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Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 1
Linhas Gerais sobre a História da Universidade Conimbricense.
Das suas origens à Reforma Universitária Pombalina de 1772.
Parte 3
Situação da Universidade no período anterior à sua transferência
para Coimbra.
A intervenção do rei “Venturoso” na vida universitária, como ficou referido na 2ª
parte, consistiu fundamentalmente na criação de novas cadeiras, na transferência para
novas e melhores instalações e na outorga de “Estatutos”. Nenhuma destas
intervenções veio alterar substancialmente a estrutura e o programa da velha
Universidade Medieval, embora num ou outro ponto se verifique a orientação da sua
evolução. Porém, os “Estatutos manuelinos” não ofereciam
inovações notáveis e, mesmo essas, careciam de
cumprimento, pelo que as providências levadas a cabo por D.
Manuel não surtiram o efeito desejado.
Ao entrar na terceira década do século XVI, isto é, após
a morte de D. Manuel e a subida ao trono de D. João III, a
Universidade encontrava-se em estado pouco abonatório, quer
sob o ponto de vista disciplinar, quer científico e pedagógico.
Os estudantes não a tinham como referência de uma
instituição de nível europeu, estava desacreditada e «as
autoridades académicas, com a segunda natureza dos
conformismos e dos hábitos rituais, não tinham olhos nem
ouvidos para o que se passava à sua volta. Com os acólitos do
corpo docente, eram muralhas de resistência passiva, contra
as quais se quebravam os anseios de renovação».
Factores de vária ordem terão contribuído para o
enfraquecimento da Instituição lisboeta, nomeadamente pela
facilidade com que os Lentes interrompiam a actividade docente por ocasião da peste,
ou por motivo de serviço na Corte, situações que os “Estatutos” procuravam evitar,
como estava estipulado, mas constatava-se que a prática não correspondia
exactamente ao “preceito legal”.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 2
Obviamente que as acumulações de funções públicas, civis ou eclesiásticas
concorreram, frequentemente, para limitar os mestres na sua função universitária,
sendo a própria regra estatutária, como se referiu, que os proibia de «procurar ou
julgar», iludida muitas vezes.
Naturalmente, também o ambiente agitado e complicado de uma grande urbe,
«em plena febre de vida comercial e cosmopolita», não terá deixado de se reflectir
negativamente sobre as camadas estudantis, solicitando-as para formas de existência
mais ou menos dissipadas. Acrescente-se, e não menos importante, aquilo a que se
pode chamar factores de ordem patrimonial e administrativa, uma vez que a Instituição
necessitava de recursos patrimoniais próprios e constantes para retribuir
satisfatoriamente os agentes do ensino. Também o Estado não podia prescindir da
assistência técnica do magistério na administração pública. Assim, «a confluência de
forças de pressão gerou comportamentos da Universidade e do Governo que, por
assim dizer, canonizaram o “status quo” mesmo quando se reconhecia a urgência da
sua renovação».
As reformas joaninas.
Ao suceder a D. Manuel, seu filho, D. João III, conservou o “regimento”
(“Estatutos”), mas não tardou a preparar e a pôr em prática uma das mais profundas
reformas da cultura portuguesa.
Com efeito, todas as instituições de ensino vieram a sofrer grandes
transformações. Nenhuma reforma levada a cabo anteriormente se lhe pode comparar
em alcance ou extensão e, mesmo das que se fizeram depois, só a “Pombalina” de
1772 a superou.
A atenção do jovem Príncipe, havia subido ao trono apenas com 19 anos, foi
dirigida para as manifestações públicas de insatisfação relativamente à situação
pedagógica e científica que existia em Portugal, nas primeiras décadas do século XVI.
Prova significativa deste “statu quo” era manifestada pelo grande número de
estudantes portugueses que se dirigiam para os gerais de Salamanca, Alcalá de
Henares, Paris e Florença, demonstrando o nível de descrédito a que descera a
Universidade no conceito das camadas cultas do nosso País. Sublinhe-se que esta
saída de estudantes portugueses para as Universidades estrangeiras era contrária às
velhas pretensões do nosso “Estudo”, no sentido de impedir a aquisição de graus fora
de Portugal e, que, curiosamente, D. João III veio a patrocinar como uma das medidas
indispensáveis à consecução das reformas.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 3
Ao contrário do procedimento que tivera para com o rei D. Manuel, a
Universidade não tomou a iniciativa de eleger D. João III, quando subiu ao trono, seu
“Protector”, o que só veio a fazer quase dois anos depois e, mesmo assim, foi
necessária a pressão do monarca advertindo, formalmente, a Universidade de que
estava em falta para com ele.
Tem-se procurado explicar este facto com razões circunstanciais. Entre outras,
pouco consistentes, releva-se a peste que então grassava em Lisboa e que levara a
impedir outros actos académicos, como a eleição do Reitor que, segundo os
“Estatutos” (“manuelinos”), devia realizar-se anualmente. Porém, a peste não grassara
com igual intensidade durante todo um período de dois anos, nem, a não ser nas fases
de maior virulência, era suficiente para impedir a reunião de um número escasso de
pessoas.
Segundo a opinião de António José Saraiva, a resistência passiva da
Universidade só pode explicar-se por um conflito latente com o Poder Real, porquanto,
a centralização deste mesmo Poder era cada vez mais levada à prática, tornando-se
incompatível com a autonomia corporativa do “Estudo”: «Quando deixou de eleger seu
“Protector” o novo rei, a Universidade jogou atrevidamente a cartada da sua
autonomia. De facto a eleição de D. Manuel fora um precedente mas não criara uma
obrigação; e a atitude da Universidade prova que esta queria anular aquele precedente
e evitar que caísse em prescrição o direito de escolher o “Protector”. A luta todavia era
desigual. O Rei não apenas anulou de facto este direito da corporação universitária
como fez sentir o seu poder intervindo na sua vida interna…».
Pode, pois, ter sido certo que o Conselho da Universidade, talvez receoso da
interferência do Rei na vida do “Estudo”, tivesse retardado tanto quanto lhe foi possível
a sua eleição para “Protector”.
Efectivamente, entre outras intervenções, D. João mandou proceder a devassas
acerca de supostos subornos no provimento de cadeiras, determinando apenas fazer
nomeações provisórias e, como já se referiu, contrariamente ao que a Universidade
pretendia, impedir a formatura de estudantes portugueses fora do País, o Rei
promoveu e veio a intensificar em grande escala a sua ida para as Universidades
estrangeiras através da concessão de “bolsas”.
Prova evidente de que a decisão do monarca em modificar os velhos hábitos
universitários era inabalável, aconteceu quando, intencionalmente, deixou de confirmar
os privilégios que á Instituição, como era da praxe, haviam sido concedidos pelos seus
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 4
antecessores. E mais, por ocasião da peste de 1525, recusou o pedido de autorização
para os Lentes se retirarem de Lisboa, quando, sabe-se, já a tinha concedido aos
Desembargadores do Cível.
O Rei “Piedoso”, certamente não só ouvia conselhos e sugestões de vários
sectores, mas tinha a sua vontade própria e opinião pessoal. No espírito da reforma
pode vislumbrar-se a tendência ideológica de D. João III, desde logo considerando as
ideias dos mestres que, no começo do seu reinado, chamou a Portugal para educação
de seus irmãos. Eram portugueses que se distinguiam nas Universidades da Europa,
onde se sustentavam as novas ideias humanistas, entendendo-se, por isso, que o
monarca procurou «aqueles em quem encontrava, com mais sólida garantia, as
preocupações ideológicas que eram eco das suas próprias».
Foram esses mestres, Aires Barbosa que frequentara o humanismo em Itália
com Ângelo Policiano e regeu durante vinte anos as cadeiras de latim e grego em
Salamanca, chamado a Portugal em 1521, para vir a ser mestre dos infantes D.
Afonso e D. Henrique; Francisco de Melo estudou Teologia em Paris e tendo
regressado à pátria entre 1521 e 1525, foi preceptor dos infantes D. Luís e D.
Fernando; Pedro Margalho, que se doutorara em Paris, regendo depois uma cátedra
em Salamanca, sucedeu a Aires Barbosa, em 1530 no preceptorado do infante D.
Afonso.
De certo modo, pode aceitar-se que a zona onde se situaria o pensamento e
ideologia de D. João III seria a de um conservadorismo defensor das tradições
pedagógicas com alguma abertura no espaço do humanismo literário. A este propósito
deve dizer-se que, quando em 1533
Damião de Góis veio a Portugal,
aproveitou para o encarregar de um
convite a Erasmo para vir a reger
uma cadeira na Universidade.
Também o estudo do grego e do
hebraico constituíam já motivo de
preocupação, uma vez que o
desconhecimento destas línguas
por parte de muitos teólogos
escolásticos colocava-os na
impossibilidade de verificar a razão de certas afirmações dos humanistas, o que os
punha em dificuldades, ou mesmo “desarmando-os”, para o combate das ideias.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 5
D. João III estava plenamente convencido de que as deficiências da velha
Instituição, que não satisfazia já as aspirações culturais da época, e que não teriam
solução através de uma simples reforma, como aquela que havia sido empreendida
por seu Pai, entendia que não bastaria outorgar-lhe novos Estatutos e chamar do
estrangeiro um ou outro mestre, para que as necessidades do seu ensino e os vícios e
abusos fossem eliminados para sempre.
Durante os primeiros anos do seu governo, não foi possível a D. João III pôr em
prática os objectivos que pretendia em relação à Universidade, pois para além do que
já foi referido, o aparecimento da peste em Lisboa, e que abrasou boa parte do Reino,
levou a Corte a retirar-se da Capital para Coimbra nos inícios de 1523, e só ali
regressou, exceptuando uma curta estadia de Fevereiro a Abril de 1527, em Maio de
1528. Apesar dos vários contratempos, durante esse período, não deixou de, directa
ou indirectamente, dar a entender que a vida da Universidade portuguesa iria sofrer
uma transformação radical.
Em 1527, possivelmente, ainda em Coimbra, D. João III inicia o lançamento das
bases de uma reforma profunda no ensino em Portugal que iria levar a cabo durante
trinta anos, não olhando a despesas e combatendo resistências.
A primeira medida a pôr em prática tinha muito a ver com a formação de
quadros em que seria recrutado o professorado. Neste caso, seria necessário, uma
vez que no País não existiam instituições à altura, enviar os futuros mestres para o
estrangeiro e, enquanto se iam formando, preparar-se-ia o meio em que mais tarde
iriam exercer a sua acção docente. Só após terminada esta fase, estariam reunidas as
condições para se tratar da remodelação radical da Universidade.
Os “Bolseiros”.
Já anteriormente a D. João III muitos portugueses que não se contentavam com
o ensino na Universidade de Lisboa, abandonavam o País para alcançarem nas
instituições estrangeiras os seus graus e, com estes, aquele conjunto de
conhecimentos que os novos tempos consideravam indispensáveis na vida
especulativa ou profissional. Muitos faziam-no com os próprios recursos, outros a
expensas de erário real e, ainda, por conta das respectivas Ordens.
