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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA. ÉLISSON DE OLIVEIRA GONÇALVES. CONFISSÕES DO FIM: Quando a necessidade de existir transforma-se na necessidade de escrever Goiânia 2011

ÉLISSON DE OLIVEIRA GONÇALVES. · À professora Drª Suzana Cannovas. Aos meus sogros, seu Constantino e dona Áurea. Às irmãs dona Julieta e dona Geralda, ao seu Wivaldo e Waldelísia

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA.

ÉLISSON DE OLIVEIRA GONÇALVES.

CONFISSÕES DO FIM:

Quando a necessidade de existir transforma-se na necessidade de escrever

Goiânia

2011

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TERMO DE CIÊNCIA E DE AUTORIZAÇÃO PARA DISPONIBILIZAR AS TESES E

DISSERTAÇÕES ELETRÔNICAS (TEDE) NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG

Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goiás

(UFG) a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e

Dissertações (BDTD/UFG), sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei

nº 9610/98, o documento conforme permissões assinaladas abaixo, para fins de leitura,

impressão e/ou download, a título de divulgação da produção científica brasileira, a partir

desta data.

1. Identificação do material bibliográfico: [ X] Dissertação [ ] Tese

2. Identificação da Tese ou Dissertação

Autor (a): Elisson de Oliveira Gonçalves

E-mail: [email protected]

Seu e-mail pode ser disponibilizado na página? [X]Sim [ ] Não

Vínculo empregatício do autor Secretaria de Estado da Educação de Goiás

Título: Confissões do fim: quando a necessidade de existir se transforma na

necessidade de escrever

Palavras-chave: Narrador não-confiável, confissão do fim, compulsão, escrita. Título em outra língua: Confessions of the end: when the need of being becomes in

the need of writing.

Palavras-chave em outra língua: Unreliable narrator, confession of the end, compulsion,

writing. Área de concentração: Estudos Literários

Data defesa: (07/07/2011)

Programa de Pós-Graduação: Letras e linguística

Orientador (a): Prof. Dr. Anselmo Pessoa Neto

E-mail: [email protected]

3. Informações de acesso ao documento:

Liberação para disponibilização?1 [ X ] total [ ] parcial

Em caso de disponibilização parcial, assinale as permissões:

[ ] Capítulos. Especifique:

__________________________________________________

[ ] Outras restrições: _____________________________________________________

Havendo concordância com a disponibilização eletrônica, torna-se imprescindível o envio

do(s) arquivo(s) em formato digital PDF ou DOC da tese ou dissertação.

O Sistema da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações garante aos autores, que os

arquivos contendo eletronicamente as teses e ou dissertações, antes de sua

disponibilização, receberão procedimentos de segurança, criptografia (para não permitir

cópia e extração de conteúdo, permitindo apenas impressão fraca) usando o padrão do

Acrobat.

________________________________________ Data: ____ / ____ / _____

Assinatura do (a) autor (a)

1 Em caso de restrição, esta poderá ser mantida por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste prazo

suscita justificativa junto à coordenação do curso. Todo resumo e metadados ficarão sempre disponibilizados.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA.

CONFISSÕES DO FIM:

Quando a necessidade de existir se transforma na necessidade de escrever

Élisson de Oliveira Gonçalves.

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

do Programa de Pós-Graduação em Letras e

Linguística da Faculdade de Letras da

Universidade Federal de Goiás, como

exigência para obtenção do título de MESTRE

EM LITERATURA. Orientador: Prof.º Dr.

Anselmo Pessoa Neto.

Goiânia

2011

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)GPT/BC/UFG

G635cGonçalves, Élisson de Oliveira.

Confissões do fim [manuscrito]: quando a necessidade de existir se transforma na necessidade de escrever / Élisson de Oliveira Gonçalves. - 2011.

151 f.

Orientador: Prof. Dr. Anselmo Pessoa Neto.Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de

Goiás, Faculdade de Letras, 2011. Bibliografia.

1. Análise do discurso narrativo - Narrador não-confiável 2. Estudos literários comparados - Confissão do fim. 3. Literatura comparada. 4. Análise do discurso - Escrita. 5. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 6. O falecido Mattia Pascal. 7. A família de Pascual Duarte. 8. Assis, Machado de. 9. Pirandello, Luigi. 10. Cela, Camilo José. I. Título.

CDU: 82.091

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ÉLISSON DE OLIVEIRA GONÇALVES

CONFISSÕES DO FIM: quando a necessidade de existir se transforma na necessidade de

escrever.

Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da

Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, para a obtenção do título de Mestre,

aprovada em 07 de Julho de 2011, pela Banca Examinadora constituída pelos professores:

_______________________________________________________

Prof. Dr. Anselmo Pessoa Neto – UFG

Presidente da Banca

_______________________________________________________

Prof. Dr. Heleno Godói de Souza – UFG

________________________________________________________

Prof. Dr. Luís Alberto Nogueira Alves – UFRJ

Goiânia

2011

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À minha mãe, companheira de mestrado e conselheira,

aos professores Anselmo e Heleno, pessoas que um dia almejo

alcançar em grau de sabedoria e conhecimento, e aos grandes

romancistas, nobeis ou não, por terem nos confrontados com o

mundo da ficção.

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AGRADECIMENTOS

A DEUS, por nos conceder as faculdades de escolha e reflexão.

À família, por ter acreditado e insistido no valor do mestrado.

À Sylmara, minha esposa, pessoa que mais conviveu com meus anseios e minhas limitações.

Aos amigos e parentes que fizeram de suas expectativas um incentivo constante.

À Kelly Cristine, Thales, Elza, Raphaela e Priscila.

Ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás

representado por sua coordenadora, Profª. Drª. Kátia Menezes de Sousa e pelos secretários

administrativos Bruno Calassa e Consuelo de Lourdes pela atenção dispensada às muitas

demandas dos pós-graduandos.

Ao Prof. Dr. Anselmo Pessoa Neto, orientador desta dissertação que com sinceridade e

sabedoria soube sempre acrescentar e me guiar na busca por respostas para minhas

inquietações na superação desta fase acadêmica.

À professora Drª Suzana Cannovas.

Aos meus sogros, seu Constantino e dona Áurea.

Às irmãs dona Julieta e dona Geralda, ao seu Wivaldo e Waldelísia.

Aos professores Drª. Zênia de Faria, da UFG, Dr. Heleno Godói de Souza e Dr. Luís Alberto

Nogueira Alves, da UFRJ pela leitura atenta e pelas observações feitas, no intuito de

contribuir para a consumação deste trabalho.

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RESUMO

Esta dissertação analisa comparativamente os romances Memórias póstumas de Brás

Cubas, de Joaquim Maria Machado de Assis, O falecido Mattia Pascal, de Luigi Pirandello, e

A família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela, tendo como foco o entrecruzar de

discursos narrativos em primeira pessoa, ou seu predomínio, que resulta no que propomos

chamar aqui de “confissões do fim”. Nessas obras, o narrador escreve sua história para

justificar o seu fracasso de vida e sobreviver no e através de seu livro, como forma de burlar a

morte. Esse tipo de narrador, o narrador-escritor, que alega ser o autor do livro de memórias

que nós leitores lemos, é pouco digno de confiança, de acordo com a classificação proposta

por Wayne C. Booth, em A retórica da ficção. Em relação às suas configurações textuais,

essas “confissões do fim” são vistas como textos forjados por seus supostos autores, como

narrativas confessionais cujo intento é convencer o leitor a aceitar o seu ponto de vista. Ao

avaliar esse tipo de discurso comprometido, podemos analisar as formas como o homem é

problematizado por meio de modelos negativos de vida, que o forçam a formalizar teses para

resgatar suas próprias imagens. Por termos modos paralelos de construção de sentido (de um

lado, os autores efetivos, de outro, os supostos autores, personagens-narradores), a construção

da escrita ficcional representa o modo através do qual podemos questionar as dolorosas

figuras dos personagens em questão. Através de suas narrativas e de sua compulsiva

necessidade de escrever, mesmo se tendenciosamente, esses narradores-escritores garantem a

si próprios uma vida perene.

Palavras-chave: Narrador não-confiável, confissão do fim, compulsão, escrita.

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ABSTRACT

This thesis comparatively analyses the novels Posthumous Memoirs of Bras Cubas,

by Joaquim Maria Machado de Assis, The Deceased Mattia Pascal, by Luigi Pirandello, and

Pascual Duarte’s Family, by Camilo José Cela, having as its focus the intercession of

narrative speeches in the first person, or its predominance, which results in what we propose

to call here “confessions of the end”. In those works, the narrator writes his story to justify his

failure in life and to survive in and through his book, as a way of tricking death. This kind of

narrator, the writer-narrator, who claims to be the author of the book of memories that we

readers read, is very unreliable, according to the classification proposed by Wayne C. Booth

in The Rhetoric of Fiction. In relation to its textual configurations, these “confessions of the

end” are seen as texts forged by their supposed authors and as confessional narratives whose

aim is to convince the reader to accept their point of view. When we evaluate this kind of

compromised speech, we can analyze the forms through which man is problematized through

negative patterns of life which force him to formalize thesis in order to rescue his own image.

