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Linguagem jornalística, estranheza e referência
João Carlos Correia
I
A estratégia escolhida para este texto começa por dar conta de algumas das
dificuldades que se relacionam directa ou indirectamente com a emergência recente de um
leque vasto de transformações identitárias e sistémicas que se tornaram uma característica
importante das sociedades actuais. Tais transformações são resultantes dos processos
vigentes na modernidade tardia que conduzem ao aumento da fragmentação cultural e do
pluralismo social.
Seguidamente, apresenta-se o conceito de mundo da vida essencial para a
compreensão dos fenómenos identitários, em especial no que respeita à problemática da sua
relação com a identidade.
Finalmente, chama-se a atenção para as potencialidades democráticas do jornalismo,
relevantes ao nível da linguagem utilizada, indutora de possibilidades de permear o
contacto entre identidades diversificadas e entre o mundo da vida quotidiana e outras
realidades mais complexas.
Dá-se, pois, conta da linguagem jornalística enquanto elemento de intermediação
entre diversas províncias finitas de significado, que confere ênfase a uma vivência pós-
convencional das identidades ao mesmo tempo que permite o diálogo entre realidades
múltiplas dotadas de racionalidades específicas e de modelos cognitivos diversificados,
II
O tema das identidades cruza-se com a análise dos media, designadamente com a
análise dos efeitos produzidos pelos dispositivos tecnológicos de mediação, a diversos
níveis.
É fácil descortinar articulações entre as formas de pensar a sociedade e analisar as
identidades, por um lado, e os estudos sobre jornalismo, por outro. A concepção do sujeito
como consumidor passivo das mensagens é naturalmente acompanhada pela ênfase dada à
força coesiva do campo jornalístico; a importância conferida à adaptação na formação da
personalidade acompanha uma análise do jornalismo efectuada em função da sua
capacidade de contribuir para a maior coesão ou funcionalidade sociais; a crença na
existência de formas de sociabilidade que favorecem o debate argumentativo sobre as
questões de interesse colectivo ou as teorias que reconhecem a dimensão plural da
construção da realidade constituem um ponto de saída para as visões unilaterais que
realçam a capacidade hegemónica dos meios de massa em geral e do jornalismo em
especial.
Genericamente, concepções deterministas da sociedade e da cultura originam
concepções deterministas do papel desempenhado pelo campo jornalístico. Ao invés,
concepções pluralistas da sociedade e da cultura terão o seu correlato em visões
semelhantes sobre o jornalismo, no funcionamento do respectivo campo, na recusa da
sobre-determinação da linguagem pelos imperativos organizacionais e sistémicos, na
emergência de posições negociadas entre os emissores e as audiências.
Se tivermos em conta uma abordagem dos efeitos de longo prazo, não é possível
deixar de encarar os enunciados jornalísticos como recursos simbólicos com um
considerável impacto no reforço e até na construção das identidades. Mas,
simultaneamente, terá de se admitir que a emergência das identidades, com a sua
capacidade de induzir fragmentação, funciona como um elemento que produz, com
frequência, contextos hermenêuticos diversificados difíceis de compatibilizar com
concepções rigidamente unilaterais e deterministas das audiências na relação interpretativa
com esses mesmos enunciados. Assim, é impossível negar a importância da linguagem
jornalística na formação das concepções do mundo, na construção dos consensos sociais, na
percepção dos desafios inerentes ao ambiente social envolvente, na criação de espaços de
estabilidade e segurança, na determinação da experiência identitária. Porém, terá de
simultaneamente de se ter em conta o modo como o campo jornalístico, seja ao nível
organizacional, seja ao nível da linguagem, reflecte uma visão complexa dos conflitos de
interesses e das desigualdades nas relações de poder e de dominação nas sociedades
complexas.
III
A noção de identidade encerra, em simultâneo, a ideia de semelhança e de diferença,
que constitui o núcleo da problemática social. As relações sociais devem ser entendidas de
uma forma dualista. A harmonia, a cooperação e a união são acompanhadas pela
2
concorrência e pela repulsão, pelas forças individualistas e irregulares que atravessam a
sociedade. A sociedade estabelece-se de acordo com polaridades ideais como sejam a
imitação versus a distinção, a integração versus a oposição, a aproximação versus a
distanciação (Vanderberghe, 1997: 117-118; Simmel, 1994: 88-126). A identidade, por
isso, oscila constantemente entre aquilo que nos torna idênticos e aquilo que nos faz únicos.
No acto comunicativo, o actor social emerge como idêntico aos seus pares e ao mesmo
tempo, único, diferente dos outros.
Na pré-modernidade, a identidade era algo que não era objecto de problematização.
O indivíduo estava estruturado por instituições a que obedecia e que se mantinham sólidas e
inabaláveis: a comunidade em que se inseria, a tradição cultural em que se inscrevia, a
família em que dera os primeiros passos na sua socialização. Um primeiro tipo
caracterológico específico desta forma de socialização expressa-se, seguindo a tipologia de
Riesman, no homem dirigido pela tradição (Riesman et al., 1961: 9 e seguintes). As pessoas
pré-modernas acreditavam que o seu destino era o resultado de um poder que as
transcendia. Esta fixação a priori de um telos indiscutível tornava impossível considerar a
contingência como fazendo parte do núcleo da identidade (Heller, 1999: 34).
