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OS OBSTÁCULOS AO ACESSO À JUSTIÇA E A INEFETIVIDADE DA
CONSTITUIÇÃO: PASSADOS VINTE ANOS, (AINDA) O NECESSÁRIO
COMBATE AO (VELHO) POSITIVISMO
Lenio Luiz Streck 1
RESUMO
Passados dezoito anos desde a promulgação da Constituição do Brasil, par te considerável de suas “promessas” ainda não foram cumpr idas. Nesse sentido, é impor tante discutir os obstáculos contrapostos à concretização desse conteudístico que une direito e política, que é a Constituição. E parece não haver dúvida de que o (velho) positivismo continua como forte elemento obstaculizador desta fase pós positivista.
Palavraschave: acesso à justiça – jurisdição constitucional – positivismo jur ídico
discricionariedade
1. Interpretação e aplicação da Constituição no Brasil
O século XX foi generoso para com o direito e a filosofia. No direito, o segundo
pósguerra proporcionou a incorporação dos direitos de terceira dimensão ao rol dos
direitos individuais (primeira dimensão) e sociais (segunda dimensão). Às facetas
ordenadora (Estado Liberal de Direito) e promovedora (Estado Social de Direito), o
Estado Democrático de Direito agrega um plus (normativo e qualitativo): o direito passa
a ser transformador, uma vez que os textos constitucionais passam a conter (co
originariedade entre direito e moral) as possibilidades de resgate das promessas da
modernidade, questão que assume relevância ímpar em países de modernidade tardia
como o Brasil, em que o welfare state não passou de um simulacro. Na filosofia, o linguistic turn (invasão da filosofia pela linguagem) operou uma verdadeira revolução
copernicana no campo da compreensão (hermenêutica). A linguagem, entendida
historicamente como uma terceira coisa “interposta” entre um sujeito e um objeto, passa
1 Doutor em Direito do Estado (UFSC); PósDoutor em Direito Constitucional e Hermenêutica (Universidade de Lisboa); Professor do Programa de PósGraduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNESARJ; Professor Titular da UNISINOSRS.
2
ao status de condição de possibilidade de todo o processo compreensivo. Tornase possível, assim, superar o pensamento metafísico que atravessou dois milênios. Esse
giro hermenêutico, que pode ser denominado também de giro lingüísticoontológico, proporciona um novo olhar sobre a interpretação e as condições sob as quais ocorre o
processo compreensivo.
Pois a revelia desta revolução paradigmática, as pesquisas sobre a interpretação
do direito em terras brasileiras continuaram atreladas aos cânones do esquema sujeito
objeto, no interior do qual a linguagem tem sido visto como algo que fica à "disposição"
do sujeitointérprete. Esta questão, aliás, levou Gadamer a fazer uma crítica ao processo
interpretativo clássico, que entendia a interpretação como sendo produto de uma
operação realizada em partes (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi, isto é, primeiro conheço, depois interpreto, para só então aplicar).
Daí que a ruptura com o pensamento metafísico que sustenta esse modus
interpretativo dáse pela idéia de antecipação de sentido, que ocorre no interior do
círculo hermenêutico, idéia chave na hermenêutica filosófica – no interior do qual o
intérprete fala e diz o ser na medida em que o ser se diz a ele, e onde a compreensão e
explicitação do ser já exige uma compreensão anterior. Essa antecipação de sentido está
fundada na tradição; consequentemente, se a tradição produz uma baixa compreensão,
os préjuízos daí exsurgentes causarão enormes prejuízos à interpretação constitucional.
Este parece ser o caso do Brasil. Pagamos o (alto) preço pelo passado “pequeno
constitucional”.
Nesse contexto, é importante referir – para desmi(s)tificar velhas práticas ainda
presentes em parcela considerável da doutrina e da jurisprudência de terrae brasilis – que a noção de círculo hermenêutico, tão cara à essa revolução copernicana provocada
pelo giro lingüísticoontológico, tornase absolutamente incompatível com a assim
denominada – como quer a dogmática jurídica tradicional – “autonomia” de métodos,
cânones ou técnicas de interpretação e/ou de seu desenvolvimento em partes ou em
fases. Repetindo: o processo interpretativo não acontece aos pedaços, em partes, em
fatias. Interpretar é sempre aplicar 2 .
2 Para uma discussão mais aprofundada sobre a hermenêutica de matriz gadamerianaheideggeriana, ver meu Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007 e Verdade e Consenso – Hermenêutica, Constituição e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
3
Assim, não é por acaso que a doutrina caudatória do senso comum teórico dos
juristas – conceito cunhado por Luis Alberto Warat e que continua cada vez mais atual
inicia todas as discussões sobre hermenêutica jurídica reportandose a um “método”,
capaz de “garantir” uma espécie de “supervisão epistemológica” no processo de
compreensão. Os métodos constituemse, assim, em uma espécie de “superego”
hermenêutico. Transportando a afirmação para a linguagem da hermenêutica de cariz
filosófico, é como se o ôntico fosse “compreensível” de forma autônoma e fosse, ele
mesmo, o guia para alcançar o ontológico. É como se não houvesse transcendência
nessa “operação compreensiva”.
Por detrás de toda a discussão – pautada pela eterna busca dos juristas por uma
racionalidade fundamentadora do resultado da interpretação – está exatamente a
concepção tradicional de racionalidade calcada no fundamentum absolutum inconcussum veritatis que carateriza a(s) metafísica(s): a existência de um fundamento
último que satisfaria o raciocínio. No fundo, as súmulas são o resultado dessa pretensão
dogmática: produtos de uma autoprodução, tornamse fundamentum inconcussum. Por isso, de há muito insisto na tese de que a hermenêutica filosófica – derivada da filosofia
hermenêutica – vem para romper com o esquema sujeitoobjeto, representando, assim,
uma verdadeira revolução copernicana. Em outras palavras, venho tentando colocar em xeque os modos procedimentais de acesso ao conhecimento.
Em um universo que calca o conhecimento em um fundamento último e onde a
“epistemologia” é confundida com o próprio conhecimento (problemática presente nas
diversas teorias da argumentação e nas perspectivas análiticas em geral), não é difícil
constatar que a hermenêutica jurídica dominante no imaginário dos operadores do
direito no Brasil (perceptível a partir do ensino jurídico, da doutrina e das práticas dos tribunais) continua sendo entendida como um (mero) saber “operacional”. Com efeito, domina no âmbito do campo jurídico o modelo assentado na idéia de que “o
processo/procedimento interpretativo” possibilita que o sujeito (a partir da certezadesi
dopensamentopensante, enfim, da subjetividade instauradora do mundo) alcance o
“exato sentido da norma”, “o exclusivo conteúdo/sentido da lei”, “o verdadeiro
significado do vocábulo”, “o real sentido da regra jurídica”, etc. Com uma
especificidade (e ao mesmo tempo, uma agravante): todas essas concepções, teses ou
teorias não fazem apostas hermenêuticas no sentido filosófico, mas, sim apostas instrumentaismetodológicas (algumas mais sofisticadas fazem apostas epistemo
4
procedurais). O que elas têm em comum? A delegação em favor do sujeito solipsista (no
caso, o juiz, que possui ampla discricionariedade para solucionar os hard casessic). Vejase, por exemplo, as reformas efetuadas no campo do processo civil: a “grande
novidade” consiste em, cada vez mais, relativisar o procedimento em favor da
“capacidade cognitiva” do juiz em fazer uma “justa condução do processo”...!
De todo modo – ressalvadas as diversas posições e resgatados os méritos e
apontados os equívovos nas diversas teorias – , penso que uma hermenêutica que ainda
se calque em métodos ou técnicas (cânones) interpretativas fica, sobremodo, debilitada
no universo da viragem lingüísticoontológica. Com efeito, os assim denominados
métodos ou técnicas de interpretação tendem a objetificar o direito, impedindo o
questionar originário da pergunta pelo sentido do direito em nossa sociedade. Isso sem
falar na velha dualidade “voluntas legis e voluntas legislatoris”, sobre a qual não é necessário desperdiçar energias nesta quadra da história.
Mas, atenção: há um “algo mais” do que a filosofia da consciência (que aposta
na subjetividade do intérprete e, na radicalidade, transforma o direito em política, como
algumas posturas realistas, herdeiras do desconstrutivismo) e que não pode ser
desprezado. Com efeito, em tempos de súmulas vinculantes, tornase quase obrigatório
falar do paradigma metafísico aristotélicotomista, de cunho dedutivista. Lado a lado,
subjetivistas e objetivistas consubstanciam as práticas argumentativas dos operadores
jurídicos. Assim, na medida em que o processo de formação dos juristas tem
permanecido associado a tais práticas, temse como conseqüência a objetificação dos
textos jurídicos, circunstância que, para a interpretação constitucional, constitui forte
elemento complicador/obstaculizador do acontecer (Ereignen) da Constituição.
Desse modo, a dogmática jurídica (tradicional), enquanto reprodutora de uma
cultura estandardizada, tornase refém de um pensamento metafísico, esquecendose
daquilo que a hermenêutica filosófica representa nesse processo de ruptura
paradigmático. Esse esquecimento torna “possível” separar o direito da sociedade,
enfim, de sua função social. Dito de outro modo, o formalismo tecnicista que foi sendo construído ao longo de décadas “esqueceuse” do substrato social do direito e do Estado. Transformado em uma mera instrumentalidade formal, o direito deixou de
representar uma possibilidade de transformação da realidade, à revelia do que a própria
Constituição estatui: a construção do Estado Democrático (e Social) de Direito. A toda evidência, esta circunstância produzirá reflexos funestos no processo de compreensão
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que o jurista terá acerca do papel da Constituição, que perde, assim, a sua
substancialidade. Vejase, a propósito, a dificuldade que os juristas têm em lançar mão
da jurisdição constitucional; vejase, por tudo, a inefetividade da Constituição, passados
mais de dezoito anos de sua promulgação! Vejase, por trás de tudo isso, o velho
positivismo, que, de um lado, sempre apostou na expunção da faticidade e do mundo
prático, e, de outro, delegou para os juízes resolverem discricionariamente os casos
difíceis (ou, no caso de Kelsen, de forma decisionista).
