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Linguagem jornalística, estranheza e referência João Carlos Correia I A estratégia escolhida para este texto começa por dar conta de algumas das dificuldades que se relacionam directa ou indirectamente com a emergência recente de um leque vasto de transformações identitárias e sistémicas que se tornaram uma característica importante das sociedades actuais. Tais transformações são resultantes dos processos vigentes na modernidade tardia que conduzem ao aumento da fragmentação cultural e do pluralismo social. Seguidamente, apresenta-se o conceito de mundo da vida essencial para a compreensão dos fenómenos identitários, em especial no que respeita à problemática da sua relação com a identidade. Finalmente, chama-se a atenção para as potencialidades democráticas do jornalismo, relevantes ao nível da linguagem utilizada, indutora de possibilidades de permear o contacto entre identidades diversificadas e entre o mundo da vida quotidiana e outras realidades mais complexas. Dá-se, pois, conta da linguagem jornalística enquanto elemento de intermediação entre diversas províncias finitas de significado, que confere ênfase a uma vivência pós- convencional das identidades ao mesmo tempo que permite o diálogo entre realidades múltiplas dotadas de racionalidades específicas e de modelos cognitivos diversificados, II O tema das identidades cruza-se com a análise dos media, designadamente com a análise dos efeitos produzidos pelos dispositivos tecnológicos de mediação, a diversos níveis. É fácil descortinar articulações entre as formas de pensar a sociedade e analisar as identidades, por um lado, e os estudos sobre jornalismo, por outro. A concepção do sujeito como consumidor passivo das mensagens é naturalmente acompanhada pela ênfase dada à

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Page 1: Linguagem jornalística, estranheza e referência · Linguagem jornalística, estranheza e referência João Carlos Correia I A estratégia escolhida para este texto começa por dar

Linguagem jornalística, estranheza e referência

João Carlos Correia

I

A estratégia escolhida para este texto começa por dar conta de algumas das

dificuldades que se relacionam directa ou indirectamente com a emergência recente de um

leque vasto de transformações identitárias e sistémicas que se tornaram uma característica

importante das sociedades actuais. Tais transformações são resultantes dos processos

vigentes na modernidade tardia que conduzem ao aumento da fragmentação cultural e do

pluralismo social.

Seguidamente, apresenta-se o conceito de mundo da vida essencial para a

compreensão dos fenómenos identitários, em especial no que respeita à problemática da sua

relação com a identidade.

Finalmente, chama-se a atenção para as potencialidades democráticas do jornalismo,

relevantes ao nível da linguagem utilizada, indutora de possibilidades de permear o

contacto entre identidades diversificadas e entre o mundo da vida quotidiana e outras

realidades mais complexas.

Dá-se, pois, conta da linguagem jornalística enquanto elemento de intermediação

entre diversas províncias finitas de significado, que confere ênfase a uma vivência pós-

convencional das identidades ao mesmo tempo que permite o diálogo entre realidades

múltiplas dotadas de racionalidades específicas e de modelos cognitivos diversificados,

II

O tema das identidades cruza-se com a análise dos media, designadamente com a

análise dos efeitos produzidos pelos dispositivos tecnológicos de mediação, a diversos

níveis.

É fácil descortinar articulações entre as formas de pensar a sociedade e analisar as

identidades, por um lado, e os estudos sobre jornalismo, por outro. A concepção do sujeito

como consumidor passivo das mensagens é naturalmente acompanhada pela ênfase dada à

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força coesiva do campo jornalístico; a importância conferida à adaptação na formação da

personalidade acompanha uma análise do jornalismo efectuada em função da sua

capacidade de contribuir para a maior coesão ou funcionalidade sociais; a crença na

existência de formas de sociabilidade que favorecem o debate argumentativo sobre as

questões de interesse colectivo ou as teorias que reconhecem a dimensão plural da

construção da realidade constituem um ponto de saída para as visões unilaterais que

realçam a capacidade hegemónica dos meios de massa em geral e do jornalismo em

especial.

Genericamente, concepções deterministas da sociedade e da cultura originam

concepções deterministas do papel desempenhado pelo campo jornalístico. Ao invés,

concepções pluralistas da sociedade e da cultura terão o seu correlato em visões

semelhantes sobre o jornalismo, no funcionamento do respectivo campo, na recusa da

sobre-determinação da linguagem pelos imperativos organizacionais e sistémicos, na

emergência de posições negociadas entre os emissores e as audiências.

Se tivermos em conta uma abordagem dos efeitos de longo prazo, não é possível

deixar de encarar os enunciados jornalísticos como recursos simbólicos com um

considerável impacto no reforço e até na construção das identidades. Mas,

simultaneamente, terá de se admitir que a emergência das identidades, com a sua

capacidade de induzir fragmentação, funciona como um elemento que produz, com

frequência, contextos hermenêuticos diversificados difíceis de compatibilizar com

concepções rigidamente unilaterais e deterministas das audiências na relação interpretativa

com esses mesmos enunciados. Assim, é impossível negar a importância da linguagem

jornalística na formação das concepções do mundo, na construção dos consensos sociais, na

percepção dos desafios inerentes ao ambiente social envolvente, na criação de espaços de

estabilidade e segurança, na determinação da experiência identitária. Porém, terá de

simultaneamente de se ter em conta o modo como o campo jornalístico, seja ao nível

organizacional, seja ao nível da linguagem, reflecte uma visão complexa dos conflitos de

interesses e das desigualdades nas relações de poder e de dominação nas sociedades

complexas.