Nas sociedades estratificadas, as identidades integram o todo homogéneo
constituído pela realidade social e cultural, cuja construção cabe em exclusividade a uma
dada elite social, detentora das competências necessárias ao desenvolvimento de uma
narrativa teológica que ditava o destino dos agentes sociais.
Esta condição alterou-se profundamente na modernidade, quando o sujeito ocupou
a centralidade de todas as questões. Poderíamos, abreviadamente, continuando a seguir a
mesma tipologia de Riesman, falar de um segundo tipo – o tipo auto-dirigido, que se
constitui como paradigma das identidades modernas na longa caminhada que vai da
Renascença ao Século XIX (Riesman et al., 1961: 14 e seguintes). É o momento da
formação da perspectiva humana, da afirmação do individualismo burguês, seguida
posteriormente pelo primado da razão, da consolidação do espírito capitalista com o seu
corolário nos séculos XVIII e, em especial, no século XIX. As instituições modernas
diferem de todas as formas de ordem social precedentes no que diz respeito ao seu
dinamismo, ao grau de erosão dos hábitos e costumes tradicionais e à universalização das
suas consequências.
Quando se verifica a consolidação do desenvolvimento capitalista e da sociedade de
consumo de massas, David Riesman considera a existência de um terceiro tipo
caracterológico chamado altero-dirigido, especialmente dirigido para a aprovação dos
3
outros (Riesman et al., 1961: 17 e seguintes). O que é comum aos tipos altero-dirigidos
consiste em que os seus contemporâneos são a sua principal fonte de direcção, sejam esses
contemporâneos aqueles com os quais se relacionam directamente ou aqueles com os quais
entram em contacto indirectamente através dos media.
Sucessivas escolhas filosóficas ou sociológicas irão falar do conformismo da
sociedade de massa. Critica-se a linha de produção, o industrialismo, a técnica, os mass
media e o empobrecimento da criatividade e da individualidade. A identidade parece, nesta
abordagem, definir-se pela imitação do que é socialmente correcto. David Riesman procede
a uma arrumação conceptual que, como reconhece o próprio Max Horkheimer, parece
seguir a análise formulada pela Escola de Frankfurt (Wiggershaus, 2002: 460). Porém,
como a maioria das abordagens que seguiram o modelo da crítica à sociedade de massas,
quer os franckfurtianos quer Riesman ignoraram a totalidade das tensões contraditórias que
o capitalismo introduzia ao provocar a corrosão dos costumes e tradições. O tipo
caracterológico altero-dirigido, tal como é apresentado, não esgota os mecanismos culturais
e de socialização que a modernidade tardia iria consolidar ou fazer emergir. Ao lado do tipo
altero-dirigido, surge uma deriva que se traduz na afirmação da autenticidade e da
originalidade individuais. A forma reificada de busca da aprovação social tão visível no
ambiente cultural da sociedade de consumo dos anos 50 é apenas uma das formas possíveis
de afirmação da subjectividade individual.
IV
Para além destas transformações, emerge, desde o século XIX, um quarto tipo
caracterológico sem que a sua importância fosse logo detectada em classificações mais
marcadas pelo espírito moderno. Este tipo novo é muitas vezes identificado com a pós-
modernidade. Porém, a sua longevidade histórica e cultural está provada pelas impressões
deixadas na obra de um Simmel (1984), de um Alfred Schutz (1962), de um Benjamin
(1987). Encontramo-lo já, no plano literário em sensibilidades estetizantes como as de
Rimbaud, Baudelaire e Wilde e, mais perto de nós, em Musil. Esta nova sensibilidade
acentua uma nova ideia de sujeito que passa pela criação auto-experimental, entendida
como um aprofundamento da liberdade em detrimento dos vínculos sociais e normativos.
Este tipo caracterológico identifica-se com a forma de experimentar o self como
algo completamente aberto à mudança. Cultiva a ausência de raízes. Vive da recusa dessas
raízes ou escava, à sua volta, em busca delas, incitado pela sensação penosa que a ausência
de tradições e de horizontes significativos produz.
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De acordo com a definição que dá de si mesmo ou com as teorias que
expressamente se lhe referem, surge como um produtor de significado independente dos
horizontes onde coexiste com os seus semelhantes. Ainda burguês, mas excêntrico e
boémio, tem um dos seus ícones na imagem do flaneur e alimenta-se do poder
transformador das máscaras e da moda. O novo tipo caracterológico foge às classificações
definitivas. As transformações introduzidas pelo Iluminismo, objecto de uma radicalização
recente na modernidade tardia, têm a ver sobretudo com a ausência de um telos inerente à
condição humana: a existência passa a ser um conjunto aberto de possibilidades que
implicam uma decisão (Sartre, 1999: 49). Nas novas condições abertas pela modernidade,
pode dizer-se: é-se sendo, o que faz de cada uma das nossas maneiras de ser, estilos de vida
e situações biográficas algo que podia ser, sempre, de outro modo. Tal novo tipo descobre
nas aventuras do self em busca de si (experiências estéticas, êxtases induzidos, mutações de
estilo de vida, recurso à moda e ao vestuário como forma de infringir fronteiras sociais e
culturais) a chave que lhe permite ao mesmo tempo ser ele próprio e poder ser de um outro
modo.
