, o alheamento do recep-tor ao sentido daquilo que est sendo dito (umare exo sobre o que o interior e o exterior de

    alguma coisa, relativamente ao ponto de vista dointerior e do exterior dessa mesma coisa) em favorda apreenso sensvel do ritmo, da cadncia e dosom que as palavras pronunciadas produzem.

    Novarina apresenta, em sua escrita, o impulsoesttico de afastamento da mimesis clssica parao qual Baumgrtel (2010) chama ateno, valendo-se da materialidade do signi cante verbal ritmo,prosdia, musicalidade, sonoridade, etc. para co-loc-lo em evidncia em relao a um signi cado

    possvel e reconhecvel, que s ser pensado nummomento posterior por cada espectador. Para tan-to, a experincia emprica de cada um e o carterccional do jogo cnico, considerados em conjun-to, vo propriciar leituras variadas dos signi cantesapresentados (assim, o exterior e o interior do Vous qui... podem ser atribudos a elementos/situ-aes completamente distintos, a depender da ex-perincia e da compreenso de cada espectador).

    Para alm da abertura diversidade e pluralidadede interpretaes/signi caes possveis, o enfo-que na materialidade do discurso permite a tomadade conscincia de uma srie de regras espec casque regulam a fala e a escuta daqueles que parti-cipam deste encontro cnico. (BAUMGRTEL,2010, p. 113)2, e aponta para a performatividadecontida no prprio discurso, independentementeda ao performativa de seu sujeito enunciador.

    2 Para Baumgrtel (2010), o enfoque na materialidade do signi-cante, ao contrrio do que colocamos aqui, no abriria o dis-curso possibilidade de mltiplas interpretaes, sendo sua con-sequncia maior a induo tomada de conscincia, por partedo espectador, do jogo discursivo que se instaura no encontrocnico-teatral, em que prevalece a relao extra- ccional (palco-plateia) sobre a intra- ccional. Segundo o autor, a consideraoda recepo como um espao ativo de criao de signi cadosseria, antes e ainda, responsabilidade da produo do espetculo,na medida em que esta deve(ria) problematizar, atravs de ar-ranjos cnicos espec cos, a construo do olhar do espectadorpara ele prrprio. Contudo, tomando em conta as teorias ps-modernas do teatro (Cf.: CONNOR, 2000), optamos por con-siderar o lugar da recepo como, sim, de produo de signi ca-dos diversos para os mesmos corpos signi cantes apresentadosem cena.

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    Em O teatro dos ouvidos , Novarina diz: A lnguano teu instrumento, teu utenslio, mas tua ma-tria (2011, p. 39). Ou seja, o uso da lngua nessetipo de dramaturgia, a que aqui estamos chaman-

    do performativa, no se d mais como um veculoatravs do qual se constri uma narrativa de conte-do fabular a ser encenado. A lngua, neste caso, o prprio contedo, o prprio assunto que se pro-blematiza no interior do drama3.

    Em sua anlise da pea Insulto ao pblico, dePeter Handke, Angela Materno diz que o autor bus-ca uma fala sem imagens, sem contedo narrativoe sem signi caes ou interpretaes possveis(2009, p. 129), e segue o artigo tecendo considera-

    es sobre a relao palavra-voz-imagem tambmem Beckett e Novarina. A certa altura, a rma quea pea de Handke problematiza a imagem cnica(negada o tempo inteiro pelas falas dos atores) namedida em que ela dramatizada, isto , trabalhadacomo um con ito no interior do drama, em queno h personagens, apenas um discurso correntesobre teatro. Sobre a dramaturgia de Novarina (eum pouco tambm no trabalho dos demais autoresque mencionamos) poderamos dizer que, de ma-neira anloga utilizada por Handke em Insulto aopblico com relao s imagens, que ela dramatizaa lngua enquanto forma e contedo em processodialtico.