Período pré-joanino - Cerca de cem anos antes de D. João III subir ao trono, surge-
nos já o Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, na célebre “Carta de Bruges”, a
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manifestar a opinião de que a reforma universitária devia ser confiada a quem tivesse
frequentado escolas estrangeiras; D. João II envia para Paris o famoso Diogo de
Gouveia, incontornável figura do humanismo europeu, a quem me irei referir com mais
pormenor.
Desde os últimos anos do governo de D. Manuel I contam-se por muitas
dezenas os estudantes portugueses em Salamanca, Paris, Lovaina, etc. Assim, D.
Manuel, por alvará de 10 de Agosto de 1510, autorizou o feitor da Flandres a pagar
durante sete anos ao franciscano Frei Gil de Santarém a pensão anual de quinze mil
cruzados para ir cursar na Universidade de Paris. Outro alvará, de 15 de Janeiro de
1513, ordenava ao referido feitor que disponibilizasse quarenta e seis mil e oitenta
reais a D. Pedro de Menezes para ali poder estudar; sustentava igualmente à sua
custa, também na Universidade parisiense alguns frades dominicanos. Recorde-se
que Francisco de Melo, já referido como preceptor dos infantes D. Luís e D. Fernando,
irmãos de D. João III, obteve na capital francesa os graus de Mestre em Artes e
Licenciado em Teologia, e de quem mais tarde Gil Vicente diria saber «Sciência
avondo» e, ainda, «que então era o melhor matemático que havia no reino».
Sublinhe-se que D. Manuel não se limitou a pagar “bolsas” temporárias,
porquanto, instituiu no famoso Colégio de Montaigu de Paris, em 1498, uma fundação
de mil e trezentas libras, «com a obrigação de serem perpetuamente recebidos nele
dois estudantes portugueses pobres, que disporiam de camas separadas, cujas portas
se assinalariam com as armas portuguesas».
Além da frequência em Paris, D. Manuel subsidiou escolares noutras
Universidades, havendo conhecimento que no ano lectivo de 1517-1518 auxiliou com
pensões os franciscanos Frei Francisco Guieiro, Frei Francisco do Porto e Frei
Francisco Pessoa, a fim de estudarem Teologia nas Universidades de Oxford e
Cambridge. Lovaina, o mais brilhante e atraente centro de humanismo no primeiro
quartel do século XVI, ao qual presidiam Erasmo e Luís Vives (natural de Valência,
uma das figuras máximas do Renascimento, pedagogo insigne), foi frequentada, entre
outros, por Frei Brás de Barros (ou de Braga) e Frei Diogo de Murça, dois famosos
frades Jerónimos, que também frequentaram Paris e, posteriormente, foram dos
principais executores da reforma planeada por D. João III.
Em Salamanca, onde ensinaram Aires Barbosa e Pedro Margalho, estudaram
André de Resende, Pedro Nunes, Garcia da Orta, Jerónimo Cardoso, João de Barros,
Amato Lusitano (João Rodrigues de Castelo Branco), referindo apenas alguns dos
nomes mais ilustres no domínio das humanidades, do direito e das ciências.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 7
Porém, era a D. João III que estava reservada a missão de intensificar, e de
forma maciça, o envio de portugueses para as grandes Universidades europeias.
“Bolseiros” d’el Rei D. João III. A acção do Doutor Diogo de Gouveia – Se é certo
que, no último quartel do século XV, se começa a notar um movimento de estudantes
portugueses em direcção à Itália, onde estudaram Aires Barbosa, Henrique Caiado,
Amato Lusitano e os três filhos do chanceler-mor João Teixeira, com D. Manuel as
instituições preferidas passaram a ser exactamente aquelas que tinham maior
reputação como centros de estudos teológicos, isto é, Paris e Lovaina, pois, «para nós
peninsulares o humanismo filológico e paganizante dos italianos nunca foi uma
sedução».
De facto, os escolares enviados para Paris destinavam-se, exclusivamente,
depois de frequentarem os preparatórios de Gramática e Artes, ao estudo da Teologia.
O interesse dos reis portugueses, nomeadamente D. Manuel e D. João III pela
aquisição de conhecimentos dos seus súbditos não pode, segundo o Professor Costa
Pimpão, ser avaliado através do critério laicizado dos nossos dias, uma vez que os
Teólogos eram muito necessários na expansão da Fé, assim como na defesa da
ortodoxia.
Com efeito, a preferência dada ao estudo da “Sacra Página” era «uma
necessidade espiritual» que, aliás, remontava ao Infante D. Henrique, fundador de
uma cadeira de Teologia no Estudo de Lisboa e, já D. Pedro, Duque de Coimbra, ao
planear a reforma universitária pensava, sobretudo, em dar à Igreja em Portugal um
clero instruído. Também D. Manuel, com idêntica intenção, decidiu aumentar o número
de cátedras de Teologia e fundando no Convento de São Domingos, em Lisboa, o
Colégio de São Tomás.
Na Europa vivia-se uma época em que se haviam multiplicado as edições dos
textos sagrados, tal como das obras clássicas profanas, e daí resultava que cada um
podia «à margem das lições dos Colégios» interpretar como entendesse e formar a
sua opinião, o que levou Quicherat, a afirmar «que todas as nuances da ortodoxia,
como da heresia, podiam encontrar-se na geração que passou por Santa Bárbara
entre 1520 e 1530».
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 8
Sem dúvida que a figura mais relevante nas relações pedagógicas entre
Portugal e o estrangeiro é a de Diogo de Gouveia, Teólogo da Sorbonne, e que
chegou a ser Reitor da Universidade parisiense e Subdirector da Faculdade de
Filosofia da mesma cidade.
Diogo de Gouveia, geralmente conhecido pelo “Velho” ou “Sénior”, para se
distinguir de um seu sobrinho com o mesmo nome, nasceu em Beja, por volta de 1471,
indo estudar para Paris, pertencendo aquela geração de bolseiros que se havia
formado antes da subida ao trono de D. João III, aí se licenciando e doutorando em
Teologia no ano de 1510.
A sua actividade desenvolve-se simultaneamente nos campos da Diplomacia,
da Pedagogia e da Teologia, porém, o seu grande sonho era realizar o projecto de vir
a dirigir uma escola onde orientasse a formação de teólogos portugueses, tanto mais
que, em 1517, D. Manuel o chamara para leccionar em Portugal a cadeira de Véspera
de Teologia no Estudo Geral de Lisboa, convite que recusou, por via de continuar a
“amadurecer” o seu projecto do Colégio parisiense.
A este propósito, diga-se que Diogo de Gouveia já por volta de 1520 arrendara
em Paris o Colégio de Santa Bárbara, porém, a iniciativa malogrou-se, talvez porque a
morte de D. Manuel o tivesse privado do auxílio régio e, em 1523, chegou mesmo a
ser condenado por atraso no pagamento do aluguer.
Assim, tornava-se forçoso conseguir o apoio do novo Rei para o projecto, que
consistia na ida de estudantes portugueses para Paris, na qualidade de “bolseiros”, os
quais se instalariam no famoso Colégio de Santa Bárbara, excepto os que
pertencessem a Ordens religiosas onde seriam alojados.
Diogo de Gouveia era um homem de grande iniciativa e tenacidade.
Indiscutivelmente, um mestre de reputação europeia, mas também um defensor
vigoroso e extremo da Escolástica e da Teologia tradicional da Igreja, não apenas
contra a heresia luterana mas contra as próprias fórmulas moderadas e conciliatórias
de Erasmo, a quem D. João III muito admirava. Apesar de ser um escolástico
tradicionalista e refractário às inovações do tempo, tinha a confiança do Rei e acabou
por alcançar, em 1527, o apoio para realizar o seu plano.
Agradado com o projecto que lhe foi apresentado, D. João III autoriza a
instituição de cinquenta “bolsas”, ou talvez mais, em Paris, por dez anos para
estudantes de Teologia e Preparatórios.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 9
Não será de estranhar que o envio de tão avultado número de “bolsas” para o
principal centro de formação dos nossos Teólogos se integrasse num plano
sistemático mais vasto, o qual viria dez anos depois a resultar na reforma da
Universidade e na sua transferência para Coimbra. Com efeito, cinquenta “bolsas” é
um número considerável que só terá explicação no objectivo de criar dentro do País
«toda uma fornada de teólogos capazes de renovar aqui o ensino da Teologia,
elevando-o a um nível que, certamente, não tinha na Universidade portuguesa».
Excelência na decisão de D. João III não é apenas a concessão do número de
“bolsas”, (o que é notável) mas também o valor de cada uma. O seu antecessor já
fizera o mesmo, isto é, enviara, como se referiu, “bolseiros” portugueses para obter a
graduação em Teologia, em Paris, só que em menor número e com bolsas de metade
do valor que D. João agora atribuía. Porém, não se pense que as coisas eram assim
tão fáceis, e que não havia dificuldades da parte da Coroa para levar a acabo o
processo de formação dos “bolseiros” portugueses em Paris.
Obviamente, a grande dificuldade que se deparava ao Rei na instituição das
“bolsas”, era o seu suporte financeiro, se bem que fosse auxiliado, parece, por seu
irmão, D. Afonso.
Solicitação de auxílio ao Clero. Reacção do Arcebispo de Braga ( D. Diogo de
Sousa) – A fim de reunir as rendas suficientes para manter as referidas “bolsas”, D.
João III julgou o Clero como “parceiro” ideal, até porque era quem maiores vantagens
alcançaria daquela empresa.
Deste modo, D João dirigiu-se aos Prelados e Cabidos do Reino, embora,
documentalmente,
apenas estejam
provadas as suas
diligências junto do
Arcebispo e Cabido de
Braga, não se
desconhecendo, por
isso, como teria reagido
o Alto Clero ao pedido de auxílio económico. Efectivamente, só é conhecida a resposta
dada pelo Arcebispo bracarense que, desde já, pode dizer-se foi negativa e, parece
que, no seu entender, com algum fundamento.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 10
Por incumbência do Rei, e como seu emissário, o Dr. Pedro Margalho, então
professor de Filosofia Moral em Salamanca, fez jornada até Braga a fim de se avistar
com D. Diogo de Sousa e o Cabido e expor-lhes o assunto dos “bolseiros”.
D. Diogo de Sousa que é considerado como um dos prelados mais distintos e
activos da igreja bracarense, «com fibras de homem da Renascença», numa longa e
significativa carta, datada de 21 de Setembro de 1527, não se mostra receptivo ao que
D. João pretendia, por via de uma situação que o desgostou. É que…já no tempo de
D. Manuel I planeara criar em Braga um Colégio onde fossem leccionadas as
disciplinas das Artes, como preparatórias de Teologia, seguidas do estudo desta,
como se fazia no estrangeiro. A iniciativa que teve a adesão do “Venturoso” é atestada
pelo ofício de 3 de Maio de 1509, dirigida a D. Diogo, no qual lhe promete manter nove
pensionistas no «colégio que quereis ordenar nessa cidade», contudo, o
empreendimento não foi avante, ou por intrigas movidas na Corte, ou talvez pela
Universidade, com receio de se ver amputada de duas Faculdades tão importantes.