Finalmente, descobre-se a co-presença de todos estes tipos caracterológicos. Eles
estão todos presentes nesta época que dizemos «nossa». Assiste-se a poderosas expressões
da identidade que incorporam movimentos «pró-activos» que contribuem para a
transformação das relações humanas ao seu nível mais essencial como o feminismo e o
ambientalismo. Assiste-se, também, a uma gama vasta de movimentos reactivos que cavam
a sua resistência em termos de em defesa de Deus, da Nação, da Etnia ou da Religião
(Castells, 2003: XXII). Constata-se, ainda, a existência de afirmações identitárias que
resultam de novas trincheiras erguidas em torno de definições simbólicas de grupo,
relacionadas com o género, a orientação sexual, a geração ou a partilha de símbolos
(iconográficos, textuais ou outros) ou até de uma fuga sem fim a toda e qualquer ideia de
classificação identitária. Assiste-se a uma heterotopia que substitui a utopia, numa voragem
de liberdade através da fuga às formas mais passivas de constituição do sujeito,
classificadas nalguns horizontes teóricos como sendo «reificação» (cfr. Vattimo, 1992).
Esta situação «pós-moderna» pode ser multiplicada, por sua vez, em manifestações
diversificadas. Nas sociedades fragmentadas, muitas novas formas de pensar e de afirmar a
identidade são a mistura de muitos tradições. Capitéis Jónicos, roupas orientais, cortes de
cabelo afro ou asiáticos, casas de estilo colonial, pirâmides de Las Vegas (já tão conhecidas
como as de Gizé) não são experimentadas como verdadeiras pirâmides, autênticas roupas
orientais ou genuínos capitéis helénicos. São lançados numa mistura de estilos nos quais se
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joga simultaneamente uma estratégia de paródia e de simulação. A interdependência global
e a presença ubíqua da diversidade criaram uma situação diversa marcada pelo recurso
constante à citação e à auto-ironia, e pela consciência marcante dessa diversidade. Há
desejos de identidade que parecem afirmar-se por uma espécie de «faz de conta» em que o
“vamos fazer à maneira de x” se torna um substituto de “somos x”. Noutras manifestações,
gera-se, paradoxalmente, um desejo obsessivo de tradição e de fundamento que pode
conduzir à submersão do sujeito numa forma regressiva de comunidade, em que a tradição
se funde com um desejo de exclusão.
V
A análise da constituição das identidades implica uma remissão, que se afigura
relativamente óbvia, para os processos de transmissão cultural, de transmissão de
expectativas e de formação da personalidade. Uma parte importante da densidade
sociológica do processo identitário tem o seu coração e cerne na problemática expressão
«mundo da vida»
«Mundo da vida social», «mundo do senso comum», «mundo da vida quotidiana»,
ou «mundo quotidiano» acabam por ser expressões variantes para o mundo experimentado
pelo agente social. Evidencia-se antes de mais como um mundo intersubjectivo comum a
todos, no qual predomina não o interesse teórico mas um interesse fundamentalmente
prático e que, por isso, se oferece primeiro a uma abordagem pragmática e só
secundariamente, a uma atenção reflexiva (Schutz, 1976: 72).
Neste mundo da vida social e cultural, a sua realidade é tida como certa pelos
homens comuns que o integram. “É um mundo que se origina no pensamento e na acção
dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles” (Berger e Luckman, 1973: 36). A
atitude cognitiva típica do actor é a atitude natural a qual toma como dado o mundo
existente e as suas leis, o qual implica uma certa familiaridade e uma certa «tipicidade».
Quando se refere a familiaridade do mundo, alude-se ao seu carácter de tido por adquirido –
taken for granted na expressão schutziana – que lhe é atribuído pelos agentes sociais e
graças ao qual se confia em que o reportório de conhecimentos transmitido pelos
antecessores e formado pelas experiências continuará a preservar a sua validade
fundamental (Schutz e Luckmann, 1973:7).
Quando se alude à característica da «tipicidade», entende-se o facto de os agentes
sociais reproduzirem rotineiramente, na atitude natural, as condições dessa realidade. Na
análise a que se procede do mundo da vida, “o mundo e os seus objectos individualmente
considerados são sempre pré-organizados por actos de experimentação prévia dos mais
6
diversos tipos” (Schutz, 1962: 94). A actividade da consciência é tipificadora porque cada
experiência do actor ocorre dentro dum horizonte de familiaridade e pré-conhecimento
proporcionando um reportório de conhecimentos disponíveis cuja origem é
fundamentalmente social. Os sujeitos aproximam-se do mundo com recurso a esquemas
hermenêuticos organizados de acordo com as experiências do seu passado. Prevalece a
certeza de que o mundo da vida é um pressuposto que existe antes de cada agente social
específico e vai continuar depois de este desaparecer.