Mesmo algumas posturas consideradas críticas do direito, embora tentem romper
com o formalismo normativista (para o qual a norma é uma mera entidade lingüística),
acabam por transferir o lugar da produção do sentido do objetivismo para o
subjetivismo; da coisa para a mente/consciência (subjetividade assujeitadora e
fundante); da ontologia (metafísica clássica) para a filosofia da consciência (metafísica
moderna). E isso não pode ser subestimado (ou, no que é mais grave, não pode deixar
de ser estudado). Não conseguem, assim, alcançar o patamar da viragem
lingüístico/hermenêutica, no interior da qual a linguagem, de terceira coisa, de mero
instrumento e veículo de conceitos, passa a ser condição de possibilidade. Permanecem,
desse modo, prisioneiros da relação sujeitoobjeto, refratária à relação sujeitosujeito.
Sua preocupação é de ordem metodológica e não ontológica (no sentido heideggeriano
gadameriano, que retrabalho em meu Hermenêutica Jurídica E(m) Crise e Verdade e
Consenso como uma Nova Crítica do Direito). A revolução copernicana provocada pela
viragem lingüísticohermenêutica tem o principal mérito de deslocar o locus da problemática relacionada à “fundamentação” do processo compreensivointerpretativo
do “procedimento” para o “modo de ser”.
Assim, muito embora a recepção da hermenêutica pelas diversas concepções da
teoria do direito, é com a hermenêutica da faticidade que a hermenêutica vai dar o
grande salto paradigmático, porque ataca o cerne da problemática que, de um modo ou
de outro, deixava a hermenêutica ainda refém de uma metodologia, por vezes atrelada
aos pressupostos da metafísica clássica e, por outras, aos parâmetros estabelecidos pela
filosofia da consciência (metafísica moderna). Enquanto tentativa de elaboração de um
discurso crítico ao normativismo, a metodologia limitase a procurar traçar as “regras”
para uma “melhor” compreensão dos juristas (v.g. autores como Coing, Canaris e
Perelman), sem que se dê conta daquilo que é o calcanhar de Aquiles da própria metodologia (que tem um cunho normativo): a da absoluta impossibilidade da
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existência de uma regra que estabeleça o uso dessas regras, portanto, da impossibilidade
da existência de um Grundmethode 3 . Daí o contraponto hermenêutico: o problema da interpretação é fenomenológico.
Não há como negar que a ausência de uma adequada compreensão do novo
paradigma do Estado Democrático de Direito tornase fator decisivo para a
inefetividade dos direitos constitucionais. Acostumados com a resolução de problemas
de índole liberalindividualista, e com posturas privatísticas que ainda comandam os
currículos dos cursos jurídicos (e os manuais jurídicos), os juristas (compreendidos lato
sensu) não conseguiram, ainda, despertar para o novo. O novo continua obscurecido
pelo velho paradigma, sustentado por uma dogmática jurídica entificadora. Dizendo de
outro modo: ocorreu uma verdadeira revolução copernicana na filosofia, no direito constitucional e na ciência política, que ainda não foi suficientemente recepcionada pelos juristas brasileiros.
2. Na continuidade, muita atenção: a superação da hermenêutica metódico
tradicional não pode significar uma profissão de fé nas teses positivistas
decisionistas.
Nada do que foi dito até aqui pode significar que o intérprete venha a dizer
“qualquer coisa sobre qualquer coisa”, isto é, a hermenêutica nem de longe pode ser
considerada relativista. Ao contrário, é a partir da hermenêutica filosófica que falaremos
da possibilidade de respostas corretas ou, se se quiser, de respostas hermeneuticamente
adequadas a Constituição. Portanto, sempre será possível dizer que uma coisa é certa e
outra é errada; há prejuízos falsos e préjuízos verdadeiros. Aliás, no Estado
Democrático de Direito a obtenção de respostas adequadas constitucionalmente (no sentido hermenêutico aqui trabalhado, respostas corretas) é um direito fundamental. Há, pois, um dever – de fundamentar as decisões – que gera o direito de o cidadão obter respostas constitucionalmente adequadascorretas.
Ao ser antirelativista, a hermenêutica funciona como uma blindagem contra
interpretações arbitrárias e discricionariedades e/ou decisionismos por parte dos juízes.
Mais do que isso, a hermenêutica será antipositivista, colocandose como contraponto a
3 Sobre esse Grundmethode, ver meu Hermenêutica Jurídica E(m) Crise, op.cit.
7
admissão de múltiplas respostas advogada pelos diversos positivismos (pensemos, aqui,
nas críticas de Dworkin à Hart). 4
Dito de outro modo, levando em conta as promessas incumpridas da
modernidade em terrae brasilis, a superação dos paradigmas metafísicos clássico e moderno – condição de possibilidade para a compreensão do fenômeno do novo
constitucionalismo e da conseqüente derrota do positivismo 5 – não pode representar o abandono das possibilidades de se alcançar verdades conteudísticas 6 . As teorias consensuais da verdade mostramse insuficientes para as demandas paradigmáticas no
campo jurídico. Ou seja, nelas não há espaço para a substancialidade (conteudística).
Portanto, não há ontologia (no sentido de que fala a hermenêutica filosófica). Isto
demonstra que a linguagem – que na hermenêutica é condição de possibilidade –, nas
teorias consensuaisprocedurais, é manipulável pelos partícipes. Continua sendo, pois,
uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto, embora os esforços
feitos por sofisticadas construções no plano das teorias discursivas, como Habermas e
Günther.
É possível dizer, sim, que uma interpretação é correta, e a outra é incorreta. Movemonos no mundo exatamente porque podemos fazer afirmações dessa ordem. E
disso nem nos damos conta. Ou seja, na compreensão, os conceitos interpretativos não
resultam temáticos enquanto tais, como bem lembra Gadamer; ao contrário,
determinamse pelo fato de que desaparecem atrás daquilo que eles fizeram
falar/aparecer na e pela interpretação. Aquilo que as teorias da argumentação ou qualquer outra concepção teorético
filosófica (ainda) chamam de “raciocínio subsuntivo” ou “raciocínio dedutivo” nada
mais é do que esse “paradoxo hermenêutico”, que se dá exatamente porque a
compreensão é um existencial (ou seja, por ele eu não me pergunto porque compreendi,
pela simples razão de que já compreendi, o que faz com que minha pergunta sempre
chegue tarde).
4 Permitome remeter o leitor ao meu Verdade e Consenso, op.cit. 5 Sobre a “derrota” do positivismo, idem, ibidem.. 6 Sendo mais claro: a hermenêutica jamais permitiu qualquer forma de “decisionismo” ou “realismo”. Gadamer rejeita peremptoriamente qualquer acusação de relativismo à hermenêutica (jurídica). Falar de relativismo é admitir verdades absolutas, problemática, aliás, jamais demonstrada. A hermenêutica afasta o fantasma do relativismo, porque este nega a finitude e seqüestra a temporalidade. No fundo, tratase de admitir que, à luz da hermenêutica (filosófica), é possível dizer que existem verdades hermenêuticas. A multiplicidade de respostas é característica não da hermenêutica,e, sim, do positivismo.
8
Uma interpretação será correta quando é suscetível dessa desaparição
(Paradoxerweise ist eine Auslegung dann richtig, wenn sie derart zum Verschwinden fähig ext). É o que denomino de “existenciais positivos”. Dizendo de outro modo, aquilo que algumas teorias (argumentativas) chamam de casos fáceis – portanto, solucionáveis
por intermédio de “simples subsunções” ou “raciocínios dedutivos” são exatamente a
comprovação disto. Com efeito, na hermenêutica, essa distinção entre easy e hard cases desaparece em face do círculo hermenêutico e da diferença ontológica. Essa distinção
(que, na verdade, acaba sendo um cisão) não leva em conta a existência de um acontecer
no précompreender, no qual o caso simples e o caso difícil se enraízam. Existe, assim,
uma unidade que os institui, detectável na “dobra da linguagem”. Vejase, nesse sentido,
como essa dualização (contraposição) entre casos difíceis e casos fáceis acarreta
problemas que as diversas teorias analíticodiscursivas não conseguem responder
satisfatoriamente: casos fáceis, segundo Atienza (que vale também para as demais
versões da teoria da argumentação jurídica), são os casos que demandam respostas
corretas que não são discutidas; já os casos difíceis são aqueles nos quais é possível propor mais de uma resposta correta “que se situe dentro das margens permitidas pelo direito positivo” 7 . Mas, pergunto: como definir “as margens permitidas pelo direito
positivo”? Como isso é feito? A resposta que a teoria da argumentação jurídica parece
dar é: a partir de raciocínios em abstrato, a priori, como se fosse primeiro interpretar e depois aplicar... Neste ponto, as diversas teorias do discurso se aproximam: as
“diversas” possibilidades de aplicação se constituem em discursos de validade prévia,
contrafáticos, que servirão para juízos de “adequação”. No meu sentir, entretanto, isso
implica um dualismo, que, por sua vez, implica separação entre discursos de validade e discursos de aplicação, cuja resposta se dará, quer queiram, quer não, mediante raciocínios dedutivos, e isso é filosofia da consciência, por mais que queira negar. Em
face disso, retomo a acusação feita por Arthur Kaufmann, acerca da prevalência do
esquema sujeitoobjeto nas diversas teorias discursivas. Mas essa problemática deixo
para examinar em meu Verdade e Consenso. Se é verdade que as explicações decorrentes de nosso modo prático de serno
mundo (odesdejásemprecompreendido) resolvemse no plano ôntico (o que,
traduzido na linguagem da filosofia da consciência, pode ser denominado de “raciocínio
causalexplicativo”), também é verdadeiro afirmar que esse “modo ôntico” permanecerá
7 Cfe. ATIENZA, Manuel. As razões do direito. Teorias da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2002.
9
e será aceito como tal se – e somente se – a sua objetivação não causar estranheza no plano daquilo que se pode entender como tradição autêntica. Nesse caso, estando devidamente conformados os horizontes de sentido, a interpretação “desaparece”. Em
síntese, é quando ninguém se pergunta sobre o sentido atribuído a algo. Afinal, em
termos hermenêuticos, a compreensão é um existencial, decorrente do modo prático de
sernomundo (não esqueçamos, neste ponto, a revolução copernicana proporcionada
pela viragem dos anos 20 do século XX, a partir de Heidegger e Wittgenstein).