III

A noção de identidade encerra, em simultâneo, a ideia de semelhança e de diferença,

que constitui o núcleo da problemática social. As relações sociais devem ser entendidas de

uma forma dualista. A harmonia, a cooperação e a união são acompanhadas pela

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concorrência e pela repulsão, pelas forças individualistas e irregulares que atravessam a

sociedade. A sociedade estabelece-se de acordo com polaridades ideais como sejam a

imitação versus a distinção, a integração versus a oposição, a aproximação versus a

distanciação (Vanderberghe, 1997: 117-118; Simmel, 1994: 88-126). A identidade, por

isso, oscila constantemente entre aquilo que nos torna idênticos e aquilo que nos faz únicos.

No acto comunicativo, o actor social emerge como idêntico aos seus pares e ao mesmo

tempo, único, diferente dos outros.

Na pré-modernidade, a identidade era algo que não era objecto de problematização.

O indivíduo estava estruturado por instituições a que obedecia e que se mantinham sólidas e

inabaláveis: a comunidade em que se inseria, a tradição cultural em que se inscrevia, a

família em que dera os primeiros passos na sua socialização. Um primeiro tipo

caracterológico específico desta forma de socialização expressa-se, seguindo a tipologia de

Riesman, no homem dirigido pela tradição (Riesman et al., 1961: 9 e seguintes). As pessoas

pré-modernas acreditavam que o seu destino era o resultado de um poder que as

transcendia. Esta fixação a priori de um telos indiscutível tornava impossível considerar a

contingência como fazendo parte do núcleo da identidade (Heller, 1999: 34).

Nas sociedades estratificadas, as identidades integram o todo homogéneo

constituído pela realidade social e cultural, cuja construção cabe em exclusividade a uma

dada elite social, detentora das competências necessárias ao desenvolvimento de uma

narrativa teológica que ditava o destino dos agentes sociais.

Esta condição alterou-se profundamente na modernidade, quando o sujeito ocupou

a centralidade de todas as questões. Poderíamos, abreviadamente, continuando a seguir a

mesma tipologia de Riesman, falar de um segundo tipo – o tipo auto-dirigido, que se

constitui como paradigma das identidades modernas na longa caminhada que vai da

Renascença ao Século XIX (Riesman et al., 1961: 14 e seguintes). É o momento da

formação da perspectiva humana, da afirmação do individualismo burguês, seguida

posteriormente pelo primado da razão, da consolidação do espírito capitalista com o seu

corolário nos séculos XVIII e, em especial, no século XIX. As instituições modernas

diferem de todas as formas de ordem social precedentes no que diz respeito ao seu

dinamismo, ao grau de erosão dos hábitos e costumes tradicionais e à universalização das

suas consequências.

Quando se verifica a consolidação do desenvolvimento capitalista e da sociedade de

consumo de massas, David Riesman considera a existência de um terceiro tipo

caracterológico chamado altero-dirigido, especialmente dirigido para a aprovação dos

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outros (Riesman et al., 1961: 17 e seguintes). O que é comum aos tipos altero-dirigidos

consiste em que os seus contemporâneos são a sua principal fonte de direcção, sejam esses

contemporâneos aqueles com os quais se relacionam directamente ou aqueles com os quais

entram em contacto indirectamente através dos media.

Sucessivas escolhas filosóficas ou sociológicas irão falar do conformismo da

sociedade de massa. Critica-se a linha de produção, o industrialismo, a técnica, os mass

media e o empobrecimento da criatividade e da individualidade. A identidade parece, nesta

abordagem, definir-se pela imitação do que é socialmente correcto. David Riesman procede

a uma arrumação conceptual que, como reconhece o próprio Max Horkheimer, parece

seguir a análise formulada pela Escola de Frankfurt (Wiggershaus, 2002: 460). Porém,

como a maioria das abordagens que seguiram o modelo da crítica à sociedade de massas,

quer os franckfurtianos quer Riesman ignoraram a totalidade das tensões contraditórias que

o capitalismo introduzia ao provocar a corrosão dos costumes e tradições. O tipo

caracterológico altero-dirigido, tal como é apresentado, não esgota os mecanismos culturais

e de socialização que a modernidade tardia iria consolidar ou fazer emergir. Ao lado do tipo

altero-dirigido, surge uma deriva que se traduz na afirmação da autenticidade e da

originalidade individuais. A forma reificada de busca da aprovação social tão visível no

ambiente cultural da sociedade de consumo dos anos 50 é apenas uma das formas possíveis

de afirmação da subjectividade individual.

IV

Para além destas transformações, emerge, desde o século XIX, um quarto tipo

caracterológico sem que a sua importância fosse logo detectada em classificações mais

marcadas pelo espírito moderno. Este tipo novo é muitas vezes identificado com a pós-

modernidade. Porém, a sua longevidade histórica e cultural está provada pelas impressões

deixadas na obra de um Simmel (1984), de um Alfred Schutz (1962), de um Benjamin

(1987). Encontramo-lo já, no plano literário em sensibilidades estetizantes como as de

Rimbaud, Baudelaire e Wilde e, mais perto de nós, em Musil. Esta nova sensibilidade

acentua uma nova ideia de sujeito que passa pela criação auto-experimental, entendida

como um aprofundamento da liberdade em detrimento dos vínculos sociais e normativos.

Este tipo caracterológico identifica-se com a forma de experimentar o self como

algo completamente aberto à mudança. Cultiva a ausência de raízes. Vive da recusa dessas

raízes ou escava, à sua volta, em busca delas, incitado pela sensação penosa que a ausência

de tradições e de horizontes significativos produz.

