11
Língua, história & sociedade Breve retrospecto da norma-padrão brasileira Marcos Bagno 1 . No que virá a seguir, tentarei evitar as ambiguidades da ex- pressão norma culta1, empregando, em seu lugar: (a) norma- padrão^ para o ideal abstraio de língua "certa" da tradição normativo-prescritiva, e (b) variedades cultas., para os conjun- tos de regularidades detectáveis no uso efetivo da língua por parte dos "falantes cultos" cidadãos com escolaridade supe- rior completa —em suas interações sociais. Emprego varieda- des cultas sempre no plural porque já se sabe que não existe um comportamento linguístico homogéneo por -parte dos "falantes cultos", sobretudo (mas não somente) no tocante à língua fala- da, que apresenta variação de toda ordem segundo a faixa .etá- ria, a origem geográfica, a ocupação profissional etc. dos infor- mantes. Não me deterei neste artigo no problemático uso, do ponto de vista antropológico, do adjetivo culto para definir es- ses falantes (ver a propósito Faraco, neste livro). Para alternati- vas terminológicas na delimitação das concepções e preconcei- tos embutidos no rótulo norma (culta), vale a pena consultar as contribuições dos diversos autores reunidos em Bagrio (2001 c), bem como vários dos artigos impressos no presente volume (cf. sobretTido Rodrigues, Castilho, Faraco, Lucchesi, Mattos e Sil- va, Bortoni-Ricardo). 1. Sobre essas ambiguidades, ver Bagno (2000, cap. 4; e 2001c, introdução). 179

Lingua, historia e sociedade

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Lingua, historia e sociedade

Língua, história & sociedadeBreve retrospecto da norma-padrão brasileira

Marcos Bagno

1 . No que virá a seguir, tentarei evitar as ambiguidades da ex-pressão norma culta1, empregando, em seu lugar: (a) norma-padrão^ para o ideal abstraio de língua "certa" da tradição

normativo-prescritiva, e (b) variedades cultas., para os conjun-tos de regularidades detectáveis no uso efetivo da língua porparte dos "falantes cultos" — cidadãos com escolaridade supe-rior completa —em suas interações sociais. Emprego varieda-des cultas sempre no plural porque já se sabe que não existe umcomportamento linguístico homogéneo por -parte dos "falantescultos", sobretudo (mas não somente) no tocante à língua fala-da, que apresenta variação de toda ordem segundo a faixa .etá-ria, a origem geográfica, a ocupação profissional etc. dos infor-mantes. Não me deterei neste artigo no problemático uso, doponto de vista antropológico, do adjetivo culto para definir es-ses falantes (ver a propósito Faraco, neste livro). Para alternati-vas terminológicas na delimitação das concepções e preconcei-tos embutidos no rótulo norma (culta), vale a pena consultar ascontribuições dos diversos autores reunidos em Bagrio (2001 c),bem como vários dos artigos impressos no presente volume (cf.sobretTido Rodrigues, Castilho, Faraco, Lucchesi, Mattos e Sil-va, Bortoni-Ricardo).

1. Sobre essas ambiguidades, ver Bagno (2000, cap. 4; e 2001c, introdução).

179

Page 2: Lingua, historia e sociedade

MARCOS BAGNO

2. Evidentemente, até a independência política do Brasil,em 1822, não havia dúvidas quanto ao padrão linguístico quedeveria ser considerado modelar. Afinal, o Brasil era uma exten-são territorial transatlântica de Portugal e, nessa qualidade, es-tavam seus habitantes em tudo sujeitos às decisões oficiais dametrópole, inclusive às decisões atinentes à língua.

2.1 Fato marcante da nossa história colonial no que dizrespeito à política linguística íor'a decisão do primeiro-rninistroportuguês Marquês de Pombal, em 1797, de proibir o ensino dequalquer outra língua em território brasileiro que não a portu-guesa. A medida visava sobretudo a prática pedagógica dos je-suítas, que se serviam da chamada língua geral., de base tupi,para catequizar os índios brasileiros. A interpretação dos efeitosdessa proibição são controversas (cf. Soares, neste livro). A re-forma pombalina, no entanto, constitui o primeiro exemplo dosprocedimentos autoritários que caracterizarão as políticas lin-guísticas no Brasil a partir de então. A notável repulsa da elitebrasileira por seu próprio modo de falar o português encarna,sem dúvida, a continuação no tempo desse espírito colonialista,que se recusa a atribuir qualquer valor ao que é autóctone, sem-pre visto como primitivo e incivilizado (cf. Bagno, 2001b). JáFontes denunciava em 1945 que "esse desprezo de nossa línguaanda sempre irmanado ao descaso por tudo o que ela representa:a gente e a terra do Brasil".

2.2 Em seguida à independência, nossa rarefeita elite inte-lectual passará a se divertir com a questão da "língua brasilei-ra". Esse debate se iniciou com o Visconde de Pedra Branca jáem 1824-25 (Castilho, 1999: 237). A polémica se arrastará porlongo tempo, e não se pode dizer que tenha terminado, muitoembora se processe hoje em dia com base em teorias científicasmais consistentes (cf. Tarallo, 1993; Galves, 1998 etc.), ao con-trário do que sucedeu ao longo do século XIX e boa parte doséculo XX, quando a discussão foi empreendida em grande par-te por não-especialistas (cf. Bagno, 2001a: 174). Também sedestaca, na análise contemporânea, uma abordagem eminente-mente discursivo-ideológica do problema (Pagotto, 1998;Faraco,

180

LÍNGUA, HISTÓRIA & SOGIIÍIMDK

2002) e/ou mais centrada nos aspectos históricos, políticos e so-cioeconômicos (Bagno, 2001b), numa nítida percepção de quenão se trata de uma questão de ordem unicamente linguística.