    Enquanto forma, pelo trabalho desviante queopera sobre a morfologia e a sintaxe das palavras (ocrespusvirginamento, as lnguas mexidina, lati-nesa, pntica, trudela, lecorna, etc. (2011, p.27 e31); os amnimais, os omnimais (NOVARINA,2009, p. 30 apud BAUMGRTEL, 2010, p. 116)).Ou ainda a sinestesia evocada em diversas passa-

    gens, como aquela com que iniciamos este artigo,da a rmao de que a escrita para teatro se faz pelaaudio: em O teatro dos ouvidos, Novarina diz:Escrevo com os ouvidos. Escrevo pelo avesso.Ouo tudo. (2011, p. 28).

    Alis, essa sinestesia radicaliza-se numa espciede simbiose quando ele coloca como sujeito de sualngua (um algum que est tambm sujeito ln-

    3 Drama, aqui, entendido enquanto gnero de escrita parateatro, no necessariamente cerrado na forma dramtica deorganizao textual, mais associada ao drama burgus do s-culo XVIII.

    gua, em trocadilho de Baumgrtel (2010)) um sersemi-humano, cujos rgos dos sentidos esto or-ganizados de maneira no natural e cujas palavras,sugere, fazem parte, materialmente, de seu corpo.

    Um corpo vazado, por onde palavras e pensamen-tos saem e entram a cada respirao, fazendo tro-cas com o mundo. Um corpo pneumtico, comopneumtica deve ser a leitura de seus textos4. Fala epensamento que abrem passagem.

    Enquanto contedo, dramatiza-se a lngua pelanegao contnua da linguagem, considerada umequvoco da natureza, responsvel pela separaodo homem dos outros seres. Para reverter esta si-tuao, uma nova espcie de homem, amputado,

    deveria vir tona:Se tudo tivesse sido normal, se a evoluo tives-se seguido seu curso, desde o peixe sem brao[...] o homem no deveria nunca ter falado, a lin-guagem nunca deveria lhe ter sido dada. [...] eleteria desaparecido. Mas ele recebeu a lngua poracidente fatal. Foi ela que o separou. Os que vonos suceder no sero mutantes e sim mudos.

    [...]

    Reproduzir o outro espao, o espao dentro doqual o homem dever viver e morrer amanh,quando ele se chamar hm, com circun exo esem e, e que ele s ter um m porque ele ter ums brao, um p sozinho, um olho nico. (NO- VARINA, 2011, p. 29 e 32. Grifos do autor)

    (Con)fuso de matria humana e de lngua, am-puta-se o outro m da palavra homem por amputartudo o mais que haveria em dobro, como em ex-

    cesso, na anatomia humana: um dos braos, umadas pernas, um dos olhos, talvez tambm um dosouvidos. E, para a nova espcie eregida, novas pala- vras que a designem. A primeira delas, o econmi-co hm, em substituio ao homem de outrora.

    4 Escrevo com os ouvidos. Para atores pneumticos (...)Respirem, pulmoneiem! Pulmonear no deslocar o ar, gri-tar, in ar, mas, pelo contrrio, conseguir uma verdadeira eco-nomia respiratria (...) ir at o m do flego, at a constrioda as xia nal do ponto, do ponto da frase, da pontada delado depois de correr. (NOVARINA, 2005, p. 7 apud MA- TERNO, 2009, p. 121).

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    Mais de meio sculo antes, Gertrude Stein, es-critora e poeta americana que atuou na Frana amaior parte de sua vida, j elaborava um trabalhode radical desconstruo da ordem da linguagem.