VI
Segundo as hipóteses estudadas por Schutz (1962), Berger e Luckmann (1973), as
realidades múltiplas ou âmbitos de significado finito são ordens de realidade dotadas de
critérios de significação específicos e que, a qualquer momento dado, têm um especial
estilo de ser que é característico apenas de si próprias. A título de exemplo, podem citar-se
o mundo dos objectos físicos, o mundo da ciência, o mundo das relações ideais, os vários
mundos sobrenaturais como sejam os da mitologia e da religião, o mundo dos visionários,
dos utópicos e dos loucos, o mundo da reflexão cívica, da reflexão especulativa, as várias
formas de vida marcadas por tradições específicas, etc. De entre estas realidades, há uma
que se apresenta como província padrão e que é referida como sendo «a realidade por
excelência»: trata-se do mundo da vida também chamado mundo da realidade quotidiana
cuja posição privilegiada autoriza a dar-lhe a designação de realidade predominante (Berger
e Luckmann, 1973: 38). A transição entre estes diversos âmbitos de significado finito
opera-se através de um choque graças ao qual se transcendem os limites do que é
considerado real dentro de cada um. Por exemplo, o sobressalto que desperta o sonhador é
um choque que o faz entender que os gigantes – verdadeiros no âmbito de significado finito
do devaneio do sonhador – são, no âmbito de significado finito do mundo quotidiano,
apenas moinhos de vento. Passa-se o mesmo na experiência religiosa, na experiência
estética, na experiência imaginária do faz-de-conta em que um ruído que interrompe certos
pensamentos e devaneios íntimos e nos desperta para a quotidianeidade (cfr. Schutz, 1962:
231). A consciência de um actor lê o universo de uma forma que implica transitar entre
estados particulares da realidade, por meio de diferentes atitudes e estados de consciência,
partindo e regressando desde e para o mundo da vida quotidiana, o tranquilo mundo das
evidências quotidianas, que se torna o ponto de partida e de chegada dessas transições.
7
A teoria das realidades múltiplas, apesar de se constituir como uma proposta
antropológica mais vasta, indica um percurso analítico rigoroso sobre a contingência nas
sociedades complexas, que pode, como se terá oportunidade de verificar no capítulo
seguinte, ser aplica ao universo dos enunciados jornalísticos. Enquanto o mundo da vida
quotidiana comunica entre si através de signos – entendidos como artefactos culturais que
encontram o seu significado dentro desta província de significado finito – há outras
províncias de significado finito que só encontram o seu significado fora da esfera da vida
quotidiana. Por isso, utilizam linguagens próprios mais esotéricas compostas por artefactos
culturais diferentes dos usados na vida quotidiana.
Por isso, as ordens simbólicas especializadas tendem a desenvolver a sua particular
interpretação da sociedade e da natureza, com o auxílio de especialistas, peritos, estilos
cognitivos e modelos de relação com o mundo que lhe são próprios. Tais ordens simbólicas
geraram formas também elas específicas de olhar para fora a partir do interior de si
mesmas, a partir de critérios que têm a sua raiz no interior de si próprias. Porém, este pólo
da questão seria forçosamente unilateral e ineficaz se não fossem tidas em conta os
horizontes mais vastos que transcendem a forma de olhar de cada realidade sócio-cultural.
Tal implica a consciência do carácter relativo de cada olhar específico sobre o mundo.
A teoria das realidades múltiplas ao chamar a atenção para a pluralidade de estilos
cognitivos descobre a possibilidade de estudar formas de racionalidade diversas. Com
efeito, há espaços diferenciados e que são necessariamente possuidores de um olhar
próprio. O senso comum é espontâneo e potencialmente inteligível por todos. A ciência
implica a intervenção de uma forma de racionalidade especializada dotada de métodos
específicos compartilhados apenas por aqueles que possuíram uma formação específica e o
acesso às instituições responsáveis pelo saber que lhe é específico. As várias formas
culturais possuem sacerdotes específicos. Cientistas e médicos criam formas de classificar
que lhe são próprias. Cada uma destas províncias da realidade é, no entendimento de
Schutz, uma província de significado finito. Ora, a potencialidade democrática dos media e
dos enunciados jornalísticos reside na sua ambição de ultrapassarem as barreiras semânticas
familiarizando o cidadão comum com outros cidadãos comuns que usam uma lógica e uma
gramática próprias da sua tradição ou com outras províncias de significado cujas lógica e
gramática são precisamente distintas da do homem comum.
O esoterismo das linguagens especializadas feitas a pensar naqueles que dispõem de
um monopólio de saber confronta-se com o exoterismo da linguagem vulgar e quotidiana e
8
com as potencialidades democráticas da linguagem jornalística, caracterizada, também ela,
pelo exoterismo e pela possibilidade de estabelecer pontes entre espaços cognitivos ou
identitários diversificados.
A atitude cognitiva própria do mundo da vida é a atitude natural, o reconhecimento
da familiaridade e da tipicidade, a forma natural de olhar o mundo como algo de quotidiano
que não encerra segredos para o homem comum. Porém, a pluralidade de realidades sociais
e culturais implicam a abertura à diferença. Traz em consigo um certo cosmopolitismo e
um espaço de desenraizamento em relação ao mundo quotidiano. Como fazer com que esse
desenraizamento se processe sem consequências dramáticas?
VII
O enunciado jornalístico é um dos dispositivos simbólicos que dá a resposta a este
problema. Cada vez mais, os seres humanos agem em relação à realidade com base no
significado que lhe atribuem. A linguagem dos media e a linguagem efectivamente
praticada no campo jornalístico desempenha um papel fundamental na experiência que
temos do mundo. O enunciado jornalístico e a linguagem que lhe é própria reflecte os
processos de socialização e de integração do mundo da vida mas também transporta
consigo as tensões e contradições de uma sociedade marcada pelo ritmo do aumento
inusitado da complexidade. Entendido num sentido bem preciso, a linguagem jornalística
está no meio termo.