Since we have parallel ways for the construction of meaning (on one side, the actual authors;

on the other, the supposed authors-narrators-characters), the construction of the fictional

writing represents the way through which we can question the painful figures of the characters

in question. Through their narratives and their compulsive necessity of writing, these

narrators-writers grant themselves a perennial life.

Key-words: Unreliable narrator, confession of the end, compulsion, writing.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10

1. “EU”, “ME CHAMO”, “EU (NÃO) SOU...” ....................................................................... 23

1.1. DO PONTO DE PARTIDA E O SEU CONSTANTE RETORNO: A NECESSIDADE DE

SE ENTENDER O TÍTULO ................................................................................................. 50

1.2. O “EU” ESCRITURAL: ESTRATÉGIAS E INCOERÊNCIAS DO MUNDO

PARTICULAR DA NARRATIVA ....................................................................................... 51

2. MARCAS DE UM TEXTO: O PROBLEMA DA IMAGEM DO PERSONAGEM ........... 56

2.1. DUAS QUESTÕES DE ESTILO: O MODELO E A FISIONOMIA DE CLASSE ......... 68

2.2. O PROBLEMA DA (DISTORÇÃO DA) IMAGEM ....................................................... 83

3. ÁLBUM DE RETRATO: AS RELAÇÕES DE FAMÍLIA, O FRACASSO E O LEGADO94

3.1. O LEGADO ................................................................................................................. 104

3.2. O TIPO DE LEITOR ................................................................................................... 110

4. O DISCURSO PÓSTUMO: CONDIÇÃO DA ESCRITA, EXIGÊNCIA DA MORTE .... 118

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 148

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INTRODUÇÃO

Em 1880, entre os meses de março e dezembro, Machado de Assis publicava nos

volumes de III a VI da Revista Brasileira um romance que seria considerado um marco na

mudança das técnicas romanescas adotadas por escritores brasileiros. Com a dimensão

psicológica dos personagens aprofundada, e a forma da narrativa enriquecida, exigindo muito

mais do leitor, Memórias póstumas de Brás Cubas é um romance em primeira pessoa

supostamente escrito por um morto, que nem sempre dirá a verdade, enganando diversas

vezes leitores, principalmente pelos artifícios da ironia e da digressão. Um ano depois, com

algumas modificações que aperfeiçoaram ainda mais o seu primeiro grande livro,2 Machado

volta a publicá-lo, agora em uma edição em brochura.

Quase um quarto de século mais tarde, na Itália, entre 16 de abril e 16 de junho de

1904, em fascículos na revista literária Nuova Antologia,3 Luigi Pirandello publicava outro

romance cujo título alude à morte: O falecido Mattia Pascal. Novamente em primeira pessoa,

a narrativa é escrita por um hipotético morto. Este se diferencia de início de Brás Cubas por

ser um falso morto, supostamente falecido por um engano, que é desfeito logo nos primeiros

capítulos e serve de argumento para toda a narrativa.

Em 1942, outro livro narrado em primeira pessoa também utilizará o mesmo recurso –

ter sido escrito pelo protagonista do enredo, seu suposto autor. Agora trata-se do relato de um

pobre camponês, vítima das batalhas armadas e do processo social que culminaria na guerra

civil espanhola. Esse livro é A família de Pascual Duarte,4 do espanhol Camilo José Cela.

Sem saber se houve ou não influência de uma obra sobre a outra, se os autores leram

ou não seus antecessores, os três livros têm em comum diversos aspectos. O principal deles é

o imperativo da escrita como forma de personagens lutarem contra a morte e de ser essa

escrita, o livro, fruto do fracasso. Isso confere às escritas desses narradores o lugar de modelo

para se pensar o fracasso do ser humano, o que, pelo bem do leitor, pode vir a evitar que

pessoas sigam o mesmo caminho dos desafortunados personagens.

A ficcionalização da figura do narrador juntamente com o artifício de narrar uma

trajetória de vida, servindo de exemplo para seus leitores, é recorrente desde as origens do

2 Informações extraídas da edição crítica do Instituto Nacional do Livro – INL (1960). No livro, há uma

introdução crítico-filológica (p. 45-102), importante para entender as variações iniciais das primeiras edições

e o aperfeiçoamento do livro. 3 A informação sobre a publicação do romance consta em Guglielminetti (2006, p. 87).

4 A fim de facilitar as repetições, os títulos dos romances serão mencionados doravante por suas iniciais: MPBC,

para Memórias póstumas de Brás Cubas; FMP, para O falecido Mattia Pascal; e FPD, para A família de

Pascual Duarte.

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romance, quando estes ainda se apresentavam sob títulos extensos, que já explicavam o tipo

de personagem adotado. Personagens-narradores, que alegavam escrever o livro de suas vidas

e relatá-las ao leitor, firmando um pacto de honestidade narrativa para com ele, serviram de

base para a criação de um público leitor de romances, como defende Ian Watt, em A ascensão

do romance. Nesse livro, nos dois primeiros capítulos, Watt trata do que chama de impressão

da realidade e das adaptações feitas pelos autores ingleses Defoe, Richardson e Fielding para

adequar o romance a essa exigência.

Com a evolução das técnicas narrativas e pelos romancistas que sucederam os três

ingleses, o romance em primeira pessoa de narradores-escritores tornou-se um importante

meio de questionamento da verdade apregoada e firmada no pacto de leitura. Essa condição

força o leitor a ser mais atento, crítico e, por que não dizer, humanístico, na proporção do

efeito imediato de a leitura ser o julgamento de uma vida humana cheia de defeitos, ao mesmo

tempo em que ele, leitor, tem o dever de rever seus conceitos e avaliar também as sociedades

da época do narrador e da sua, retirando da leitura tudo aquilo que acha que transcende

determinada época e serve de ensinamento moral.

A presente pesquisa foi concebida com o objetivo de analisar os três romances em

primeira pessoa acima mencionados, que se apresentam como confissões de personagens-

escritores considerados pouco dignos de confiança, as quais podem ser chamadas de

confissões do fim porque têm em comum terem sido motivadas pela necessidade ou pelo

desejo de seus protagonistas de contar o fracasso de suas vidas. Na análise, procuramos

manter o foco sobre os narradores e o ato escritural deles, produzido pelo argumento de um

projeto de escritura de personagens, resultado do confronto do passado com o presente

degradado deles, e diante da visão de um futuro sem mudanças. Cada projeto tem uma

justificativa, um objetivo central e uma metodologia, além de valorizar a obtenção de um elo

comunicativo por um pacto de leitura entre um suposto autor e os seus leitores.

Como se trata da análise de projetos de escrituras de personagens derivados do

sentimento de fracasso, pressupõe-se o predomínio dos fatos negativos. A função assumida de

suposto escritor emerge do enfrentamento, pelos protagonistas de cada romance, dos seus

fantasmas, quando se instaura uma insuportável angústia, que servirá de motivo para a

produção do texto escrito.

Para realizar esta análise, nossas escolhas partiram inicialmente da definição e

delimitação de um problema. Deve-se entender uma confissão do fim como uma escrita

condicionada pela situação em que se encontra o personagem-central, em um momento em

que não pode mais mudar sua condição, o que caracteriza o fim. Esse problema de

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posicionamento temático possibilita (mediado pela reflexão) a transformação de um

personagem em um personagem-escritor, pois não resta a ele mais nada a fazer, senão

escrever. Nessa situação, a escrita emerge como uma necessidade e, ao mesmo tempo, um

lugar próprio para se questionar os valores éticos e sociais de determinada época e sociedade.

Além de permitirem a realização de um estudo baseado na definição acima, os três

livros escolhidos para análise mantêm um grande e coeso conjunto de semelhanças e

aproximações, mesmo sendo livros de autores diferentes, de países diversos, de épocas e

situações distintas. Nesse ponto, por diferirem, somos levados a crer que diferentes escritores

foram motivados a escrever, mesmo que de pontos de vistas diversos, sobre esse mesmo

problema, que é a necessidade da escrita dentro da ficção como forma de existir ou de garantir

sua existência.

Para efeito de estudo, a análise a que nos propusemos é uma análise comparativa. Os

romances analisados deixam entrever que, levando-se em conta a necessidade de escrever do

narrador, por comparação, pode-se organizar um grupo de personagens que desenvolvem uma

escrita com características semelhantes, sendo as que se seguem as principais para se

caracterizar a configuração do fim: a) o relato escrito vem a ser o testemunho de uma vida

fracassada; b) o narrador tenta se justificar para o leitor, mesmo que finja não se importar com

ele; c) a escrita é manipulada, ora escondendo a verdade, ora usando a mentira, ora

escancarando os fatos que interessam aos respectivos narradores-escritores; d) há uma

tentativa explícita de induzir a opinião do leitor, quando os narradores-escritores comentam as

situações vividas; e) esses personagens dispostos a escrever são narcisistas e não conseguem

se adequar à sociedade, esperando, durante toda a vida, que a sociedade se ajustasse a eles; f)

todos os narradores têm um mesmo problema: – a falta de perspectiva de ser livre, para agir

da maneira que lhes aprouver, ou de uma forma mais ampla, e, por consequência, a

impossibilidade de poder viver do jeito que quiser; e, g) os narradores parecem participar de

uma tradição predominantemente masculina de escritores ficcionais, principalmente na

primeira metade do século XX, e estão presos-mortos no momento em que começamos a ler

os romances, de forma literal ou metafórica.