    Suas peas, conhecidas como peas-paisagem,trazem em si uma relao espacial cuja extenso inde nida, e um decurso temporal que, conse-quentemente, tambm no determinado crono-logicamente. Essa ocupao outra das dimensestempo-espao deslocam a ateno dos signi cadospossveis para a materialidade dos signi cantes verbais, das palavras, que dividem materialmente oespao cnico com outros elementos como a luz,o cenrio e os corpos dos atores. Suas peas vo

    projetar certas paisagens sonoras na mente doespectador, paisagens essas que so distintas da-quelas utilizadas por Stanislavski, por exemplo, nassuas montagens de textos de Tchkhov, quandocolocava o som de grilos, pssaros, vento, etc., nointuito de tornar o ambiente criado em cena aindamais realista. Em Stein e nos outros autores queelaboram essa dramaturgia performativa, comoaqui estamos chamando, o que se evoca, o que seprojeta, o que se estimula so outras sensaes.

    Em vez de representao [...] uma disposiode sons, palavras, frases e ressonncias conduzi-da pela composio cnica e por uma dramatur-gia visual que pouco se pautam no sentido. [...] A ideia de uma exposio de linguagem pareceparadoxal. Contudo, pelo menos desde os textosteatrais de Gertrude Stein tem-se o exemplo decomo a linguagem perde o direcionamento tele-olgico e a temporalidade imanentes e pode serequiparada a um objeto em exposio por meiode tcnicas de variao repetitiva, de desagrega-

    o de conexes semnticas imediatamente evi-dentes, de arranjos formais segundo princpiossintticos ou musicais (similitude sonora, alitera-o, analogias rtmicas). (LEHMANN, 2007, p.249 grifo do autor)

    Numa das obras mais conhecidas dela, o poemaIf I told him a complete portrait of Picasso, de 1924,cujo udio da prpria autora lendo-o encontra-sedisponvel online5, percebemos claramente a sua

    5 Acessvel no link: http://www.youtube.com/ watch?v=FJEIAGULmPQ. ltimo acesso: 07/12/2013. Su-

    proposta de atrair os ouvidos para a materialidadedas palavras utilizadas, assim como seu trabalho deconstruo de uma musicalidade, um ritmo, uma ca-dncia imposta pela organizao do texto. Vejamos:

    Shutters shut and open so do queens. Shuttersshut and

    shutters and soshutters shut and shutters and so and so shut-

    ters and soshutters shut andso shutters shut and shutters and so. And so

    shutters shut and so and also. And also and so and so and also.

    [] The land. Three The land. TwoI land. TwoI land.OneI land. TwoI land. As a so. They cannot. A note. They cannot. A oat. They cannot. They dote. They cannot. They as denote.

    (STEIN, 2013)Indo um pouco mais para o mbito da cena,

    lembramos as montagens de Bob Wilson sobre ostextos de Heiner Mller, cuja combinao texto-cena se articula, nas palavras do encenador, comoa juno de cinema mudo e pea radiofnica, o quepotencializaria a capacidade imaginativa do espec-tador (Lehmann, 2007, p. 255). Pois, enquanto que

    gerimos esta audio para uma melhor compreenso do queestamos tratando aqui.

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    no cinema mudo produzimos, imaginariamente,toda a sonoridade que se faz ausente na pelcula ao vermos o movimento da boca dos atores, a expres-so de seus rostos e o ambiente em que esto in-

    seridos; na pea radiofnica imaginamos cenrios,rostos e corpos para vozes e rudos que no ostem. Ou seja, do mesmo modo que temos umadramaturgia da cena, temos uma paisagem sonora:paradoxalmente, a cena guia a narrativa enquanto asonoridade constri uma paisagem.

    preciso destacar que esse trabalho desviantesobre a lngua no se limita a um experimentalis-mo de linguagem em sua busca por novas formasestticas. Mais que isso, ele objetiva ensejar novas

    possibilidades de pensar e de estar no mundo, as-sumindo um posicionamento poltico. J que, noentendimento ldico de Novarina,

    [A lngua ] a prpria matria da qual voc fei-to; os tratamentos aos quais voc a submete, a voc mesmo que voc in ige, e mudando a tualngua, voc mesmo que voc muda. Pois voc feito de palavras. No de nervos e de sangue. Voc foi feito pela lngua, com a lngua. (NOVA-RINA, 2011, p. 39-40),