2.3 Convém destacar que, em suas distintas fases, essas dis-cussões se processaram todas dentro de um pequeno círculo deletrados — essencialmente masculino, branco e oligárquico —, dedimensões ínfimas em relação ao restante da população, consti-tuída de mulheres, que tinham acesso nulo ou restrito a uma edu-cação formal, de milhões de escravos negros destituídos de seuestatuto de seres humanos, e dos numerosos grupos étnicos e es-tratos sociais desprestigiados que desde sempre têm sido a grandemaioria do povo brasileiro. Assim, os apelos inflamados em favorda "língua brasileira'7 compartilhavam, no fundo, o mesmo espí-rito elitista e conservador de seus supostos adversários, os defen-sores intransigentes da identidade lingiiística de brasileiros e por-tugueses. Como bem analisa Sérgio Buarque de Holanda (1998[1936]: 86): "Tradicionalistas e iconoclastas movem-se, em reali-dade, na mesma órbita de ideias. Estes, não menos do que aque-les, mostram-se fiéis preservadores do legado colonial, e as dife-renças que os separam entre si são unicamente de forma e super-fície" . Assim é que nunca se fará a defesa das características lin-guísticas das variedades "populares", usadas pela maioria não-branca da população. Afinal, conclui Faraco (2002: 40),

O raciocínio básico [...] era: mudança e riqueza, sim, mas hálimites. Somos defensores de um abrasileiramento da línguaescrita, mas não toleramos todo e qualquer fenómeno linguísticoque aqui ocorre. Ora, esse raciocínio revela, grosso modo, umentendimento claro do processo normativo, que se realizaexatamente selecionando e privilegiando e, ao mesmo tempo,excluindo formas.

O que se reivindicava era a legitimação de um escasso nú-mero de aspectos, sobretudo morfossintáticos (além de alguns"exotismos" lexicais), que, embora divergentes da norma-pa-drão lusitana, compareciam na língua falada dos brasileiros dasclasses privilegiadas. Realizações fonéticas como "paia" para o

181

Page 3: Lingua, historia e sociedade

MAKCOS BAGNO

que se escrevepalha^ ou "pranta" para o que se escreve /ou ainda regras de concordância verbal do tipo "nós Ia/ ou deregência do tipo "para mini fazer" nunca foram objeto dessnnreivindicações por serem identificadas, antes de tudo, coin rinssés sociais extremamente desprestigiadas, e até hoje constituemas variantes sociolingúísticas mais estigmatizadas pelas classessociais escolarizadas. Reconhecer direito de cidade a tais formaiequivaleria "a nivelar por baixo, mesmo que uma série de traçosda gramática já fizessem parte da fala daqueles que os queriamnegar" (Pagotto, 1998: 57), corno é o caso, por exemplo, da cons-trução "para mim fazer", que ocorre cada vez mais frequente-mente na fala das camadas urbanas escolarizadas. Esse precon-ceito social talvez compareça até mesmo nas primeiras teses deaparência científica que tentaram ver nessas variantes fonéticase sintéticas indícios de algum processo de "crioulização", isto é,de descaracterização da língua portuguesa na boca de índios,negros e mestiços (Silva Neto, 1986 [1950]: 91 — este autor serefere à fala de índios e negros como "xacoca" — ver, porém,Lucchesi, neste livro, acerca da crioulização).

2.4 O caso de José de Alencar (1829-1877) é sobre todosexemplar. A língua que nosso mais importante escritor do períododefende é, ao fim e ao cabo, tão "brasileira" quanto o "índio" queele retraía em seus romances — um índio idealizado, de espíritonobre e puro, o protótipo do "bom selvagem" da filosofiarousseauísta. Compare-se esse "índio" idealizado no passado coma situação do negro na obra de Alencar, negro escravizado no pre-sente, um presente incómodo e refratário a idealizações. Não es-tranha, pois, que ele tenha escrito que "não se pretende que todainovação seja boa: defende-se a ideia do progresso da língua, nãoo abuso que a acompanha" (apud F atraco., 2002: 41).

2.6 A luta de Alencar e de outros que viriam depois delepela validação de pelo menos algumas características da línguaportuguesa aqui falada não teve repercussão no ensino. Comoescreve Soares (neste livro), "embora a polémica sobre uma pos-sível língua brasileira tenha surgido já em meados do século XIX,o ensino da gramática inanteve-se alheio a essa polémica e foi

182

LíNCIIA, HISTÓRIA & SOCIEDADE

. i i i j i n i l m n i i l r lodo esse século, o ensino da gramática da lín-n.< /iniiiiffin-.iti". l1 ' , por isso que me referi a essa polémica como

um dm i l i m e i i l o da nossa elite intelectual. No círculo mais am-I <\ > i I nu relnroes sociais, inclusive educacionais, nunca foi abala-do o piesl ígio (Icfaclo da norma-padrão portuguesa.

M. Kssa manutenção do status privilegiado de uma normaI n i f u n i / n n l c entre nós é coerente com o quadro geral da formaçãoIn .inrica de nossa sociedade. Conforme escreve Faraco (2002: 34),

ii lusilaiiização progressiva da norma escrita, num período de<>!"> n 70 anos [1824-1892], se encaixa perfeitamente no proje-lo político da elite brasileira pós-independência de construirunia nação branca e europeizada, o que significava, entre ou-I ros muitos aspectos, distanciar-se e diferenciar-se do vulgo [...],isto é, da população cinicamente mista e daquela de ascendên-cia africana, que constituíam, sem dúvida, um estorvo grandeàquele projeto.

De fato, ainda hoje, passados quase dois séculos de inde-pendência política, a sociedade brasileira conserva muito de suaestrutura colonial anterior a 1822. A independência, afinal, foil ramada de cima para baixo, num movimento que tem caracte-rizado todos os grandes momentos políticos da nossa história.

3.1 Q império brasileiro, do ponto de vista social, político eeconómico, não era muito diferente do Brasil colonial: a econo-mia permaneceu essencialmente agrária, o trabalho escravo con-tinuou em vigor por mais de meio século, a estrutura latifundiá-ria não sofreu alteração, a economia e os negócios permanece-ram nas mãos de uma pequena elite branca, não houve nenhumtipo de democratização das relações de poder e exploração. Omesmo se pode dizer da passagem do regime monárquico para orepublicano. A proclamação da república em 1889 foi simples-mente um golpe militar praticado pela alta cúpula do exército, enão um movimento social a favor da democratização da socieda-de — muito pelo contrário, todos os levantes populares em favorda república foram esmagados a ferro e fogo. Mais recentemen-te, a coisa se repetiu: o processo de transição da ditadura militar

183

Page 4: Lingua, historia e sociedade

MAKCOS BAGNO

para um regime mais liberal, em 1984, foi todo tramado e poslnem prática nas altas esferas políticas do país, tendo se aprovei!»do inclusive de urn mecanismo de controle da vida política, oColégio Eleitoral, inventado pelo regime autoritário.