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De acordo com a definição que dá de si mesmo ou com as teorias que

expressamente se lhe referem, surge como um produtor de significado independente dos

horizontes onde coexiste com os seus semelhantes. Ainda burguês, mas excêntrico e

boémio, tem um dos seus ícones na imagem do flaneur e alimenta-se do poder

transformador das máscaras e da moda. O novo tipo caracterológico foge às classificações

definitivas. As transformações introduzidas pelo Iluminismo, objecto de uma radicalização

recente na modernidade tardia, têm a ver sobretudo com a ausência de um telos inerente à

condição humana: a existência passa a ser um conjunto aberto de possibilidades que

implicam uma decisão (Sartre, 1999: 49). Nas novas condições abertas pela modernidade,

pode dizer-se: é-se sendo, o que faz de cada uma das nossas maneiras de ser, estilos de vida

e situações biográficas algo que podia ser, sempre, de outro modo. Tal novo tipo descobre

nas aventuras do self em busca de si (experiências estéticas, êxtases induzidos, mutações de

estilo de vida, recurso à moda e ao vestuário como forma de infringir fronteiras sociais e

culturais) a chave que lhe permite ao mesmo tempo ser ele próprio e poder ser de um outro

modo.

Finalmente, descobre-se a co-presença de todos estes tipos caracterológicos. Eles

estão todos presentes nesta época que dizemos «nossa». Assiste-se a poderosas expressões

da identidade que incorporam movimentos «pró-activos» que contribuem para a

transformação das relações humanas ao seu nível mais essencial como o feminismo e o

ambientalismo. Assiste-se, também, a uma gama vasta de movimentos reactivos que cavam

a sua resistência em termos de em defesa de Deus, da Nação, da Etnia ou da Religião

(Castells, 2003: XXII). Constata-se, ainda, a existência de afirmações identitárias que

resultam de novas trincheiras erguidas em torno de definições simbólicas de grupo,

relacionadas com o género, a orientação sexual, a geração ou a partilha de símbolos

(iconográficos, textuais ou outros) ou até de uma fuga sem fim a toda e qualquer ideia de

classificação identitária. Assiste-se a uma heterotopia que substitui a utopia, numa voragem

de liberdade através da fuga às formas mais passivas de constituição do sujeito,

classificadas nalguns horizontes teóricos como sendo «reificação» (cfr. Vattimo, 1992).

Esta situação «pós-moderna» pode ser multiplicada, por sua vez, em manifestações

diversificadas. Nas sociedades fragmentadas, muitas novas formas de pensar e de afirmar a

identidade são a mistura de muitos tradições. Capitéis Jónicos, roupas orientais, cortes de

cabelo afro ou asiáticos, casas de estilo colonial, pirâmides de Las Vegas (já tão conhecidas

como as de Gizé) não são experimentadas como verdadeiras pirâmides, autênticas roupas

orientais ou genuínos capitéis helénicos. São lançados numa mistura de estilos nos quais se

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joga simultaneamente uma estratégia de paródia e de simulação. A interdependência global

e a presença ubíqua da diversidade criaram uma situação diversa marcada pelo recurso

constante à citação e à auto-ironia, e pela consciência marcante dessa diversidade. Há

desejos de identidade que parecem afirmar-se por uma espécie de «faz de conta» em que o

“vamos fazer à maneira de x” se torna um substituto de “somos x”. Noutras manifestações,

gera-se, paradoxalmente, um desejo obsessivo de tradição e de fundamento que pode

conduzir à submersão do sujeito numa forma regressiva de comunidade, em que a tradição

se funde com um desejo de exclusão.

V

A análise da constituição das identidades implica uma remissão, que se afigura

relativamente óbvia, para os processos de transmissão cultural, de transmissão de

expectativas e de formação da personalidade. Uma parte importante da densidade

sociológica do processo identitário tem o seu coração e cerne na problemática expressão

«mundo da vida»

«Mundo da vida social», «mundo do senso comum», «mundo da vida quotidiana»,

ou «mundo quotidiano» acabam por ser expressões variantes para o mundo experimentado

pelo agente social. Evidencia-se antes de mais como um mundo intersubjectivo comum a

todos, no qual predomina não o interesse teórico mas um interesse fundamentalmente

prático e que, por isso, se oferece primeiro a uma abordagem pragmática e só

secundariamente, a uma atenção reflexiva (Schutz, 1976: 72).

Neste mundo da vida social e cultural, a sua realidade é tida como certa pelos

homens comuns que o integram. “É um mundo que se origina no pensamento e na acção

dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles” (Berger e Luckman, 1973: 36). A

atitude cognitiva típica do actor é a atitude natural a qual toma como dado o mundo

existente e as suas leis, o qual implica uma certa familiaridade e uma certa «tipicidade».

Quando se refere a familiaridade do mundo, alude-se ao seu carácter de tido por adquirido –

taken for granted na expressão schutziana – que lhe é atribuído pelos agentes sociais e

graças ao qual se confia em que o reportório de conhecimentos transmitido pelos

antecessores e formado pelas experiências continuará a preservar a sua validade

fundamental (Schutz e Luckmann, 1973:7).

Quando se alude à característica da «tipicidade», entende-se o facto de os agentes

sociais reproduzirem rotineiramente, na atitude natural, as condições dessa realidade. Na

análise a que se procede do mundo da vida, “o mundo e os seus objectos individualmente

considerados são sempre pré-organizados por actos de experimentação prévia dos mais

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diversos tipos” (Schutz, 1962: 94). A actividade da consciência é tipificadora porque cada

experiência do actor ocorre dentro dum horizonte de familiaridade e pré-conhecimento

proporcionando um reportório de conhecimentos disponíveis cuja origem é

fundamentalmente social. Os sujeitos aproximam-se do mundo com recurso a esquemas

hermenêuticos organizados de acordo com as experiências do seu passado. Prevalece a

certeza de que o mundo da vida é um pressuposto que existe antes de cada agente social

específico e vai continuar depois de este desaparecer.