    Relao j demonstrada acima, mas que subordi-na o homem lngua, e no o contrrio. A lngua quem primeiro deve ser modi cada para, por conse-quncia, vermos modi cado o homem a ela sujeito.Entendemos que o que se est colocando atravsdessa metfora que o homem enquanto corpo esubjetividade construdo no somente por seus r-gos vitais, biologicamente falando imprescindveispara o funcionamento do organismo; este homem construdo tambm socialmente, sua subjetividade construda socialmente e o que regula as relaessociais , justamente, a linguagem. ela quem orga-niza e determina o funcionamento dessas relaese a consequente construo das subjetividades dosindivduos que so parte desse jogo.

    Apostando no erro ortogr co-gramaticalque esses desvios fazem ver nos textos em ques-to, segundo Baumgrtel (2010, p. 122) o que oNovarina enseja , ainda no sentido do raciocniodisposto acima, mostrar como possvel utilizar alngua de acordo com interesses outros que no osdaqueles que ditam as regras (no falar mais uma

    lngua que dita, que nos foi ditada. (NOVARINA,2011, p. 19-20)), e que representam o poder socialhegemnico.

    Nesse sentido, o trabalho de Novarina se apro-

    xima do projeto dramatrgico que Roberto Alvim vem desenvolvendo no Brasil, mais especialmenteno contexto de So Paulo-Curitiba. Assim como odramaturgo francs, a quem toma como uma entretantas referncias artsticas, Alvim busca encontrare promover, atravs de arquiteturas lingusticas inu-suais, como ele mesmo coloca, novas formas deestar no mundo. O autor parte do pressuposto deque a novas vises de mundo devem associar-se,inevitavelmente, novas tcnicas emodus operandi ar-

    tsticos de representao6

    , e a partir desse entendi-mento cria as bases de seu trabalho. A Club Noir, companhia que fundou junto com

    a atriz Juliana Galdino e que dirige em So Paulodesde 2006, caracteriza-se principalmente pela vi-sualidade de suas encenaes, uma potica cnicaque se aproxima de um estilo conhecido como es-ttica da penumbra opo que faz aproximaocom as artes visuais. Alvim coloca no palco umaescurido que se sustenta basicamente pelo poderda palavra vocalizada.

    A pouca iluminao a que o prprio nome dacompanhia j faz referncia desloca o foco da aten-o do espectador do visual, do imagtico, a que acultura contempornea est mais habituada, paraa dimenso sonora do evento teatral. Os atoresatuam praticamente imveis, com um mnimo degesticulao, e todo o seu trabalho se volta paraa voz, para a entonao das palavras, construindouma verdadeira partitura vocal, com a inteno derevelar no o sentido das frases, mas a melopeia de

    como esse texto dito em cena. Assim como na dana, no ritmo dos gestos ou nadisposio das cores, tambm na voz, no timbree na vocalizao se articula uma negatividade nosentido de uma rejeio do imperativo lgico-lingustico de identidade, a qual constitutiva dodiscurso potico dos modernos. [...] Nesse sen-tido, pode-se dizer que o teatro se torna chora-

    gra a : desconstruo do discurso centrado no

    6 Representao aqui no necessariamente no sentido mim-tico, mas como traduo do homem contemporneo.

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    sentido e inveno de um espao que se subtrai lei dotlos e da unidade. Por isso, o status dotexto no novo teatro deve ser descrito com osconceitos de desconstruo e polilogia. Assimcomo todos os elementos do teatro, a linguagempassa por uma dessemantizao. O que se visano o dilogo, mas a multiplicidade de vozes,pollogo. (LEHMANN, 2007, p. 247)

    Como caracterstico da arte ps-moderna a

    tentativa de abdicar de uma signi cao fechada ede nida previamente pelos criadores, como h a in-teno em dar abertura interpretao dos signi-cantes colocados em cena, essa maneira outra de sedizer o texto se prope tambm a isso. E no caso de

    Alvim no temos s a chamada de ateno para ossigni cantes preexistentes e reconhecveis cultural esocialmente, mas a inveno de novos signi cantes.Para isso que o autor provoca desvios, erros namorfologia e na sintaxe das palavras.