Esse conjunto de características faz-se ainda mais coeso porque os livros, por serem de

teor memorialístico, giram em torno de um eixo temático-estrutural comum. As características

estipuladas acima são resultado do fim. Isto é, a vida acaba, de uma forma ou de outra, e o

narrador, limitado por uma vida-prisão, procura poder viver na escrita, ao recriá-la em um

texto.

A rede de características que se estabelece representa a luta pela sobrevivência do

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nome do suposto autor na memória do leitor, estando sua vida agora circunscrita ao livro,

após a morte física do narrador-escritor. É lógico imaginar que a leitura de tais obras levará ao

questionamento dos valores morais do indivíduo e, indo além, pensando não mais em um

determinado indivíduo, mas no indivíduo em geral, universal, provocará um questionamento

maior que ultrapassa os limites culturais de uma época e uma sociedade. A fixação de um

ponto para o qual possamos olhar para os narradores – o fato de a produção da escrita ocorrer

no fim de uma vida, a escolha de uma forma confessional no formato de um livro de

memórias – permite-nos perceber ainda mais os aspectos comuns a todos nós, meros mortais,

homens e mulheres, sabedores de que um dia morreremos.5

Quanto ao aspecto estrutural, nos três romances, os narradores de confissões do fim

são estratégias narrativas de seus autores reais e nós, leitores, sabemos que para os três

romances existem autores efetivos e supostos autores.6 Machado de Assis, Luigi Pirandello e

Camilo José Cela escreveram realmente os livros. Eles são os autores efetivos. Brás Cubas,

Mattia Pascal e Pascual Duarte são autores dentro da ficção. Eles são supostos autores. As

informações editoriais nos permitem saber isso desde o momento em que apreciamos a capa

do livro. Temos consciência de estarmos diante de um jogo de ficcionalidade e mantemos

sempre a lembrança dessa situação durante a leitura e análise do conteúdo de todo o livro,

embora, para o bem da lógica dos romances, nos comportemos como se estivéssemos

realmente diante de escritores reais, quando estamos apenas diante de supostos autores.

Como há essa divisão, para nos apoiarmos em face das dificuldades oriundas do

confronto do mundo da ficção com o universo da realidade, uma sugestão parece tornar-se

bem prática nos dias atuais. Umberto Eco, no seu Seis passeios pelos bosques da ficção,

propõe uma abordagem na qual é possível “ler a vida como se fosse ficção, [...] ler ficção

como se fosse a vida” (ECO, 1994, p. 124). Para bons leitores, a separação do que é e do que

não é real é algo óbvio. Mesmo assim, Umberto Eco aprimora esse conceito e estuda

justamente essa separação, sua mistura e seus aspectos nesse e em outros livros seus,

5 Como estudo humanista, como filosofia, o existencialismo (de Heidegger, Sartre e outros) é posterior a

Machado de Assis e Luigi Pirandello. Mas há nesses romancistas uma reflexão existencialista, que antecipa a

formalização da corrente filosófica. Essa dissertação surgiu em um primeiro momento da leitura dos

romances de Pirandello e Machado de Assis à luz da teoria de Sartre. Por motivos diversos a proposta de

estudo tomou outros rumos. É válido que outros trabalhos possam fazer essa leitura e estudo, mostrando

como o existencialismo é um problema atemporal e, portanto, tratado por diversos romancistas, antes mesmo

de Sartre e Heidegger. 6 Como se trata da análise da escrita de personagens-escritores, adotamos a forma de se referir ao autor proposta

por Abel Barros Baptista na análise de Dom Casmurro: autor efetivo para o autor real, no caso Machado de

Assis, e autor suposto, para personagens-escritores como Bento Santiago, Brás Cubas, Mattia Pascal, Pascual

Duarte. Nesse último caso, apenas optamos por inverter os termos, preferindo falar em “suposto autor”. Ver

BAPTISTA (2003a).

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mostrando que nem sempre essa separação foi tão óbvia como aparenta ser. Para efeitos da

ficcionalidade, nos é conveniente manter, na leitura do romance, a suspensão da desconfiança

da realidade, fingindo ser real aquilo que é puramente ficcional, ao mesmo tempo em que

podemos aplicar questionamentos teóricos que foram feitos para escritores efetivos.

Retomando algo dito há pouco, na delimitação do escopo deste trabalho, o primeiro

dos três narradores-escritores, Brás Cubas, fala em “angariar a opinião do leitor”, diz não ser

“cínico” e acrescenta que é “homem” (ASSIS, 1960, p.170), e ainda nos informa que adotou o

método difuso de um Sterne, um Xavier de Maistre. Nessa ordem, conforme a ideia do projeto

narrativo, podemos entender que Brás Cubas tem um objetivo, uma justificativa e um método.

Mesmo que não esteja nessa ordem de apresentação no romance, se falamos em

questionamentos teóricos, os três romances partem de princípios comuns a seres reais, fora da

ficção. No caso, esses seres somos nós, os leitores, e os próprios escritores, o que reforça mais

ainda a impressão da realidade.

Pensando primeiro no objetivo, quando olhamos para o tal desejo de angariar as

simpatias do leitor, algo que devemos nos perguntar é se nós queremos descobrir a fundo a

necessidade dessa aceitação. Ela pode estar em uma proposição simples, mas bastante

objetiva, que está presente em uma das obras de Roland Barthes.

Em A preparação do romance, volume II, Barthes nos faz a seguinte pergunta: “Por

que escrevo?”. A resposta que sucede é: “escrevo para contentar um desejo”, o “desejo de

escrever” (BARTHES, 2005, p. 11). Relacionando e destacando os termos, dentro dos

parâmetros da proposta de análise de confissões mediadas pelo fim, o desejo estaria na

necessidade do personagem escrever para poder viver dentro da escrita. Essa necessidade é,

como defendemos, o desejo de escrever de Brás Cubas, Mattia Pascal e Pascual Duarte. Mas

este é apenas um dos desejos, ou o grande desejo, visto que em toda escrita há sempre

interesses tanto de classes como da própria subjetividade incluídos.

Ao ler os romances, tomamos conhecimento de que os narradores-escritores não eram

escritores antes de começar a redigir os seus livros de memórias. Para realizar esse desejo de

escrever, isto é, para satisfazer essa transformação de nível ou função, passando de

personagem para personagem-autor, ou, como adotamos a partir de agora, narradores-

escritores, encontramos a necessidade de se formatar toda uma técnica narrativa, um meio de

compor sua história.

Continuando com Barthes, no mesmo livro, ele estipula que há um percurso do

“Querer-Escrever” ao “Poder-Escrever”, ou do “Desejo de Escrever” ao “Fato de Escrever”

(BARTHES, 2005, p. 4, grifo do autor), e aí pensaríamos no método, na metodologia

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adquirida e adotada, na leitura de outros livros, na questão da intertextualidade, na questão

mesma de como alguém compõe um livro. O método de cada narrador-escritor tem uma série

de particularidades. Algumas são comuns a todos eles, como os apelos retóricos e os

comentários. A inclusão desses elementos contribui para que os textos dos três narradores

sejam mais descritivos do que narrativos e, por serem subjetivos, fazem-se mais analíticos do

que os textos objetivos a sintetizarem apenas o panorama de uma realidade.

Na ultrapassagem das escolhas na relação do “Fato de Escrever”, para se pensar direto

no alcance do “Poder-Escrever”, dificilmente na leitura dos romances separamos um do outro.

Uma vez encontrada a medida da formatação dos textos por parte dos narradores, para tratar

do seu reconhecimento, buscamos auxílio em outro teórico do romance a fim de refletir sobre

o ato da escrita e o fato de se escrever: Wayne Booth. Esse teórico estuda diversos aspectos da

relação de influência do autor sobre o leitor e do poder comunicativo do primeiro sobre o

segundo, como o uso de apelos retóricos, as intrusões, os comentários. Já no prefácio de A

retórica da ficção, Booth fala em “arte de comunicação com os leitores”, nos “recursos

retóricos que se encontram ao alcance do escritor [...] na sua tentativa [...] de impor ao leitor

um mundo fictício”, e por fim, nos “meios que o autor usa para controlar o seu leitor”

(BOOTH, 1980, p. 11). A imposição parece ser algo com mais intensidade e bem mais

tirânico, se comparada com a ideia de cooperação interpretativa de Umberto Eco, do Lector in

fabula. Antes de falarmos no conceito de parceria de Eco, Booth descreverá meios de manter

essa imposição do mundo do autor. Ao pensar em apelos retóricos, lembramo-nos da

estratégia de se invocar constantemente o leitor para participar do ato narrativo, dando suas

opiniões e aceitando ou não a opinião do suposto autor. Como estamos diante de

possibilidades – e o narrador sabe disso – ele procura nos orientar, nos convencer

impositivamente com comentários tão cheios de intencionalidades que, às vezes, são bem

maldosos, cínicos ou ferinamente irônicos. Comentários para Booth são “intrusões pessoais”,

“juízos explícitos” (BOOTH, 1980, p. 34), e “instruções” (BOOTH, 1980, p. 35, nota de

rodapé). Por meio deles, somos orientados pelo narrador a aceitar o seu ponto de vista.