VI

Segundo as hipóteses estudadas por Schutz (1962), Berger e Luckmann (1973), as

realidades múltiplas ou âmbitos de significado finito são ordens de realidade dotadas de

critérios de significação específicos e que, a qualquer momento dado, têm um especial

estilo de ser que é característico apenas de si próprias. A título de exemplo, podem citar-se

o mundo dos objectos físicos, o mundo da ciência, o mundo das relações ideais, os vários

mundos sobrenaturais como sejam os da mitologia e da religião, o mundo dos visionários,

dos utópicos e dos loucos, o mundo da reflexão cívica, da reflexão especulativa, as várias

formas de vida marcadas por tradições específicas, etc. De entre estas realidades, há uma

que se apresenta como província padrão e que é referida como sendo «a realidade por

excelência»: trata-se do mundo da vida também chamado mundo da realidade quotidiana

cuja posição privilegiada autoriza a dar-lhe a designação de realidade predominante (Berger

e Luckmann, 1973: 38). A transição entre estes diversos âmbitos de significado finito

opera-se através de um choque graças ao qual se transcendem os limites do que é

considerado real dentro de cada um. Por exemplo, o sobressalto que desperta o sonhador é

um choque que o faz entender que os gigantes – verdadeiros no âmbito de significado finito

do devaneio do sonhador – são, no âmbito de significado finito do mundo quotidiano,

apenas moinhos de vento. Passa-se o mesmo na experiência religiosa, na experiência

estética, na experiência imaginária do faz-de-conta em que um ruído que interrompe certos

pensamentos e devaneios íntimos e nos desperta para a quotidianeidade (cfr. Schutz, 1962:

231). A consciência de um actor lê o universo de uma forma que implica transitar entre

estados particulares da realidade, por meio de diferentes atitudes e estados de consciência,

partindo e regressando desde e para o mundo da vida quotidiana, o tranquilo mundo das

evidências quotidianas, que se torna o ponto de partida e de chegada dessas transições.

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A teoria das realidades múltiplas, apesar de se constituir como uma proposta

antropológica mais vasta, indica um percurso analítico rigoroso sobre a contingência nas

sociedades complexas, que pode, como se terá oportunidade de verificar no capítulo

seguinte, ser aplica ao universo dos enunciados jornalísticos. Enquanto o mundo da vida

quotidiana comunica entre si através de signos – entendidos como artefactos culturais que

encontram o seu significado dentro desta província de significado finito – há outras

províncias de significado finito que só encontram o seu significado fora da esfera da vida

quotidiana. Por isso, utilizam linguagens próprios mais esotéricas compostas por artefactos

culturais diferentes dos usados na vida quotidiana.

Por isso, as ordens simbólicas especializadas tendem a desenvolver a sua particular

interpretação da sociedade e da natureza, com o auxílio de especialistas, peritos, estilos

cognitivos e modelos de relação com o mundo que lhe são próprios. Tais ordens simbólicas

geraram formas também elas específicas de olhar para fora a partir do interior de si

mesmas, a partir de critérios que têm a sua raiz no interior de si próprias. Porém, este pólo

da questão seria forçosamente unilateral e ineficaz se não fossem tidas em conta os

horizontes mais vastos que transcendem a forma de olhar de cada realidade sócio-cultural.

Tal implica a consciência do carácter relativo de cada olhar específico sobre o mundo.

A teoria das realidades múltiplas ao chamar a atenção para a pluralidade de estilos

cognitivos descobre a possibilidade de estudar formas de racionalidade diversas. Com

efeito, há espaços diferenciados e que são necessariamente possuidores de um olhar

próprio. O senso comum é espontâneo e potencialmente inteligível por todos. A ciência

implica a intervenção de uma forma de racionalidade especializada dotada de métodos

específicos compartilhados apenas por aqueles que possuíram uma formação específica e o

acesso às instituições responsáveis pelo saber que lhe é específico. As várias formas

culturais possuem sacerdotes específicos. Cientistas e médicos criam formas de classificar

que lhe são próprias. Cada uma destas províncias da realidade é, no entendimento de

Schutz, uma província de significado finito. Ora, a potencialidade democrática dos media e

dos enunciados jornalísticos reside na sua ambição de ultrapassarem as barreiras semânticas

familiarizando o cidadão comum com outros cidadãos comuns que usam uma lógica e uma

gramática próprias da sua tradição ou com outras províncias de significado cujas lógica e

gramática são precisamente distintas da do homem comum.

O esoterismo das linguagens especializadas feitas a pensar naqueles que dispõem de

um monopólio de saber confronta-se com o exoterismo da linguagem vulgar e quotidiana e

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com as potencialidades democráticas da linguagem jornalística, caracterizada, também ela,

pelo exoterismo e pela possibilidade de estabelecer pontes entre espaços cognitivos ou

identitários diversificados.

A atitude cognitiva própria do mundo da vida é a atitude natural, o reconhecimento

da familiaridade e da tipicidade, a forma natural de olhar o mundo como algo de quotidiano

que não encerra segredos para o homem comum. Porém, a pluralidade de realidades sociais

e culturais implicam a abertura à diferença. Traz em consigo um certo cosmopolitismo e

um espaço de desenraizamento em relação ao mundo quotidiano. Como fazer com que esse

desenraizamento se processe sem consequências dramáticas?