Mas, se essa fusão de horizontes se mostrar mal sucedida, ocorrerá a demanda
pela superação das insuficiências do que onticamente objetivamos. Tratase do
acontecer da compreensão, pelo qual o intérprete necessita ir além da objetivação.
Também isto não tem sido devidamente compreendido em terrae brasilis, ou seja, existe um problema na estrutura do pensamento, que ultrapassa qualquer filosofia
ornamental. Com efeito, estando o intérprete inserido em uma tradição autêntica do
direito, em que os juristas introduzem o mundo prático seqüestrado pela regra (para
utilizar apenas estes componentes que poderiam fazer parte da situação hermenêutica do
intérprete), a resposta correta advirá dessa nova fusão de horizontes.
Por isso o acerto de Dworkin, ao exigir uma “responsabilidade política” dos
juízes. Os juízes têm a obrigação de justificar suas decisões, porque com elas afetam os
direitos fundamentais e sociais, além da relevante circunstância de que, no Estado
Democrático de Direito, a adequada justificação da decisão constitui um direito
fundamental. Daí a necessidade de ultrapassar o “modopositivistadefundamentar” as
decisões (perceptível no cotidiano das práticas dos tribunais, do mais baixo ao mais
alto); é necessário justificar – e isto ocorre no plano da aplicação – detalhadamente o
que está sendo decidido. Portanto, jamais uma decisão pode ser do tipo “Defiro, com
base na lei x ou na súmula y”. A justificativa (a fundamentação da fundamentação, se assim se quiser dizer) é
condição de possibilidade da legitimidade da decisão. Isto é assim porque o sentido da
obrigação de fundamentar as decisões, prevista no art. 93, inc. IX, da Constituição do
Brasil, implica, necessariamente, a justificação dessas decisões. Vejase que um dos
indicadores da prevalência das posturas positivistas – e que denuncia a
discricionariedade judicial que lhe é inerente – está no escandaloso número de embargos de declaração propostos diariamente no Brasil. Ora, uma decisão bem fundamentada/justificada (nos termos de uma resposta corretaadequadaàConstituição,
a partir da exigência da máxima justificação, ou seja, há que fundamentar a
10
fundamentação) não poderia demandar “esclarecimentos” acerca da holding ou do dictum da decisão. Os embargos de declaração – e acrescentese, aqui, o absurdo representado pelos “embargos de préquestionamento” (sic) – demonstram a
irracionalidade positivista 8 do sistema jurídico. Como é possível que se considere
“normal” a não fundamentação de uma decisão, a ponto de se admitir, cotidianamente,
milhares de “embargos”?
Nessa linha, a applicatio – porque interpretar é sempre um aplicar – evita a arbitrariedade na atribuição de sentido, porque é decorrente da antecipação (de sentido)
que é própria da hermenêutica filosófica. Aquilo que é condição de possibilidade não
pode vir a se transformar em um “ simples resultado” manipulável pelo intérprete. Afinal, não podemos esquecer que mostrar a hermenêutica como produto de um
raciocínio feito por etapas foi a forma pela qual a hermenêutica clássica encontrou para
buscar o controle do “processo” de interpretação. A compreensão de algo como algo
(etwas als etwas) simplesmente ocorre (acontece), porque o ato de compreender é existencial, fenomenológico, e não epistemológico. Qualquer sentido atribuído
arbitrariamente será produto de um processo decorrente de um vetor (standard) de racionalidade de segundo nível, meramente argumentativo/procedimental 9 , isto porque
filosofia não é lógica e, tampouco, um discurso ornamental.
Gadamer sempre nos ensinou que a compreensão implica uma précompreensão
que, por sua vez, é préfigurada por uma tradição determinada em que vive o intérprete
e que modela os seus préjuízos. Desse modo, o intérprete do direito (jurista lato sensu)
falará o direito e do direito a partir dos seus préjuízos, enfim, de sua précompreensão.
Falará, enfim, de sua situação hermenêutica (o conceito de situação caracterizase
porque alguém não se encontra frente a ela e portanto não pode ter um saber objetivo
dela; se está nela, este alguém se encontra sempre em uma situação cuja iluminação é
uma tarefa que não pode ser desenvolvida por inteiro) 10 . Essa précompreensão é
produto da relação intersubjetiva (sujeitosujeito) que o intérprete tem no mundo. O
intérprete não interpreta do alto de uma relação sujeitoobjeto. Estará, sim, sempre
inserido em uma situação hermenêutica. Há uma “situação lingüística”, não sendo a
8 Não fosse isso suficiente, darwinianamente, o sistema jurídico construiu, jurisprudencialmente, uma nova figura “recursal”, sem qualquer previsão no Código de Processo Civil: os embargos declaratórios com efeitos infringentes (sic). Aceitar que uma decisão colegiada seja alterada dessa forma apenas demonstra a deficiência do modo de fundamentação da decisão. 9 Ibid., p. 246 e segs, onde trabalho a noção dos vetores de racionalidade de Hilary Putnam e Ernildo Stein. 10 Cfe. GADAMER, HansGeorg. Wahrheit und Methode I e II. Tubingen: Mohr, 1990, passim.
11
linguagem algo que esteja à disposição do intérprete, circunstância que inexoravelmente
transformaria a atividade de interpretar em um ato voluntarista. Ao contrário disto, o
intérprete “pertence” a essa lingüisticidade. Ele é “refém” da linguagem. Nesse sentido,
a atividade hermenêutica exsurge desse processo de (auto)compreensão.
É preciso ter claro, desde logo, que diferentemente de outras disciplinas (ou
ciências), o direito possui uma especificidade, que reside na relevante circunstância de
que a interpretação de um texto normativo – que sempre exsurgirá como norma –
depende de sua conformidade com um texto de validade superior. Tratase da
Constituição, que, mais do que um texto que é condição de possibilidade hermenêutica
de outro texto, é um fenômeno construído historicamente como produto de um pacto constituinte, enquanto explicitação do contrato social. A tradição nos lega vários sentidos de Constituição. Contemporaneamente, a evolução histórica do
constitucionalismo no mundo (mormente no continente europeu) colocanos à
disposição a noção de Constituição enquanto detentora de uma força normativa,
dirigente, programática e compromissária, pois é exatamente a partir da compreensão
desse fenômeno que poderemos dar sentido à relação ConstituiçãoEstadoSociedade no
Brasil, por exemplo. Mais do que isso, é do sentido que temos de Constituição que
dependerá o processo de interpretação dos textos normativos do sistema.
Sendo um texto jurídico (cujo sentido, repitase, estará sempre contido em uma
norma que é produto de uma atribuição de sentido) válido tãosomente se estiver em
conformidade com a Constituição, a aferição dessa conformidade exige uma pré
compreensão (Vorverständnis) acerca do sentido de (e da) Constituição, que já se encontra, em face do processo de antecipação de sentido, numa copertença “faticidade
historicidade do intérprete e Constituição – texto infraconstitucional”. Não se interpreta,
sob hipótese alguma, um texto jurídico (um dispositivo, uma lei, etc.) desvinculado da
antecipação de sentido representado pelo sentido que o intérprete tem da Constituição.
Destarte, uma “baixa compreensão” acerca do sentido da Constituição – naquilo
que ela significa no âmbito do Estado Democrático de Direito – inexoravelmente
acarretará uma “baixa aplicação”, problemática que não é difícil de constatar nas salas
de aula de expressiva maioria dos cursos jurídicos do país e na quotidianidade das
práticas dos “operadores” do direito. Por isto, préjuízos inautênticos (no sentido de que
fala Gadamer) acarretam sérios prejuízos ao jurista.
12
3. A Constituição e o acesso à justiça: em busca de efetividades qualitativas ou de como as posturas instrumentalistas do processo continuam atreladas ao
positivismo (em busca de efetividades quantitativas)
Embora o considerável leque de possibilidades de controle de
constitucionalidade, a jurisdição constitucional ainda está longe de assumir o papel que
lhe cabe no Estado Democrático de Direito, mormente se entendermos que a
Constituição brasileira tem um nítido perfil dirigente e compromissório. Desse modo,
fazer jurisdição constitucional não significa restringir o processo hermenêutico ao
exame da parametricidade formal de textos infraconstitucionais com a Constituição.
Tratase, sim, de compreender a jurisdição constitucional como processo de vivificação da Constituição na sua materialidade, a partir desse novo paradigma instituído pelo
Estado Democrático de Direito. E isso parece ser extremamente relevante ao pensarmos
nos dezoito anos da Constituição brasileira.
É nesse sentido que entra na discussão o papel do Poder Judiciário quando
defrontado com essas questões. Passados dezoito anos, a resposta não tem sido
satisfatória. Pelo contrário, chamado à colação, o Poder Judiciário mostrase ainda
comprometido com o paradigma liberalindividualista que vem sustentando o direito em terrae brasilis.