Do outro lado, Umberto Eco propõe no subtítulo de Lector in fabula (“A cooperação

interpretativa nos textos narrativos”) algo necessário para o objetivo do narrador-escritor.

Neste, como em outros livros e estudos, Eco fala com frequência em previsões e

pressuposições, reiterando a importância dos termos para o propósito interpretativo planejado

pelo próprio autor, seja ele suposto ou efetivo. Segundo ele, “o texto é um artifício sintático-

semântico-pragmático cuja interpretação prevista faz parte do próprio projeto gerativo” (ECO,

2004, p. 51). Escrever sem segundas, terceiras e quartas intenções para narradores de

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confissões do fim (e, quem sabe, praticamente para os de quase todos os textos) seria uma

crença um tanto ingênua por parte de nós, leitores.

De Booth para Eco, a imposição passaria para a cooperação, abrandando, de certa

forma, certos ímpetos que comprometeriam o narrador e sua ideologia egoísta e dominada

pelo seu fracasso. A bem da verdade, todo texto é “incompleto” (ECO, 2004, p. 35) porque

depende do seu destinatário para preencher o que falta e ainda pela razão de ser uma máquina

preguiçosa, cheia de espaços em branco, esperando que o leitor faça o trabalho do texto de

esclarecer tudo. Chegando a esse ponto, o do preenchimento dos espaços em branco, dentro

do projeto de orientação interpretativa, alcançamos outro questionamento. Por ser entremeado

de espaços vazios, de ter entrelinhas, não há como o texto dizer ou explicitar tudo. “Que

problema seria se um texto tivesse de dizer tudo que o receptor deve compreender – não

terminaria nunca” (ECO, 1994, p. 9). Isso seria uma vantagem para quem o compôs, pois não

precisaria se desmascarar constantemente, disfarçando sua aparência e o seu egocentrismo.

Sendo artifício, devemos pensar na ideia implícita de o ato de angariar as simpatias do

leitor ser um meio também de justificativa, quando os narradores escrevem para justificar suas

vidas e seus fracassos. Não teria cabimento eles ficarem falando apenas de seus defeitos, de

suas imperfeições. A tática da exposição do caso de vida parece encobrir ou disfarçar o

passado mais que o presente, ou até o seu inverso, pela razão de evitar esse constante

rebaixamento próprio. A solução para narrar sua vida seria selecionar os fatos e interpretá-los

antes, amenizando-os, mesmo fingindo colaborar com o leitor e deixá-lo resolver o caso.

Se o cooperar acabar na aceitação da opinião do narrador, aí ele terá realizado e

satisfeito seu desejo de escrever, presente nas confissões do fim. A lógica da ideia está

implícita no pensamento de Eco, quando ele se refere ao texto como construção ou conjunto

de pressuposições que o autor é capaz de assumir em uma estratégia textual. Sendo o texto

“entremeado do não-dito” (ECO, 2004, p. 36, grifo do autor), mesmo que seja uma estratégia

textual, ele “quer deixar [fingir deixar ao menos] ao leitor a iniciativa interpretativa” (ECO,

2004, p. 37), na forma de uma duvidosa parceria. Não foi à toa que Brás Cubas, para não cair

em cheio no estereótipo de cínico, fala que é homem, deixando mais ainda a impressão do seu

cinismo. Dizer que é homem é equiparar-se aos outros, principalmente ao leitor. Assim, a

cooperação interpretativa em narrativas transcende o texto e transforma a cooperação em

ideologia, na aceitação das proposições do narrador.

Todo o pensamento de Eco sobre o leitor cooperando interpretativamente pressupõe as

previsões da leitura. Por estarem rodeadas de previsões e o leitor tendo a escolha de rejeitar as

opiniões do narrador, a leitura é um ato orientado, que o seu autor planejou de modo a forçar,

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cheio de disfarces, ser aceito: “Para organizar a própria estratégia textual, o autor deve referir-

se a uma série de competências [...] que confiram conteúdo às expressões que usa” (ECO,

2004, p. 39). O narrador-escritor visualiza primeiro o texto e sua realidade, as implicações

morais que afetariam o leitor, depois censura aquilo que o ofenderia, deixando escrito apenas

o que pode ser aceito. Esse parâmetro de corte e seleção acarretaria pensarem como dizer o

passado.

Antes de pensar em como dizer o passado, um passo importante é sugerido por

Jeanne-Marie Gagnebin, antecipando o fato de que dizer o passado implica o problema de

elaborar o passado. Justamente com esse pensamento, Gagnebin intitula um ensaio (“O que

significa elaborar o passado?”) no qual ressalta algumas considerações sobre a memória,

partindo do princípio social de que o “nosso dever consistiria em preservar a memória, em

salvar o desaparecido, o passado, em resgatar, como se diz, tradições, vidas, falas e imagens”

(GAGNEBIN, 2006, p. 97). No mesmo rumo de intenções, porém em outro ensaio de outro

livro, a mesma autora traz à reflexão a ideia de que a “a escrita é, também e com certeza,

memória da morte” (GAGNEBIN, 2005, p. 65). Se pensadas as condições de narradores de

confissões do fim, escrever teria essa função de salvar vidas, no caso, a própria vida do

narrador. Não a vida real (exceto a de Pascual Duarte), mas a vida nas lembranças, a

lembrança de vidas de personagens feito pessoas como nós somos, cheios de defeitos,

algumas virtudes e uma existência limitada.

Gagnebin articula em seus estudos o pensamento de que “não [nos] lembramos de

muitos nomes e perdemos a conta de outros tantos acontecimentos ditos importantes”

(GAGNEBIN, 2006, p. 97-98), com o “sentimento tão forte de caducidade das existências e

das obras humanas, que precisamos inventar estratégias de conservação e mecanismos de

lembrança” (GAGNEBIN, 2006, p. 97). Embora a maior parte dos estudos de Gagnebin trate

dos perseguidos pelo regime de Hitler na Alemanha nazista, a maior observação proposta

neles é interessante para se pensar em outras situações, entre elas a de livros memorialísticos.

Nessa linha de raciocínio, acolhemos o preceito de que elaborar o passado significa “decifrar

os rastros e a recolher os restos” (GAGNEBIN, 2006, p. 118). Essa proposição nos leva a

pensar na possibilidade de decifrar os rastros deixados por narradores de confissões do fim.

Para tanto, basta buscar a identificação dos mecanismos de lembrança aperfeiçoados pelas

estratégias escriturais, capazes de manter e prolongar a conservação da memória dos

narradores-escritores.

Novamente retomamos o mesmo ponto da necessidade de escrita: o mecanismo da

lembrança, a estratégia de conservação é o livro de memórias. Gagnebin, entre outros

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intelectuais, é uma das estudiosas que indicam, não só a importância de elaborar o passado,

mas a sua necessidade. Temos, nesse caso, a justificativa também do escrever de narradores-

escritores. Se, por um lado, o objetivo central é convencer o leitor de que somos pessoas-

personagens de um destino cruel, que está acima de nós, e com o resultado de nossas escolhas

alcançarem o fracasso, poderíamos acrescentar, nessa justificativa, a proposta dos narradores

de poder sobreviver os seus nomes na escrita. Satisfeita essa vontade de escrever, pensado e

repensado, o projeto de escrita de narradores-escritores de confissões do fim chegaria à

exigência de materialização. Estipuladas as metas, o propósito do livro, seus narradores

desenvolvem estilos específicos, conforme suas respectivas condições intelectuais e sociais.

Sem querer adentrar em uma discussão estilística, usamos o termo “estilo” na sua forma mais

simples, “sinônimo de „escritura‟ e, portanto, de modo de exprimir-se literariamente” (ECO,

2004, p. 151). Sem querer cair também em um debate teórico de análise do discurso, mesmo

analisando discursos de personagens em configurações do fim, a visão da formulação do

estilo nos faz pensar em separar determinados discursos, ou, pelo menos, o estudo ou a prática

de dar rótulos a eles.

É válido dizer que nosso pensamento é propor para a análise e interpretação de uma

configuração do fim a sua organização a partir de três tipos básicos de discurso, estudando-os

ao longo dos próximos quatro capítulos: o discurso póstumo (evidente desde o título em

MPBC e em FMP), em que o escritor é um morto social, alguém isolado da comunidade; o

discurso prisioneiro, limitador do indivíduo, proveniente da representação do cárcere como o

vivido por Pascual Duarte (a própria morte é um cárcere, como pretende ser demonstrado no

caso de Brás Cubas e também de Mattia Pascal); e o discurso narcísico, o qual escancara o

“eu” do narrador, tornando-o sujeito e objeto da própria narração. A aparição do “eu” do

narrador-escritor é e representa a fonte dos desvios morais do sujeito, não uma força capaz de

transformação (talvez possamos e devamos pensar, por exemplo, Brás Cubas ser uma espécie

de parasita do sistema capitalista da época; Mattia, um preguiçoso, um incapaz para o

trabalho, deslocado na realidade da burguesia decadentista, e Pascual, um assassino e um

violador de princípios). Embora a ideia inicial pareça permitir a separação dos discursos, há o

entrelaçamento deles, sendo que há (ou pode haver), geralmente, o predomínio de um tipo de

discurso.