    Por exemplo, emPinokio as combinaes daspalavras que ele faz, como celacorpo e tranca-doele con guram, para o autor, novos signi can-tes que indicam signi cados at ento inexistentes.Mais que combinaes de palavras, neologismos

    criados a partir de radicais de verbos que ns co-nhecemos provocam a busca por signi cantes queainda no existem culturalmente seno dentro docontexto de cada pea. o caso dos verbos un-dar, unar, urdir e unzar, que lembram osnossos untar e ungir, no trecho:

    A MULHER VELHA.s o que falta undar-se mquinaquer ele unar tudo

    urdir-me mquinaele dissequero untir-me

    pode a mquina ssatisfanar nod reno vastos bolses vastosdrenando drenindo

    mquinaunzar-meele disse(ALVIM, 2012, p. 112)

    O caso que Alvim prope, radicalmente, a in- veno de novas formas de estar no mundo. Elequer inventar mundos completamente distintos dalgica do nosso, e para isso elabora esse trabalho

    sobre a linguagem, criando arquiteturas lingusticasoutras a partir das quais pode inventar persona-gens- guras ou personagens-linguagem e em cimadelas novos arqutipos.

    Ento, toda essa estrutura dramatrgica inusual,como ele coloca, busca produzir novas vises demundo, porque ele acredita que cada tcnica estrelacionada ou diz respeito a uma dada viso demundo e repetir uma tcnica seria corroborar comuma compreenso do mundo que pode no ser

    mais su ciente. Essa tcnica indita que ele estbuscando, atravs da elaborao dessas arquitetu-ras lingusticas, esses novos sistemas dramatrgicosele chama deDramticas do Transumano.

    transumano a inveno de desenhos (im)pos-sveis que propiciam experienciarmos a vida deoutros (e imprevisveis) modos. a recusa deuma ideia, surgida no renascimento [...], quese expandiu (no iluminismo, e paradoxalmentetambm no romantismo) e vigorou at o nal do

    sculo XX acerca do que seja o humano (e quetem agido como o maior mecanismo de controlejamais concebido); a criao de outros modosde subjetivao, em desenhos instveis que pro-blematizam de modo radical uma ideia hegem-nica acerca do que seja o sujeito

    o TRANS aqui no implica em transcendncia,mas sim na inveno de desenhos transitriosda condio (no)humana, em instabilidade e hi-bridao permanentes. a inveno de outros, dein nitos modos de subjetivao, aparentementeimpossveis, imprevisveis. signi ca a criao denovos moldes arquetpicos, a serem preenchidospor pulses que teremos que inventar, expandin-do nossa experincia em veredas insuspeitadas(ALVIM, 2012, p. 14 diagramao e tipogra-a reproduzidas como no exemplar da referidaedio)

    Dramticas que busquem no a representao

    como um espelho, como se fazia at bem pouco

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    tempo7, mas que expandam as noes dehumano e de realidade : eis o argumento motivador de suaescrita para teatro.

    Em tempo Antes de concluir estas re exes sobre a dra-

    maturgia performativa de Novarina, Stein, Mller e Alvim, julgamos importante lembrar o contexto doqual esses autores decorrem.

    O carter de negao com que as novas formasestticas surgiram, a partir do perodo que de agraa ruptura com os preceitos modernistas de criao,buscou superar uma srie de valores ainda mais an-

    teriores que, apesar do movimento de renovaooperado pelos modernistas, permaneciam ntidosnas produes de meados do sculo XX.