VII

O enunciado jornalístico é um dos dispositivos simbólicos que dá a resposta a este

problema. Cada vez mais, os seres humanos agem em relação à realidade com base no

significado que lhe atribuem. A linguagem dos media e a linguagem efectivamente

praticada no campo jornalístico desempenha um papel fundamental na experiência que

temos do mundo. O enunciado jornalístico e a linguagem que lhe é própria reflecte os

processos de socialização e de integração do mundo da vida mas também transporta

consigo as tensões e contradições de uma sociedade marcada pelo ritmo do aumento

inusitado da complexidade. Entendido num sentido bem preciso, a linguagem jornalística

está no meio termo.

Aproxima-se, é certo, do quotidiano. O conceito de audiência presumida levado a

efeito por Alfredo Vizeu (2005) (ou seja, a incorporação na Teoria da Notícia de uma

reflexão atenta sobre as marcas que enunciam a preocupação com a audiência) revela

como essa quotidianeidade se apresenta. Porém, ao mesmo tempo, também é a linguagem

própria do jornalismo que aproxima a quotidianeidade dos espaços de diferença e de

estranheza. Não é exagero pois dizer que a linguagem jornalística é, tal como outras, mas

de forma intensa do que outras, lugar de tensão entre a unidade e a pluralidade, entre o

uno e o diverso, entre os fenómenos de objectivação e a introdução de novas dinâmicas.

Tenta explicar a ciência, os fenómenos sociais, os fenómenos políticos de um modo que

o sobressalto que eles introduzem no quotidiano seja suavizado. Por isso, a descrição que

os jornalistas fazem da AIDS é diversa da do médico ou do especialista. Se a linguagem

do jornalismo se ficasse numa espécie de entendimento acrítico do quotidiano podia

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tornar-se sensacionalista e reflectir apenas os preconceitos da comunidade. Porém, se ela

se aproximasse da linguagem do especialista perderia a sua capacidade de tornar o que é

difícil, mais acessível. Se na relação com as identidades, o jornalismo fosse pura

reprodução do pensamento comum poderia ficar prisioneiro dos preconceitos,

estereótipos e tipificações com base nas quais se ergue a componente menos dinâmica do

mundo da vida. A sua natureza implica uma abertura descontraída à explicação do outro

sem cair no pedagogismo mas tentando que a sua mensagem se incorpore na atitude

natural dos cidadãos médios.

Numa clarificação destas hipóteses, surge a possibilidade de o jornalismo se

afirmar como um lugar de referência. Tal lugar é um espaço próximo à quotidianeidade,

que transporta em si a tranquilidade próxima da atitude natural mas que incorpora um

universo de realidades distantes que são clarificadas de um modo didáctico que permite a

fagocitação e absorção possíveis pelo mundo da vida. A criação deste lugar implica um

conjunto de procedimentos que naturalizam, tranquilizam e familiarizam.

VIII

A estranheza é um elemento decisivo na obra de Alfred Schutz geralmente pouco

explorado, apesar de presente na totalidade dos seus escritos. Judeu, austríaco, emigrante

perseguido, dotado de talentos diversificados e até difíceis de conciliar, (forte habilidade

económica e negocial, sensibilidade musical, paixão filosófica praticadas em doses quase

iguais), o autor do ensaio “Realidades Múltiplas” viveu em condições (nomeadamente,

condições de exílio forçado) que lhe permitiram ter uma percepção aguda de noções tão

complexas como a de estranheza e de assimilação. Em “The Stranger” (1976: 91-105) faz

questão de afirmar que o conhecimento do mundo do senso comum, próprio de uma

comunidade bem integrada, possui uma aparência de coerência, clareza e consistência para

os que dele participam, embora muitas vezes esteja apenas coberto por um manto de

suposições e de ignorância. Recorrendo a este quadro conceptual, podem-se recolher

elementos importantes para um tipo particular de estranheza: aquela que resulta de

identidades diferentes das nossas. Uma forma de vida cultural caracterizada pela partilha de

valores culturais diferentes (imaginemos um português que emigra para o Brasil ou vice-

versa) confronta-se com uma diferença que não é propriamente comparável aquela que

distingue o universo do quotidiano do universo do cientista. Ambos estão no plano da vida

quotidiana mas há uma incoincidência entre os seus quotidianos que é tanto mais incómoda

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quanto há, ao mesmo tempo, uma sensação de grande familiaridade resultante da partilha de

uma língua parecida.

O sistema de conhecimentos das formações culturais transporta um certo grau de

auto-evidência que se mantém até prova em contrário, pelo que implica a eliminação de

questões problemáticas em contrapartida de receitas prontas para serem usadas. Ora, para o

«estranho», o padrão cultural que dá suporte a estas receitas não tem a mesma autoridade

que possui para aqueles que o interiorizaram como fazendo parte da sua experiência vivida.

Para o «estranho», a cultura do grupo dominante nunca fez parte da sua biografia pessoal.

Ele está, por definição, excluído das experiências passadas que permitiram a construção

dessa cultura e a sua assimilação pelas pessoas que a integram. A sua fugaz presença torna-

o frequentador de um espaço social ambíguo e mal delimitado.

Objecto de uma experiência de desenraizamento semelhante à de Schutz, Bauman

(exilado pelas autoridades polacas) conduziu a problemática da estranheza ao seu limite,

demonstrando como esta se coloca num espaço vulnerável para as tentativas de

desconsideração da identidade. O «estranho» não se expõe, a maior parte das vezes, à

experiência do reconhecimento mas é exposto, antes, a uma espécie de tranquilo

aniquilamento. Amigos e inimigos colocam-se em oposição uns aos outros, sendo passíveis

de desenvolverem entre si um confronto com repercussões éticas e políticas. Os primeiros –

amigos – são os que os segundos – inimigos – não são e vice-versa. Porém os estranhos não

são inimigo : não se encaixam. Por isso, se a pura afirmação da identidade, reduzida à sua

condição mais brutal e pura, transporta consigo os riscos de uma crueldade arrogante, a

pura desqualificação da identidade é, também ela, uma forma de terror: a ignorância ou

menosprezo por alguns dos elementos íntimos que permitem o reconhecimento de cada um

como pessoa.