Desnecessário lembrar que o Poder Judiciário não pode se substituir aos demais
poderes e “realizar” políticas públicas. Não se está falando, à toda evidência, de uma
judicialização da política. Entretanto – e busco aqui as palavras absolutamente
insuspeitas de um autor como Martonio Barreto Lima, 11 avesso a qualquer
intervencionismo justicional – parece inadmissível não valorizar o papel do controle de
constitucionalidade – até mesmo de atos de governo – nesta quadra da história:
“A sobrevivência de uma constituição dirigente depende também do
convencimento da sociedade de que esta constituição ainda vigora e que sua
simbologia referencial não foi esquecida. Naturalmente que o raio de uma tal
ação política inclui instrumentos da sociedade – intelectuais, partidos políticos
11 Cfe. Martonio Mont’Alverne BARRETO LIMA. Idealismo e efetivação constitucional: a impossibilidade da realização da Constituição sem a política. Comunicação apresentada no encontro Cainã IV, Fortaleza, 2005, inédito (grifei).
13
por exemplo – mas também engloba setores do próprio Estado, nas mãos de um
governo sinceramente comprometido com a manutenção da idéia constituinte,
com os poderes Legislativo e Judiciário, especialmente se se dispõe de uma Corte controladora da constitucionalidade das medidas de governo.“
Isso significa admitir a existência de um novo paradigma, no interior do qual o
fenômeno do constitucionalismo (ou, se se quiser, do neoconstitucionalismo)
proporciona o surgimento de ordenamentos jurídicos constitucionalizados, a partir de
uma característica especial: a existência de uma Constituição “extremamente
embebedora” (pervasiva), invasora, capaz de condicionar tanto a legislação como a
jurisprudência e o estilo doutrinário, a ação dos agentes públicos e ainda influenciar
diretamente nas relações sociais. 12 É nesse contexto que se move o discurso jurídico em
tempos de Estado Democrático de Direito: de um lado, as promessas da modernidade
(incumpridas) previstas na Constituição que esperam efetivação a partir dos
mecanismos da democracia representativa; de outro, em face da inefetividade desses
direitos, o aumento das demandas que acabam chegando aos Tribunais e a discussão
acerca dos limites de sua atuação. Não parece adequado os juristas se negarem a dar
resposta a esse problema. Para que serve o direito, afinal?
Para uma resposta a essa indagação, é necessário levarmos em conta a
exigência de um novo olhar sobre o direito (nestes tempos de póspositivismo) toma
forma quando a liberdade de conformação do legislador, pródiga em discricionariedade
no EstadoLiberal, passa a ser contestada de dois modos: de um lado, os textos constitucionais dirigentes, apontando para um dever de legislar em prol dos direitos
fundamentais e sociais; de outro, o controle por parte dos tribunais, que passaram não somente a decidir acerca da forma procedimental da feitura das leis, mas acerca de seu
conteúdo material, incorporando os valores previstos na Constituição.
Há, assim, a prevalência do princípio da constitucionalidade sobre o princípio da
maioria, o que significa entender a Constituição também como um remédio contra maiorias. Portanto, a noção de um terceiro modelo de direito, o do Estado Democrático de Direito, leva em conta a noção de Constituição como direitos substantivos a serem
realizados, exsurgentes da produção democrática do direito. A Constituição surge, nesse
terceiro modelo/paradigma, não somente como a explicitação do contrato social, mas,
12 Consultar, nesse sentido, GUASTINI, Ricardo. La constitucionalización del ordenamiento jurídico. In: CARBONEL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003.
14
mais do que isso, com uma força normativa capaz de constituiraação do Estado (isto é,
vincular os poderes da República). E esse direito já não é um direito desindexado da
moral; agora, é um direito no qual está institucionalizada a moral. Por isso, a moral – na
correta concepção de Habermas – é cooriginária ao direito. Este é um salto para além
da separação positivista entre direito e moral; este é um salto próprio do póspositivismo
(entendido, aqui, como superador do positivismo, em uma similute com aquilo que tem
sido denominado de neoconstitucionalismo).
Com as devidas advertências relacionadas aos limites entre democracia e
constitucionalismo, entendo que a justiça constitucional pode e deve assumir uma
postura intervencionista nesta quadra da história, para além da postura absenteísta
própria do modelo liberalindividualistanormativista que permeia a dogmática jurídica
brasileira. A toda evidência, quando estou falando de uma função intervencionista do
Poder Judiciário, não estou propondo uma (simplista) judicialização da política e das
relações sociais (e nem a morte da política) 13 .
Quando falo em “intervencionismo”, refirome, sim, a um “intervencionismo
substancialista”, destinado a garantir o cumprimento dos preceitos e princípios ínsitos
aos Direitos Fundamentais Sociais e ao núcleo político do Estado Social previsto na
Constituição de 1988. Disso é possível afirmar que, no limite, para evitar que o texto
constitucional se transforme em algo meramente simbólico e, na inércia dos poderes
encarregados precipuamente de implementar as políticas públicas, é obrigação
constitucional do Judiciário, através da jurisdição constitucional, propiciar as condições
necessárias para a concretização dos direitos sociaisfundamentais. Sem decisionismos e
sem arbitrariedades. Se uma Constituição pode naufragar pelo descumprimento dos
direitos nela previstos, por falta de políticas públicas, também poderá sucumbir e se
esfacelar se substituirmos um problema por outro. A atuação da jurisdição
constitucional deve ser feita nesse “fio da navalha” que, dialticamente, separaune
“constitucionalismo e democracia”.
13 Como bem assinala Ackerman, ao tratar da problemática norteamericana, declarando inconstitucional um determinado dispositivo legal, o Tribunal está desempenhando uma função dualista crítica. Ele está indicando à massa de cidadãos privados que algo especial está ocorrendo nos corredores do poder; que seus pretendidos representantes estão tratando de legislar com pouca credibilidade; e que, uma vez mais, há chegado o momento de determinar se nossa geração responderá fazendo o esforço político requerido para redefinir, como cidadãos privados, nossa identidade coletiva. Cfe. ACKERMAN, Bruce. La política del diálogo liberal. Barcelona: Gedisa, 1999, p. 203 .
15
Tratase, pois, de utilizar a própria jurisdição constitucional para uma espécie de
controle dela mesma. De fato, estamos longe de implementar os direitos fundamentais
sociais (nas suas diversas facetas) contidas na Constituição. Parece haver um equívoco
quando se pensa que a implementação da Constituição depende da figura do juiz. Do
mesmo modo, é equivocado ligar a realização ou o respeito aos direito à atuação
(adequada ou inadequada) do Poder Judiciário. Exemplo disso é a aporia construída por
parcela expressiva dos processualistas que buscam, a partir de diversas minireformas,
apostar em efetividades quantitativas para desafogar o judiciário (como se o judiciário
não estivesse “afogado em processos” por culpa da própria sistemática processual). O
que ocorre é que o processo continua sendo pensado a partir do paradigma da filosofia
da consciência. Por isso, as partes tornamse uma “terceira coisa” que se interpõem
entre o sujeito e o objeto...! 14 Na busca de efetividades quantitativas (lembremos as
diversas leis que buscam colocar obstáculos à interposição de recursos), esquecemos a
“coisa mesma”, porque o objetivo mesmo é transformar tudo na “mesma coisa”
(pensemos um pouco: die Sache selbst ist nicht die selbe Sache).
14 Esse problema também está presente na prevalência do sistema inquisitivo no processo penal. Um exame detalhado mostrará que todo o processo penal está assentado na figura do juiz (solipsista), teorizado no malsinado – e metafísico – “princípio da verdade real”. Essa problemática aproxima sobremodo o processo penal do processo civil: naquele, buscase a verdade “sem intermediações”, como se o direito tivesse uma essência, em que as partes “perdem” importância (vejase que, mesmo que o Ministério Públoico requeira a absolvição, o juiz poderá condenar o réu; vejase o velho sistema de ouvida de testemunhas “por intermédio” do juiz; vejase a “possibilidade” de o juiz decretar prisão ex officio – sic); neste, cada vez mais se coloca o procedimento à disposição do pensamento “justo” do juiz, valendo, por todos, citar a assim denominada instrumentalidade do processo, pela qual, v.g., autores prestigiados, como José Roberto dos Santos Bedaque, procuram resolver o problema da efetividade do processo a partir de uma espécie de “delegação” em favor do julgador, com poderes para reduzir as formalidades que impedem a realização do direito material em conflito, sendo que isso é feito a partir de um novo princípio processual – decorrente do princípio da instrumentalidade das formas – denominado princípio da adequação ou adaptação do procedimento à correta aplicação da técnica processual. Por este princípio se reconhece “ao julgador a capacidade para, com sensibilidade e bom senso, adequar o mecanismo às especificidades da situação, que não é sempre a mesma” (Bedaque, José Roberto dos Santos. Efetividade do Processo e Técnica Processual. São Paulo, Malheiros, 2006, p. 45 – grifei). Ou seja, “deve ser o juiz investido de amplos poderes de direção, possibilitandolhe adaptar a técnica aos escopos do processo em cada caso concreto, mesmo porque a previsão abstrata de todas as hipóteses é praticamente impossível” (Idem, ibidem, p. 6465). E como a previsão legislativa não comporta todas hipóteses de aplicação, “observado o devido processo legal, deve ser reconhecido ao juiz o poder de adotar soluções não previstas pelo legislador, adaptando o processo às necessidades verificadas na situação concreta” (idem, ibidem, p. 571). Em sua – refirase sofisticada tese, embora demonstre preocupação em afastála da discricionariedade, Bedaque termina por sufragar (ainda que implicitamente) as teses hartianas e kelsenianas, quando admite que as fórmulas legislativas abertas favorecem essa atuação judicial: “Quanto mais o legislador valerse de formas abertas, sem conteúdo jurídico definido, maior será a possibilidade de o juiz adaptála às necessidades do caso concreto. Esse poder não se confunde com a ‘discricionariedade judicial’, mas implica ampliação da margem de controle da técnica processual pelo legislador” (idem, ibidem, p. 109). Daí a minha insistência: o problema possui um fundo paradigmático; continuase a apostar no sujeito solipsista.