Aproxima-se, é certo, do quotidiano. O conceito de audiência presumida levado a
efeito por Alfredo Vizeu (2005) (ou seja, a incorporação na Teoria da Notícia de uma
reflexão atenta sobre as marcas que enunciam a preocupação com a audiência) revela
como essa quotidianeidade se apresenta. Porém, ao mesmo tempo, também é a linguagem
própria do jornalismo que aproxima a quotidianeidade dos espaços de diferença e de
estranheza. Não é exagero pois dizer que a linguagem jornalística é, tal como outras, mas
de forma intensa do que outras, lugar de tensão entre a unidade e a pluralidade, entre o
uno e o diverso, entre os fenómenos de objectivação e a introdução de novas dinâmicas.
Tenta explicar a ciência, os fenómenos sociais, os fenómenos políticos de um modo que
o sobressalto que eles introduzem no quotidiano seja suavizado. Por isso, a descrição que
os jornalistas fazem da AIDS é diversa da do médico ou do especialista. Se a linguagem
do jornalismo se ficasse numa espécie de entendimento acrítico do quotidiano podia
9
tornar-se sensacionalista e reflectir apenas os preconceitos da comunidade. Porém, se ela
se aproximasse da linguagem do especialista perderia a sua capacidade de tornar o que é
difícil, mais acessível. Se na relação com as identidades, o jornalismo fosse pura
reprodução do pensamento comum poderia ficar prisioneiro dos preconceitos,
estereótipos e tipificações com base nas quais se ergue a componente menos dinâmica do
mundo da vida. A sua natureza implica uma abertura descontraída à explicação do outro
sem cair no pedagogismo mas tentando que a sua mensagem se incorpore na atitude
natural dos cidadãos médios.
Numa clarificação destas hipóteses, surge a possibilidade de o jornalismo se
afirmar como um lugar de referência. Tal lugar é um espaço próximo à quotidianeidade,
que transporta em si a tranquilidade próxima da atitude natural mas que incorpora um
universo de realidades distantes que são clarificadas de um modo didáctico que permite a
fagocitação e absorção possíveis pelo mundo da vida. A criação deste lugar implica um
conjunto de procedimentos que naturalizam, tranquilizam e familiarizam.
VIII
A estranheza é um elemento decisivo na obra de Alfred Schutz geralmente pouco
explorado, apesar de presente na totalidade dos seus escritos. Judeu, austríaco, emigrante
perseguido, dotado de talentos diversificados e até difíceis de conciliar, (forte habilidade
económica e negocial, sensibilidade musical, paixão filosófica praticadas em doses quase
iguais), o autor do ensaio “Realidades Múltiplas” viveu em condições (nomeadamente,
condições de exílio forçado) que lhe permitiram ter uma percepção aguda de noções tão
complexas como a de estranheza e de assimilação. Em “The Stranger” (1976: 91-105) faz
questão de afirmar que o conhecimento do mundo do senso comum, próprio de uma
comunidade bem integrada, possui uma aparência de coerência, clareza e consistência para
os que dele participam, embora muitas vezes esteja apenas coberto por um manto de
suposições e de ignorância. Recorrendo a este quadro conceptual, podem-se recolher
elementos importantes para um tipo particular de estranheza: aquela que resulta de
identidades diferentes das nossas. Uma forma de vida cultural caracterizada pela partilha de
valores culturais diferentes (imaginemos um português que emigra para o Brasil ou vice-
versa) confronta-se com uma diferença que não é propriamente comparável aquela que
distingue o universo do quotidiano do universo do cientista. Ambos estão no plano da vida
quotidiana mas há uma incoincidência entre os seus quotidianos que é tanto mais incómoda
10
quanto há, ao mesmo tempo, uma sensação de grande familiaridade resultante da partilha de
uma língua parecida.
O sistema de conhecimentos das formações culturais transporta um certo grau de
auto-evidência que se mantém até prova em contrário, pelo que implica a eliminação de
questões problemáticas em contrapartida de receitas prontas para serem usadas. Ora, para o
«estranho», o padrão cultural que dá suporte a estas receitas não tem a mesma autoridade
que possui para aqueles que o interiorizaram como fazendo parte da sua experiência vivida.
Para o «estranho», a cultura do grupo dominante nunca fez parte da sua biografia pessoal.
Ele está, por definição, excluído das experiências passadas que permitiram a construção
dessa cultura e a sua assimilação pelas pessoas que a integram. A sua fugaz presença torna-
o frequentador de um espaço social ambíguo e mal delimitado.
Objecto de uma experiência de desenraizamento semelhante à de Schutz, Bauman
(exilado pelas autoridades polacas) conduziu a problemática da estranheza ao seu limite,
demonstrando como esta se coloca num espaço vulnerável para as tentativas de
desconsideração da identidade. O «estranho» não se expõe, a maior parte das vezes, à
experiência do reconhecimento mas é exposto, antes, a uma espécie de tranquilo
aniquilamento. Amigos e inimigos colocam-se em oposição uns aos outros, sendo passíveis
de desenvolverem entre si um confronto com repercussões éticas e políticas. Os primeiros –
amigos – são os que os segundos – inimigos – não são e vice-versa. Porém os estranhos não
são inimigo : não se encaixam. Por isso, se a pura afirmação da identidade, reduzida à sua
condição mais brutal e pura, transporta consigo os riscos de uma crueldade arrogante, a
pura desqualificação da identidade é, também ela, uma forma de terror: a ignorância ou
menosprezo por alguns dos elementos íntimos que permitem o reconhecimento de cada um
como pessoa.