Pertencentes à família incómoda dos indefiníveis, os «estranhos» envenenam o

conforto da ordem, paralisando o exercício da possibilidade classificatória. Permanecem,

deste modo, não como inclassificados mas como inclassificáveis. Têm todas as marcas do

inimigo, mas, ao contrário dos inimigos, não são mantido a uma distância segura:

encontram-se entre nós e reivindicam até o direito de ser objecto de responsabilidade, o que

é um atributo apenas reconhecido ao amigo (Bauman, 1995: 66 e 68).

Os «estranhos» são uma marca da modernidade tardia: desempregados num mundo

onde o trabalho faz parte da normalidade mundana; apátridas porque viram diluir-se uma

nação que tinham como um referente seguro; vítimas de uma assimilação fictícia,

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embarcam em comboios nocturnos com a ilusão de estarem demasiado integrados para que

possam ser esmagados por um qualquer desvario político-ideológico que os classifique de

parasitas; construtores de «pátrias exiladas» em bairros da capital, embora de África só

conheçam o que lhes é contado, ambicionam uns ténis Nike porque querem calçar da

mesma forma que os colegas ricos; velhos num mundo de jovens exuberantes. Não são bem

inimigos mas são mal sucedidos no esforço para serem acolhidos no seio fraternal da

amizade. De qualquer forma, não “nos pertencem”. O seu olhar sobre a identidade é vítima

de um desenraizamento e de uma contingência que só ocasionalmente se pode tornar

cultural e politicamente produtivo. Com efeito, “quando a identidade perde as âncoras que a

faziam parecer «natural», pré-determinada e negociável, a «identidade» torna-se cada vez

mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um «nós» ” (Bauman,

2004. 30). Homens sem qualidade e sem vínculo, os estranhos liquefazem-se ou

cristalizam-se em novas figuras que preenchem o esvaziamento das suas raízes identitárias.

IX

A necessidade de ter em conta a relação com a estranheza é fundamental para uma

reflexão sobre as formas de inclusão e de exclusão e consequentemente, para a análise da

«função» integradora e socializadora que os discursos centradas na informação pública – de

que o jornalismo é um exemplo maior – são convidados a desempenhar. A problemática

política e comunicacional do papel do jornalismo nas sociedades complexas tem um dos

seus ângulos mais delicados na análise crítica das representações sociais das identidades.

Já vimos que o jornalismo vive numa dialéctica de tranquilização das suas

audiências ao mesmo tempo que lhes fornece o contacto com o que é estranho. Ora, com

toda a modéstia, entendemos que a função da comunicação mediática – também a do

jornalista – é suscitar a aproximação de um modo tal que aquilo que é exótico, estranho ou

inacessível, chocante ou simplesmente diferente, se aproxime das referências da nossa

quotidianeidade. Esta é a lógica que está por detrás deste exemplo, apresentado por Adriano

Lopes Gomes da Universidade do Rio Grande do Sul no Congresso de Jornalismo e

Ciências da Saúde levado a efeito em 2005 na Universidade Fernando Pessoa. O trabalho

do pesquisador refere o modo como a Secretaria de Estado do Rio Grande do Norte utiliza

desde 1993 a literatura de cordel para campanhas de educação comunitária para a Saúde,

como esta cançoneta popular que relata os perigos do HIV:

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Na rua onde residia

Ele era muito afamado,

Pois além de bonitão

Tinha a fama de tarado;

Seu negócio era transar,

Mas não pensava em casar

Para não viver amarrado.

Cada dia uma mulher

Passava na sua mão

Como passa a ventania

Como faz o furacão.

Rompendo qualquer barreira,

Zé, com sua furadeira,

Não perdia a ocasião.

Depois de contaminar a esposa e o filho de que ela se encontrava grávida, a cançoneta

traz consigo a advertência:

E seu João, todo saudade,

Faz seu alerta geral:

Use sempre camisinha

Na transa sexual,

Transe com a mesma pessoa

Pois vida é coisa boa

E AIDS é dor, grande mal.

Trata-se evidentemente de uma estratégia que pretende pegar nos elementos formais da

quotidianeidade e re-utilizá-los no mundo da publicidade institucional. Este folheto

demonstra como há uma questão central nos media que pode bem ser aplicável ao

jornalismo. Como trazer o que é distante para o mundo quotidiano, originando a

acessibilidade sem destruir o rigor, nem ceder aos preconceitos do mundo da vida?

Como exemplos desta dificuldade, Nelson Traquina recorda-nos a utilização da

expressão «cancro dos homossexuais» para se referir ao SIDA, expressão esta usada

num dos melhores jornais de referência portugueses: “O Diário de Notícias”. Da mesma

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forma recorda a divulgação do ícone de um fantasma associada à imagem do pavor e da

morte relacionada directamente com a epidemia., (Correio da Manhã) (Traquina, 2001:

153-193;Traquina, 2004: 81: 107). (Traquina, 2004, 81: 107). Kinsella (citado por

Correia, (2005) recorda como em 1989, The Sun apresentou um manchete que

afirmava : “Straight Sex Cannot Give You AIDS”. Uma mensagem semelhante era

repetida na primeira página do Daily Mail e Daily Express. O Editorial do Sun

considerava as campanhas de saúde pública como “propaganda homossexual”.