3.2 Talvez possamos ver nisso tudo algumas das explica-ções para as três grandes características da sociedade brasileira,praticamente inalteradas desde a época colonial: autoritarismo,oligarquismo e elitismo — politicamente autoritária, economi-camente oligárquica e culturalmente elitista. E como escreveChaui (2000: 89):

Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ouaquilo que alguns estudiosos designam como 'cultura senho-rial', a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierár-quica do espaço social que determina a forma de uma socieda-de fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, asrelações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas comorelação entre um superior, que manda, e um inferior, que obe-dece.

3.3 A ausência da participação popular naqueles momen-tos históricos revela o grande abismo que sempre separou a imensamaioria do povo da pequena elite dominante, abismo que se per-petua até hoje no país que apresenta os mais graves índices deinjustiça social de todo o planeta, ao lado de uma economia clas-sificada entre as dez maiores do mundo. Essa pesada herançacolonial, evidentemente, também tem seus efeitos sobre a defini-ção da ''norma culta" brasileira e dos demais problemas queenvolvem a língua portuguesa e todas as outras muitas línguasfaladas no país. Nas nossas relações linguísticas é fácil detectar amesma aguda verticalização apontada por Chaui nas demais for-mas de alteração social no Brasil.

3.4 A ideia rnesma, amplamente difundida e aceita, de queo Brasil é uma nação monolíngúe (uma "unidade na diversida-de", conforme expressão de Silva Neto [1950: 234] que viria ase tornar um lugar-comum na literatura filológica brasileira)também se enquadra comodamente num projeto de negar até

184

LINCHA, HISTÓRIA & SOCIEDADE

. . . . . . i» , i i \ i . n , . . i daquilo que, não pertence às elites, num me-

..... mo ideológico de ocii l lamento e apagamento dos conflitos,., i n provocados prhi realidade das inúmeras situações passa-

i l n r prcsculcs de multilingúismo e de diglossia (Oliveira, 2000;l ' » ' > < ) . l louaiss, 1985: 129; Bortoni-Ricardo, 1984).

4. Todos esses fenómenos característicos da nossa formaçãoIn lu r icn c social oferecem um quadro explicativo para a nítidaM i i n a c H o de conflito linguístico que se verifica entre nós no quedi/, respeito à língua das camadas cultas da população — Faraco( ncslc l iv ro ) chega mesmo a falar de "esquizofrenia", enquantol Jicchesi (neste livro) se refere a uma realidade linguística "po-l»ri/»d»". De um lado, temos a norma-padrão lusitanizante, idealde l íngua abstrato, usado como verdadeiro instrumento de re-pressão e policiamento dos usos linguísticos; do outro, temos asdiversas variedades cultas, usos reais da língua por parte dasclasses sociais urbanas com escolaridade superior completa.

4.1 Pagotto (1998) propõe uma explicação histórica paraessa esquizofrenia. Segundo ele, o português brasileiro falado(inclusive em suas variedades cultas) preserva, em suas grandeslinhas, traços característicos do português clássico, designaçãoque os historiadores da língua aplicam ao período compreendidoentre os séculos XVI e XVIII. Em Portugal, no entanto, em mea-dos do século XVIII, ocorreu uma grande transformação social:a ascensão da burguesia. Como é normal em situações históricassemelhantes, a nova classe social no poder também impôs a suamaneira de falar às demais classes, transformando-se em mode-lo de comportamento. Ora, justamente entre os membros dessaclasse social estavam ocorrendo determinadas mudanças linguís-ticas que viriam a caracterizar o português moderno, falado atéhoje em Portugal — um dos aspectos mais salientes desse portu-guês europeu moderno é a redução extrema (e eventual colapso)das vogais átonas, que serve de traço de distinção imediata entreportugueses e brasileiros: uma palavra como deliberar., por exem-plo, é pronunciada, em Portugal, como "dlibrar", isto é, commetade das sílabas que apresenta sua pronúncia no portuguêsbrasileiro. Essas transformações fonéticas, evidentemente,

Page 5: Lingua, historia e sociedade

MARCOS BACNO

incidiram na sintaxe e na morfologia, aumentando a distânciaentre a língua dos portugueses e a dos brasileiros. Esta, por seuturno, já no século XIX, apresentava uma gramática própria,com muitos aspectos diferenciadores em relação à língua dosportugueses (Tarallo, 1993).

4.Í Assim, corno observa Ataliba de Castilho (em comuni-cação pessoal), não devemos perguntar por que os brasileirosfalam de modo tão diferente dos portugueses, mas sim o contrá-rio: por que, em tão breve espaço de tempo, os portugueses aban-donaram seu idioma clássico e passaram a empregar novas for-mas linguísticas? A resposta se encontra, como já vimos, na his-tória da sociedade portuguesa. Outra pergunta que poderíamosfazer, então, é: por que a norma-padrão linguística brasileiranão se alimenta do português clássico, que lhe é congenial, e seinspira, ao contrário, no português moderno, que é a língua dosportugueses? A resposta se encontra no já mencionado projetoeuropeizante de nossa elite: sua ânsia de se afastar de tudo o queviesse do "vulgo" e de se aproximar ao máximo do ideal europeulevou ela a negar sua própria língua materna e a buscar umaidentidade linguística do outro lado do Atlântico. A análise quePagotto (1998) faz do texto de duas Constituições brasileiras, ado Império (1824) e a da República (1891), é reveladora dosucesso daquele projeto: a primeira é redigida em português clás-sico, mais próxima portanto dos usos brasileiros cultos, enquan-to a segunda espelha um ideal declaradamente lusitanizante, quese cristalizou a partir desse período como padrão de elegância ecorreção.