Melindrado com o facto, não foi de “modas” e, na referida carta, recordou-o ao
monarca: «…todos sabem que a primeira obra que desejei e tentei de fazer em
chegando a esta cidade foi um colégio; e sem começar outra, o fiz saber a El-rei vosso
pai que Deus haja, [o qual] foi disso muito contente e louvou meu propósito, e me
prometeu renda para mantimento de nove colegiais cada ano. E estando assim, veio o
Inimigo e sobre esta boa semente semeou cizânea, (discórdia) de que agora não
quero dar conta, a qual apagou a boa inspiração e a maneira para se fazer obra tão
necessária e proveitosa». Se o projecto de D. Diogo tivesse ido avante, Braga estaria
no primeiro lugar da reforma quinhentista dos estudos, antecipando-se, em longos
anos, sobre o que veio a realizar-se.
Para além do ressentimento sobre este caso, o Arcebispo desaprovava o envio
de estudantes portugueses para um país como a França de quem tantos agravos
sofríamos e, mantendo a negativa, explicava a sua atitude, advogando a conveniência
de ser preferível fundar um Colégio, regido por mestres contratados no estrangeiro, e
onde se leccionasse a Teologia e as matérias que preparavam para o seu estudo:
«Não cureis de mandar a Paris sessenta escolares aprender a Teologia mas mandai
vir de lá sessenta lentes, a modo de falar, porque até dez bastavam para tudo, e então
fazer um colégio mui comprido e mui grande, e de poucas pinturas e lavores, onde se
leia Teologia e todas as artes e ciências que para ela são necessárias».
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 11
A fim de incentivar D. João, lembrava-lhe o exemplo do ilustre Cardeal Ximenes,
os “doutos” colégios recentemente fundados em Salamanca e que a renda para o
projectado Colégio, se o monarca não a quisesse ir buscar ao erário real, podê-la-ia
obter dos bens do mestrado de Cristo, então na posse da Coroa, ou dos numerosos
mosteiros da comarca de Braga.
A finalizar a longa carta, D. Diogo oferecia-se para auxiliar magnanimamente os
estudantes, no caso do Colégio ser fundado na sua cidade Arquiepiscopal, e segundo
o seu parecer, devia estabelecer-se aí ou no Porto, «pela qualidade dos ares e
temperança da terra».
Não há conhecimento de que D. João III tenha respondido a D. Diogo, porém o
projecto dos estudos universitários de Santa Cruz de Coimbra, limitando-se à Teologia
e às Artes, levam a crer que a ideia de D. Diogo não caiu em “saco roto”.
Com auxílios ou sem auxílios, e apesar da recusa do Arcebispo e do Cabido, D.
João III continuou a enviar “bolseiros” para Paris, com grande entusiasmo de Diogo de
Gouveia.
Durante mais de vinte anos o famoso Colégio de Santa Bárbara funcionou sob a
égide dos Gouveias, e embora se tivesse malogrado a intenção da sua compra,
converteu-se numa escola portuguesa pela população docente, discente e dirigente.
Efectivamente, Diogo de Gouveia, o “Principal” (Director) de Santa Bárbara, é o
representante mais antigo de uma família que deu ao ensino alguns mestres de
elevada craveira, todos graduados em Paris: o próprio Diogo de Gouveia, seus
sobrinhos, Marcial, poeta latino e gramático, que além de Santa Bárbara foi mestre em
Poitiers, António, defensor de Aristóteles contra Pedro Ramus, «cavaleiro andante da
eloquência e da erudição» e «um dos raros espíritos que constituíram o eterno
ornamento da Renascença», André, «le plus grand “Principal” de France», no dizer de
Montaigne, e Reitor da Universidade de Bordéus, e Diogo de Gouveia, (Júnior).
Sob a direcção de Diogo de Gouveia o Colégio de Santa Bárbara torna-se um
dos mais importantes colégios parisienses, onde afluem, não só portugueses, mas
também estrangeiros, entre os quais Inácio de Loiola. Pode concluir-se, mercê de um
estudo rigoroso e bem documentado, que Portugal, proporcionalmente à sua
população, foi o País que enviou para França maior número de “bolseiros”.
Entre 1527 e 1547, período entre a instituição das”bolsas” e a fundação do
Colégio das Artes, em Coimbra, os portugueses eram tão numerosos em Paris que
constituíam, na capital o grupo estrangeiro mais importante da “nação” de França.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 12
Frei Brás de Barros, ou de Braga, reformador dos estudos em Santa
Cruz de Coimbra.
Não se sabe ao certo o ano do nascimento de Frei Brás de Barros, também
conhecido por Frei Brás de Braga por ser natural desta cidade. Sabe-se, contudo, que
começa por viver na Corte e, mais tarde «foi exercitado em as armas em África». Em
1516, pouco tempo depois do seu regresso, professa no Mosteiro de Penha Longa,
casa-mãe da Ordem de S.
Jerónimo, fundada nos fins do
século XIV por Frei Vasco
Martins.
A fim de prosseguir
estudos de aperfeiçoamento
nas Ciências Teológicas parte
para o estrangeiro – Paris e
Lovaina – acompanhado, como
já se referiu do seu irmão de hábito, Frei Diogo de Murça, onde permaneceu de 1517 a
1525. Depois de graduado em Teologia, por Paris, transferiu-se para Lovaina (na
Bélgica actual), onde alcançou a graduação pretendida.
Lovaina era, por este tempo, considerada como uma das mais famosas
universidades europeias, apoiada por cerca de três dezenas de Colégios salientando-
se, nomeadamente, o Colégio Trilingue. Esta Instituição, notável na história do ensino,
e onde Erasmo foi professor, era assim denominada pelo facto de para além do latim
habitual se praticava o estudo do Grego e do Hebraico, o que revelava uma abertura
de espírito permitindo aos seus estudantes o desenvolvimento de uma mentalidade
diferente daquela que o Doutor. Diogo de Gouveia Sénior pretendia para os bolseiros
de Santa Bárbara.
Regressado a Portugal, enriquecido pelo conhecimento de vários meios, a
Corte, vida militar e vida académica, Frei Brás de Braga era portador de elevada
preparação para dar o seu contributo à renovação do País. E assim veio a acontecer.
Com efeito, por esse tempo, D. João III e a Corte encontravam-se em Coimbra,
tendo saído de Lisboa por via da peste que grassava na Capital. Como as questões
pedagógicas constituíssem uma prioridade para D. João, foi mais que provável ter
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 13
conversado com Frei Brás de Braga acerca da necessidade de reformar os estudos
em Portugal.
Assim, a pretexto do relaxamento disciplinar dos monges-cónegos de Santa
Cruz, que desde o alvorecer da nacionalidade fora um notável centro de actividade
intelectual, o rei, por alvará de 8 de Outubro de 1527, nomeia Frei Brás de Braga
reformador dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho e instaurador do ensino das
Humanidades.
Recorde-se ter sido por este mesmo tempo, quando o Doutor Diogo de Gouveia
esteve em Portugal, que D. João III instituiu as “bolsas” de estudo para o Colégio
parisiense de Santa Bárbara. Esta concordância de datas (1527), só pode levar a crer
que a reforma dos estudos em Santa Cruz, bem como a concessão das “bolsas”, eram
consideradas bases fundamentais, e urgentes, para a remodelação da Universidade.
Sem dúvida que, com D. João III, iria começar para a “Alma Mater” portuguesa um
novo período cultural.
Porém, a tarefa que se impunha e esperava Frei Brás de Braga não era fácil. O
Mosteiro, que em épocas não muito longínquas havia desenvolvido uma brilhante
actividade pedagógica, entrara em franco declínio, e até mesmo no aspecto disciplinar.
Era, pois, difícil corrigir hábitos enraizados e relaxados, além de que o religioso de São
Jerónimo era estranho à Congregação dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho e,
por isso mesmo, começou logo por ser mal recebido.
Os cónegos de Santa Cruz não tinham obrigação claustral, isto é, não
praticavam a clausura, situação que, muitas vezes, dava azo a escândalos, ofendendo
as almas mais piedosas. Assim, pela reforma de Frei Brás os crúzios foram obrigados
a adoptar a clausura estabelecendo-se, desse modo, uma separação entre os que não
se submeteram e os que aderiram, ficando estes sujeitos ao governo de um Prior
“claustreiro”, eleito por eles.
Dos cónegos que aceitaram o regime claustral, salienta-se D. Bento Camões,
que veio a ser Prior “claustreiro” no ano em que a Universidade foi mudada para
Coimbra, e que por esta circunstância recebeu a dignidade de primeiro Cancelário da
Universidade, inerente aos Priores de Santa Cruz.
Entre os dissidentes que não aceitaram a reforma trazida por ”um religioso de
fora” figura o Prior cessante, D. Brás Lopes, Doutor pela Universidade de Paris, que se
recusou em capítulo a aceitar a remodelação abandonando o Mosteiro e arrastando
consigo alguns religiosos.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 14
Apesar das dificuldades iniciais, Frei Brás de Braga, escudado pelo Rei que lhe
havia passado “carta branca”, bem determinado, firme nas suas convicções e
possuído de uma autoridade incontestável, iria elevar os estudos em Santa cruz, como
reformador dos cónegos regrantes e instaurador do ensino das Humanidades, a um
plano nunca atingido.
A sua acção reformadora exerceu-se em três direcções: a reforma espiritual e
moral dos monges, a reforma patrimonial do Mosteiro e a reforma dos estudos, sendo
esta ultima a que mais interessa focar por via da sua projecção nacional.
Deixando para trás fontes que não têm qualquer consistência, (apontando para
1528 o início das lições), a primeira considerada credível acerca dos estudos em
Santa Cruz, após a reforma, está documentada numa carta de D. João III para Frei
Brás, de 20 de Agosto de 1530, em que pretende ser informado sobre a forma da
suplicação que o religioso fizera a Roma – provavelmente por causa da concessão de
graus académicos e outros privilégios a outorgar pelo Pontífice – a respeito de
«cousas que tocavam aos estudos». Com efeito, este documento prova que já então
se procurava seriamente elevar o nível das escolas conventuais, mas não garante que
as aulas já funcionassem. Só três anos depois, em 1533, há a garantia de haver aulas
no Mosteiro, visto ali se encontrar a funcionar uma cadeira de Grego – a nova
disciplina dos Humanistas – regida por Vicente Fabrício, atraído de França. A
propósito deste famoso Mestre, e do ensino em Santa Cruz, sublinhe-se o entusiasmo
e as palavras altamente elogiosas do célebre humanista italiano Nicolau Clenardo,
quando em 1537 passou por Coimbra: «… Não posso formar um juízo senão da aula
de Grego, a qual me deixou assombrado com o novo milagre: - Vicente Fabrício
comentava Homero, não traduzindo-o do Grego para o Latim, mas como se o fizesse
na própria Atenas! Nunca até então eu vira tal em parte alguma. E os discípulos
imitavam o mestre com não menor aplicação, empregando também a língua grega
quase exclusivamente…».
Quanto ao ensino das artes provavelmente só em 1535 se inaugurou
regularmente, visto ter sido nesse ano que vieram para Santa Cruz professores
“franceses”, e que no final de Setembro um dos mestres começou a leccionar o
primeiro ano do curso de Artes: a Lógica. Os outros mestres teriam ocupado as
cátedras de Gramática e, possivelmente, uma de Teologia.