Pertencentes à família incómoda dos indefiníveis, os «estranhos» envenenam o
conforto da ordem, paralisando o exercício da possibilidade classificatória. Permanecem,
deste modo, não como inclassificados mas como inclassificáveis. Têm todas as marcas do
inimigo, mas, ao contrário dos inimigos, não são mantido a uma distância segura:
encontram-se entre nós e reivindicam até o direito de ser objecto de responsabilidade, o que
é um atributo apenas reconhecido ao amigo (Bauman, 1995: 66 e 68).
Os «estranhos» são uma marca da modernidade tardia: desempregados num mundo
onde o trabalho faz parte da normalidade mundana; apátridas porque viram diluir-se uma
nação que tinham como um referente seguro; vítimas de uma assimilação fictícia,
11
embarcam em comboios nocturnos com a ilusão de estarem demasiado integrados para que
possam ser esmagados por um qualquer desvario político-ideológico que os classifique de
parasitas; construtores de «pátrias exiladas» em bairros da capital, embora de África só
conheçam o que lhes é contado, ambicionam uns ténis Nike porque querem calçar da
mesma forma que os colegas ricos; velhos num mundo de jovens exuberantes. Não são bem
inimigos mas são mal sucedidos no esforço para serem acolhidos no seio fraternal da
amizade. De qualquer forma, não “nos pertencem”. O seu olhar sobre a identidade é vítima
de um desenraizamento e de uma contingência que só ocasionalmente se pode tornar
cultural e politicamente produtivo. Com efeito, “quando a identidade perde as âncoras que a
faziam parecer «natural», pré-determinada e negociável, a «identidade» torna-se cada vez
mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um «nós» ” (Bauman,
2004. 30). Homens sem qualidade e sem vínculo, os estranhos liquefazem-se ou
cristalizam-se em novas figuras que preenchem o esvaziamento das suas raízes identitárias.
IX
A necessidade de ter em conta a relação com a estranheza é fundamental para uma
reflexão sobre as formas de inclusão e de exclusão e consequentemente, para a análise da
«função» integradora e socializadora que os discursos centradas na informação pública – de
que o jornalismo é um exemplo maior – são convidados a desempenhar. A problemática
política e comunicacional do papel do jornalismo nas sociedades complexas tem um dos
seus ângulos mais delicados na análise crítica das representações sociais das identidades.
Já vimos que o jornalismo vive numa dialéctica de tranquilização das suas
audiências ao mesmo tempo que lhes fornece o contacto com o que é estranho. Ora, com
toda a modéstia, entendemos que a função da comunicação mediática – também a do
jornalista – é suscitar a aproximação de um modo tal que aquilo que é exótico, estranho ou
inacessível, chocante ou simplesmente diferente, se aproxime das referências da nossa
quotidianeidade. Esta é a lógica que está por detrás deste exemplo, apresentado por Adriano
Lopes Gomes da Universidade do Rio Grande do Sul no Congresso de Jornalismo e
Ciências da Saúde levado a efeito em 2005 na Universidade Fernando Pessoa. O trabalho
do pesquisador refere o modo como a Secretaria de Estado do Rio Grande do Norte utiliza
desde 1993 a literatura de cordel para campanhas de educação comunitária para a Saúde,
como esta cançoneta popular que relata os perigos do HIV:
12
Na rua onde residia
Ele era muito afamado,
Pois além de bonitão
Tinha a fama de tarado;
Seu negócio era transar,
Mas não pensava em casar
Para não viver amarrado.
Cada dia uma mulher
Passava na sua mão
Como passa a ventania
Como faz o furacão.
Rompendo qualquer barreira,
Zé, com sua furadeira,
Não perdia a ocasião.
Depois de contaminar a esposa e o filho de que ela se encontrava grávida, a cançoneta
traz consigo a advertência:
E seu João, todo saudade,
Faz seu alerta geral:
Use sempre camisinha
Na transa sexual,
Transe com a mesma pessoa
Pois vida é coisa boa
E AIDS é dor, grande mal.
Trata-se evidentemente de uma estratégia que pretende pegar nos elementos formais da
quotidianeidade e re-utilizá-los no mundo da publicidade institucional. Este folheto
demonstra como há uma questão central nos media que pode bem ser aplicável ao
jornalismo. Como trazer o que é distante para o mundo quotidiano, originando a
acessibilidade sem destruir o rigor, nem ceder aos preconceitos do mundo da vida?
Como exemplos desta dificuldade, Nelson Traquina recorda-nos a utilização da
expressão «cancro dos homossexuais» para se referir ao SIDA, expressão esta usada
num dos melhores jornais de referência portugueses: “O Diário de Notícias”. Da mesma
13
forma recorda a divulgação do ícone de um fantasma associada à imagem do pavor e da
morte relacionada directamente com a epidemia., (Correio da Manhã) (Traquina, 2001:
153-193;Traquina, 2004: 81: 107). (Traquina, 2004, 81: 107). Kinsella (citado por
Correia, (2005) recorda como em 1989, The Sun apresentou um manchete que
afirmava : “Straight Sex Cannot Give You AIDS”. Uma mensagem semelhante era
repetida na primeira página do Daily Mail e Daily Express. O Editorial do Sun
considerava as campanhas de saúde pública como “propaganda homossexual”.
Acrescentava-se entaõa: “Forget the television adverts, forget the poster campaigns,
forget the endless boring TV documentaries and forget the idea that ordinary
heterosexual people can contract AIDS”.