16
Cada vez que se pretende “processualizar mais o sistema”, ocorre uma
diminuição do processo enquanto instrumento de garantia do devido processo legal.
Ora, se o devido processo legal serve para preservar direitos, não é em nome dele que se
pode fragilizar o próprio processo. Diaadia, o sistema processual caminha para o
esquecimento das singularidades dos casos. Tratase, pois, de um novo princípio epocal.
Na verdade, se o último princípio epocal da era das duas metafísicas foi a vontade do
poder (wille zur Macht), o novo princípio, forjado na era da técnica, acaba por se transformar no mecanismo que transforma o direito em uma mera racionalidade
instrumental (lembremos, sempre, as escolas instrumentalistas...!). Manipulando o
instrumento, temse o resultado. Ao final dessa “linha de produção”, o direito é aquilo
que a vontade do poder quer que seja. Chegase ao ápice da não democracia: o direito transformado em política. Ou seja, uma contradição em si mesmo: se o direito serve
para controlar/garantir a democracia (e, portanto, a política), ele não pode ser a própria
política.
Os defensores dessas (diversas) reformas quantitativas não têm a dimensão do
problema representado por essa contradição que vem sendo construída. Vejase as
súmulas vinculantes e a proliferação de livros “vendendo” interpretações
estandartizadas (verbetes, que nada mais são do que “protosúmulas”). A doutrina não
doutrina . O que mais se utiliza da doutrina é, justamente, o que não é doutrina, isto é, o
que mais se utiliza são os verbetes protosumulares que se multiplicam nos manuais
jurídicos. Pura metafísica, pois. Esse fenômeno ingressa perigosamente nas academias,
onde é possível encontrar dissertações de mestrado e teses de doutorado tratando de
agravo de instrumento, exceção de préexecutividade, limitação de fim de semana para
presos, embargos de declaração, o papel do árbitro, a função do oficial de justiça,
inquérito policial, a união homossexual (em um programa que trata do meioambiente),
cheque prédatado, além de alunos e docentes que, financiados pelo povo (bolsas de
estudo, etc.) escrevem contra o poder constituinte, contra a Constituição, pela
relativização de direitos penaisprocessuais, etc. De todo modo, também poderseia
perguntar: afinal, para que servem estudos e pesquisas mais críticas e sofisticadas se,
para parcela considerável da comunidade jurídica (incluída parte da academia), o direito
é aquilo que os juízes (e tribunais) dizem que é?
No fundo, essas construções dogmáticas súmulas, enunciados, leis
obstaculizadoras do acesso à justiça, reformas processuais que buscam efetividades
17
quantitativas são fruto de uma espécie de adaptação darwiniana do positivismo jurídico, que funciona a partir da elaboração de conceitos jurídicos com objetivos universalizantes. Para tanto, são utilizados, paradoxalmente, os princípios
constitucionais, que passam a ter a “função de mandados de otimização” (princípios e
regras passam a estar cindidos estruturalmente).
Dito de outro modo, até mesmo os princípios constitucionais que deveriam
superar o modelo discricionário do positivismo , passaram a ser anulados por
conceitualizações, transformandoos em regras. Basta ver, nesse sentido, que a
preocupação do establishment jurídicodogmático sempre foi com a efetividade
quantitativa, que, aliás, foi gerada pelo modus compreensivointerpretativo calcado no esquema sujeitoobjeto ainda vigorante no direito.
Para tanto, foram sendo introduzidos, com o passar do tempo, mecanismos que
busca(ra)m “racionalizar” a interpretaçãoaplicação do direito e evitar a “multiplicação
de demandas”, como o art. 38 da Lei nº8.038/90, o art. 557 do CPC e a recente EC
45/04, que institucionalizou o que já existia há mais de 40 anos em terrae brasilis: o poder vinculatório das súmulas (no mínimo no plano de uma vinculação oriunda do
poder de violência simbólica proporcionado pelas súmulas). Vejase a impressionante
redação do dispositivo acrescentado pela Lei 11.276/06 ao art. 518 do Código de
Processo Civil, pelo qual “o juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal“ (é a súmula impeditiva de recurso). Observemos o paradoxo: ao
mesmo tempo em que se aprova emenda constitucional conferindo efeito vinculante às
súmulas do STF em matéria constitucional e elaboradas sob determinadas condições e circunstâncias, o parlamento aprova dispositivo legal que dá esse mesmo efeito – vinculante às súmulas do STJ. Ora, o parágrafo introduzido pela nova Lei é
absolutamente inconstitucional, porque alça as súmulas do Superior Tribunal de Justiça
ao patamar das súmulas do Supremo Tribunal Federal. Repetese, aqui, a (velha)
inconstitucionalidade que já estava presente no art. 557 do CPC, introduzido pela Lei
9.756.
Como dantes, continuase sob o silêncio eloquente do processualismo
dominante em terrae brasilis. A discussão, como sempre, restringese à contradição secundária, como, por exemplo, questionar os limites semânticos (no plano de uma –
mera analítica jurídica) da expressão “conformidade” (afinal, qual seria o sentido
dessa palavra?). Ou seja, ao invés de enfrentar – de frente – a questão da
18
inconstitucionalidade de ambos os dispositivos, a dogmática jurídica concentra a
discussão na diferença que pode(ria) existir entre o fato de o art. 557 exigir que a
decisão recorrida (para não ser recebido o recurso), esteja em “manifesto confronto com súmula...“ (Lei 9.756/95) e a nova lei (11.276/06) estabelecer que o juiz não receberá o
recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula...! Como
sempre bem denunciou Dworkin, o problema do positivismo está no aguilhão
semântico...!
Nesse verdadeiro império de standards jurídicos (súmulas, verbetes, enunciados, etc), parte considerável da doutrina acaba por reproduzir a posição dos tribunais, que
elaboram uma espécie de versão positivista de “discursos de fundamentação prévia”.
Ora, se os diversos mecanismos que buscaram resolver a multiplicidade de demandas
não tiveram êxito até hoje – e todos eles possuem um perfil que busca colocar em
segundo plano a substancialidade do direito –, é porque está sendo atacada tãosomente
a contradição secundária do problema. Ou seja, se as múltiplas respostas e a
discricionariedade (ausência de “controle” na interpretação e nas decisões judiciais) está
ligada ao positivismo (em suas diversas matizes) – e é isso que gera o “caos” no sistema
jurídico –, parece que a resposta está para além do positivismo e sua “ratio essendi”.
Parece, assim, que, se tivéssemos que apontar um problema – o principal – da
Constituição, nesses quase vinte anos, a resposta poderia ser: o acesso à justiça, com
uma repercussão em cadeia naquilo que se relaciona ao (des)respeito aos direitos
fundamentais (“negativos” e “positivos”, se se quiser essa antiga divisão). Como
componente principal, a (ausência de uma adequada) filtragem hermenêutico
constitucional (mas, para tanto, retornase ao problema principal: o acesso à jurisdição
constitucional). Assim, por exemplo, diversas leis, apenas em parte incompatíveis com a
Constituição, têm permanecido intactas no sistema, pela timidez hermenêutica dos
operadores. Vejase, só para exemplificar, lembrando sempre o caráter simbólico do
exemplo (como em Castoriadis, o gesto do carrasco é real por excelência, mas mais
poderoso enquanto simbólico) a Lei 10.259/01, que, de forma inconstitucional,
(des)classificou delitos como abuso de autoridade, fraude em licitação, fraude
processual, porte ilegal de arma, sonegação de tributos, desobediência, atentado ao
pudor mediante fraude, crimes contra a honra, para ficar apenas nos principais, como
19
“infrações de menor potencial ofensivo” (soft crimes), utilizando para tanto o critério horizontal da quantidade da pena 15 .
Do mesmo modo, o Código Penal está eivado de inconstitucionalidades; dezenas
de tipos penais não recepcionados pela Constituição continuam sendo aplicados; as
penas não guardam relação com o princípio da proibição de excesso (Übermassverbot) e
proibição de proteção insuficiente Untermassverbot (para se ter uma idéia, furto qualificado tem pena maior que sonegação de tributos e lavagem de dinheiro;
adulteração de chassis de automóvel acarreta pena maior do que a do homicídio
praticado ao volante, etc.); nessa linha, não causa nenhum espanto à comunidade
jurídica o fato de que a sonegação de tributos tenha um tratamento absolutamente
privilegiado em relação aos crimes contra o patrimônio, como o furto, a apropriação
indébita, etc. 16 ; a falta de filtragem é tão grande que o sistema jurídico convive com o
paradoxo representado pelo fato de os crimes de estupro e atentado violento ao pudor,
elevados à condição de hediondos na década de 90, continuarem a ser considerados
"crimes de ação privada" (sic).
As mesmas carências hermenêuticoconstitucionais podem ser encontradas no
campo do direito processual. Assim, v.g., embora o conteúdo garantista da Constituição
de 1988, o Código Processo Penal continua fazendo vítimas pela falta de uma adequada
interpretação que o conforme ao texto constitucional. Em pleno Estado Democrático de
Direito, o sistema jurídico convive com a quotidiana violação dos princípios da ampla
defesa (até o ano de 2004, os interrogatórios vinham sendo realizados sem a presença de
defensor), do contraditório (exames periciais feitos à revelia do réu) e do devido
processo legal (denúncias que são recebidas sem qualquer fundamentação), para citar
apenas alguns dos problemas. Se considerar que o sistema jurídico convalida,
cotidianamente, institutos como a mutattio libelli, a emendatio libelli, o poder do juiz de
15 Em termos de filtragem hermenêuticoconstitucional, o problema decorrente da indevida inserção desses crimes no rol dos soft crimes pode ser resolvida por intermédio da aplicação da técnica da nulidade parcial sem redução de texto. Para tanto, ver STRECK, Lenio Luiz. Os juizados especiais criminais à luz da jurisdição constitucional. Caderno Jurídico. Ano 2, v. 2, n. 5. São Paulo: Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, out/2002, p. 63100. 16 A Lei 10.684/03, repisando matéria já sedimentada, possibilita que os sonegadores façam parcelamento (REFIS) de seus “débitos”. Com isto, extinguese a punibilidade (sic). Antes dessa Lei, já havia casos de financiamentos que ultrapassavam os 500 anos...! Enquanto isto, em completa violação ao princípio da isonomia, ao cidadão que pratica crime contra o patrimônio não é dado qualquer possibilidade de parcelamentos e tampouco a possibilidade de extinção da punibilidade pelo ressarcimento do prejuízo! Isto mostra a dura face da crise de paradigmas que atravessa a dogmática jurídica brasileira.