Quanto a esta última terá sido entregue ao Doutor Afonso do Prado (português,
Mestre em Artes e doutor em Teologia pela Universidade de Alcalá), pois por este
tempo já eram estreitas as suas relações com o Mosteiro, sabendo-se também que o
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 15
famoso Lente ensinou Teologia em Coimbra, ainda antes que para lá se tivesse
transferido a Universidade. Acrescente-se, ainda, que Afonso do Prado, mais tarde
mestre na “Alma Mater” conimbricense, foi um excelente auxiliar de Frei Brás de
Braga, pois este valeu-se do seu experimentado conselho, como, aliás, o próprio
reformador o confessava, encarecendo ao Rei o trabalho que tivera em «assentar com
o Doutor Prado em as regras das artes e os franceses que vieram de Paris».
Colégios do Mosteiro de Santa Cruz - O projecto de reforma dos estudos em Santa
Cruz incluía, praticamente, “ab initio”, a fundação de uma rede de colégios, à maneira
de Paris e Oxford, ideia lançada no século XV pelo Infante D. Pedro, pretendendo-se,
deste modo, completar a instituição universitária.
Foram em número de quatro os colégios então criados: Santo Agostinho e São
João Baptista mandados erguer junto da Igreja do Mosteiro; São Miguel e Todos-os-
Santos ficavam situados na rua da Sofia (sabedoria), considerada à época a rua mais
larga do País (12 a 15 metros) e tendo a ladeá-la um conjunto de edifícios destinados
a colégios universitários.
Os Colégios de Santo Agostinho e São João Baptista destinavam-se à
leccionação, enquanto os outros dois funcionavam como alojamento dos escolares e a
local de estudo; o primeiro destinava-se a internato de estudantes canonistas, ou
canonistas e teólogos, e o segundo a internato de artistas e teólogos.
Estes Colégios que serviam de alojamento não eram grandes, recebendo cada
um deles apenas nove estudantes, escolhidos mediante certas provas de admissão, e
aí poderiam permanecer durante o tempo máximo de sete anos. As vagas eram
anunciadas publicamente durante quarenta dias em Coimbra e nas cidades mais
importantes do Reino. O concurso constava de duas lições sobre as “Decretais”,
arguidas por três colegiais dos mais novos, e o provimento fazia-se por maioria de
votos, votando o Prior, os colegiais e os conciliários e canonistas escolhidos pelo Prior.
Na votação devia preferir-se o mais digno, «e mais disso, o que for mais hábil,
virtuoso e mais pobre». O candidato admitido, no dia em que vestia o hábito do
Colégio, jurava perante o Prior de Santa Cruz respeitar as constituições e «ser sempre
em ajuda, e favor e serviço do Mosteiro».
Os colegiais de Todos-os- Santos eram conhecidos pelo nome de “Pardos”, da
cor do seu hábito e os do colégio de São Miguel tinham a denominação de “Roxos”. O
hábito era obrigatório fora do Colégio, sob pena de multa, e era-lhes proibido o uso de
camisas lavradas e luvas perfumadas, «nem outras coisas semelhantes».
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 16
As refeições faziam-se em comum, lendo-se ao jantar passagens do Antigo
Testamento e à ceia do Novo. A refeição era precedida da bênção da mesa, e aquele
que faltava não comia o primeiro prato, ou, no dizer das constituições, da «primeira
pitança».
A vida interna era severa e rigorosa, e orientada para o estudo, moralidade e
cumprimento dos deveres religiosos. Os exercícios escolares faziam-se dentro do
Colégio e para os colegiais, porém, sempre que o Prior de Santa Cruz ordenasse,
deviam ler perante os cónegos regrantes no Mosteiro. A língua dos colegiais entre si e
dentro do Colégio era o latim, aliás como regra uniforme de todas estas instituições da
Renascença e que em Coimbra foi exemplarmente respeitada, como ressalta do
testemunho, já referido, de Nicolau Clenardo ao visitar Santa Cruz.
Oficina tipográfica e livraria - Relevante na renovação dos estudos, levada a cabo
pela reforma de Frei Brás de Braga, em Santa Cruz, foi a fundação de uma oficina
tipográfica no próprio Mosteiro.
Germão Galharde, impressor francês fora, (1530-31) o seu organizador, mas
em 1532 já eram os cónegos quem compunham e tiravam: «Em estas casas (de
stãpar) sem nenhuma pessoa secular ajudar aos religiosos, vereis como se exercitam
no ofício de copiadores, distribuidores, outros no de correctores, outros em batedores,
outros em tiradores, e todos em silêncio observantíssimos guardadores».
Famosa sobretudo até 1536, desta oficina saíram vários livros religiosos e de
humanidades. Em 1532 foi impressa a ordenança e regra da Casa e no ano seguinte
um “Espelho de perfeyçam em linguoa Portuguez”. Em 1535 saiu daquela impressão
as “Institutiones…latinarum literarum”, de D. Máximo, e, no ano anterior, o “De
divisionibus et difinitionibus” de Boécio, «em que já se vêem, no juízo do erudito Fr.
Fortunato de S. Boaventura, alguns lugares de caracteres gregos perfeitamente
trabalhados, que mostram bem quanto floresciam aqueles prelos».
A renovação dos estudos foi preparada pela renovação da livraria: «Um livro de
“receita e despesa” do mosteiro de Santa Cruz, relativo ao período que vai de
Novembro de 1534 até Fevereiro de 1535, revela bem até que ponto os ventos da
renovação entravam nos seus claustros: livros didácticos como “De duplici copia
verborum ac rerum”, tratado clássico para grande número de estudantes de latim, uma
exposição prática sobre a maneira de procurar a “cópia” (i. e.a riqueza das coisas); as
“Epístolas” de Marco Túlio, um “Calepino” (um dicionário) de Nebrija, humanista
espanhol. “Artes de Gramática Grega; outro livro didáctico de Erasmo (“De octo
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 17
orationum partibus), para estudo da sintaxe; um livro de Retórica, de António de
Nebrija; “Epístolas de S. Jerónimo, etc.
Abastecia-se a abadia de livros escolares e de livros espirituais, como o
“Exercitatorio espiritual”, de Garcia de Cisneros, o “Estímulo de Amor”, de Frei Jacques
de Milão; o “Espelho de Religiosos, de Miguel Comalada, etc., etc.».
Nova Universidade, reforma da Universidade de Lisboa, ou
transferência?
Cerca de oito anos depois das grandes reformas empreendidas em Santa Cruz
de Coimbra pelo Prior geral, Frei Brás de Braga, em 1528, os estudos apresentavam já
um desenvolvimento tão notável que mereceram ser considerados como verdadeira
Universidade, embora com um campo de acção limitado.
Ao patrocinar a reforma monástica e intelectual, parece ter sido firme propósito
do Monarca transformar os estudos de Santa Cruz em Universidade, como ressalta de
uma carta que enviou ao frade de São Jerónimo, em 9 de Fevereiro de 1537: «Eu
sempre fiz fundamento quando determinei mandar fazer esses estudos de fazer
universidade e escolas gerais, por o sentir assim por mais serviço de Deus e meu e
proveito comum de meus reinos e senhorios e de meus vassalos e naturais».
Porém, é bem consistente, e difícil de rebater, o raciocínio do Professor Silva
Dias, quando afirma duvidar de que a ideia de reforma andasse associada, desde
início, à ideia de transferência da Universidade, na mente de D. João III e seu
Conselho: «A promessa do fundador da Dinastia (D. João I determinara que o Estudo
Geral permanecesse em Lisboa para “todo o sempre” ) não era coisa pela qual o
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 18
jovem Rei pudesse passar à ligeira. E os documentos conhecidos mostram que o seu
cuidado se concentrou na promoção de centros de ensino preparatório fora da Capital.
É possível que as vistas régias fossem já então mais longe – até ao pensamento da
fundação, nalgum desses areópagos, de um estudo geral que permitisse abandonar o
de Lisboa à existência vegetativa que parecia querer seguir.
A solução continha vantagens evidentes de carácter político. Não era fácil,
contudo, avançar por esse caminho até ao fim. Os apuros financeiros do Estado quase
vetavam, por si sós, o projecto de sustentar, no país, dois esquemas universitários,
vendo-se o Monarca forçado a recorrer aos cofres do estudo lisboeta para subsidiar as
despesas da construção dos colégios, em Coimbra, sob Fr. Brás de Barros. E a recusa
dos prelados do Porto, Braga, Coimbra, e, possivelmente de outras dioceses a
comparticiparem nos encargos pecuniários das reformas da instrução deve ter-lhe
mostrado, pelo seu total insucesso, que não poderia contar com suprimentos vindos
desse lado».
Considera ainda o ilustre investigador, se acaso, como hipótese fugaz, a
solução de uma universidade nova em coexistência com a de Lisboa chegou a admitir-
se, logo terá sido afastada.
Efectivamente, o Governo mobilizou-se no sentido de renovar a Instituição
lisbonense, tendo sido dentro deste contexto que estarão inseridas algumas iniciativas,
directas ou indirectas, da administração joanina: o aumento dos vencimentos
abonados aos professores, pretendendo claramente anular, solucionando, uma das
fontes crónicas do mal-estar universitário, oferecendo, assim, condições de vida mais
consentâneas com o valor social dos mestres; revisão dos estatutos que, julga-se, não
envolvendo questões de ordem pedagógica ou ideológicas de fundo, privilegiou o
domínio das finanças; inspecção dirigida à vida administrativa da escola, em que os
visitadores (inspectores) deviam informar-se da situação do património universitário e
da «legalidade e eficácia da sua gerência, corrigindo o que estivesse mal e propondo
ao Governo a legislação e as ordens de serviço necessárias, para que tudo entrasse
em ordem». Ao fim e ao cabo, esta iniciativa tinha como objectivo subordinar o Estudo
à autoridade da Realeza, intervindo nos seus mecanismos internos, tratando-se já de
intervenção na matéria pedagógica, o que se entende, claramente, quando as
instruções régias determinam aos visitadores que observem «se os lentes cumprem
com suas observações como devem».
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D. João III, provavelmente, por querer ver em que paravam as “modas”, ou
talvez porque as “coisas” não estivessem bem amadurecidas, tardou algum tempo a
convencer-se que a modernização do Estudo lisboeta tinha de passar, forçosamente,
pela mudança para Coimbra. Sendo assim, não é de rejeitar que a sua primeira
tomada de consciência, neste aspecto, tenha sido provocada pelas reacções de
alguns prelados ao apelo que lhes dirigira, nomeadamente, e como já foi referido, à
posição enérgica do Arcebispo de Braga, D. Diogo de Sousa.
Porém, foi necessário o “desengano lisboeta”, e que as medidas postas em
prática para a progressão do Estudo se transformassem em constantes e puras
frustrações, para que o Monarca, finalmente, se convencesse de que a reforma era
politicamente inviável na Instituição da Capital.