5. Passada sua fase romântica, o ímpeto de nacionalismoelitista no que diz respeito à língua acabou vencido pelo projetoeuropeizador maior da oligarquia, sobretudo com a ascensão in-telectual do parnasianismo, marcado pelo preciosismo sintáticoe lexical fortemente classicizante, uma vez que nessa escolaliterária, mais que nunca, qualquer elemento "popular71 deveriaser evitado ao máximo. Veja-se também a interessante "contra-dição" entre forma e fundo do citadíssimo soneto de Olavo Bilac(1865-1918) "À língua portuguesa", arquétipo do parnasiano,

186

LÍNGUA, HISTÓRIA & SOCIEDADH

em que ao lado de expressões como "tuba de alto clangor" e"trom e silvo da procela", se lê que foi nessa língua que "da vozmaterna ouvi: 'meu filho'!" Nenhuma mãe brasileira, de nenhu-ma classe social, jamais falaria ao filho naquela língua contorcidae cinzelada a golpes de latinismos.

5.1 O apogeu dessa fase de culto a uma norma lusitanizantese concretiza, fisicamente inclusive, na criação da Academia Bra-sileira de Letras (ABL) em 1896, que teve entre seus fundadoresvários dos rnais destacados representantes da escola parnasianaentre nós. Como toda instituição de seu género, imitação domodelo aristocrático-feudal da Academia Francesa, a ABL per-petua até hoje aquele espírito de "defesa" da "língua" (isto é, danorma-padrão tradicional lusitanizada) contra toda "corrupção"provocada pelo (ab)uso do idioma por parte do "vulgo". Elaquer preservar ad immortalitatem uma atitude entranhadamen-te elitista diante dos fatos linguísticos, uma vez que seus 40 mem-bros (quase todos ignorantes dos desdobramentos da pesquisa eda teorização científica acerca da língua) se autoproclamam ca-pazes de tomar decisões e decretar escolhas em detrimento dasopções de uso dos demais 170 milhões de falantes da línguamajoritária do Brasil, inclusive dos mais letrados. A esse respei-to, é prototípica a queixa proferida no final do século XX peloentão presidente da ABL, Arnaldo Niskier, em artigo publicadona Folha de S. Paulo (15/1/1998), em que se lê: "A classe ditaculta mostra-se displicente em relação à língua nacional".

5.2 No início do século XX, reacende-se a polémica em tor-no da "língua brasileira", novamente encampada por um movi-mento estético-literário, o modernismo. Exemplar, nesse perío-do, é o projeto (nunca levado a cabo) de Mário de Andrade (1893-1945) de sistematizar uma "gramatiquinha da língua brasilei-ra" (Pinto, 1990). Tal como no período romântico, a defesa do"brasileiro" será feita ern grande parte por pessoas desvincula-das da pesquisa linguística sistemática e da prática docente ebem mais interessadas em questões de vanguardismo estético,de definição de uma identidade nacional, de aproveitamento dofolclore (sobretudo o folclore de raiz indígena e africana) etc.

187

Page 6: Lingua, historia e sociedade

MARCOS BACNO

Quando muito, se valerão das conclusões das pesquisas empre-endidas pelos pioneiros da incipiente dialetologia brasileira. Alémdisso, "antes de ser uma valorização das formas brasileiras, oque há sobretudo é um efeito paródico, quase.anedótico desteportuguês brasileiro" (Pagotto, 1998: 58). A defesa da "línguabrasileira", mais uma vez, permanecerá circunscrita às esferasda intelectualidade e sem praticamente nenhum influxo na vidados cidadãos comuns e dos poucos que tinham acesso à escolaque, como já se mencionou, só se preocupava em inculcar umanorma linguística conservadora, ensinada com os mesmos pro-cedimentos filológicos e com a mesma dídática com que se ensi-nou, durante séculos, a língua latina no Ocidente: o portuguêsera analisado, dissecado e "reconstituído" como se fosse umalíngua morta, preservada apenas em textos "clássicos".

6. Esse reduzido acesso 'à escola explica por que o conheci-mento/uso da "norma culta", isto é, da norma-padrão (rotula-da, no nosso imaginário nacional, com o próprio nome da lín-gua: "português"), não se propagou de maneira intensa e exten-sa por nossa sociedade. Esse padrão sempre esteve intimamenteassociado com a escrita mais monitorada, usada para finsestetizarites e retóricos. Como o acesso à escrita se faz primor-dialmente na escolarização formal, só aquele contingente míni-mo de brasileiros que podia frequentar a sala de aula entrava emcontato com essa norma cultuada. Nossa sociedade, por isso, desdesempre tem se caracterizado por exibir uma cultura muito maiscentrada nas práticas orais do que nas práticas livrescas centra-das nos géneros textuais escritos mais prestigiados. O Brasil apre-senta alguns dos mais elevados índices mundiais de analfabetis-mo pleno e funcional (IBGE, 2002). Até hoje, mesmo entre asclasses abastadas, o hábito de comprar livros (que dirá lê-los) éextremamente restrito. Isso explica a situação do mercado edito-rial brasileiro, em que a média anual de livros comprados porhabitante é de 2,5 exemplares (contra 7, por exemplo, na Fran-ça) (Folha deS. Paulo., 21/2/2002), sendo que 60% dessas com-pras são realizadas pelo governo federal em seus programas dedistribuição de material didático (Folha de S. Paulo, 1/3/2001).

188

LfNÍÍUA, I I ISTÚUIA & SOCIEDADE

Entre os consumidores particulares, o livro didático também res-ponde por 75% das aquisições.

6.1 Além disso, num país com a distribuição de renda maisdesigual do planeta, a norma-padrão representa um bem cultu-ral virtualmente inacessível à imensa maioria da população, dei-xada à margem da escola e da cultura livresca. Na análise deHaugen (2001: 114),

o domínio da língua-padrão terá naturalmente um valor maisalto se ele permitir à pessoa ingressar no concílio dos podero-sos. Do contrário, o estímulo para aprendê-la, exceto talvezpassivamente, pode ser muito baixo. Se o status social for fixa-do por outros critérios, é compreensível que transcorram sécu-los sem que uma população a adote.