Quando o narrador consegue atingir a medida justa para ele de como compor um livro,

na escolha do método de como dizer o passado, e de achar uma justificativa e um objetivo

para si e para o seu livro, do outro lado desse processo está o leitor diante da necessidade de

julgar. Quando estamos diante de um relato escrito, somos obrigados “a optar o tempo todo”

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(ECO, 1994, p. 12). Sobre a necessidade de avaliar, de medir, a metáfora do bosque (presente

no título do livro de Eco) é bastante interessante para pensar na parte que nos toca como

leitores. “„Bosque‟ é uma metáfora para o texto narrativo” porque mesmo “quando não

existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha” (ECO,

1994, p. 12).

À medida que vamos fazendo nossas escolhas na leitura de confissões, nos deparamos

com a necessidade de avaliar se pode ser verdade o que o narrador diz, se é verdade, se não é,

se podemos estar enganados. A dificuldade está ainda em os autores efetivos terem criado

propositadamente enigmas e os supostos autores não falarem tudo, ou não falarem tudo

abertamente. A própria constituição originária do gênero confissões cria esse problema para

nós. “O gênero discursivo das Confissões [de Santo Agostinho] se situa num cruzamento

privilegiado entre história e literatura. Com a história, ele compartilha uma pretensão de

verdade como reconstrução exata e verificável dos acontecimentos do passado”

(GAGNEBIN, 2005, p. 67). Verificável em certa medida, essa pretensão de o texto ser

verdade pode servir para avaliar: primeiro, o narrador diz a verdade ou não e, segundo, o

narrador interpreta a verdade, parecendo a nós que ela pode ser um engano. A

responsabilidade recai sobre nós, está em nossas mãos, em nosso olhar, o que nos obriga a nos

apegarmos ainda mais à leitura. Ao identificarmos claramente a verdade, tiramos esse peso do

ombro. Agora, quando temos uma interpretação, ao nosso modo, reinterpretamos os fatos

dentro dos limites de orientação e cooperação do qual sistematizaram Booth e Eco, nos seus

livros aqui mencionados.

Retomando o outro lado, o do narrador,

com a literatura, o gênero das Confissões compartilha as estratégias da ficção, em

particular a construção do enredo, da trama [...], construção que remete a uma noção

de verdade não mais como exatidão da descrição, mas sim, muito mais, como

elaboração de sentido, seja ele inventado na liberdade da imaginação ou descoberto

na ordenação do real (GAGNEBIN, 2005, p. 68).

De acordo com o aspecto literário, o intuito confessional, além da condição de

motivação da escrita a partir de casos de fracasso, requer que pensemos em seus narradores.

Não somente neles, mas também na interpretação dos fatos na narração, na ordenação e no

modo de como elaborar o passado. Portanto, o poder da ficção, a influência dessa

característica, deixa-nos mais alerta.

Em geral, uma escrita assim, sem saber se é uma confissão do fim, seria construída

com o objetivo de se contar a própria vida, para se justificar e, em alguns casos, confidenciar

os seus erros para sofrer por ela um processo de purificação no sentido de libertação e de

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arrependimento, ou, ainda, aceitar a premissa de se escrever para professar a verdade

existencial comum a todos e revelar a finitude do ser humano. Haveria nessas condições um

fim nobre para o gênero memorialístico-confessional, enquanto estamos nas ponderações do

altruísmo possível da confissão. Caso não seja esse o propósito escritural, a confissão

aceitaria uma nova projeção, na exceção moral que tende a se encontrar na qualidade da

particularidade do ato narrativo.

Como nem toda confissão escrita requisita o bem comum dos seus leitores, os três

romances indicam que haveria ainda uma terceira via a ser considerada, que implica a razão

de o narrador estar fora do estado de arrependimento. Essa terceira via seria a escrita de

justificação sem motivação de arrependimento ou alteridade e, sim, em busca de

sobrevivência do nome na memória. Nesse caso, por ser uma via motivacional com foco

egocêntrico, ela defende apenas, em razão da visibilidade explícita do ego, os seus narradores,

quando a constituição do discurso apresenta constantes marcas de um caso de fracasso do

“eu” vivencial, aquele do passado do protagonista antes da narração. Essa estratégia força o

leitor a pensar em caracterizá-lo para avaliar quais são os reais critérios de escrita do “eu”

narrativo, o do personagem-narrador, qual a motivação e qual o ponto em que o narrador se

desviou dos padrões morais, se antes ou durante a escrita, e quando o fracasso realmente se

consolidou, servindo de contraponto na balança do julgamento de opinião. A partir dessas

considerações, devemos apreciar a possibilidade de se ter a ocorrência de narradores pouco

dignos de confiança.

Ao falar em narradores pouco dignos de confiança,7 temos a impressão de que estes

sempre tentarão nos enganar. Caso isso ocorra, caso se confirme esse pressentimento, então a

narração não se sustentaria, pois tudo dito pelo narrador é falso. A lógica da definição aponta,

assim, para um ser escritural suspeito, porém imaginamos que, mesmo pouco digno de

confiança, em vários momentos ou na maioria deles, ele terá de dizer a verdade para sustentar

seu discurso. Talvez nem seja preciso mentir para se manipular os fatos.

Acreditamos que, pela opção do uso do termo “pouco digno de confiança”, o narrador

fala a verdade também e joga com o poder cognitivo dos fatos vivenciados, primeiro na vida

ativa do personagem, depois na rememoração forçada pela escrita. Os narradores terão de se

desmascarar perante o leitor e mostrar sua verdadeira face. Este é o momento claro da

conclusão do livro, momento da aparição desvelada do lamento do narrador do seu caso de

7 Tomamos de empréstimo o termo a Wayne Booth, em A retórica da ficção. O livro trata do que se pode chamar

de narrador não-confiável ou pouco digno de confiança e do uso de apelos retóricos para convencimento do

leitor. Ver Booth (1980).

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vida. O jogo, então, implicaria o leitor ter diante de si a necessidade de duvidar, acreditar e

desacreditar, simultaneamente, até tomar posição perante o narrador de confissões do fim.

Tentar perceber quem são os narradores, dar um contorno mais estável ao caráter

narrativo dos três, partindo da descrição e da tentativa de fixação de uma imagem, é uma

obrigação em confissões do fim. Como teremos um capítulo próprio para ver como o narrador

entende ser o que ele é, é válido antecipar, em parte, a necessidade de se falar em imagem

externa dos narradores pelos caracterizadores histórico e social. O leitor deve ter em mente

esses agravantes na conduta escritural dos protagonistas.

Para nós, importa entender como caracterizador histórico a época e as condições do

seu tempo. Podemos afirmar, e repetimos, que cada protagonista é uma representação de um

povo em uma época específica. Em relação aos três narradores, isso é mais evidente em

Pascual Duarte, um narrador que viveu a Guerra Civil Espanhola e os anos que a precederam.

Da mesma forma Brás Cubas não nega e usufrui tremendamente o fato de fazer parte de uma

elite bastante privilegiada, com base na exploração do trabalho escravo. Mattia vive no

intermezzo histórico dos anos do decadentismo literário italiano, nos anos que se seguiram ao

Risorgimento e anteriores e próximos à Primeira Guerra Mundial. Brás Cubas representa a

alta burguesia brasileira, uma falsa aristocracia, ou uma aristocracia mediada pelo

enriquecimento. Mattia é um burguês falido e Pascual, um camponês simples. Temos, com a

nomeação de classe, o caracterizador social que se refletirá no estilo de escrita adotado.

Após destacar a necessidade de se olhar para os três narradores, na medida em que são

representações ficcionais de universos distintos, de realidades diversificadas e específicas,

temos em jogo duas coisas que se confundem, e um terceiro elemento distinto, para se definir

o sujeito narrador. A primeira delas é o caráter dos narradores, que parece estar em jogo. A

segunda delas é a própria narrativa, pela razão de ser um privilégio do narrador e depender

diretamente da vontade dele. O terceiro elemento a se considerar é o meio social representado

na narração e no tipo de escrita, na medida em que a parte representada serve de influência e

órgão delimitador do indivíduo, servindo de desculpa para se encobrir o fracasso. Prefere-se

falar em fracasso, pois erro seria um julgamento explícito somente do caráter do narrador,

embora estejamos apreciando a narração e as suas características. É importante pensar em que

medida o narrador sofre a influência do meio, aceita-a, rejeita-a, distorce-a, em suma, ele tem

poder de decisão e consciência do seu poder de decisão e ação.

A verificação do alcance da força de persuasão do narrador sobre a escrita e, por sua

vez, do meio sobre o narrador, leva-nos a crer que o narrador-escritor, personagem que é,

precisa e tem um contorno estável no relato, previsto e visível desde a infância até o seu fim,

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não modificando sua atitude nem mesmo na escrita, lugar propício para se pensar na vida, nos

erros e nas possibilidades restantes de modificar a situação em que se encontra ou o modo de

se relacionar com os demais seres. Até mesmo de se arrepender.