20
determinar provas exoficcio e de decretar prisões exoficcio, os recursos exoficcio, para citar apenas alguns dos problemas decorrentes de uma baixa constitucionalidade.
Por outro lado, não é difícil constatar a baixa utilização de mecanismos como a
interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung) e a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtext Reduzierung), que
podem ser importantíssimos instrumentos para uma adequação constitucional de um
enorme contingente de leis e atos normativos. Até mesmo o entendimento acerca do
sentido e alcance desses institutos tem recebido uma interpretação self restrainting. 17
Por outro lado, se os Códigos Penal e Processual Penal sofrem de profunda
inadequação com o texto constitucional em face da distância temporal, um texto como o do Código Civil, que entrou em vigor em 2003, contrariamente ao que se poderia
pensar, veio para reforçar o principal obstáculo do constitucionalismo: o positivismo.
Com efeito, parcela considerável dos doutrinadores civilistas brasileiros trilha pelo
caminho de entender o novo Código Civil como um sistema aberto, em face,
principalmente, da adoção das cláusulas gerais. Nesse sentido, vejase o comentário de
Miguel Reale ao então projeto do novo Código Civil, para quem o Código deve conferir
“ao juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando
previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou
injustável à especificidade do caso concreto”. 18 Na mesma linha, Fabiano Mencke, para
quem as cláusulas gerais são normas “que se caracterizam pela abertura e possibilidades
de criação conferida ao intérprete” e que “o esforço intelectual do operador do direito
que trabalha com normas abertas, como são as cláusulas gerais, é sobremaneira
dimensionado”, porque carecem de “complementação valorativa”, o que faz com que o
intérprete se veja “obrigado a buscar em outros espaços do sistema, ou até mesmo fora dele, a fonte que inspirará e fundamentará a sua decisão”. 19
Pensar assim é fazer uma concessão à discricionariedade positivista, o que pode ser
facilmente percebido em assertivas do tipo “a lei [o Código Civil, na parte relativa às
cláusulas gerais] confia ao intérpreteaplicador, com absoluta exclusividade e larga
margem de liberdade, a inteira responsabilidade de encontrar, diante de um modelo
17 Para tanto, consultar STRECK, Lenio Luiz, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma Nova Crítica do Direito. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, em especial cap. 11. 18 Cf. Reale, Miguel. Visão Geral do Projeto de Código Civil. www.miguelreale.com.br/artigos. 19 Cf. Mencke, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos. In: Revista da AJURISano XXXIII, n. 103, setembro de 2006, pp. 69 e segs. – grifei.
21
vago, a decisão justa para cada hipótese levada á decisão judicial”. 20 Ora, de tudo o que
foi dito, não parece democrático delegar ao juiz o preenchimento conceitual das assim
chamadas “cláusulas gerais” 21 (a mesma crítica pode ser feita ao uso da ponderação para
a “escolha” do princípio que será utilizado para a resolução do problema causado pela
“textura aberta da cláusula”).
Em pleno paradigma do Estado Democrático de Direito, em que os princípios
resgatam a razão prática, não parece recomendável – sem um adequado “cuidado
constitucional” , que o Código Civil reintroduza no direito cláusulas que autorizem o
juiz, solipsisticamente, a “colmatar lacunas” ou incompletudes legislativas, a partir da
“descoberta” de valores que estariam em uma metajuridicidade.
Por outro lado, com o advento do constitucionalismo principiológico e passados
mais de dezoito anos desde a promulgação da Constituição , não há mais que falar em
“princípios gerais do Direito”, pela simples razão de que foram introduzidos no Direito
como um “critério positivista de fechamento do sistema”, visando preservar, assim, a
“pureza” e a “integridade” do mundo de regras. Nesse sentido, basta observar algumas
questões que, pelo seu valor simbólico, representam o modo pelo qual a instituição
“positivismo” assegura a sua validade mesmo em face da emergência de um novo
paradigma. É o caso de três dispositivos que funcionam como elementos de resistência
no interior do sistema jurídico, como que para demonstrar a prevalência do velho em face do novo. Vejamos: mesmo com a vigência de um novo Código Civil, desde 2003, continua em vigor a velha Lei de Introdução ao Código Civil de 1942. Um dos pilares
da Lei é o artigo 4º, que, ao lado do artigo 126 do Código de Processo Civil, funcionam
como uma espécie de fechamento autopoiético do sistema jurídico. Segundo o artigo 4º,
“quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”. Em linha similar, temse o artigo 3º do Código de Processo Penal, também da década de 40 do século passado, segundo o qual a lei
20 Cf. Neves, Frederico Ricardo Almeida. Conceitos jurídicos indeterminados e direito jurisprudencial. In: Processo Civil – aspectos relevantes. Bento Herculano Duarte e Ronnie Preuss Duarte (org). São Paulo, Editora Método, 2006, pp. 85 e 86. 21 As cláusulas gerais não são, entretanto, unanimidade no seio da doutrina civil e processual civil. Nesse sentido, registrese a crítica de Humberto Theodoro Jr contra o emprego legislativo desse tipo de estratégia, muito embora admita a introdução, pelo juiz, de valores éticos na lei. In: A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da segurança jurídica. Revista da EMERJ, v.9, n. 35, 2006, p. 15 e segs. Em linha similar, Marcus Eduardo de Carvalho Dantas, para quem “entender que o recurso às cláusulas gerais é um expediente idôneo a garantir um tratamento mais responsável das normas por parte do juiz é altamente discutível, já que não há prédeterminação da interpretação das normas, o que remete à dicotomia subjetivismoobjetivismo” (Acerca das funções sociais do contrato. In: Direito, estado e Sociedade. N. 27, jul/dez 2005. PUCRJ – Departamento de Direito., p.108).
22
processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais do direito. Já o artigo 335 do Código de Processo Civil, fruto do regime militar, acentua que “em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a
esta, o exame pericial” . Os dispositivos, a par de sua inequívoca inspiração positivista (permitindo discricionariedades e decisionismos), e sua frontal incompatibilidade com
uma leitura hermenêutica do sistema jurídico, superadora do esquema sujeitoobjeto
(filosofia da consciência), mostramse tecnicamente inconstitucionais (não
recepcionados). 22
Em termos de atuação stricto sensu dos diversos setores da justiça
constitucional, cabe registrar a postura self restrainting que a Suprema Corte assumiu nos episódios que envolveram as grandes privatizações e na discussão dos conceitos de
“urgência e relevância”, requisitos para o Poder Executivo editar medidas provisórias.
Salientese que, antes da promulgação da EC nº 32, que alterou o art. 62, da CF, o Poder
Executivo já havia editado mais de 3.000 delas. Uma postura hermenêutica mais
incisiva do STF poderia, sem dúvida, no exame da matéria e no momento oportuno, ter
evitado este mar de MPs, que tantos prejuízos causaram à cidadania e à democracia.
Nesse sentido, aparece a importância do exercício do controle difuso de
constitucionalidade que, nestes anos todos, temse mostrado aquém das expectativas. 23
22 Ver, para tanto, Verdade e Consenso, op.cit. 23 Essa questão se complexiza mais ainda com o voto do Min. Gilmar Mendes – seguido pelo Min. Eros Grau – na Reclamação n. 4.3355AC, reitepretando os efeitos do controle difuso, isto é, os dois julgadores transformam o controle difuso em controle concentrado, uma vez que tornam, mutatis, mutandis, despicienda a função do Senado, prevista no art. 52,X, da Constituição do Brasil. Então, qual é a função do Senado (art.52,X)? Parece evidente que esse dispositivo constitucional não pode ser inútil. Vejase: em sede de recurso extraordinário, o efeito da decisão é inter partes e ex tunc. Assim, na hipótese de o Supremo Tribunal declarar a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, em sede de recurso extraordinário, remeterá a matéria ao Senado da República, para que este suspenda a execução da referida lei (art. 52, X, da CF). Caso o Senado da República efetive a suspensão da execução da lei ou do ato normativo declarado inconstitucional pelo STF, agregará aos efeitos anteriores a eficácia erga omnes e ex nunc. Nesse sentido, há que se fazer uma diferença entre o que seja retirada da eficácia da lei, em sede de controle concentrado, e o que significa a suspensão que o Senado faz de uma lei declarada inconstitucional, em sede de controle difuso. Suspender a execução da lei não pode significar retirar a eficácia da lei. Caso contrário, não haveria diferença, em nosso sistema, entre o controle concentrado e o controle difuso. Suspender a vigência ou a execução da lei é como revogar a lei. Podese agregar ainda outro argumento: a suspensão da lei somente pode gerar efeitos ex nunc, pela simples razão de que a lei está suspensa (revogada), à espera da retirada de sua eficácia. Daí a diferença entre suspensão/revogação e retirada da eficácia. Sem eficácia, a lei fica nula; sendo nula a lei, é como se nunca estivesse existido. Não se olvide a diferença nos efeitos das decisões do Tribunal Constitucional da Áustria (agora adotada no Brasil), de onde deflui a diferença entre os efeitos ex tunc (nulidade) e ex nunc (revogação). Dito de outro modo, quando se revoga uma lei, seus efeitos permanecem; quando se a nulifica, é esta írrita,
23
No primeiro grau de jurisdição, ainda são poucos os magistrados que lançam mão desse
(poderoso) mecanismo, que, salientese, não fica restrito à (mera) rejeição (não
aplicação) de leis inconstitucionais, podendo, à toda evidência, alcançar a interpretação
conforme e a nulidade parcial sem redução de texto, para citar apenas estas duas
modalidades de decisões denominadas pela tradição de “interpretativas”. Nos tribunais,
continua reduzido o número de incidentes de inconstitucionalidade.