Num outro plano de abordagem dos temas que fogem ao quotidiano – neste caso, a
diferença identitária e a guerra - o problema surge de novo. A grande questão é, neste
caso, como tratar a diferença sem abolir o rigor. Como falar dos muçulmanos sem cair
nalguns exemplos de histeria militante da FOX News, uma espécie de cruzamento letal
entre uma espécie de herói dos jogos de consola com o jornalismo partidário? Como
pode um jornalista muçulmano falar dos americanos sem se comportar como um
Hossana Bin Ladem armado de microfone? Se estas perguntas ainda são
suficientemente extremas para poderem produzir respostas óbvias (pelo menos no plano
da intenção e da ética), a questão aproxima-se mais do objecto deste trabalho quando a
pergunta seguinte for: “é possível a um jornalista iraquiano mostrar os americanos
comuns sem os estigmatizar com recurso a enquadramentos «fundamentalistas» “”? Ou
é possível a um jornalista ocidental abordar os afegãos como gente comum que vive e
sofre para além dos preconceitos? Mais ainda: é possível a um jornalista americano ou
afegão fazer isto e trazer estas realidades que lhe são opostas para junto do mundo
quotidiano dos seus sem provocar repulsa às suas audiências? E finalmente, será que
para evitar a repulsa não se cai no risco de sacrificar a verdade aos preconceitos que
estruturam esse mundo da vida? Quais são os limites da tradução da diferença?
No caso português, as representações mediáticas das identidades conhecem percursos
muito diferençados. A representação das etnias, eventualmente alvo de maior atenção
por causa da sua dimensão e impacto na vida quotidianas, oscila entre as notícias sobre
gangs e arrastões, quebra de segurança, delinquência de grupo, vigilância policial e
histórias de racismo. Periodicamente, surgem notícias sob as condições de imigração.
Frequentemente, pressente-se a curiosidade sobre os elementos exóticos das culturas
urbanas.
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A luta pelas audiências continua facilmente compatível com um registo estilístico
que, frequentemente, corre o risco de uma estigmatização populista. Os episódios
relacionados com o tratamento da prostituição brasileira em certas zonas do interior do País
revelam a preferência por um enquadramento marcado pelo choque de dois estereótipos
identitários: o Portugal rural e profundo – «as mães» como se identificaram as mulheres de
Bragança quando assinaram uma petição contra a abertura de cabarés na região versus a
imagem sensual e atrevida da «brasileira» – as outras. A representação do chamado
“arrastão” pelos media nacionais demonstrou as dificuldades com que se defronta a
representação das identidades e das etnias e evidenciou a existência de tiques
antropocêntricos e até de racismo ou de xenofobia mais ou menos subliminares ou
manifestos (cfr. Correia, 2005: 40).
Metaforicamente, esta relação entre o que nos é estranho e o que nos é próximo
poderia implicar a existência de d um continnum entre a) e b) [a __________________b]
sendo “a”, a sintonia com a quotidianeidade abslouta e “b” a diferença que se opõe sobre
várias formas a essa quotidianeidade. Em a) o jornalismo estaria, por exemplo, das
características do senso comum enquanto em b) mais próximo das características do saber
científico, seja ele de natureza exacta ou social Em termos de operacionalidade, podíamos
colocar a hipótese que a atitude que corresponderia a um melhor cumprimento profissional
do contrato tácito estabelecido com os público estaria a meio entre a) e b), ou seja,
suficientemente longe da vida quotidiana para significar algo de novo mas suficientemente
chegado a a) para que não perdesse a relação com a audiência a que se dirige. Uma
informação que atingisse este ponto ideal seria suficientemente clara, explícita e didáctica
para poder ser absorvida pelo mundo quotidiano. Porém, seria suficientemente crítica para
poder introduzir elementos de reflexividade crítica no mundo da vida.
Neste sentido, a referência ao jornalismo como uma teoria do conhecimento posta
em prática” realça a a sua natureza. Como parece admitir Meditsch (2002) na senda de
Paulo Freire e Robert Park não faz sentido comparar o jornalismo com a ciência, mas
apenas contar com a sua especificidade. O jornalismo abandona as pretensões de validade
associadas à compreensão científica dos fenómenos mas fica além do simples
funcionamento como caixa de ressonância dos valores comunitários. Não chega a atingir o
momento em que colabora na actividade em que se desenvolverão as capacidades dos
actores ganharem uma consciência crítica fundadora de um projecto interventivo no plano
social ou outro. Não chega a atingir o verdadeiro estatuto de um knowledege about, para
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utilizar a expressão de James e de Park. Mas reúne algumas das condições que lhe
permitem serem considerados como uma prática de conhecimento, um termo para o qual se
denota a feliz confluência de atenção ao quotidiano que é tão importante em obras tão
distintas como as Charles Sanders Pierce ou Dewey, António Gramsci e Paulo Freire, ao
qual acrescentaria Schutz. Isto é, como forma de conhecimento, o jornalismo supera os
limites do senso comum, ou pelo menos introduz uma utilização diferente dos dados
apreendidos pela atitude natural na vida quotidiana. Induz o aparecimento de um cidadão
bem informado mas fica numa zona que recusa o esoterismos das linguagens especializadas
dos peritos. Nesse sentido, ele supera as distâncias entre as duas culturas de uma forma
outra. Qualquer comunicador que se aproxima do quotidiano para o compreender sente,
salvaguardadas algumas distâncias, algumas das obsessões dos cientistas sociais que nos
finais do século XIX optaram por recusar o objectivismo e o cientifismo que os chamava a
olharem para os factos sociais como coisas. Como explicam Vizeu e Correia (2006), em
texto ainda inédito, “A eficácia da atividade jornalística e o Conhecimento do Jornalismo
estão intimamente ligados ao que Freire (1995) colocava como a capacidade de abrir a
alma da cultura, de aprender a racionalidade da experiência por meio de caminhos
múltiplos, deixando-se molhar, ensopar das águas culturais e históricas dos indivíduos
envolvidos na experiência. É dimensão crítica do conhecimento jornalístico, num
imbricamento entre teoria e prática.” Vista de perto esta conclusão representa bem mais do
que se possa pensar: com efeito, a própria ciência como Schutz, Apel, os Pragmatistas e
muitos outros demonstraram também ela já acolhe uma maior abertura ao senso comum e à
opinião publica, ao juízo colectivo e ao mundo da vida.