    Enquanto que a lgica da modernidade aindaestava fundada na crena em verdades absolutas,o advento da ps -modernidade vem propor exata-mente o contrrio: seu entendimento todo mar-cado pela dvida, pela descon ana, pelo perspec-tivismo. E o resultado disso, no campo das artes, que ela (a arte) passa a se formatar a partir da des-construo (de discursos e formas anteriores), daabertura pluralidade de signi caes, propondonarrativas descontnuas, ambguas, heterogneas.

    A nfase na recepo como lugar de produocri-ativa, o combate hegemonia (de poderes e deformas) e a projeo de modos de vida e compor-tamento diferenciados tambm so caractersticasdo fenmeno ps-moderno em sua realizao noteatro, como destaca Alfonso de Toro, um dos

    7 E que, de acordo com a entrevista concedida RevistaUrdimento (2012, 163-7), ainda se faz com grande sucessode pblico. Alvim refere-se ao estilo realista de composio/representao cnica, que, segundo ele, vende uma imagembem espec ca da realidade, como se o real no fosse cons-trudo todo o tempo por ns (cada real conformado porum jogo de linguagem espec co) (p. 166). Estilo esse dis-seminado e assimilidado pelo pblico pelosmass media ecomprado pelo teatro (que teve o realismo como novidadeesttica no j longnquo sculo XIX), que propaga uma visodo homem e da humanidade que, segundo o autor, no es-tariam mais de acordo com a nossa realidade, neste incio desculo XXI. Complementa, ainda, que no contra o estilo(realista ou outro anacrnico nesse sentido) que se deve lutar,mas contra certas vises de mundo hegemnicas.

    principais estudiosos do assunto (Cf.: MOSTAO,p. 560).

    E no isso mesmo o que esses autores, muitoespecialmente Alvim, prope atravs de sua dra-

    maturgia? O combate a toda forma de totalita-rismo recorrente em seu discurso e entrevistas,como faz-se exemplo a crtica (mencionada na nota6) ao realismo que domina os veculos de massa epermanece, em boa medida, no teatro, reproduzin-do uma dada concepo (hegemnica) do humanoe da realidade.

    Alm disso, a reinveno da anatomia humanaem Novarina, atravs da hibridao de matria e ln-gua8, dando luz a criaturas-linguagem em formao

    pode ser entendido como parte do projeto ps-mo-derno de inveno de modos diferenciados de vidae vivncia. E, como no entendimento de Alvim, no- vas formas artsticas/representativas so implicadaspor posicionamentos existenciais e vises de mun-do particulares, tambm por esta via atenta-se parae promove novos modos de vivncia.

    Apesar de uma corrente forte dos estudos tea-trais de hoje alegarem uma possvel morte do dra-ma, divorciando radicalmente o espetculo cnicoda literatura dramtica que lhe era parte e que, bementendido, por muito tempo lhe foi comandante estamos falando da concepo ps-dramtica doteatro, elaborada e discutida no j famoso livro deHans-Thies Lehmann assistimos insistncia dediversos autores em defender a valia que a escritapara teatro ainda pode ter, e tem. Esses autores per-manecem escrevendo, experimentando, inauguran-do formas e modos de estar no mundo. Pois, a sepa-rao operada entre texto e cena foi to revigorantepara um quanto para outro, e o drama se apresenta

    hoje como uma das formas mais livres de escrita,perfeitamente emancipada da noo de gnero.Ou, h um tempo atrs, quem diria que o apa-

    rente caos arbitrrio como se estruturam esses tex-tos ausentes de con ito intersubjetivo, muitas ve-zes de dilogo e de uma unidade reconhecvel seria,por que no, dramaturgia?

    8 interessante observar como enquanto que Alvim, pelalinguagem, questiona o entendimento do que seja o homem,apresentando novas subjetividades do sujeito contempor-neo, Novarina, a nvel esttico/estilstico prope uma novaanatomia humana, acoplando os rgos lngua.

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