Esse conjunto de elementos, que traduzem um leque de inefetividades, não
decorre de indevidas ou equivocadas decisões individuais dos juristas. Para além disso,
o problema é de fundo paradigmático. Tratase da necessidade de uma mudança no
imaginário dos juristas, que continua – mesmo depois de tantos anos – atrelado ao
positivismo. Interessante notar, nesse sentido, que aquilo que vem a ser o maior
problema do positivismo – a “delegação” em favor de discricionarismos interpretativos
– vem a transformarse, em pleno Estado Democrático de Direito, em uma espécie de
“carrochefe” para produção de “discursos críticos”. Para tanto, de forma equivocada, os
princípios foram compreendidos como mandados de otimização, como se fossem uma
espécie de “discurso moral” adjudicativo, de cariz supralegal, ou, ainda, sob outro viés,
como “discursos abertos”, que proporcionariam aos juízes uma maior “abertura
interpretativa” (vejase as cláusulas gerais, etc). Observese, nesse diapasão, a
inadequada distinção estrutural entre casos simples e casos complexos. De forma
equivocada, pensase que casos simples podem ser (e são) resolvidos por intermédio de
nenhuma. Não fosse assim, bastaria que o Supremo Tribunal mandasse a lei declarada inconstitucional, em sede de controle difuso, ao Senado, para que os efeitos fossem equiparados aos da ação direta de inconstitucionalidade (que historicamente, seguindo o modelo norteamericano, sempre foram ex tunc). Se até o momento em que o Supremo Tribunal declarou a inconstitucionalidade da lei no controle difuso, a lei era vigente e válida, a decisão no caso concreto não pode ser equiparada à decisão tomada em sede de controle concentrado. Repetindo: a valer a tese de que os efeitos da decisão do Senado retroagem, portanto, são ex tunc, qual a real modificação que houve com a implantação do controle concentrado, em 1965? Na verdade, se os efeitos da decisão desde sempre tinham o condão de transformar os efeitos inter partes em efeitos erga omnes e ex tunc, a pergunta que cabe é: por que, na prática, desde o ano de 1934 até 1965, o controle de constitucionalidade tinha tão pouca eficácia? Desse modo, mesmo que o próprio Supremo Tribunal assim já tenha decidido (RMS 17.976), tenho que a razão está com aqueles que sustentam os efeitos ex nunc da decisão suspensiva do Senado. A discussão sobre se o Senado está ou não obrigado a elaborar o ato é outra coisa. O que está em jogo na presente discussão é a própria sobrevivência do controle difuso e os efeitos que dele devem ser retirados. Parece que a diferença está na concepção do que seja vigência e eficácia (validade). Decidir – como querem os Ministros Gilmar e Eros – que qualquer decisão do STF em controle difuso gera os mesmos efeitos que uma proferida em controle concentrado (abstrato) é, além de tudo, tomar uma decisão que contraria a própria Constituição. Lembremos, por exemplo, uma decisão apertada de 6 a 5, ainda não amadurecida. Ora, uma decisão que não reúne sequer o quorum para fazer uma súmula não pode ser igual a uma súmula (que tem efeito vinculante – registre, falar em “equiparar” o controle difuso ao controle concentrado nada mais é do que falar em efeito vinculante). E súmula não é igual a controle concentrado. De todo modo, essa discussão não está terminada, até porque, antes de tudo, há que se refletir acerca da relevante circunstância de o Brasil querer manter ou não o controle difuso.
24
raciocínios dedutivos, como se não tivesse havido qualquer alteração paradigmática no
campo da filosofia...! Como consequencia dessa inadequação teórica, pensase que os
casos complexos são resolvidos com apelo à abertura proporcionada pelos princípios.
Por tudo isso, a minha insistência no sentido de que, aquilo que vem sendo o
elemento alavancador de discursos que se pretendem críticos, vem a ser exatamente o
“ovo da serpente” do autoritarismo, enfraquecendo a força normativa da Constituição e
o seu caratér compromissório. Explicando melhor, isso ocorre quando, em nome de
duvidosos intentos solipsistas, os limites semânticos legais e constitucionais têm
soçobrado, a partir de atitudes hermenêuticas ainda (ou sobremodo) atreladas ao
esquema sujeitoobjeto (correntes subjetivistas, axiologistas, realismos jurídicos, etc).
Dito de outro modo, ainda não se conseguiu ligar esse superado esquema sujeito
objeto à revolução copernicana que introduziu o Estado Democrático de Direito. E essa
ligação teóricoreflexiva é tarefa primordial da comunidade jurídica (talvez, nem
mesmo tenha sido compreendida a própria “existência” da crise dos paradigmas
aritotélicotomista e da filosofia da consciência). Também é preciso compreender que o
giro lingüísticoontológico vai além do (simples) linguistic turn (lembremos que a pragmática mais simples é produto do linguistic turn). 24 Tratase de compreender que o
ontologic turn (ontologische Wendung) reintroduz o mundo prático afastado pela(s) epistelomogia(s). Com isso, passase do fundamentar para o compreender. E as
consequencias para o direito não podem ser utilizadas apenas para vitaminar discursos
que põem na figura do juiz a tarefa de solucionar os problemas da sociedade. Quem
tiver dúvidas em relação a isso, basta verificar as minireformas feitas no processo civil
nestas duas décadas... (ou a ode à abertura dos princípios no âmbito do direito
constitucional e às cláusulas gerais do direito civil)!
5. Apor tes finais: razões pelas quais devemos continuar a fazer apostas
hermenêuticas.
Como o direito é um saber prático que deve servir para resolver problemas e
concretizar as promessas da modernidade que ganharam espaço nos textos
constitucionais, a superação dos obstáculos que impedem o acontecer do
24 Nesse sentido, vejase minha crítica à Marcelo Dascal em Verdade e Consenso, 2 ª edição, op.ct..
25
constitucionalismo de caráter transformador estabelecido pelo novo paradigma do
Estado Democrático de Direito pressupõe a construção das bases que possibilitem a
compreensão do estado da arte do modus operacional do direito, levando em conta um texto constitucional de nítida feição compromissória e dirigente, e que, passadas quase
duas décadas, longe está de ser concretizado em nosso país. Na base dessa inefetividade,
para além do problema relacionado à configuração política e econômica da sociedade
brasileira (democracia em consolidação, alternando longos espaços de ausência de
estado de direito, a histórica desigualdade social, a cultura patrimonialista, o regime
presidencialista que se mantém com governabilidade ad hoc, etc.), encontrase
solidificada uma cultura jurídica positivista que coloniza a operacionalidade (doutrina e
jurisprudência) e o processo de elaboração das leis, a partir de um processo de
reatroalimentação sistêmica.
O problema da inefetividade da Constituição – e tudo o que ela representa
enquanto implementação das promessas incumpridas da modernidade (por isto o Brasil
é um país de modernidade tardia) – não se resume a um confronto entre modelos de
direito. O confronto é, pois, paradigmático. E nesse confronto paradigmático, as velhas
teses acerca da interpretação – subsunção, silogismo, individualização do direito na
“norma geral”, a partir de “critérios puramente cognitivos e lógicos”, liberdade de
conformação do legislador, discricionariedade do poder Executivo, o papel da
Constituição como estatuto de regulamentação do exercício do poder – dão lugar – ou
deveriam dar a uma hermenêutica que não trata mais a interpretação jurídica como um
problema (meramente) “lingüístico de determinação das significações apenas textuais
dos textos jurídicos” 25 . Tratase, efetivamente, de aplicar o grande giro hermenêutico ao
direito e, portanto, à Constituição.
Interessante notar que a tese da Constituição dirigente é boa ou má, dependendo
dos interesses em jogo. Como bem lembram Bercovici e Massonetto, os mesmos setores
que consideram a tese da Constituição dirigente retrógrada ou “jurássica” naquilo que
esta tem de compromissória no plano dos direitos fundamentaissociais, aplaudem o
“dirigismo constitucional” no que tange às políticas de estabilização e a supremacia do
orçamento monetário sobre as despesas sociais (políticas ortodoxas de ajuste fiscal e de
isolamento da Constituição financeira relativamente à Constituição econômica)
Segundo os autores, há uma inversão ideológica do discurso acerca da Constituição
25 Vejase, a propósito, a contundente crítica de CASTANHEIRA NEVES, Antonio. O actual problema metodológico da interpretação jurídica – I. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 287 e segs.
26
dirigente. Com efeito, os críticos da Constituição dirigente dizem que esta conduz à
ingovernabilidade e que o “dirigismo das políticas públicas e dos direitos sociais” é
prejudicial aos interesses do país. No fundo, dizem os autores, tratase da tese da
“Constituição dirigente invertida”, isto é, a Constituição dirigente das políticas
neoliberais de ajuste fiscal é vista como algo positivo para a credibilidade e a confiança
do país junto ao sistema financeiro internacional: “esta, a Constituição dirigente
invertida, é a verdadeira constituição dirigente, que vincula toda a política do Estado
brasileiro à tutela estatal da renda financeira do capital, à garantia da acumulação de
riqueza privada”. 26
O novo constitucionalismo, nascido da revolução copernicana do direito público,
traz para dentro do direito temáticas que antes se colocavam à margem da discussão
pública: a política, representada pelos conflitos sociais, os direitos fundamentais sociais
historicamente sonegados e as possibilidades transformadoras da sociedade a serem
feitas no e a partir do direito. Afinal, direito constitucional é direito político (H. P. Schneider).