Ora, os critérios que fixam o status social no Brasil sãoextremamente rígidos, quase inflexíveis, e a mobilidade socialé muito restrita, a começar da própria cor da pele do cidadão.O destino de muitas camadas sociais de brasileiros se aproximade um quase-fatalismo: é altíssima a probabilidade de pessoasnascidas em classes sociais pobres ou miseráveis permanece-rem por toda a existência dentro dessas camadas desfavoreci-das. Uma criança negra, por exemplo, já tem, ao nascer, 80%de probabilidade de ser pobre para o resto da vida (Folha de S.Paulo, 2/7/1997).

6.2 A história da educação no Brasil é mais um fator queexplica por que é tão restrita a apropriação da norma-padrãopor cada vez mais cidadãos. Mesmo as nossas oligarquias demo-raram a ter um acesso fácil e amplo à cultura letrada maiselitizada. Basta lembrar que nossa primeira instituição de ensi-no superior, a Faculdade de Direito de São Paulo, foi criada so-mente em 1827, num contraste agudo com a América de coloni-zação espanhola, que já em 1538 contava com a Universidadede Santo Domingo, em 1551 com a Universidade São Marcos noPeru e, dois anos mais tarde, a do México. Ao findar o períodocolonial, havia 23 universidades em funcionamento nas antigaspossessões espanholas (Holanda, 1998 [1936]: 98, 119). Outro

189

Page 7: Lingua, historia e sociedade

MARCOS BACNO

fato que merece destaque: somente em 1808, data de fundaçãoda Impressão Régia no Rio de Janeiro, tem início a indústriagráfica no país, depois de séculos de proibição explícita, por par-te do governo de Portugal, de se imprimir o que quer que fossena colónia. Ainda assim, levará quase um século e meio para setransformar numa verdadeira indústria editorial (Holanda, l998[1936]: 120-121).

7. No decorrer do séculoyXX, a despeito da tentativa (am-plamente frustrada) da escola e de outras instituições de incutire preservar um padrão de língua extremamente lusitanizado,descobre-se que a língua que realmente serve de instrumento deinteração social dos brasileiros, inclusive dos que pertencem àscamadas médias e altas da população, a língua que de fato podeser classificada de materna., é um português brasileiro muito di-ferente do português falado em Portugal e, afortiori, da norma-padrão tradicional; um português brasileiro vivo e dinâmico queparticipa, interfere, influi na construção e constituição da nossasociedade, cada vez mais complexa e multifacetada. Esse portu-guês brasileiro — já com esta designação técnica — é que seráobjeto, a partir da década de 1970, da pesquisa científica siste-mática suscitada pela acolhida nos nossos meios universitáriosdas teorias e metodologias da ciência linguística moderna. Coma implantação e o desenvolvimento da sociolingúística no Brasil,tem início um grande movimento que seria justo definir como dedescoberta e revelação da realidade linguística do português bra-sileiro em suas múltiplas variedades sociais, regionais, etárias,profissionais etc., e da existência de outras línguas faladas emterritório brasileiro (calculadas em torno de 200 por Oliveira[2000: 83] entre línguas indígenas e línguas trazidas pelos imi-grantes europeus e asiáticos). Esse movimento leva adiante, emnovas bases, as já mencionadas investidas pioneiras dadialetologia nas primeiras décadas do século (para um históricodessas pesquisas, \^er Ferreira & Cardoso, 1994: 37-62).

7.í Dentro desse ímpeto de pesquisas se destaca o ProjetoNURC (Norma Urbana Culta), surgido em 1969, elaborado comvistas à documentação das variedades cultas do português bra-

190

LINCHA, IIISTÓHIA & SOCIKDADK

sileiro de cinco grandes regiões metropolitanas: Ucciíe, Salva-dor, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre (Cunha, 198f>).Sua maior contribuição inicial foi, sem dúvida, revelar a grandedistância que existe entre a norma-padrão, que povoa o imagi-nário nacional como representação idealizada de uma língua"certa", e a língua tal como realmente empregada-recriada pe-las camadas privilegiadas da nossa população. Já se tornou in-calculável o número de trabalhos científicos, desde artigos emrevistas até livros completos e teses universitárias, empreendidoscom base no amplo acervo de língua falada acumulado pelospesquisadores do NURC. Dele também surgiram novos empreen-dimentos científicos com objetivos distintos, dentro os quaismerece destaque o Projeto da Gramática do Português Falado(Castilho, 1991).

7.2 A pesquisa sociolingúística brasileira, no entanto, nãotem se limitado à documentação das variedades cultas. Diversosoutros projetos vêm se dedicando à investigação das múltiplasvariedades "populares" e "regionais" (para uma enumeração dosmais significativos, ver Paiva & Scherre, 1999: 202-203). Gra-ças a toda essa ampla produção científica, o conhecimento darealidade linguística brasileira vem se tornando cada vez maior,melhor e mais sistemático. Infelizmente, este conhecimento ra-ramente ultrapassa o ambiente universitário, estando pratica-mente ausente de toda discussão não-acadêmica em torno dasquestões linguísticas no país (cf. Faraco, neste livro).

8. O que a pesquisa sociolingúística vem demonstrando so-bretudo é que se verifica no Brasil de hoje uma interpenetraçãocada vez maior entre as diferentes variedades regionais, estilísti-cas, sociais etc. O trânsito intenso dos brasileiros dentro do paísdificulta cada vez mais a identificação de "dialetos" marcada-rnente regionais: as migrações populacionais entre as diversasregiões têm levado à difusão e interpenetração dos falares iden-tificados geograficamente pela dialetologia brasileira clássica (oque não significa, porém, que tenham deixado de existir). Deigual modo, traços que antigamente caracterizavam os falaresrurais são encontrados hoje em dia com grande frequência tam-

191

Page 8: Lingua, historia e sociedade

MARCOS BAGNO

bérn na fala urbana, devido ao processo ininterrupto e maciço deurbanização da nossa população (Bortoni-Ricardo, 1985).

8.1 A comunicação eletrônica via Internet vern tornandocada vez mais difícil a delimitação entre o que, tradicionalmen-te, só era admitido na língua falada e o que era cobrado na lín-gua escrita: existe uma mescla cada vez maior entre os génerostextuais, além da proliferação de novos géneros típicos desse novomeio de comunicação.