De facto, D. João, deixara de acreditar na viabilidade de uma reforma eficaz nas
escolas gerais de Lisboa. A experiência evidenciava como era difícil desenraizar a
rotina pedagógica e disciplinar da Instituição: «A imunidade natural que a influência
política dava a muitos lentes, e o proteccionismo pedido ou esperado pelos pais de
certos alunos, trabalhavam denodadamente, a favor dela».,
Acrescente-se ainda que, nos seus últimos anos, a Universidade de Lisboa
tinha perdido Lentes eminentíssimos, como Frei Baltazar Limpo, que regeu a cadeira
de “prima” de Teologia até 1530, e o Dr. Garcia da Orta que, em 1534, embarcou para
a Índia, na companhia de Martim Afonso de Sousa, atraído pela «novidade dos
fenómenos das regiões orientais».
O pensamento da mudança da Universidade para Coimbra impunha-se como
uma necessidade da maior urgência.
Universidade em Torres Vedras? – A intenção de D. João III e do seu Conselho de
fazer sair o Estudo da cidade de Lisboa data, pelo menos, de finais de 1531, pois são
deste ano e dos imediatamente seguintes, as manifestações directas, ou veladas, mais
antigas no sentido de transferir a Universidade para outro local.
Curiosamente, a pretendida transferência não contemplava Coimbra ou Évora,
como seria lógico prever, mas foi Torres Vedras que esteve nas perspectivas reais.
Esta decisão, da qual não se conhece a ordenação, emanada pelo Rei, está,
claramente, documentada na resposta que os vereadores torrienses enviaram ao
Monarca: «…que possa saber que a nós foi dado uma carta de Vossa Alteza que
mandava que o Estudo de Lisboa se viesse a esta vila, e porque senhor esta vila há
muitos anos que está posta em muita necessidade e pobreza pelo desvairo dos
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 20
temporais…pelo que pedimos por mercê a V. A. que haja por bem o estudo se mudar
para outra parte…». Como se vê, Torres Vedras recusou-se a aceitar o pedido por via
das necessidades e pobreza da sua vila.
Então, o que teria levado o Rei “Piedoso” a ordenar a transferência da
Universidade?
Uma das hipóteses que em tempos se tornou corrente assentaria no facto, já
anteriormente referido, do desagrado do Rei pela Universidade de Lisboa somente o
ter eleito para seu Protector, depois do próprio Monarca o ter exigido, em 30 de
Dezembro de 1522. Em contrapartida, D. João não confirmou os privilégios, como era
da praxe, que os seus antecessores concederam ao Estudo. Em 1535, catorze anos
depois de ter começado a governar, ainda a Universidade de Lisboa lhe requeria a
confirmação dos seus privilégios, pois não queriam perder as suas prerrogativas.
Apesar dos atritos continuarem latentes, e os professores saberem que, mais tarde ou
mais cedo a Universidade seria transferida, não parece que a mudança tenha alguma
coisa a ver com as desinteligências surgidas no início do reinado
Moreira de Sá apresenta duas
hipóteses: tratar-se de uma transferência a
título definitivo, baseada na leitura dos
“Disciplinis libri XX” de Luís Vives (ao qual, em
tempo próprio irei fazer a devida referência) ou
de ser uma transferência provisória, motivada
pela peste.
A primeira hipótese é baseada no facto
de Vives, na referida obra, ter aconselhado D.
João a implantar a Universidade em local que
não se coadunava com a cidade de Lisboa:
«Consultius esset extra urbem constitui
gymnasium, praesertim si vele a sit marítima,
vel mercimoniis dediti incolae modo ne locus
caperetur, quo ex urbe consuessent ociosi deambulare animi gratia (Seria da maior
prudência que a Universidade fosse instituída fora da cidade, sobretudo se esta for
marítima, ou se os seus habitantes forem dados à mercancia de sorte que se não
escolhesse um ponto onde os ociosos costumem vaguear à sua vontade).
Moreira de Sá considera à primeira vista, mais plausível a segunda hipótese,
geralmente a mais seguida: ser uma transferência provisória por via da peste que
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 21
então grassava em Lisboa. Porém, o mesmo investigador refere que, já em outras
ocasiões semelhantes, D. João III não permitiu que os Lentes saíssem de Lisboa,
embora o tivessem solicitado a propósito da morte de um deles, vitimado pela peste. E
mais, os Estatutos Manuelinos, então ainda em vigor, determinavam: «E quando quer
que morrerem de peste no lugar em que o estudo estiver, que o lente não se possa
ausentar, pela dita causa senão quando o estudo cessar e [se] deixar de ler».
Pelo que me parece, e estribado nos elementos já recolhidos, mas tratando-se,
também, obviamente, de simples conjectura, D. João III nunca teria considerado
seriamente a ideia da transferência da Universidade para a Vila da Estremadura,
porquanto, se verdadeiramente o desejasse a ideia, creio, teria sido concretizada,
independentemente das razões alegadas pela vereação torriense.
Teria sido uma “manobra de diversão”? Verificar as reacções que tal
determinação provocaria noutras cidades que também procuravam conquistar a
preferência do Monarca? Se era isso que o movia, conseguiu-o.
Reacções de Coimbra e Évora - Ora, sendo este o primeiro acto directo determinado
no sentido da transferência da Universidade (conhecido, pelo menos, a partir da
referida data de 1531), logo a vereação de Coimbra invocou «o direito de cidade de
voltar a ser a sede do Estudo».
Não se conhece, segundo se julga, a carta que então teria sido enviada ao Rei,
mas é conhecida a resposta de D. João, datada de 9 de Junho de 1533, redigida nos
seguintes termos:
«Eu vi bem a carta que me escrevestes em que me dais conta que os primeiros
reis que foram deste Reino, por muitos serviços que da dita cidade receberam, entre
muitos privilégios e honras de que a dotaram houveram por bem que o tombo
(Cartório) do Reino e os estudos gerais estivessem nela, e que por os Reis passados,
meus antecessores, foram mudados para a minha cidade de Lisboa e que ora por
terdes informação que eu os mandava mudar para outra parte me pedis que não
havendo de estar em Lisboa, e fazendo-se deles alguma mudança, fosse para essa
cidade donde primeiro estiveram. Eu vi bem vossa carta e as razões que para isso
dais e vos agradeço a lembrança que me disso fazeis e porém até ao presente eu não
tenho nisso assentado coisa alguma e havendo-se alguma coisa de fazer, eu terei
lembrança do que me enviais dizer».
A resposta do Rei foi, de certo modo, evasiva e dois anos depois mantinha
ainda secreta a sua escolha. Efectivamente, nesse ano de 1533, D. João não escondia
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 22
a intenção de transferir a Universidade, mas fechava-se quanto ao lugar onde a iria
fixar, muito embora no processo que a Inquisição moveu a Damião de Góis esteja
declarado que o Monarca o chamou a Portugal, em 1533, perguntando-lhe se poderia
atrair Erasmo para Coimbra «onde já tinha ordenado de fazer os Estudos que fez».
Como a ideia de transferência se mantivesse, tanto mais que as nomeações de
professores e outros funcionários passaram a ser feitas com a cláusula «enquanto se
não mudar o Estudo desta cidade», a Câmara de Coimbra apresentou novo pedido,
agora nas Cortes de Évora de 1535, para a Universidade ser para ali transferida.
Porém, D. João III, em carta de 30 de Agosto do referido ano, volta a não dar resposta
concreta, limitando-se a declarar «…eu terei lembrança do que enviais apontar acerca
da mudança dos estudos para nesse caso fazer o que me bem parecer».
Também Évora fez diligências no sentido de instalar na cidade alentejana a
Universidade, o que não deixava de criar a Coimbra uma concorrência de risco,
porquanto, tornara-se a residência favorita do Monarca, além de que D. Manuel já ali
teria procurado estabelecer um Estudo Geral, chegando a comprar, em 1520, “um
chão”, junto ao Moinho de Vento e, talvez, até a iniciar as obras.
As pretensões de Évora foram dirigidas ao Rei pelos procuradores, nas
referidas Cortes de 1535, rogando-lhe que mandasse acabar os estudos «d’Évora que
são começados, e que aí se ordenem lentes e que as duas prebendas da Sé que são
ordenadas para um Teólogo e para um Canonista, que rendem duzentos mil réis cada
uma, e as obras da Sé que não são apropriadas para cousa alguma senão para as
ditas obras e rendem novecentos mil réis cada ano se apliquem aos ditos Estudos, e
será azo que hajam mais letrados em seu reino e que não se leve o dinheiro para fora
do reino que os estudantes lá gastam».
O Rei, que certamente já havia feito a sua escolha, limitou-se na sua resposta a
um breve «Agradeço-vos a lembrança».
Assim o tempo ia correndo sem que os objectivos do Monarca se revelassem de
modo totalmente aberto, até que, finalmente, em 1536, mostrou de maneira
insofismável as suas intenções.
Os desígnios do Rei são relatados numa carta, com carácter particular, enviada
de Évora, datada de 11 de Março, e dirigida a Frei Brás de Braga, onde revela alguns
pormenores do seu plano, dos quais pede segredo ao seu destinatário. O conteúdo
dessa carta, de grande interesse histórico, é do seguinte teor:
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 23
«Padre Frei Brás. Eu, el-rei, vos envio muito saudar. Vós haveis de pôr, no fim
de Setembro deste ano, um mestre que leia as Súmulas por então fazer um ano que
agora lê o curso de Lógica e, daí a um ano, outro mestre que leia Filosofia, que são os
três cursos das Artes, e posto que até o dito tempo
não seja necessário ordenardes os ditos mestres por
até então os cónegos não terem necessidade deles,
folgaria ordenardes de os pôr logo, e mandarde-los
buscar que sejam pessoas para isso suficientes,
assim como fizestes aos que agora tendes, porque
queria que as Artes se não leiam mais em Lisboa e
mandar que os meus bolseiros de Paris se venham os
que ainda ouvem as ditas Artes, e não passarão à
Teologia e que não seria razão mandá-los revogar,
não tendo assim os estudantes que os ouvem em
Lisboa, como os de Paris, outro Estudo onde os
possam ouvir nestes reinos, e perderiam o trabalho
que tem nisso levado pelo qual vos agradecerei
fazerde-lo logo. E como o tiverdes feito, escrevede-
me para logo mandar revogar os de Lisboa e mandar
vir os de Paris. E isto de revogar de Lisboa folgarei que tenhais em segredo porque
não queria que se soubesse antes de eu os mandar revogar. Encomendo-vos muito
que o façais assim. Henrique da Mota o fez em Évora aos 11 dias de Março de 1536».
Aqui o Rei, com toda a clareza, determinava a extinção das Artes em Lisboa, o
que passaria a fazer-se em Santa Cruz onde, aliás, já existia com a reforma de Brás
de Braga. Para esse efeito ordena-lhe que providenciasse no preenchimento dos três
Cursos de Artes: Lógica, Súmulas e Filosofia e que os seus “bolseiros” de Paris
regressassem a Portugal, não passando à Teologia, continuando esses mesmos
estudos em santa Cruz.
Apesar do sigilo que o Soberano pedia na sua carta, a notícia chegou à
Universidade de Lisboa, cujos professores alarmados pela iminência de abandonar a
Capital, ou de até de serem obrigados a abandonar a docência, procuraram demover o
monarca, por todos os meios legítimos.