Tais perspectivas ficam nítidas a partir de um constitucionalismo
compromissório e (ainda) dirigente, mormente em países em que as promessas da
modernidade nunca foram cumpridas (razão pela qual venho propondo a necessidade de
uma teoria da Constituição dirigente adequada a países de modernidade tardia). E a
materialidade das Constituições institucionalizase a partir da superação dos três pilares
nos quais se assenta(va) o positivismo jurídico (nas suas variadas formas e facetas): o
problema das fontes (a lei), a teoria da norma (o direito é um sistema de regras em que não há espaço para os princípios) e as condições de possibilidade para a compreensão
do fenômeno, isto é, a questão fulcral representada pela interpretação, ainda fortemente calcada no esquema sujeitoobjeto, d’onde permanece o modelo subsuntivo, como se a
realidade fosse acessível a partir de raciocínios causaisexplicativos.
Não se pode menosprezar o papel do positivismo ainda nos dias atuais. E para
tanto é necessário compreender a diferença entre a regra (positivista) e o princípio
(constitucional); o princípio atravessa a regra e resgata o mundo prático (obnubilado
pelo positivismo). E, na medida em que o mundo prático não pode ser dito no todo –
porque sempre sobra algo – o princípio traz à tona o sentido que resulta desse ponto de
26 Cfe. BERCOVICI, Gilberto e MASSONETTO, Luís Fernando. A Constituição Dirigente Invertida: a blindagem da Constituição financeira e a agonia da Constituição Econômica. In: Boletim de Ciências Econômicas da Universidade de Coimbra n. XLIX (2006), pp. 19 e segs.
27
encontro entre texto e realidade, em que um não subsiste sem o outro (aqui, o antidualismo entra como condição de possibilidade para a compreensão do fenômeno).
Em reduzida síntese: parece não haver dúvida de que o positivismo –
compreendido lato sensu – não conseguiu aceitar a viragem interpretativa ocorrida na filosofia do direito (invasão da filosofia pela linguagem) e suas conseqüências no plano
da doutrina e da jurisprudência. Entre tantas perplexidades, parece não restar dúvida de
que uma resposta mínima pode e deve ser dada a essas perplexidades: o
constitucionalismo – nesta sua versão social, compromissória e dirigente – não pode repetir equívocos positivistas, proporcionando decisionismos ou discricionariedades
interpretativas.
Isto é, contra o objetivismo do texto (posturas normativistassemânticas) e o
subjetivismo (posturas axiológicas que desconsideram o texto) do intérprete, cresce o
papel da hermenêutica de cariz filosófico, que venho trabalhando sob a denominação de
uma Crítica Hermenêutica do Direito, com a denominação inicial de Nova Crítica do Direito. 27 Embora o avanço e a importância das teorias do discurso para o enfrentamento das demandas de um universo de direito póspositivista, em que a
jurisdição assume especial relevância, pela necessidade de controlar a
indeterminabilidade das normas que não conseguem – por impossibilidade filosófica –
abarcar as diversas hipóteses de aplicação, a hermenêutica de cariz filosófico pretende ir
além dos discursos prévios de fundamentação trazidos pelas teorias discursivas como
solução para o problema da subjetividade (e, portanto, da
discricionariedade/arbitrariedade) do juiz.
Daí a tarefa fundamental de qualquer teoria jurídica nesta quadra da história:
concretizar direitos, resolvendo problemas concretos. Nitidamente, ainda há uma
resistência à viragem hermenêuticoontológica, instrumentalizada em (e por) uma
dogmática jurídica 28 (que continua) refratária a uma reflexão mais aprofundada acerca
do papel do direito no século XX. A compreensão das duas grandes revoluções
copernicanas ocorridas no direito e na filosofia é tarefa primordial dos juristas. Para
27 Ver, para tanto, STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) crise, op. cit.; e, também, STRECK, Jurisdição Constitucional, op. cit. 28 A crítica à dogmática jurídica não significa, à toda evidência, qualquer pregação no sentido de que a dogmática jurídica seja despicienda. A dogmática jurídica pode ser crítica. E deve ser crítica. Afinal, não há direito sem dogmática, como bem assevera Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. É exatamente a partir de uma dogmática jurídica consistente e crítica que se pode construir as condições para evitar – ou minimizar – os decisionismos e as discricionariedades. Ver, nesse sentido, COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Dogmática crítica e limites lingüísticos da lei. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Crítica à dogmática, n. 3, Porto Alegre, 2005, p. 3744.
28
tanto, há que se ter claro, primeiro, que o neoconstitucionalismo veio para superar o positivismo; segundo, que tal circunstância acarreta conseqüências, como a
institucionalização da moral no direito, isto é, o território inexpugnável do mundo das
relações privadas do positivismo foi invadido pelo direito público, que passa a
atravessar todas as relações privadas, a partir da horizontalização dos direitos
fundamentais; terceiro, que, quando falamos da invasão da filosofia pela linguagem, tal
circunstância tem um fundo paradigmático, balizando o mododeser dos juristas; por
que o direito ficaria imune a uma ruptura paradigmática ocorrida no campo da
filosofia?;
quarto, que é incompatível com a democracia pensar que os princípios – que
vieram para superar o mundo das regras do positivismo – promovam um abertura
interpretativa (lembremos o debate – talvez o mais importante do século XX, entre
Dworkin e Hart); quinto, que, na verdade – como de há muito venho afirmando , princípios
“fecham” a interpretação, proporcionando as condições para a construção de respostas
corretas em direito; sexto, que as posturas que “delegam” para o juiz o papel de resolver “casos
difíceis” são positivistas (portanto, na contramão do neoconstitucionalismo); sétimo, que a insistência em “reformas que objetivam efetividades quantitativas”
apenas reforçam o “caos” no sistema jurídico, porque desloca a problemática da
aplicação do direito para o plano da validade (vejase as súmulas vinculantes),
perdendose a dimensão da concretude do direito; oitavo, que não se pode confundir hermenêutica com teoria da argumentação
jurídica, isto é, hermenêutica (filosófica) não é similar a nenhuma teoria da
argumentação (e suas derivações); portanto, não é possível com ela (con)fundir – por mais sofisticadas e importantes que sejam – as teses de Alexy, Atienza e Günther, para falar apenas destas; 29 também não é possível sustentar que a ponderação (feita em
29 De ressaltar o que parece evidente: a tese habermasiana é bem mais sofisticada que a teoria da argumentação stricto sensu. Portanto, as críticas à teoria argumentação não podem ser estendidas, tabula rasa, à teoria do discurso. As críticas à teoria do discurso assumem outra perspectiva. Mas, ao dizer que os participantes de uma situação discursiva tematizam uma pretensão de validade que se tornou problemática e verificam, num enfoque hipotético e apoiados apenas em argumentos, se a pretensão do oponente tem fundamento, parece que para Habermas a obtenção da resposta estará dependente da obediência da forma da argumentação, podendo soçobrar a conteudística, problemática que assume
29
etapas ou não) seja uma “atividade hermenêutica”, uma vez que o círculo hermenêutico
aponta exatamente para a superação de qualquer atividade interpretativa ligada ao
esquema sujeitoobjeto, rejeitando, ipso facto, toda e qualquer possibilidade de subsunções ou deduções;
nono, que quando se fala na invasão da filosofia pela linguagem, mais do que a
morte do esquema sujeitoobjeto, isso quer dizer que não há mais um sujeito que
assujeita o objeto (subjetivismos/axiologismos que ainda vicejam no campo jurídico) e
tampouco objetivismos; também por isso não é mais possível falar em subsunções ou
deduções e dualismos (cisões) entre regra e princípio, casos simples e casos difíceis;
décimo, que é um equívoco sustentar que o texto jurídico (mormente em tempos de neoconstitucionalismo, em que o direito aponta para a transformação das relações
sociais) é apenas “a ponta do iceberg” e que a tarefa do intérprete é a de revelar o que está “submerso”, isto porque, pensar assim, é dar azo à discricionariedade e ao
decisionismo, características básicas do positivismo; décimoprimeiro, que a fundamentação de decisões (pareceres, acórdãos, etc) a
partir de verbetes protolexicográficos e ementas jurisprudenciais sem contexto (além, é
claro, das súmulas) apenas reafirma o caráter positivista da interpretação jurídica, pois
esconde a singularidade dos “casos concretos”; décimosegundo, é preciso ter em mente que a reprodução de ementas e verbetes
sem contexto apenas enfraquece a reflexão crítica, fenômeno que pode facilmente ser
constatado nas práticas tribunalícias (decisões que tãosomente reproduzem
ementários), retroalimentadas pela doutrina (“cultura” dos manuais), que vem
assumindo, diaadia, um conceitualismo que a joga de volta ao realismo filosófico.
Numa palavra final e voltando ao início destas reflexões: em tempos (duros) de
póspositivismo, definitivamente não é mais possível pensar na efetividade do direito
sem compreender as duas grandes revoluções copernicanas que atravessaram o direito e
a filosofia no século XX.
especial relevância quando se tratar da discussão de direitos fundamentais prestacionais. E, com isso, pode soçobrar a Constituição. Observese que, a “substituição” da tese do consenso por uma “praxis argumentativa”, conforme Habermas em Verdade e Justificação, implica colocar toda a ênfase na argumentação, que “permanece o único meio disponível para se certificar da verdade”, porque não há outra maneira de examinar pretensões de verdade tornadas problemáticas. Tal circunstância permite uma aproximação da teoria do discurso habermasiana da teoria da argumentação, pela qual, ao fim e ao cabo, somente é verdadeiro um enunciado se estiver em conformidade com um determinado
30
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procedimento, isto é, os procedimentos que regram a argumentação (em Habermas, a resposta estará dependente da obediência da forma da argumentação).