8.2 No que diz resperío à literatura, sabe-se que os escrito-res modernos e contemporâneos, cada vez menos servirão demodelos e exemplos do uso "correto" das regras da norma-pa-drão tradicional: as obras literárias dos últimos cem anos se ca-racterizam pelo esforço de incorporação (e de eventual estilização)das regras linguísticas "populares" e/ou por um emprego bemparticular dos recursos da língua e de suas muitas variedades.

8.3 A televisão também já se tornou um mostruário da plu-ralidade linguística, e os programas se distribuem ao longo deum continuam de géneros que, de acordo com o público-alvo, seservem de variedades estilísticas e de socioletos determinados. Ainfluência da televisão na sociedade brasileira é gigantesca, umavez que o Brasil é um dos países com maior cobertura televisivaem todo o mundo. Essa influência se exerce em todos os aspectosda vida diária dos brasileiros, inclusive no que diz respeito aosfatos de língua. É sabido, por exemplo, que o padrão linguísticoadotado pelos apresentadores dos telejornais (sobretudo do maispopular deles, o Jornal Nacional, da Bede Globo de televisão)vem se constituindo numa espécie de modelo geral de pronúnciaculta. Nesse padrão, traços fonéticos caracteristicamente regio-nais são abandonados em prol de uma pronúncia mais "neutra",que, no entanto, em seus grandes traços, se alimenta das varie-dades urbanas da região Sudeste (a mais populosa, mais indus-trializada e economicamente mais importante do país)2.

2. Podemos destacar, por exemplo, a evitação da pronúncia palatalizada do/s/ em final de sílaha, que caracterizaria uma pronúncia carioca ("S chiado"); apalatalização do fàJ e do /t/ diante de /i/, mesmo por parte de locutores nordesti-nos; a não-iberttiia das vogais átonas pretônicas, que também caracterizaria fa-

192

LINCHA, I I I S T Ó H I A & SOCIIÍIMDF,

8.4 E mesmo a imprensa mais conceituada, que l en i a ocu-par o lugar deixado vago pela literatura como depositária danorma-padrão tradicional, só consegue fazer isso como discurso,pois na prática a imprensa escrita se revela também muito per-meável a todas as formas linguísticas que caracterizam o verda-deiro português brasileiro culto escrito contemporâneo (Bagno,2000; cf. Faraco, neste livro).

8.5 Com tudo isso, a norma-padrão, que nunca conseguiutranspor os limites de uma restrita parcela da elite intelectualmais conservadora no tocante à língua, vê seu uso cada vez maisreduzido e limitado a manifestações sociais extremamente for-malizadas, quase rituais — é o código criptografado da doxa(Bourdieu, 1996: 117-126).

9. Quanto à difusão desse padrão conservador por parte daescola, ela não pôde contar com o auxílio da chamada "demo-cratização" do ensino, ocorrida no Brasil a partir da segundametade do século XX. Essa "democratização" significou, basi-camente, uma radical mudança quantitativa no sistema educa-cional brasileiro, acompanhada de uma igualmente radical pio-ra qualitativa das nossas escolas públicas.

9.1 Durante muito tempo reservada aos filhos das classesprivilegiadas urbanas, a pressão social fez a escola pública seabrir para acolher os filhos de pais analfabetos e pobres, oriun-dos da zona rural, que se instalavam sobretudo nas periferiasdas cidades em consequência do vertiginoso processo de urbani-zação do país (Castilho, 1998: 9-10) decorrente, entre outrascoisas, da criminosa concentração da propriedade fundiária queexpulsa do campo milhões de famílias de lavradores, obrigando-os a buscar sobrevivência nas cidades. Essa incorporação doalunado pobre às escolas públicas levou as classes médias e al-tas, receosas do contato com o "vulgo", a transferir seus filhospara as instituições particulares de ensino. A escola pública fi-

lantes de variedades nordestinas; a pronúncia aspirada do /r/ em início de palavrae final de sílaba, e não-vibrante (simples ou múltipla) nem. muito menos, retroflexa("R caipira"); a pronúncia não-alveolar do /!/ em final de sílaba, evitada em favorda semivogal /w/etc.

193

•Br

Page 9: Lingua, historia e sociedade

MARCOS BAGNO

cou literalmente relegada às camadas desprestigiadas da popu-lação, desprestígio que se transferiu igualmente para a própriaatividade docente. Num país, como já vimos, de tradição cultu-ral marcadainente elitista, isso representou também, da partedos diferentes governos, comprometidos com os interesses dascamadas dominantes, um resoluto descaso pelas questões maissérias da educação popular.

9.2 A escola pública brasileira, neste limiar do século XXI,apresenta um quadro de notável deterioração, desde o ensinofundamental até as universidades, que atravessam aguda crise.A propaganda governamental alardeia que mais de 90% dascrianças de 7 a 10 anos estão matriculadas na escola (IBGE,2002). No entanto, não se divulga a qualidade dessa escola: pés-simas condições físicas, material didático ultrapassado, tecnolo-gias obsoletas, condições de trabalho degradantes, salassuperlotadas, professores extremamente mal remunerados e malformados etc. Além disso, as escolas públicas brasileiras, sobre-tudo nas grandes cidades, vêm se tornando palco de problemassociais extremamente graves como a delinquência infantil e ju-venil, o tráfico de drogas e a violência urbana generalizada.

9.3 Além disso, nem mesmo no mero plano quantitativo aspolíticas educacionais têm tido sucesso. Estatísticas oficiais repor-tam que, em 1991, apenas 55,3% dos jovens entre 15 e 17 anosestavam frequentando a escola. Quanto mais alta a faixa etária,menor a presença dos brasileiros no sistema educacional: no ano2000, dos jovens de 18-19 anos apenas 50,3% estavam na escola;de 20 a 24 anos, 26,5%. Esses mesmos dados mostram que so-mente 15% dos brasileiros têm de 8 a 10 anos de estudo, isto é,concluíram a escolaridade básica (IBGE, 2002). Veja-se tambémque o Censo 2000 revelou haver só na cidade de São Paulo, a maisrica e industrializada do país, cerca de 386.000 pessoas analfabe-tas com mais de 14 anos de idade (Folha de S. Paulo, 16/5/2002).Não é difícil traçar uma correlação entre esses números e o acessoao conhecimento/uso da norma-padrão tradicional.