A primeira tentativa neste sentido foi levada a cabo em 23 de Outubro do
referido ano de 1536, quando o Conselho Universitário nomeou o Dr. Francisco Gentil,
Lente de Véspera, e o Dr. Mestre Gil, Lente de Prima de Medicina, para irem a Évora
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 24
«pedir por mercê a Sua Alteza e por toda outra via honesta e jurídica que não mude o
dito estudo e universidade desta cidade de Lisboa como lhe é concedido outorgado
pelos outros seus antepassados».
Poucos dias depois, a 2 de Dezembro, partiram para a corte a fim de se
desempenharem da sua missão. Porém, D. João foi protelando a resposta e parece,
até, que nem sequer chegaram a ser recebidos.
Perante a demora do Rei em responder à Universidade, colocada numa
incerteza inquietante, provocando-lhe desassossego, pois os procuradores, além das
despesas e ausência às aulas, prejudicando os alunos, não conseguiam que fosse
dado despacho ao requerimento, tornando baldados os seus esforços.
Apesar de, praticamente, já não haver dúvidas que a Universidade lisboeta tinha
os dias contados, os Lentes resolveram, a 14 de Dezembro, desse mesmo ano de
1536, dirigir nova carta ao Rei em que, desassombradamente, lhe apresentavam as
razões que aconselhavam a permanência do Estudo em Lisboa e lhe suplicavam
resposta ao requerimento:
«Senhor: Fará Vossa Alteza muita mercê a esta sua Universidade querer tomar
conclusão sobre o requerimento de se não mudar este Estudo para Coimbra pelas
razões contidas na carta que lhe escreveu, pelos Doutores seus procuradores e outras
que eles diriam a V. A. Porque, além do gasto que lá fazem e perda das lições das
suas cátedras, ainda que se leiam por substitutos, saberão assim os lentes, como os
estudantes, o que hão-de fazer, que todos andam indeterminados. Porque se V. A. por
cima da justiça que parece esta Universidade que tem para não mudar o Estudo,
determina, todavia, de o mudar a Coimbra, os lentes que lá estão não houverem de ir
requererão os que lhes cumprir de seus salários e serviços; e os que houverem de ir,
ordenarão suas coisas em tempo e assim o farão os estudantes que são a principal
parte da Universidade. E cremos que não é seu serviço o desassossego em que os
põem, não verem já claramente a determinação de V. A. sobre isto.
Lembramos a V. A. , entre as outras causas qua aí há para se não mudar este
Estudo daqui, que este bairro em que estes estudantes vivem é o melhor para o
agasalhado e saúde deles que pode haver em seu Reino. E que nesta cidade quis El
Rei que Deus tem, seu pai, que se fizesse a romaria que se faz, por ele, cada ano, e
assim o infante Dom Henrique; e que aqui quis El-Rei, seu pai, estivesse este Estudo
dando-lhe casas em que se fizessem as escolas, como diz o prólogo de seus
Estatutos. Assim quiseram os reis que ante ele foram, cujas vontades parece razão e
justiça serem cumpridas. E que uma parte da renda deste Estudo é da Capela de
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 25
Mangancha que mandou que se cantasse em S. Jorge desta cidade, e que uma
principal parte dos seus estudantes são sacerdotes que se mantêm das Capelas que
aqui há, muitas que não há em Coimbra. E que a república desta cidade, de que são
os mais dos estudantes, receberá mui grande dano porque não poderão manter seus
filhos tão longe. E parece que V. A. devia de querer fazer mercê assim aos estudantes
como ao povo desta cidade, fazendo mercê que tem muito amor a seu serviço em lhe
não tirar este bem, fazendo mercê a Coimbra com tanto dano de Lisboa, principal
coisa de seus reinos. E que devia V. A. de haver por seu serviço deixar aqui este
Estudo com sua ordenança, como El- Rei que Deus tem, seu pai, o renovou. Que
muito proveito será a seus reinos haver aí duas Universidades, pois em outros há
muitas mais.
Pedimos a V. A. que, com as razões desta carta e da outra que sobre isto lhe
escrevemos, com pareceres de letrados e dos do seu conselho, com muita brevidade
tome sobre isto aquela conclusão que for mais serviço de Deus e seu e bem comum. E
nos faça tanta mercê que nos escreva sua determinação. Nosso Senhor acrescente o
real estado de V.A. com muita longa vida.
De Lisboa, a 14 deste Dezembro de 1536».
Ao mesmo tempo, o Cabido, certamente influenciado e concordante com a
Universidade, escreveu a D. João III solicitando-lhe que não mudasse o Estudo para
Coimbra.
O Rei não se dignou responder à Universidade, (aliás a pretendida e desejada
resposta pela Instituição lisboeta, nunca viria a chegar), mas respondeu ao Cabido, em
22 de Dezembro de 1536, declarando que «tudo considerado por ele, determinou fazer
a dita mudança para Coimbra por lhe parecer assim serviço de Deus e comum proveito
do seu Reino».
Desvendada, finalmente, deste modo, a decisão constituía o golpe mortal nas já
ténues esperanças da Universidade de Lisboa.
«Alma Mater» regressa a Coimbra cento e sessenta anos depois.
(1537).
A primeira informação, ou seja, o primeiro documento conhecido relativamente à
Universidade de Coimbra, corresponde à Carta de 11 de Janeiro de 1537, enviada de
Évora, onde a Corte se instalara havia alguns anos, ao Conde de Castanheira, D.
António d’Ataíde, e que consta do seguinte: «Conde, amigo, Eu El-Rei vos envio muito
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 26
saudar como aquele que amo. O Doutor Gonçalo Vaz Pinto que ora envio à cidade de
Coimbra ler a cadeira de prima de leis nos estudos que ora, com a ajuda de Nosso
Senhor, mando agora fazer na dita cidade».
Cerca de um mês depois, em carta de 9 de Fevereiro de 1537, dirigida a Frei
Brás de Braga, o Monarca tornava pública, por assim dizer, a transferência da
Universidade para Coimbra. Nela, para além de afirmar «Eu sempre fiz fundamento
quando determinei mandar fazer esses estudos de fazer universidade e escolas
gerais» (o contexto da frase esclarece, de facto, que “esses estudos” não são a
reforma pedagógica empreendida por Frei Brás em Santa Cruz, mas as construções
escolares em projecto), comunicava ao frade reformador que os Lentes destinados a
leccionar Teologia,
Cânones, Leis e Medicina
(as Artes e Gramática já
eram lidas em Santa Cruz),
deviam apresentar-se na
cidade do Mondego «por
todo este mês de
Fevereiro», a fim de
iniciarem o seu magistério
no primeiro dia de Março.
Por este motivo ordenava-lhe que mandasse desocupar alguns daqueles gerais
já construídos nos colégios de Santa Cruz, para neles lerem parte dos novos
professores, devendo procurar-se para os restantes casas o mais próximo possível do
Mosteiro.
Acrescentava, ainda, «E porque para o regimento dessa Universidade é
necessário haver reitor, como em todas as outras Universidades», por alvará de 1 de
Março encarregava o reitorado a D. Garcia de Almeida, determinando que servisse o
cargo enquanto se não fizer, de acordo com os Estatutos, a eleição do Reitor.
Motivos da transferência – O primeiro autor, que se saiba, a interessar-se pelas
razões da transferência da Universidade foi Pedro de Mariz, em 1594, nos “Diálogos
de vária história” e, desde então, tem sido um assunto em que só têm sido
apresentadas hipóteses.
Os verdadeiros motivos da transferência não foram divulgados por D. João III, e
a afirmação de que mudava a Universidade por «serviço de Deus e por comum
proveito do seu Reino», não colhe, visto que não passava de uma fórmula com o
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 27
objectivo de camuflar a verdadeira, ou verdadeiras razões. Portanto, só hipóteses,
umas plausíveis, outras nem tanto, apresentando algumas, até, por vezes, situações
antagónicas.
Consideradas aquelas que, já referidas, foram apresentadas quando das
intenções de D. João III mudar a Universidade para Torres Vedras e que não
justificam, aqui e agora, analisar por falta de consistência, aliás como outras que não
foram então explicitadas, ressalvarei, apenas, porque bem fundamentada, a hipótese
que considera tratar-se de uma transferência a título definitivo baseada na leitura que
o Rei terá feito dos “Disciplinis libri XX” de Luís Vives.
Até ao presente julgo, e praticamente com total unanimidade, ter sido o
Professor Silva Dias, estudioso da cultura portuguesa e europeia desta época, e
investigador de craveira internacional, a lançar luz e a trazer a lume um encadeamento
de factos apresentando os argumentos mais sólidos, credíveis, ia a dizer definitivos,
acerca da fixação da Universidade na “Lusa Atenas”, em 1537, problema intrincado
que se arrastou até meados do século passado.
Como se compreenderá, apenas farei resumo do que considerei serem os
aspectos mais acessíveis e significativos.
A transferência da Universidade portuguesa para Coimbra foi uma opção que
«germinou no espírito do Soberano talvez por força de circunstâncias acidentais»,
sendo a principal de todas a prolongada estadia da Corte na cidade do Mondego.
O tempo de Coimbra não podia deixar de chamar a atenção de D. João III para
os problemas de ordem cultural e, assim, lhe terá surgido a iniciativa da reforma do
Mosteiro sob a direcção de Frei Brás de Braga, de quem certamente já ouvira falar,
conhecia, ou foi conhecendo, a ponto de se tornar no homem em que depositava total
confiança: «…quanto às informações que dizeis que cá me poderão dar em contrário
das vossas, sobre as coisas dessa casa, eu tenho confiança que sempre as
informações que vós me derdes hão-de ser as verdadeiras em todas as cousas, e eu
as recebo por tais e não de outra maneira». (Carta do Rei, datada de 17 de Abril de
1535, para Frei Brás). Entre outras, o Monarca deu-lhe uma prova de confiança
quando, desde 1533, o encarregou de organizar, em base universitária, o ensino das
Artes e da Teologia em Santa Cruz, e mantendo sob a sua orientação estas duas
Faculdades mesmo depois da transferência da Universidade.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 28
Ao acompanhar directamente a obra do frade reformador, D. João III cedo se
apercebeu estar na presença do homem certo, capaz de concretizar as suas
aspirações no campo do ensino.
Porém, uma reforma que se pretendia de envergadura «pegando nas coisas
desde a raiz», instalações, pessoal, estruturas e método não tinha qualquer hipótese
de realização sem largos investimentos de capital, porquanto, «o dinheiro e os homens
com ideias e capacidade de acção eram as duas molas reais da empresa».
Ao descobrir o homem providencial para dinamizar o seu projecto, D. João
“descobria” também, em Coimbra, as verbas necessárias à consecução do fim em
vista. O contacto “in loco” com o s negócios crúzios, proporcionaram-lhe a
possibilidade de transformar o património monástico numa fonte de alto rendimento o
que lhe permitiria cobrir as despesas escolares.