Os aspectos físicos e, principalmente, os aspectos psicológicos, fazem parte do jogo

para influenciar o ato da leitura. A temporalidade e a espacialidade são as fontes objetivas de

informações a compor a imagem de cada personagem. A textualidade em primeira pessoa tem

na qualificação do narrador uma de suas bases para manter compacta a imagem do seu retrato,

não apenas como narrador, mas principalmente como objeto e personagem do seu testemunho.

O testemunho, a narração, tem no problema de classe, no tipo social, o seu desenho peculiar

para a necessidade de se encontrar a veracidade textual.

Mesmo com essa complexidade de linhas cruzadas pela subjetividade do narrador e

pela objetividade de se retratar uma época, um povo e uma determinada camada da sociedade,

a análise dos aspectos biográficos do narrador, levando-se em consideração o problema de

classe, não vai convertê-la na leitura de um romance de tese, de cunho partidário ou

ideológico. A classe social é um aspecto a mais, essencial para se refletir sobre um conjunto

de problemas no qual prevalece o fracasso.

Sabendo que há um fracasso na vida dos três narradores e que eles são suspeitos em

seus relatos, nosso estudo pretende interpretar romances em que a intimidade é posta à prova

e o poder de detetive é supervalorizado. Após propor os principais pilares teóricos de nossa

pesquisa (Watt, Eco, Booth, Gagnebin mesmo), um último destaque nos vem à mente. Por que

precisamos ler ficção, sabendo que é ficção, como se fosse (e o é) útil por ser real a ficção em

si? Nossa análise dos três romances e o estudo comparativo estão pautados neste ponto, que é

primordial para se pensar literatura: ela é, com certeza, fonte de humanização.

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1. “EU”, “ME CHAMO”, “EU (NÃO) SOU...”

Hospes quod deico, paullum est, asta et pellege...

[Forasteiro, o que digo é pouco; detém-te e lê até o fim...]

Anônimo

Para começar a falar sobre a necessidade da escrita como tema de nossa pesquisa,

tomemos como ponto de partida a seguinte afirmação:

Acreditava-se que um espírito pudesse sobreviver enquanto perdurasse sobre a terra

o que estava ligado a seu nome. Se o tempo chegasse a destruir os sinais do seu

nome de tal modo que não sobrevivesse nenhum modo humano de evocar a

memória do desaparecido, somente a partir daquele momento, e para sempre, seria

considerado morto (UNGARETTI, 1994, p. 176)

Essa consideração feita pelo escritor italiano e crítico de arte e literatura Giuseppe

Ungaretti refere-se à tradição dos faraós e do povo egípcio de adornar os túmulos dos

soberanos com pinturas, adereços e outras práticas que fizessem com que, na memória do

povo, o nome do mais importante representante da antiga cultura egípcia pudesse sobreviver.

Os faraós, pela suntuosidade de suas sepulturas, estão bem presentes até hoje na memória da

Humanidade e seus túmulos-pirâmides, bem visíveis8 – as pirâmides têm grandes dimensões,

portanto mais visíveis ainda.

Conforme a lógica do pensamento de Ungaretti, embora as pirâmides representem um

privilégio da realeza, enquanto o nome de uma pessoa morta for lembrado e perdurarem as

marcas de sua identidade (a função histórica para um povo, o valor afetivo familiar, a atuação

da pessoa em meio à sociedade), pelas características das marcas de suas respectivas

sepulturas, essa pessoa ainda não pode ser considerada morta. Mesmo com a ausência física

do corpo, é a proximidade da imagem que faz uma pessoa ser considerada ainda viva, embora

apenas na lembrança. Estar presente na memória é também, por assim dizer, um meio de

prolongar a vida, mesmo em sentido abstrato.

Mas a construção de pirâmides não é o único meio de prestar tributo e manter viva a

presença de um finado querido ou um indivíduo exemplar. São também notórias no mundo

8 Tanto que o menor detalhe ilustrativo faz diferença e também é levado em consideração para enaltecer a

riqueza e o poderio do monarca, considerado de ascendência divina. Assim, a parte interna das paredes das

pirâmides é recoberta de desenhos contando a história do faraó morto e do povo egípcio com suas tradições

míticas e relatos históricos, enquanto a parte externa pode ser vista por qualquer viajante a quilômetros de

distância, provocando em quem se aproxima um forte sentimento de admiração ao contemplar algo tão grandioso

e de difícil construção, a ponto de sentir-se pequeno diante desse tipo específico de sepultura. Não é de se

estranhar que a beleza e a magnitude das pirâmides as tenham consagrado como uma das sete maravilhas do

mundo antigo, sendo visitadas e apreciadas até os dias atuais.

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moderno práticas como erigir estátuas, construir edifícios, fontes, casas, que recebem o nome

de pessoas importantes para a sociedade, bem como homenageá-las, dando seus nomes a

escolas, centros culturais, ruas ou praças.

Para os menos privilegiados, formas mais populares e bem mais econômicas de manter

o nome presente ou tentar prolongá-lo, prestando homenagem a alguém, surgiram durante a

história. Entre elas estão algumas recentes, como a fotografia e o filme, e outras mais antigas,

desde a organização dos primeiros impérios, como a pintura e o livro. Além dessas formas, há

o hábito de muitas pessoas de preservar objetos pertencentes ao morto, ou usados por ele

enquanto esteve vivo. Dessas formas populares, o livro é a de maior acesso pela possibilidade

de reprodução em maior escala.9 Além do mais, o livro é o meio com mais informações e

maior número possível de comentários.10

Por ser a escrita consagrada no percurso histórico da Humanidade como meio

essencial de difusão de informações e conhecimento, o livro configurou-se como o lugar

próprio de constituição documental de qualquer sociedade. Ele pode ser de caráter coletivo,

como um singelo livro de registro de compras e doações ou os livros oficiais de história, ou de

feição meramente subjetiva, autobiográfica, como os livros de experiências escritos por quem

as vivenciou (as memórias) ou por outras pessoas (as biografias). O documento escrito

enaltece a experiência, e toda experiência é mediada pela ação humana na comunidade.

Com a visibilidade do livro, ao mesmo tempo um documento material e um

monumento existencial, um marco presente, o livro escrito por outra pessoa, que não o

homenageado, confere honras e não permite o desaparecimento imediato do indivíduo.

Demonstra os laços afetivos, familiares ou não, faz saber aos outros que, mesmo com a morte,

há uma transmissão de valores. Basta haver exemplaridade e dignidade, ou algo especial,

extraordinário na existência interrompida. É o que poderíamos chamar “uma vida digna de

nota”. Ou “um ser exemplar”. Essas expressões ajuízam méritos concebidos como positivos,

bons. A positividade do “digno de nota” seleciona e exclui, torna uma vivência rica e

aquilatada e, no reverso do processo, destina à obscuridade os demais indivíduos. Esses

últimos, se quiserem viver após a morte no mundo dos vivos, terão de, por conta própria,

9 Hoje em dia, devido ao farto acesso propiciado pela pirataria e com os recursos tecnológicos da chamada “era

digital”, principalmente a internet, pensamos que, recentemente, o melhor meio de reprodução em larga

escala passou a ser a mídia de cinema, por manter a imagem e o som, e por ser mesmo bem mais barato.

Contudo, devemos considerar que publicar um livro foi o meio mais barato durante alguns séculos, e para

muitas pessoas e diversas realidades, ele ainda persiste como o meio mais acessível e mais barato. 10

A constituição do livro em páginas, além dos comentários do autor e de outras pessoas nas notas de rodapé,

prefácios, prólogos, posfácios, e dos comentários embutidos no meio mesmo e no fruir do texto, permite ao

leitor escrever e sublinhar ao redor ou sobre o texto. Abel Barros Baptista faz um breve estudo sobre o valor

do livro em Autobibliografias (BAPTISTA, 2003b).

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mostrar-se dignos de nota e merecedores de estima alheia. É o momento do levante adverso à

imortalização de “nobres seres”, quando do seleto grupo não fazem parte sujeitos com casos

de vida extravagantes, peculiares.

O livro ainda serve ao próprio sujeito para tentar mostrar-se digno de nota. Basta

pensar na escolha feita por pessoas comuns pelos gêneros de teor autobiográfico, como o livro

de memórias. E no nosso caso, na escolha dos narradores-escritores11

Brás Cubas, Mattia

Pascal e Pascual Duarte, entre vários outros narradores-escritores, capazes de escrever um

livro que possa relatar um caso estranho de vida. E este seria o argumento necessário para

cada narrador ter de explicar por que resolveu lançar-se à empresa inglória de narrar suas

vidas.