9.4 Nessa escola pública deteriorada trabalham professoresmal formados e mal pagos, intimidados pela violência urbana e

194

LÍNGUA, HISTÓRIA & SOCIIÍDADE

obrigados a se desdobrar em múltiplas jornadas de trai talho (Ilari,1985: 13; Castilho, 1998: 13). No tocante à língua, a maioriadesses docentes não tiveram contato, em seu ambiente familiar eescolar, com a norma-padrão tradicional nem com a culturalivresca. Pesquisas do próprio Ministério da Educação mostramque os estudantes de letras (e dos demais cursos que formamtipicamente professores do ensino fundamental e médio) pro-vêm, em grande maioria, de classes sociais pobres, que vêem naprofissão docente uma oportunidade de ascensão social. São,portanto, pessoas oriundas de estratos sociais médio-baixos semmuitas condições de letramento: lêem muito pouco e raramenteescrevem (cf. Folha de S. Paulo, 30/12/2001: "O professor for-mado pelas universidades brasileiras é filho de pais que nuncaforam à escola ou nem sequer completaram os quatro primeirosanos do ensino fundamental").

10. Diante dessa acelerada retração do já exíguo espaço so-cial reservado à inculcação e manutenção em uso da norma-pa-drão, e diante também da sempre renovada crítica à doutrinagramatical tradicional por parte das teorias linguísticas moder-nas, era fácil prever "que os setores mais reacionários da intelec-tualidade saíssem em defesa do estereótipo ameaçado [...] apon-tando o período de predomínio do ensino gramatical como umaespécie de paraíso perdido" (Ilari, 1985: 15). O espectro do Mar-quês de Pombal volta a nos assombrar: nos últimos anos temospresenciado, no Brasil, um recrudescimento de atitudes depurismo linguístico explícito, que encontram seu lugar privile-giado nos meios de comunicação (Bagno, 1999; 2000). Mais re-centemente ainda, voltou a ser empunhada a velha bandeira donacionalismo xenófobo contra a suposta "invasão" das palavrasde origem estrangeira (de origem inglesa, na verdade), às quaisse atribui o poder de destruir a língua portuguesa em suas pró-prias estruturas gramaticais internas. Esse combate aosanglicismos se consubstanciou num projeto de lei federal, contrao qual se insurgiu a comunidade científica (Faraco, 2000).

10.1 A tentativa de aquisição da norma-padrão encontraampla acolhida em determinadas camadas sociais que vêem no

195

Page 10: Lingua, historia e sociedade

MARCOS BACNO

domínio desses estereótipos linguísticos um instrumento de "as-censão social" e de "inserção no mercado". A "língua certa" setorna, assim, um objeto de desejo para esses grupos, demandaque é atendida pelo comércio com a transformação dessa "lín-gua" num bem de consumo supostamente acessível a todos edisponível sob as mais diferentes embalagens e modelos (pro-gramas de televisão e de rádio, colunas de jornal e de revista,programas para computador, cd-roms, livros, revistas, fascícu-los, sites na internet, cursos, tira-dúyidas por telefone, manuaisde redação das grandes empresas jornalísticas etc.). Ora, a es-tratégia publicitária clássica para a venda de qualquer produto éconvencer o potencial consumidor da necessidade de preencheralguma carência essencial. Assim, num país em que o acesso àboa educação sempre foi restrito e em que se cristalizou na men-talidade comum o mito de que "brasileiro não sabe português",nada é mais fácil do que conquistar essa clientela ávida por uma"língua" boa, segura e com selo de qualidade conferido por su-postos especialistas na matéria (cf. Faraco, Lucchesi e Scherre,neste livro).

10.2 Estamos aqui, mais uma vez, diante de um fenómenocaracterístico da cultura brasileira: a educação não é, de fato,um direito do cidadão e um dever do Estado; ela é um meroadorno social, um passaporte para a admissão de seu portadorem determinados círculos de poder económico e/ou político. Játinha sido assim em fases históricas anteriores, quando os filhosda oligarquia branca nacional iam estudar direito, primeiro emCoimbra e depois em São Paulo e no Recife, não para exercer aprofissão, mas como mero rito de passagem prévio à ocupaçãodos cargos mais importantes do funcionalismo público e da esfe-ra política (Holanda, 1998 [1936]: 83, 156-157). É o que severifica hoje, com a proliferação dos cursos universitários parti-culares, que prometem, não uma educação de qualidade, maspermitira seus clientes alcançar níveis de "competitividade" quelhes permitam "vencer" nas disputas do "mercado", bastandopara tanto "ter um diploma", não importa muito de que espe-cialidade.

196

LÍNGUA, HISTÓRIA & SOCIEDADE

11. Apesar de tudo isso, é forçoso reconhecer que, desde aimplantação da ciência linguística no Brasil, na segunda metadedo século XX, as perspectivas educacionais no que concerne àlíngua têm passado por muitas e fundas transformações positi-vas. Lentamente se vai reconhecendo, por exemplo, que a fun-ção primordial do ensino de língua na escola não é inculcar umanorma-padrão por meio da doutrina gramatical tradicional, massim favorecer a criação de condições para o letramento contínuoe ininterrupto dos alunos, isto é, para a aquisição e pleno desen-volvimento das habilidades de leitura e de escrita, associadas apráticas relevantes de oralidade e à reflexão sobre a língua(Possenti, 1996; Britto, 1997; Geraldi, 1999; Soares, 1998,1999;Bagno, 2002, etc.).

11.1 Já em 1998 o Ministério da Educação publicava osParâmetros Curriculares Nacionais que, em seus volumes desti-nados ao ensino de língua portuguesa, enfatizavam a necessida-de de incentivar, na escola, a discussão da variação linguística eda heterogeneidade conflituosa dos usos da língua; a exploraçãoda multiplicidade dos géneros textuais-discursivos; a reflexãosistemática sobre a língua falada; a substituição do ensinogramatiqueiro por atividades de reflexão linguística baseada napesquisa da língua viva, falada e escrita etc. Acompanhando essemovimento, tem se notado a produção de livros didáticos desti-nados a permitir a implementação dessa nova cultura pedagógi-ca em relação à língua (Dionísio & Bezerra, 2001).