É comum olhar a informação generalista como associada ao mundo da atitude
natural. O jornalismo escolhe como objectivo principal, a capacidade de se relacionar com a
percepção mais óbvia e evidente do que é olhado como relevante. Para esse efeito, utiliza-
se um enquadramento que possa ser compreendido pelo maior número possível de
receptores e que seja, idealmente, olhado como passível de ser lido e assimilado
independentemente das diferentes opções políticas e formação cultural dos seus membros.
A preocupação evidenciada pelo estilo jornalístico em tornar as narrativas facilmente
compreensíveis e reconhecíveis estaria associada a esta busca de uma sintonia ideal com a
vida quotidiana dos seus cidadãos.
Apesar de tudo, há elementos que dificultam uma perspectiva unilateral:
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A transformação sócio-cultural no sentido da fragmentação de valores e de
costumes tiveram repercussões que se fizeram sentir na sensibilidade para uma agenda mais
centrada na problemática da cultura e das identidades: generalização do consumo de massas
nos anos oitenta, o aumento da mobilidade física, a erosão dos costumes, a modificação do
estatuto da mulher gerou alterações identitárias que se reflectem na percepção do corpo, na
ideia de prazer, na organização da família, na noção de humor, na vivência da religião e nas
formas de socialização.
A emergência de reivindicações e de movimentos relacionados com a política da
vida – entendidas como conjunto de preocupações que emergem na polis e não se debruçam
apenas sobre o devir do espaço público colectivo mas também sobre a realização
individual, a definição individual e a escolha de estilos de vida – deram uma oportunidade
para outros tipos de olhares jornalísticos mais sensíveis a este corpo de preocupações.
A busca de legitimidade cultural por parte de camadas sociais que finalmente
ascendem à visibilidade pública e a mistura de elementos de cultura dita erudita com
elementos de cultura popular contaminou o jornalismo, contribuindo para a generalização
das notícias centradas no rosto humano e para a alteração de prioridades e critérios de
noticiabilidade. Desde logo, a generalização de valores-notícia menos centrados na atenção
ao destino colectivo, tornou possíveloutros olhares sobre as identidades minoritárias:
espreita-se o ridículo, a inversão, a falha ou o excesso, a curiosidade divertida ou um
fascínio vagamente antropológico. Há uma espécie de desejo oculto de olhar o outro lado
da «normalidade», aquilo que não é percebido pela atitude natural.
Finalmente, num plano mais estrutural, o jornalismo está congenitamente ligado à
industrialização, à urbanização, à mobilidade e à erosão das tradições. Um olhar mais
atento, mostra, assim, como o medium de massa se torna um espaço do estabelecimento de
transições mais ou menos bruscas com outras realidades diferentes da vida quotidiana. O
jornalismo é cosmopolita. Apesar das enormes preocupações por parte de jornalistas,
editores e proprietários em fazerem um produto isento de complexidades, que confirme as
tipificações socialmente aceites no mundo da vida quotidiano, apesar da tendência para
construir o mundo com base na experiência e em rotinas quotidianamente adquiridas, os
media de massa encontram-se numa posição ambígua e reflectem as profundas contradições
no seio do campo: imperativos concorrenciais cada vez mais agressivos, desejo de
responder às audiências, fragmentação do mercado, imperativos deontológicos, cultura
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profissional, rotinas e disputas simbólicas entre fontes dotadas de acesso desigual entram
em tensão.
As informações noticiosas estão longe de se reduzirem a um retrato do mundo. Em
vez dos percursos lineares, unívocos e incontestáveis, chamam a atenção para caminhos
estreitos e árduos onde flúem possibilidades erráticas, mal definidas, «estranhos»
inclassificáveis que emergem no actual contexto de fragmentação da sociedade e do espaço
público.
Encontra-se, assim, no jornalismo, os traços de um movimento de oscilação:
oscilação entre um mundo da vida marcado pela tipicidade e pela familiaridade, onde as
identidades se mantém encerradas nas suas concepções relativamente naturais do mundo,
surgindo reciprocamente como estranhas, e outras realidades múltiplas, onde se assiste a
uma reflexividade crescente por intervenção de sistemas de linguagem diferenciados. Na
minha modesta opinião, a qualidade, termo estranho que tantas vezes nos faz pensar quando
escrevemos uma notícia, é uma relação assintótica e ideal com um ponto onde por um
instante fugaz atingimos esse equilíbrio. Ora é no regresso ao texto, na busca das marcas
enunciativas do conjunto de características que integram esta noção de qualidade, esta
busca insana desse equilíbrio, encontramos a possibilidade de tornar a nossa investigação
operacionalizável.
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