Assumindo essa condição de documento, as três obras que nos propusemos a estudar

por adotarem o argumento de serem memórias de narradores-escritores, narram histórias de

vidas, mais ou menos desde a infância, suas relações de parentesco, passando por problemas

iniciais de relacionamentos amorosos, até atingirem o conflito central dos romances, os quais

os narradores não conseguem superar e, muito menos, resolver. É por causa desses problemas

que os narradores mostrar-se-ão incapazes de seguir vivendo dentro dos parâmetros sociais de

suas épocas, contra os quais, de certa forma e por razões diferentes, se batem. Cabe dizer de

antemão que, mesmo não conseguindo viver dentro da sociedade, mesmo que o narrador

esteja inconformado com sua condição (Brás Cubas, por exemplo, lamenta morrer justo

quando estava quase descobrindo a fórmula do remédio contra a hipocondria), da situação

(Mattia Pascal reclama o direito de ter direitos, mesmo não querendo ter responsabilidades,

por exemplo, de ter seu filho, sua esposa, mas de não ter de suprir os mesmos com suas

necessidades), ou posição (Pascual Duarte não gosta de lugares pequenos, prefere morar na

grandiosidade de Madri ou La Coruña, detesta mesmo estar entre pessoas de baixa renda e em

lugares mal desenvolvidos e atrasados economicamente), eles tentam rever o mundo, da

mesma forma que se autoavaliam. Por tentarem – em vão – viver livres em uma sociedade,

viver a seu modo e, em termos gerais, não conseguirem, terem de aceitar regras, os três

narradores-escritores projetam seus problemas sobre a sociedade, pensam e conseguem

enxergar os dilemas de suas épocas, deixando, mesmo que de um ponto de vista parcial e,

como veremos, mal-intencionado, um retrato de suas sociedades: o Brasil do Segundo

Império, por Brás Cubas; a Itália posterior à reunificação (Risorgimento) e anterior à Primeira

11

Como a presente pesquisa estuda livros de narradores em primeira pessoa, que em seu papel ficcional é de

escritores, achamos por bem usar o termo narrador-escritor sempre em relação aos personagens Brás Cubas,

Mattia Pascal e Pascual Duarte.

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Guerra Mundial, por Mattia Pascal, e a Espanha nos anos antecedentes e imediatos da Guerra

Civil.

No caso do primeiro narrador, Brás Cubas é um senhor de propriedades, que nunca

precisou trabalhar. Na verdade, o verbo trabalhar parece não existir para Brás Cubas, sendo

muito mais adequado falar em gastar ou passar o tempo. É um indivíduo volúvel, incapaz de

terminar algo, conformando-se facilmente com os fatos. Não reage e nem busca com

eficiência mudanças razoáveis e consideráveis. Aproveita-se das circunstâncias para viver e

tenta sempre achar uma solução para permanecer dentro do sistema de aparências. Gilberto

Pinheiro Passos, ao analisar Brás Cubas, fala na “situação de homem abastado e culto”,

apoiado no “desejo de nomeada” (PASSOS, 1996, p. 34). É Passos, entre outros críticos

literários, um dos que fará um estudo das muitas leituras e citações feitas pelo narrador das

memórias póstumas. Ao observar o cultivo de tantas leituras, a ideia mais provável para um

leitor inocente das artimanhas discursivas de Brás Cubas é que ele leu muito, teve acesso a

fatos e livros, principalmente de origem europeia, desenvolveu um vasto domínio de

conhecimento das modas literárias em todo o percurso histórico, por fazer alusões aos textos,

personagens, lugares e situações, como se dominasse profundamente as informações de

destaque na história oficial ocidental do mundo. Com as inúmeras leituras, considera-se que

ele teve tempo e dinheiro de sobra, para poder ler e ter sob seu domínio tão vasta quantidade

de livros e informações. Ou seja, até pela leitura pode-se notar os privilégios de classe do

narrador.

Brás Cubas narra sua vida, de forma estranha. Começando com a sua morte, para

depois falar do seu nascimento em um lar abastado, passa pelos primeiros namoros e

aventuras amorosas, indo estudar em Portugal, a mando do pai, e retornar ao Brasil, por causa

da doença e morte de sua mãe, vivendo, logo depois, as pré-etapas do projeto do seu pai de ter

o filho ocupando um cargo político e se casando, sendo os dois projetos inacabados e

frustrados. Com isso, depois de aceito o fracasso nos dois casos, ele resolve cultivar uma

relação de adultério com Virgília, narrando-o na maior parte do romance, indo até os capítulos

finais, quando já se encontra velho, ocupando-se em nos contar a experiência da decadência e

das mortes de alguns personagens que rodearam a sua vida.

Ao interpretar a narração de um homem egoísta, considerando o narrador um

aproveitador de classe e da condição de ser um rico por herança, o caso mais evidente do

poder econômico e das liberdades concedidas para quebrar regras sociais está na reflexão

sobre o fracasso nos relacionamentos amorosos. O personagem Brás Cubas não consegue se

casar e confessa ter vivido, após o retorno ao Rio de Janeiro, três casos de paixão: um

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namorinho instantâneo, bem rápido, com Eugênia, com quem não se casa pela diferença

social e pelo defeito físico; enamora-se depois da gananciosa Virgília, de quem se torna

amante, e no terceiro, predispõe-se a casar com a atraente Eulália, a Nhã-loló, sobrinha de seu

cunhado Cotrim, vitimada em breve por uma epidemia.

Dos três relacionamentos do narrador, o principal é o relacionamento sexual com

Virgília, e este o faz habituar-se a ser apenas amante, enquanto desfruta das riquezas e da

herança deixadas por seu pai. Brás é um aproveitador nato, pois, mesmo que a herança seja

sua por direito, ele jamais procurou perpetuar o patrimônio pelo trabalho ou mesmo pela

exploração nos moldes escravagistas da época. Para ele, não há refluxo de capital, justamente

porque ele está no bom usufruto de seu direito e no duplo poder de escolher não se casar e

nem ter de trabalhar. Imbuído desse “poder de classe”, o narrador não passa pelas obrigações

do casamento e do trabalho, mesmo desejando-os em parte, em favor de uma possível

notoriedade adquirida.

De suas memórias, o capítulo final é um capítulo de negativas, no qual conta não ter

deixado nem um filho, nem ter constituído uma família, nem ter ocupado algum cargo político

importante e nem ainda ter conseguido descobrir a fórmula do remédio contra a hipocondria.

Brás Cubas, que sempre falhou em seus projetos em vida, decide usufruir da sua condição de

morto para, em seu novo projeto – único realizado –, escrever suas célebres memórias

póstumas.

No romance FMP, estão narradas as desventuras do falido burguês que dá nome ao

livro. Ele é um personagem pequeno-burguês, que escreve sobre sua vida enquanto espera sua

morte definitiva (a física). Aparentemente, o título indica que Mattia Pascal já morreu e o

romance contará sua vida. Acontece justamente o contrário, pois o falecido está vivo e

trabalha em uma igrejinha “fora de mão” e “dessagrada”, que serve de depósito de livros que

um tal monsenhor Boccamazza doou para a cidade de Miragno. Porém pela falta de vontade

da cidade e dos cidadãos a igrejinha transforma-se em uma biblioteca e o contato direto com

os livros faz Mattia relatar sua vida.

Fala inicialmente de sua família. Não conhece muito o seu pai, tem profundo apego à

mãe, tem um irmão, a quem chama de Roberto, e ainda é sobrinho de Scolástica, uma tia de

quem teve medo na infância e nem gosta muito.

Ele narra no livro os episódios decorrentes das suas duas supostas mortes. Estas são

consequência da fuga e do fato de Mattia não conseguir enfrentar o fracasso do primeiro

casamento com uma mulher insatisfeita e uma sogra infernal e mais a falência do patrimônio

familiar e as mortes, mais ou menos ao mesmo tempo, de suas filhas e de sua mãe. Com a

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morte delas, ele se aproveita do aparecimento de um cadáver e desaparece em um trem, sendo

dado como morto pela família. Foge para Montecarlo, onde arrisca a sorte no jogo de cassino

e acaba ficando rico. O dinheiro e a notícia de sua morte fazem com que ele adote um novo

nome e recomece tudo com uma nova vida.

A segunda morte de Mattia Pascal acontece depois que ele, já usando o falso nome –

Adriano Meis –, enamora-se de uma moça chamada Adriana. Ele vai constatar que não pode

manter qualquer relação social, nem mesmo casar-se novamente ou comprar uma propriedade,

pela falta de documentos. Se antes Mattia não conseguia encarar a tradicional estrutura do

casamento e do trabalho, sendo vítima dessa sociedade por suas dívidas, agora ele não suporta

viver uma mentira, por ter de conviver justamente com as mesmas regras sociais. Planeja ser

considerado morto pela segunda vez por afogamento, deixa um bilhete com o chapéu e a

bengala em uma ponte e desaparece novamente. Mattia foge nos dois casos, mas não escapa

da vida que tem e leva consigo o problema de não poder ser livre socialmente, procurando

usufruir da chance de ser considerado um morto. Com as duas supostas mortes, e à espera de

uma “terceira, última e definitiva” (PIRANDELLO, 1972, p.10), o personagem já não possui

direitos civis e usa a frase “me chamo Mattia Pascal” como lema, por lhe restar apenas o

nome. Ao retornar a Miragno, encontra sua antiga esposa casada com seu amigo de infância

Pomino, e agora vive o drama de ter se tornado um fantasma para ela e para outros

conhecidos e se enterra metaforicamente na igreja, “campo santo”, onde vira bibliotecário e

escreve suas memórias.