Efectivamente, o único meio que havia para fornecer à Universidade as rendas
indispensáveis seria reunir, novamente, ao seu património bens eclesiásticos, aos
quais havia recorrido por várias vezes. De todas as rendas das igrejas aplicadas à
Universidade, a dádiva de maior vulto foi a que recebeu à custa da anexação dos
haveres do Priorado-Mor de Santa Cruz, uma das comendas mais opulentas do País.
A anexação do património crúzio à Universidade só veio a verificar-se em
Novembro de 1543, quando faleceu o último Prior- Mor, D. Duarte, filho ilegítimo de D.
João III. Então, o Monarca, certamente aconselhado por Frei Brás, decidiu obter do
Papa a extinção da comenda para que a maior parte dos bens fosse aplicada à
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 29
Universidade. Apesar das dificuldades em conseguir a anuência do Pontífice, este
acabou por conceder a bula “Cum attente”, de 8 de Junho de 1545.
Em meados do ano seguinte, a Universidade tomou posse das rendas que
passaram a constituir a maior parte da sua fortuna, o que não deixaria de causar
discórdia e a indignação dos crúzios. Outras rendas e bens foram também
desanexadas do Priorado-Mor que a Universidade viria a auferir,
Embora a anexação do património crúzio à Universidade só se tivesse
verificado, como acabou de referir-se, de pleno direito, em 1543, o facto não quer dizer
que, já anteriormente, não tivessem saído dele quantias, mais ou menos elevadas,
para custear os estudos. Sabe-se que os encargos de expropriação de terrenos e da
construção dos gerais académicos de Santo Agostinho e de São João Baptista, bem
como o dos colégios de são Miguel e de Todos-os- Santos, foram comparticipados, em
boa parte, «pelas arcas da mesa conventual e da mesa prioral do Mosteiro».
Igualmente as primeiras despesas com a remuneração do professorado crúzio
teve a mesma proveniência, como consta do”Livro de recepta e despesa deste
Mosteiro de Sancta Cruz”: «a Nicolau Leitão (recebedor das rendas do Convento), vai
provisão do [prior-mor], o Cardeal meu muito amado e prezado irmão, para pagar os
ditos lentes [da Universidade agora transferida …].
A correspondência com Frei Brás de Braga é, aliás, significativa quanto ao
apoio financeiro à reforma e transferência da Universidade, não deixando a menor
dúvida de que os rendimentos patrimoniais de Santa Cruz estiveram, desde cedo, na
mira de D. João III, como condição “sine qua non” da sua política cultural.
Também não pode ter sido estranha à mudança da Universidade a influência do
grande humanista cristão Luís Vives, podendo considerar-se como praticamente certo
que a doutrina escolar do Governo «só através do filósofo espanhol se clarificou e
atingiu o dinamismo da acção».
O humanista valenciano dedicou ao Rei de Portugal o seu “De Disciplinis”,
publicada em Antuérpia no ano de 1531. O Monarca ficou bastante agradado com a
dedicatória, retribuindo-a generosamente. Igualmente a ala “avançada” dos
intelectuais, João de Barros, Damião de Góis e André de Resende, entre outros, não
deixou de manifestar grande apreço pela obra, que é ao mesmo tempo uma crítica da
cultura universitária pré-existente e o manifesto mais completo do humanismo no
campo pedagógico, até então publicado.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 30
O autor faz, praticamente, desde o início, um ataque à escolástica da Idade
Média e ao método da autoridade e, embora prestando homenagem ao génio de
Aristóteles, não deixa de, frontalmente, afirmar: «É sem dúvida, muito mais vantajoso,
para o progresso da cultura, aplicar a critica aos textos dos escritores célebres, do que
descansar, indolentemente, na simples autoridade e aceitar, por sistema, tudo o que o
juízo alheio nos oferece…Podemos hoje, se em tal sentido nos aplicarmos, opinar
melhor, de uma maneira geral, das coisas da vida e da natureza, do que Aristóteles,
Platão ou qualquer outro da Antiguidade...».
Todo o Prefácio gira à volta deste tema, relevando, sobretudo, a crítica e a
liberdade de pensar.
Atenção bastante alargada é dedicada à pedagogia das letras humanas. Vives,
além de valorizar o ensino das línguas eruditas, o latim, o grego e o hebraico, condição
“sine qua non” para a abordagem dos textos sagrados nas línguas originais
«apresenta um plano de estudos completo e uma metodologia que permite superar a
escolástica no que se refere aos preparatórios e à formação geral».
Silva Dias considera que qualquer intelectual ou político não poderia ficar
indiferente à de progresso do “De Disciplinis”, tanto mais que se tivesse ideias de
mudança e progresso no ensino, não deixaria de sentir a necessidade urgente da
reforma escolar.
Para o caso português (do qual já foi feita uma brevíssima abordagem), o livro
indicava, ainda, complementarmente, valiosas noções quanto à localização dos
estudos, considerando que não se despreze «a salubridade do lugar, [de
funcionamento das instituições de ensino], não se dê o caso de os escolares terem de
se retirar muitas vezes com medo das epidemias». Refere também a conveniência das
escolas se situarem em lugar afastado das grandes concentrações humanas «assim
como longe da Corte e da proximidade de mulheres novas».
Neste aspecto da localização conclui que «o mais sensato seria instalar o
colégio fora da cidade, mormente se esta for marítima ou os seus moradores se
entregarem ao comércio, para não se ter um local onde os ociosos costumam vaguear
à sua vontade; em sítio que não esteja à borda de estrada pública, para que os
escolares não se distraiam com a novidade dos que vão ou vêm, e que não seja
fronteiriço, para o alarme e sobressalto contínuo da guerra não roubarem a quietação
necessária ao estudo».
Outras indicações oportunas dizem respeito ao professorado, afirmando que o
seu serviço devia ser pago pela fazenda nacional e não pelos alunos: «Arranque-se
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 31
das escolas toda a ocasião e incentivo de lucro. Percebam os doutores um salário do
tesouro público, graduado de maneira que satisfaça o desejo dos bons e provoque o
asco dos ambiciosos…Nada recebam dos estudantes, para que não andem a captá-
los, nem os tratem pela esperança do lucro, com mais brandura do que seria preciso.
Tão pouco lhes vendam as subsistências; eleja-se antes, semanalmente, um dos
colegas para raçoeiro ou mordomo».
O vasto programa de Luís Vives, cuja aplicação exigia uma profunda reforma
das estruturas orgânicas e pedagógicas das instituições de ensino, «…mal seria
compatível com a permanência dos mesmos homens, e não o seria, sem dúvida, com
a dos mesmos livros e dos mesmos métodos».
Em 1534, já conhecedor da orientação política de D. João III em matéria de
ensino, escreveu-lhe uma carta (18 de Setembro), onde lhe dava novos conselhos,
sobretudo, incitando-o a estabelecer uma ou duas escolas públicas: «…não que faças
vir a elas todos aqueles a quem dás a felicidade dos estudos fora da pátria – pois ali
aprendem, a par das letras, o estilo e sabedoria de vida dos outros povos, mediante o
conhecimento dos seus costumes -, mas tão só para transplantares alguns para as
tuas academias como agentes de renovação. Terás de mandar em contrapartida,
outros dos que lhes pertencem haurir no estrangeiro a erudição que hão-de trasvasar
no teu reino, até que nele manem também abundantemente as fontes com que possas
retribuir às outras nações as graças e a recompensa do que recebeste».
Sem dúvida que Luís Vives exerceu uma acção decisiva sobre D. João III e que
a reforma escolar e transferência da Universidade para Coimbra, em 1537, tiveram
muito a ver com as ideias do grande filósofo e humanista espanhol, não esquecendo o
excelente relacionamento existente entre os dois.
A Universidade Nova. Reorganização.
Ao contrário do que D. João III havia determinado, e era seu desejo, a
transferência da Instituição não se efectuou na data prevista, porquanto, a
Universidade funcionou até ao último dia de Março de 1537, como consta dos seus
livros, referindo que nesse mesmo dia alguns estudantes provaram o tempo de estudo
exigido por lei para serem admitidos a exame.
Porém, cerca de uma semana depois, a 9 de Abril, a Universidade já funcionava
em Coimbra, visto aqui ter sido lavrado, pelo bedel Nicolau Lopes, o termo da prova
dos cursos de bacharel Luís da Guarda, embora só no início do mês seguinte fossem
abertos aos escolares os gerais conimbricenses.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 32
Efectivamente, foi a 2 de Maio que Francisco de Monçon, Lente de Véspera de
Teologia, que viera de Lisboa, abriu solenemente o seu novo curso com a “lição de
pompa”, seguindo-se nos dias mediatos os restantes professores, conforme a ordem
indicada pelo Conselho Universitário.
Instalações. Conflito de jurisdição – A transferência da Universidade implicava um
conjunto de situações que deviam ter sido resolvidas antecipadamente, ou pelo menos
com a máxima urgência: instalações, situação do pessoal docente de Lisboa, serviços
e funcionalismo, promover a mudança dos estudantes, ter preparado os edifícios
apetrechados com o indispensável material escolar, residências para habitação das
pessoas que passariam a viver ligadas à Universidade, para além de um plano, ou
seja, a promulgação dos novos Estatutos. Só que… a realidade foi outra, surgindo,
logo à partida conflitos de vária ordem, aliás previsíveis, nomeadamente entre a
Universidade e o Mosteiro.
Se bem que dez anos antes da transferência da Universidade, D. João III já se
preocupasse com as instalações, uma vez feita a mudança o assunto continuava por
resolver, não havendo edifícios próprios para a instalar. À data da transferência, no
que respeita a instalações, ainda o Monarca se encontrava na fase primária de
apreciar e dar o seu parecer sobre a planta dos edifícios. (Carta de 9 de Fevereiro de
1537).
Já se referiu ter o Rei ordenado que uma parte das aulas se instalasse em
Santa Cruz e suas dependências, e as demais em casas de aluguer próximas do
Mosteiro. Porém, os Colégios crúzios estavam ainda por terminar e as casas de renda
das proximidades «não serviam para escolas, pois que a rua da Sofia dentro de breves
anos uma das mais belas do País, ainda se encontrava por construir».
Perante a inviabilidade de não haver lugar para toda a massa discente,
repartiram-se as Faculdades, resolvendo o Reitor, Garcia de Almeida, instalar, em sua
própria casa, uma sumptuosa moradia que possuía junto ao arco romano da Estrela, o
ensino da Teologia, Cânones, Leis e Medicina; a Gramática e as Artes ficariam a ser
leccionadas em Santa Cruz.
Atendendo aos precedentes, a mudança de Lisboa para Coimbra havia de
trazer, fatalmente, problemas de jurisdição entre a universidade e o Mosteiro, que se
iriam prolongar por cerca de sete anos. Efectivamente, a coexistência entre a duas
Instituições tornar-se ia impossível, não só por motivos de rivalidade quanto ao ensino,
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 33
mas também devido às rendas desanexadas do Priorado-Mor, a que se pode
acrescentar outro ponto de fricção, o confronto com os jesuítas.
D. João III não terá atendido ao facto da única escola de nível superior existente
em Portugal, senhora das suas prerrogativas e tradições seculares, não aceitaria
qualquer tipo de dependência, ou tutela, do Mosteiro conimbricense.