Acrescentava-se entaõa: “Forget the television adverts, forget the poster campaigns,

forget the endless boring TV documentaries and forget the idea that ordinary

heterosexual people can contract AIDS”.

Num outro plano de abordagem dos temas que fogem ao quotidiano – neste caso, a

diferença identitária e a guerra - o problema surge de novo. A grande questão é, neste

caso, como tratar a diferença sem abolir o rigor. Como falar dos muçulmanos sem cair

nalguns exemplos de histeria militante da FOX News, uma espécie de cruzamento letal

entre uma espécie de herói dos jogos de consola com o jornalismo partidário? Como

pode um jornalista muçulmano falar dos americanos sem se comportar como um

Hossana Bin Ladem armado de microfone? Se estas perguntas ainda são

suficientemente extremas para poderem produzir respostas óbvias (pelo menos no plano

da intenção e da ética), a questão aproxima-se mais do objecto deste trabalho quando a

pergunta seguinte for: “é possível a um jornalista iraquiano mostrar os americanos

comuns sem os estigmatizar com recurso a enquadramentos «fundamentalistas» “”? Ou

é possível a um jornalista ocidental abordar os afegãos como gente comum que vive e

sofre para além dos preconceitos? Mais ainda: é possível a um jornalista americano ou

afegão fazer isto e trazer estas realidades que lhe são opostas para junto do mundo

quotidiano dos seus sem provocar repulsa às suas audiências? E finalmente, será que

para evitar a repulsa não se cai no risco de sacrificar a verdade aos preconceitos que

estruturam esse mundo da vida? Quais são os limites da tradução da diferença?

No caso português, as representações mediáticas das identidades conhecem percursos

muito diferençados. A representação das etnias, eventualmente alvo de maior atenção

por causa da sua dimensão e impacto na vida quotidianas, oscila entre as notícias sobre

gangs e arrastões, quebra de segurança, delinquência de grupo, vigilância policial e

histórias de racismo. Periodicamente, surgem notícias sob as condições de imigração.

Frequentemente, pressente-se a curiosidade sobre os elementos exóticos das culturas

urbanas.

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A luta pelas audiências continua facilmente compatível com um registo estilístico

que, frequentemente, corre o risco de uma estigmatização populista. Os episódios

relacionados com o tratamento da prostituição brasileira em certas zonas do interior do País

revelam a preferência por um enquadramento marcado pelo choque de dois estereótipos

identitários: o Portugal rural e profundo – «as mães» como se identificaram as mulheres de

Bragança quando assinaram uma petição contra a abertura de cabarés na região versus a

imagem sensual e atrevida da «brasileira» – as outras. A representação do chamado

“arrastão” pelos media nacionais demonstrou as dificuldades com que se defronta a

representação das identidades e das etnias e evidenciou a existência de tiques

antropocêntricos e até de racismo ou de xenofobia mais ou menos subliminares ou

manifestos (cfr. Correia, 2005: 40).

Metaforicamente, esta relação entre o que nos é estranho e o que nos é próximo

poderia implicar a existência de d um continnum entre a) e b) [a __________________b]

sendo “a”, a sintonia com a quotidianeidade abslouta e “b” a diferença que se opõe sobre

várias formas a essa quotidianeidade. Em a) o jornalismo estaria, por exemplo, das

características do senso comum enquanto em b) mais próximo das características do saber

científico, seja ele de natureza exacta ou social Em termos de operacionalidade, podíamos

colocar a hipótese que a atitude que corresponderia a um melhor cumprimento profissional

do contrato tácito estabelecido com os público estaria a meio entre a) e b), ou seja,

suficientemente longe da vida quotidiana para significar algo de novo mas suficientemente

chegado a a) para que não perdesse a relação com a audiência a que se dirige. Uma

informação que atingisse este ponto ideal seria suficientemente clara, explícita e didáctica

para poder ser absorvida pelo mundo quotidiano. Porém, seria suficientemente crítica para

poder introduzir elementos de reflexividade crítica no mundo da vida.

Neste sentido, a referência ao jornalismo como uma teoria do conhecimento posta

em prática” realça a a sua natureza. Como parece admitir Meditsch (2002) na senda de

Paulo Freire e Robert Park não faz sentido comparar o jornalismo com a ciência, mas

apenas contar com a sua especificidade. O jornalismo abandona as pretensões de validade

associadas à compreensão científica dos fenómenos mas fica além do simples

funcionamento como caixa de ressonância dos valores comunitários. Não chega a atingir o

momento em que colabora na actividade em que se desenvolverão as capacidades dos

actores ganharem uma consciência crítica fundadora de um projecto interventivo no plano

social ou outro. Não chega a atingir o verdadeiro estatuto de um knowledege about, para

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Page 16: Linguagem jornalística, estranheza e referência · Linguagem jornalística, estranheza e referência João Carlos Correia I A estratégia escolhida para este texto começa por dar

utilizar a expressão de James e de Park. Mas reúne algumas das condições que lhe

permitem serem considerados como uma prática de conhecimento, um termo para o qual se

denota a feliz confluência de atenção ao quotidiano que é tão importante em obras tão

distintas como as Charles Sanders Pierce ou Dewey, António Gramsci e Paulo Freire, ao

qual acrescentaria Schutz. Isto é, como forma de conhecimento, o jornalismo supera os

limites do senso comum, ou pelo menos introduz uma utilização diferente dos dados

apreendidos pela atitude natural na vida quotidiana. Induz o aparecimento de um cidadão

bem informado mas fica numa zona que recusa o esoterismos das linguagens especializadas

dos peritos. Nesse sentido, ele supera as distâncias entre as duas culturas de uma forma

outra. Qualquer comunicador que se aproxima do quotidiano para o compreender sente,