11.2 Quanto ao êxito dessa nova proposta de ensino da língua— ensino que durante muito tempo foi responsável pela manuten-ção estrita da norma-padrão como única língua "legítima", comoúnico capital simbólico valorizado no mercado das trocas linguísti-cas (Bourdieu, 1996) —, resta esperar para ver o resultado do em-bate entre a ilusão de ascensão social supostamente outorgada pela"norma culta", em sua recente reinserção mercadológica como bemde consumo da moda, e o reconhecimento sereno das múltiplasvariedades sociais e estilístico-individuais que conformam, concre-tamente, a língua materna dos brasileiros naquilo que, para usarexpressão de Guimarães Rosa (citado por Signorini, neste livro), é

197

Page 11: Lingua, historia e sociedade

MARCOS BACNO

um "miúdo recruzado''1 — a malha sutil e constantemente tecida,desfeita e retecida, de que é feita a volátil realidade do uso da lín-gua nas filigranas da interação social.

Referências

BACNO, M. (1999): Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo,Loyola. ,

BAGNO, M. (2000): Dramática da língua portuguesa: tradição gramatical,mídia & exclusão social. São Paulo, Loyola.

BAGNO, M. (2001a): Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa. SãoPaulo, Parábola.

BACNO, M. (2001 b): Português do Brasil: herança colonial e diglossia, inRevista da FAEEBA, ano 10, n° 15 (Educação, linguagem e socieda-de), jan./jul. 2001: 37-48.

BAGNO, M. (org.) (2001c): Norma linguística, São Paulo, Loyola.BAGNO, M. (2002): A inevitável travessia: da prescrição gramatical à edu-

cação linguística, iri BAGNO, STUBBS & GAGNÉ, Língua materna:letramento, variação & ensino>, São Paulo, Parábola.

BoRTONi-RiCARDO, S. M. (1984): Problemas de comunicação interdialetal,in Tempo Brasileiro, 78/79 (Sociolingúística e Ensino do Vernáculo):9-32.

BoRTOM-RiCARDO, S. M. (1985): The Urbanization of Rural DialectSpeakers. Cambridge, Cambridge University Press.

BOURDIEU, P. (1996): A economia das trocas linguísticas. São Paulo, Edusp.BRITTO, L. P. L. (1997): A sombra do caos: ensino de língua x tradição

gramatical. Campinas, Mercado de Letras.CASTILHO, A. (org.) (1991): Gramática do português f alado, vol. 1. Cam-

pinas, Unicamp.CASTILHO, A. (1998): A língua falada no ensino de português. São Paulo,

Contexto.CASTILHO, A. (1999): "O português do Brasil", ia Ilari, R., Linguística ro-

mânica, 3a ed., São Paulo, Ática.CHAUI, M. (2000): Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo,

Fundação Perseu Àbramo.CUNHA, C. (1985): A questão da norma culta brasileira. Rio de Janeiro,

Tempo Brasileiro.DiONÍSlO,A. &BEZEPEA,M. A. (orgs.) (2001): O Iwro didático de português:

múltiplos olhares, Rio de Janeiro, Lucerna.

LÍNGUA, HISTÓRIA & SOCIEDADE

FARACO, C. A. (org.) (2000): Estrangeirismos:guerras em torno da língua.São Paulo, Parábola.

FARACO, C. A. (2002): A questão da língua: revisitando Alencar, Machadode Assis e cercanias, in Língua e Instrumentos Linguísticos, 7: 33-52.

FERREIRA, C. & CARDOSO, S. (1994): A dialetologia no Brasil. São Paulo,Contexto.

FONTES, H. P. (1945): A questão da língua brasileira, iri.4 Manhã, Rio deJaneiro, 11/8/1945.

GALVES, C. (1998): A gramática do português brasileiro, in Língua e Ins-trumentos Linguísticos, \: 79-96.

GERALDI, J. W. (org.) (1999): O texto na sala de aula. 2a ed., São Paulo, Ática.HAUGEN, E. (2001): Dialeto, língua, nação, in BAGNO, M. (org.), Norma

linguística. São Paulo, Loyola.HOLANDA, S. B. (1998 [1936]): Raízes do Brasil. 26" ed., São Paulo, Com-

panhia das Letras.HOUAISS, A. (1985): O português no Brasil. Rio de Janeiro, Unibrade.IBGE (2002): "Brasil em síntese" — <www.ibge.net >ILARI, R. (1985): A linguística e o ensino da língua portuguesa. São Paulo,

Martins Fontes.OLIVEIRA, G. M. (2000): Brasileiro fala português: monolingúismo e pre-

conceito linguístico, in SILVA, F. & MOURA, H. (orgs.), O direito à fala:a questão do preconceito linguístico, Florianópolis, Insular.

PAGOTTO, E. G. (1998): Norma e condescendência; ciência e pureza, inLínguas e Instrumentos Linguísticos, 2: 4.9-68.

PAIVA, M. C. & SCHERRE, M. M. P. (1999): Retrospectiva sociolingúística:contribuições do PEUL, in D.E.L.T.A., vol. 15, 11° especial (Trintaanos de ABRALIN): 201-232.

PINTO, E. P. (1990): A Gramatiquinha de Mário de Andrade: texto e con-texto. São Paulo, Duas Cidades.

POSSENTI, S. (1996): Por que (não) ensinar gramática na escola. Campi-nas, Mercado de Letras.

SILVA NETO, S. (1986 [1950]): Introdução ao estudo da língua portuguesano Brasil. 5a ed., Rio de Janeiro, Presença/INL.

SOARES, M. (1998): Letramento: um terna em três géneros. Belo Horizonte,Autêntica.

SOARES, M. (1999): Português: uma proposta, para o letramento. São Pau-lo, Moderna (coleção didática com 4 volumes).

TARALLO, F. (1993): Diagnosticando uma gramática brasileira: o portugu-ês d'aquém e d'além mar ao final do século XIX, in RoBEBTS & KATO(orgs.), Português brasileiro: uma viagem diacrônica, Campinas,Unicamp.

199