Determinando a instalação das Faculdades superiores no domicílio do Reitor
Garcia de Almeida, os crúzios mostraram-se, naturalmente, desagradados, uma vez
que nos seus colégios apenas se continuaria a leccionar o ensino preparatório da
Gramática e das Artes, o que terá sido uma desilusão para Frei Brás de Braga. Esta
situação leva o frade reformador a dirigir-se ao Rei, recordando-lhe as promessas não
cumpridas.
Em consequência, D. João III, por alvará de 20 de Abril de 1537, ordena que as
três cátedras de Teologia se lessem no Mosteiro de Santa Cruz. Porém, os Lentes,
entendendo ser contra a Universidade, semelhante ordem, reagiram energicamente
requerendo a revogação, só que os seus esforços foram inúteis, pois o Monarca, por
alvará de 10 de Julho de 1537, confirmou a ordem da mudança.
A instalação da Universidade fora um expediente provisório, imposto por
dificuldades ocasionais, porquanto, em Setembro do mesmo ano, D. João anunciava o
propósito de mandar edificar Escolas gerais
apropriadas não muito longe do lugar dos
“Estudos Velhos”, em Almedina, o que nunca
chegou a concretizar-se.
Entretanto, de modo a que os
trabalhos escolares se iniciassem
regularmente em Outubro, entre 6 e 8
realizou-se a mudança da Universidade das
casas de Garcia de Almeida para o Paço
Real da Alcáçova, que ficaram sendo os
Paços das Escolas, onde ainda hoje existe a
sede principal da Universidade. A título de
curiosidade, diga-se que este facto «valeu à cidade de Coimbra, devido ao seu
posicionamento em “acrópole”, bem como à noção de que a Universidade constituía
um lugar sagrado da cultura, epítetos mitificadores como “Lusa-Atenas” ou “Colina
Sagrada”».
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 34
Cerca de três meses e meio depois do início das aulas, a situação entre as duas
Instituições agudizava-se por via de uma nova e grave mutilação. Por Carta de 26 de
Janeiro de 1538, o Rei, a pretexto da «conexão dos estudos médicos com as Artes»,
determinava que os Lentes de “física” fossem ler aos gerais do Mosteiro.
Deste modo, a Universidade ficava limitada às Faculdades de Leis e Cânones e,
ainda, às cadeiras de Matemática, Retórica e Música, enquanto nos colégios crúzios
se concentravam todas as de Teologia, Artes, Gramática e as Línguas latina, grega e
hebraica. Quer isto dizer que existiam em Coimbra duas Universidades (incompletas),
«absolutamente independentes uma da outra, governadas cada qual pelas suas leis
privativas, possuindo cofres separados e livros de matrícula diferentes…e nem sequer
o ano lectivo coincidia em ambas as escolas».
Esta situação paradoxal, em que o desmembramento de um organismo
essencialmente corporativo afectava, claramente, a vida escolar, evidenciava a quebra
da unidade de direcção visto que o Governo da Universidade se repartia por duas
autoridades diversas e independentes, o Reitor no Paços Reais e o Prior. Mor no
Mosteiro, não deixou de provocar longas e violentas disputas.
Acrescente-se, ainda, o facto de D. João III, quando da transferência,
determinara por alvará de 28 de Novembro de 1537, que o Reitor conservasse a
função de Cancelário, a quem competia conferir os graus académicos. Porém, em
Novembro de 1539, o Rei nomeia Cancelário da Universidade o Prior de Santa Cruz e
seus sucessores o que não deixou, naturalmente, de melindrar a Universidade por via
do seu Reitor ter sido privado de tal dignidade e que até aí exercera.
Reunificação da Universidade – As divergências entre a Universidade e Santa Cruz
subiram de tom, entrando em verdadeiro conflito, quando do reitorado tomou posse o
Bispo de São Tomé, D. Bernardo da Cruz, homem irascível e prepotente, que o Rei
nomeara por Carta de 28 de Abril de 1541. Os crúzios sentiram-se de tal modo
afrontados com as desconsiderações do purpurado que, segundo se julga, Frei Brás
de Braga chegou a pedir dispensa do cargo de governador do Mosteiro.
De facto, foi quase permanente o confronto entre as autoridades de «baixo»
(Santa Cruz) e as de «cima» (Universidade), levando o Rei a procurar soluções. Em
1542, o Rei escreve uma carta a Frei Diogo de Murça, que então dirigia o Colégio de
Santa Marinha da Costa, em Guimarães, pedindo-lhe que venha com urgência, logo
que receba a carta, falar com ele, certamente com a finalidade de o ajudar a eliminar
as dificuldades que travavam a execução da reforma. Assim foi.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 35
Afastado do cargo, o Bispo Santomense, em 1543, D. João nomeou como
sucessor, Frei Diogo de Murça, um amigo de Frei Brás de Braga, seu irmão na
profissão religiosa de São Jerónimo, e seu antigo condiscípulo em Paris e Lovaina,
como, aliás, já foi referido e que, ao deixar o Colégio da Costa, seguiram com ele para
Coimbra os mestres que leccionavam no Mosteiro, bem como os alunos, o que obrigou
o Colégio a encerrar a sua actividade em 1550.
Nestas circunstâncias, não tardou muito tempo para que o novo Reitor e o frade
reformador tivessem chegado a completo acordo, quanto aos interesses e desejos da
Universidade, em situar-se num local único e concentrar os poderes directivos no seu
Reitor.
Com efeito partiu do próprio Frei Brás a proposta para harmonizar a
Universidade e o Convento, ao escrever ao Rei, «ponderando-lhe a conveniência, para
concórdia e sossego da Universidade e quietação e clausura dos cónegos regrantes,
de todos os lentes dos colégios transitarem para os gerais da Universidade»,
reconhecendo os inconvenientes do bulício escolar dentro de uma comunidade votada
ao recolhimento.
A sugestão foi tão bem acolhida na Corte que, D. João III, pela Carta de 22 de
Outubro de 1544, veio pôr termo a um “statu quo” bem pernicioso, impeditivo do bom
funcionamento da Instituição académica, e que durante sete anos tanto perturbou a
vida escolar. Pela referida Carta, e de acordo com o reformador do Mosteiro, o Rei
retirava da jurisdição do Padre Prior Cancelário os Lentes de Teologia, Medicina, Artes
e Latinidade e incorporava-os na jurisdição da Universidade, então, como se sabe já
instalada no Paço Real da Alcáçova.
Quadro docente – Aspecto fundamental na reforma dos estudos foi aquele que deu
lugar à renovação do pessoal docente, quer pela entrada dos Mestres já instalados em
Santa Cruz, provenientes, como se viu em devido tempo, de Alcalá e de Paris, quer
pela realização de novos convites a vários professores estrangeiros, ou portugueses
Lentes no estrangeiro.
D. João III, ao transferir a Universidade, não se prendeu, ou entendeu não levar
em conta os direitos adquiridos pelos Mestres da Capital, porquanto, parece ter
enviado para Coimbra quem considerou competente, aposentando quem o não era, ou
não lhe agradava. Assim, sob este ponto de vista, o Rei, certamente bem
aconselhado, tratou de proceder a uma verdadeira renovação e selecção do pessoal
docente.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 36
Dos mestres que estavam no activo, apenas três seguiram para Coimbra: o
Padre espanhol Francisco de Monzón, de Teologia, Gonçalo Vaz Pinto, de Leis e
Duarte Gomes nas Artes, juntando-se-lhe dois anos depois, o Doutor Santa Cruz e o
Licenciado Agostinho Fernandes, ambos juristas. Os antigos Lentes permaneceram na
Capital, promovendo o Governo a sua fixação na Corte, «criando-lhes situações
económicas ou sociais que os punham na alternativa de optarem pela carreira
científica, abandonando os seus interesses, ou de protegerem os seus interesses
deixando a Universidade. Quem conhece os homens, e em especial quem conhecia os
lentes de Lisboa, não tinha dúvidas: a perspectiva utilitária prevaleceria. E de facto as
jubilações com o vencimento por inteiro, os provimentos em altos cargos, e as tenças,
multiplicam-se no conjunto professoral da academia do Tejo. Era preciso que não
viesse para Coimbra, com o passivo indesejável dos seus hábitos e das suas rotinas».
Os novos estudos foram-se completando com um corpo docente praticamente
estranho à Universidade, havendo necessidade de serem escolhidos e contratados
mestres nacionais e estrangeiros, alguns, pagos a “peso de oiro”, pois só assim
aceitavam abandonar as suas cátedras e tomar conta da regência das principais
cadeiras.
Para além dos mestres acabados de citar, segundo os registos universitários,
no que respeita à Faculdade de Teologia, vieram o Doutor Afonso do Prado que já
estava, ou tinha estado, em Santa Cruz, vindo de Alcalá de Henares, Frei Martinho de
Ledesma, proveniente de Salamanca, Mestre João de Pedraza, igualmente espanhol,
frei António da Fonseca e Paio Rodrigues de Vilarinho, viajaram directamente de Paris,
Marcos Romeiro, que leccionava no Colégio da Costa e alguns mais; ensinaram, entre
outros, na Faculdade de Cânones, o espanhol Martim de Aspilcueta Navarro,
catedrático da Universidade de Salamanca, Bartolomeu Filipe, Luís de Alarcon e João
Peruchi Morgovejo; em Leis, Manuel da Costa, o doutor “subtil”, que viera de
Salamanca para reger a cátedra de Código, Fábio Arcas, que veio de Roma, Aires
Pinhel, estudante famoso em Salamanca, e muitos outros, pois parece terem ensinado
em Coimbra dezoito Lentes de Leis; nas cátedras de Medicina destacam-se os nomes
de Henrique Cuellar, chamado de Paris, Tomás Rodrigues da Veiga e Luís Nunes de
Santarém, vindos de Salamanca, Rodrigo Reinoso, também de Salamanca, mas
formado nas escolas italianas e francesas, Francisco Franco, especializado por Alcalá,
António Luís e o célebre Alonso Roiz de Guevara. Sublinhe-se, ainda, o nome de
Pedro Nunes, a quem, em 1544, foi atribuída a cadeira de Matemática.
Carlos Jaca A Universidade Portuguesa – Situação da Universidade anterior à sua transferência para Coimbra 37
A renovação e o alargamento do quadro docente trouxe também consigo uma
nova forma no que diz respeito ao provimento das cadeiras, pois, passou a ser feito,
na generalidade, por períodos renováveis de um ano, dois, mais frequentemente três,
por vezes quatro e até seis anos, tornando-se muito raras as nomeações vitalícias ou
por período ilimitado de tempo, o que permitia à administração central e universitária
um maior campo de manobra, como aliás era conveniente, numa fase de grande
transformação das estruturas escolares.
Estava reunificada a Universidade e, em boa hora escolhido o seu Reitor, Frei
Diogo de Murça, porquanto, a «alma mater» iria viver os dias mais gloriosos da sua
história científica. Com efeito, o frade hieronimita veio a operar uma profunda
transformação na estrutura e na vida da Instituição, surgem novos Estatutos, novos
planos de estudo, aumento e consolidação do seu património e, até, a criação do
Colégio das Artes que será tratado em momento próprio e com as devidas referências.