salvaguardadas algumas distâncias, algumas das obsessões dos cientistas sociais que nos

finais do século XIX optaram por recusar o objectivismo e o cientifismo que os chamava a

olharem para os factos sociais como coisas. Como explicam Vizeu e Correia (2006), em

texto ainda inédito, “A eficácia da atividade jornalística e o Conhecimento do Jornalismo

estão intimamente ligados ao que Freire (1995) colocava como a capacidade de abrir a

alma da cultura, de aprender a racionalidade da experiência por meio de caminhos

múltiplos, deixando-se molhar, ensopar das águas culturais e históricas dos indivíduos

envolvidos na experiência. É dimensão crítica do conhecimento jornalístico, num

imbricamento entre teoria e prática.” Vista de perto esta conclusão representa bem mais do

que se possa pensar: com efeito, a própria ciência como Schutz, Apel, os Pragmatistas e

muitos outros demonstraram também ela já acolhe uma maior abertura ao senso comum e à

opinião publica, ao juízo colectivo e ao mundo da vida.

É comum olhar a informação generalista como associada ao mundo da atitude

natural. O jornalismo escolhe como objectivo principal, a capacidade de se relacionar com a

percepção mais óbvia e evidente do que é olhado como relevante. Para esse efeito, utiliza-

se um enquadramento que possa ser compreendido pelo maior número possível de

receptores e que seja, idealmente, olhado como passível de ser lido e assimilado

independentemente das diferentes opções políticas e formação cultural dos seus membros.

A preocupação evidenciada pelo estilo jornalístico em tornar as narrativas facilmente

compreensíveis e reconhecíveis estaria associada a esta busca de uma sintonia ideal com a

vida quotidiana dos seus cidadãos.

Apesar de tudo, há elementos que dificultam uma perspectiva unilateral:

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A transformação sócio-cultural no sentido da fragmentação de valores e de

costumes tiveram repercussões que se fizeram sentir na sensibilidade para uma agenda mais

centrada na problemática da cultura e das identidades: generalização do consumo de massas

nos anos oitenta, o aumento da mobilidade física, a erosão dos costumes, a modificação do

estatuto da mulher gerou alterações identitárias que se reflectem na percepção do corpo, na

ideia de prazer, na organização da família, na noção de humor, na vivência da religião e nas

formas de socialização.

A emergência de reivindicações e de movimentos relacionados com a política da

vida – entendidas como conjunto de preocupações que emergem na polis e não se debruçam

apenas sobre o devir do espaço público colectivo mas também sobre a realização

individual, a definição individual e a escolha de estilos de vida – deram uma oportunidade

para outros tipos de olhares jornalísticos mais sensíveis a este corpo de preocupações.

A busca de legitimidade cultural por parte de camadas sociais que finalmente

ascendem à visibilidade pública e a mistura de elementos de cultura dita erudita com

elementos de cultura popular contaminou o jornalismo, contribuindo para a generalização

das notícias centradas no rosto humano e para a alteração de prioridades e critérios de

noticiabilidade. Desde logo, a generalização de valores-notícia menos centrados na atenção

ao destino colectivo, tornou possíveloutros olhares sobre as identidades minoritárias:

espreita-se o ridículo, a inversão, a falha ou o excesso, a curiosidade divertida ou um

fascínio vagamente antropológico. Há uma espécie de desejo oculto de olhar o outro lado

da «normalidade», aquilo que não é percebido pela atitude natural.

Finalmente, num plano mais estrutural, o jornalismo está congenitamente ligado à

industrialização, à urbanização, à mobilidade e à erosão das tradições. Um olhar mais

atento, mostra, assim, como o medium de massa se torna um espaço do estabelecimento de

transições mais ou menos bruscas com outras realidades diferentes da vida quotidiana. O

jornalismo é cosmopolita. Apesar das enormes preocupações por parte de jornalistas,

editores e proprietários em fazerem um produto isento de complexidades, que confirme as

tipificações socialmente aceites no mundo da vida quotidiano, apesar da tendência para

construir o mundo com base na experiência e em rotinas quotidianamente adquiridas, os

media de massa encontram-se numa posição ambígua e reflectem as profundas contradições

no seio do campo: imperativos concorrenciais cada vez mais agressivos, desejo de

responder às audiências, fragmentação do mercado, imperativos deontológicos, cultura

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profissional, rotinas e disputas simbólicas entre fontes dotadas de acesso desigual entram

em tensão.

As informações noticiosas estão longe de se reduzirem a um retrato do mundo. Em

vez dos percursos lineares, unívocos e incontestáveis, chamam a atenção para caminhos

estreitos e árduos onde flúem possibilidades erráticas, mal definidas, «estranhos»

inclassificáveis que emergem no actual contexto de fragmentação da sociedade e do espaço

público.

Encontra-se, assim, no jornalismo, os traços de um movimento de oscilação:

oscilação entre um mundo da vida marcado pela tipicidade e pela familiaridade, onde as

identidades se mantém encerradas nas suas concepções relativamente naturais do mundo,

surgindo reciprocamente como estranhas, e outras realidades múltiplas, onde se assiste a

uma reflexividade crescente por intervenção de sistemas de linguagem diferenciados. Na

minha modesta opinião, a qualidade, termo estranho que tantas vezes nos faz pensar quando

escrevemos uma notícia, é uma relação assintótica e ideal com um ponto onde por um

instante fugaz atingimos esse equilíbrio. Ora é no regresso ao texto, na busca das marcas

enunciativas do conjunto de características que integram esta noção de qualidade, esta

busca insana desse equilíbrio, encontramos a possibilidade de tornar a nossa investigação

operacionalizável.

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