O discurso narrativo se desenrola, tendo como vertentes, além das duas mortes, as

experiências paralelas das duas falências sofridas pelo narrador. Ele perde a herança do pai e

perde a própria riqueza por egoísmo. Seu estilo de falecido baseia-se nessa sua condição de

falência (embora a falência não represente esforço de trabalho). Duas vezes rico, a primeira

vez na infância e na adolescência, a segunda pela sorte em uma mesa de jogo, a falência

pessoal se dá também pela impossibilidade de Mattia Pascal assumir uma outra identidade

(nesse caso, a de Adriano Meis).

Preguiçoso nato, Mattia encontra-se, por fim e pelo favor de conhecidos, em uma

igreja que não é mais uma igreja. Ele não tem muita coisa a fazer senão conversar com o

padre Eligio Pellegrinotto, com quem discute os métodos literários e recebe sugestões de

leitura. Lê o suficiente para mostrar-se inconformado com o estado em que se encontra, mas

aproveita-se de, pelo menos, não ter de trabalhar para sustentar um lar. Imprensado entre a

classe trabalhadora, principalmente de fazendas, e os ricos exploradores, Mattia Pascal é um

meio-termo em tudo. É um pseudofilósofo, um conhecedor mediano de literatura, um

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intelectual sem aprofundar-se no termo. Não consegue trabalhar nem sabe dar ordens e impor

sua presença. Não tem influência entre os homens e sofre tremenda atração pelas mulheres.

Aproveita-se de tudo o que pode, foge quando necessário. Vive em uma classe sem lugar em

uma cidade pequena, na qual ou se é rico ou se é pobre.

No caso de FPD, o título do romance aponta para o narrador que vive no contexto

imediatamente anterior à Guerra Civil Espanhola, ocorrida entre 1936 e 1939, pouco antes da

Segunda Guerra Mundial. Pascual Duarte é um camponês de um vilarejo chamado

Almendralejo e foi preso e condenado à morte, por ter assassinado um nobre durante um dos

dias dos confrontos que culminaram na Guerra Civil. Porém, esse narrador está escrevendo

suas memórias durante sua terceira estadia na prisão e só narra os motivos da primeira e

segunda condenação – no caso, os assassinatos de sua própria mãe e de Paco ou Estirao, seu

inimigo, explorador de sua irmã, e o responsável por engravidar Lola, sua primeira esposa.

O romance se chama A família de Pascual Duarte porque sãos as relações familiares

que serão expostas como motivos para a condenação do protagonista. A primeira, pela

gravidez de sua esposa por Estirao. Pascual acrescenta, nesse momento da narração, que ele é,

em parte, responsável pelo adultério da esposa por haver fugido (como Mattia Pascal), após a

morte de um filho de onze meses de vida, ocorrida depois de sua mulher haver abortado outra

criança. Pascual, antes e durante a gravidez da esposa, havia fugido para Madri e La Coruña,

sentiu-se bem nessas duas cidades, chegando a pensar até em ir para as Américas. No entanto,

depois de cerca de um ano e meio, sente falta da família e retorna a Almendralejo. Chegando,

descobre o adultério e comete seu primeiro crime. O segundo assassinato é cometido por

Pascual contra sua mãe, que tanto o atormentava. O relato do narrador é interrompido na luta

física de Pascual com a mãe, que termina com a morte dela. Depois, com o acréscimo das

cartas do editor ficcional, do pároco e de um policial, ficamos sabendo que Pascual é morto e,

ao mesmo, tempo, que ele matou também o conde de Torremejía em um caso posterior: “o

fato é que [se penitenciava] às segundas-feiras, porque numa delas havia matado sua mãe, e às

terças, porque havia sido o dia em que matara o senhor conde de Torremejía, e às quartas,

porque havia matado não sei quem” (CELA, 1986, p. 144).

A narrativa vai mostrar que, diretamente, ele acusa, durante todo o tempo, sua família,

por ser, em grande parte, responsável por suas fraquezas. Antes de acusar, ele se mostra

acusado e tenta se defender. Essa prática discursiva será defendida como tese de sua inocência

em prol de uma outra tese: a da liberdade. Mas, entendida nos termos da mentalidade de

Pascual, este mantém uma política de viver livre acima de tudo. Só pode considerar-se livre

sem o olhar acusador do próximo. A morte da cadela Chispa e da mãe de Pascual referem-se a

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motivos semelhantes. Pascual não aceita ver-se acuado nem por um hipotético olhar acusador.

Ele mata, porém tem medo de morrer, tentando se livrar da condenação com o livro de

memórias.

A primeira e a última fala do relato memorialístico revelam bem o intento do suposto

autor: “Eu, senhor, não sou mau” (CELA, 1986, p. 15) e “Podia respirar...” (CELA, 1986, p.

138). Ele começa tentando se defender e termina defendendo a ideia de que o que fez, só o fez

para poder viver. O viver, para Pascual, representa viver com dignidade e com honra. Para

tanto, seria necessário um lar nobre ou uma inteligência e lealdade, ou outro sentimento

nobre, acima do normal. Pascual vem de uma família pobre, inculta e cheia de vícios. Falta-

lhe virtude e inteligência. Pode-se notar a prática, comum em todo o romance, da comparação

constante e desnecessária. Além do mais, Pascual, por ser homem do campo e não ter

estudado o suficiente, tendo abandonado muito cedo os estudos, desenvolve a lógica do

romance com ideias confusas e simplistas, atenuadas pelas imagens recorrentes do imaginário

muitas vezes arcaico e primitivista. Constantes no estilo do narrador estão metáforas e

hipérboles construídas, na maioria das vezes, com referência a figuras de animais da região,

presentes no imaginário bíblico e religioso da Idade Média, conforme veremos

posteriormente.

Pascual é um narrador que, no papel de personagem, vendo-se no passado, não

esquece de tudo o que sofreu e usa isso para justificar-se. É das três narrativas de confissão do

fim aquela em que esse recurso é usado com maior intensidade. A família inteira age de forma

desleal e humilhante para com o narrador. Lola o trai, a irmã, Rosário, prostitui-se e mantém-

se como amante de alguns homens com renda um pouco mais considerável que a de seus

parentes, o pai só o tratava com violência, e sua mãe é a grande responsável por ele ser infeliz.

Por isso, a visibilidade da intenção de acusar em larga escala os familiares será lugar-comum

na obra. O editor das memórias, conhecedor desse fato, antecipa como o leitor deve ler o

livro: vendo como Pascual Duarte acusa a sua família, como ele age no meio dela e quais as

evidências da agressividade e criminalidade, levando em conta a forma de agir de Pascual

Duarte com as outras pessoas que não são seus familiares. Se o leitor mantiver isso em mente,

verá que Pascual Duarte é parcial e egocêntrico, não pode dizer toda a verdade, perde o

controle sobre sua narração e, por fim, se condena pela escrita de próprio punho.

Situados os personagens e olhando para o problema da presença do “eu” nos

romances, vemos que a identificação do indivíduo pauta-se na necessidade de uma

diferenciação de cada participante, obrigando-o a nomear-se e a qualificar-se. A nomeação

exige a qualificação e não é mais que a substituição de um inventário de características

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descritivas fixas. Com esse inventário é possível substituir o uso de frases para falar de

alguém como “ele era alegre”, “um homem trabalhador” ou “ela era louca pelos filhos” por

substantivos próprios como Mattia, Pomino, Virgília, Rosario.

Mediante a utilização do ato distintivo estático é que, valendo-se de outro ato

distintivo, agora dinâmico, que é a ação, a lembrança prenderá ao conjunto de acontecimentos

vividos o nome do personagem. Ao se pronunciar o nome Brás Cubas, por exemplo, o leitor

poderá ter em mente imediatamente que ele é um “defunto autor”, como ele se autonomeia

(ASSIS, 1960, p. 111), ou “um solteirão sem filhos”, para sua irmã Sabina (ASSIS, 1960, p.

269). O livro deixa de ser um meio de homenagem, passando da qualificação para ser

simplesmente o lugar de prolongamento do nome, função não idêntica, porém semelhante ao

propósito dos faraós ou de outros monarcas.

Uma outra função surge para o livro ao assumir o caráter daquilo que em geral se

chama de confessional. Se o livro é fundamental, por sua praticidade, ele é exemplar para o

ser humano por permitir o aprendizado e aperfeiçoamento da espécie por meio de situações já

vividas. É graças ao sentimento da necessidade de escrever, uma espécie de angústia, que, em

situações marcantes nas quais uma pessoa fracassa ou é bem-sucedida, determinada

experiência é narrada, a reflexão apoiada no desvendamento sucessivo dos fatos serve para a

constituição desse elo de modelo para outras pessoas na construção da rede de leitores. É, em

outras palavras, o caso alegado por Mattia Pascal, de ser o seu destino “realmente estranho e

capaz de servir de ensinamento a algum leitor curioso” (PIRANDELLO, 1972, p. 10). Ou o

de Pascual Duarte, que vê utilidade no seu livro (pelo menos assevera isso) e valor a ponto de

não destruir os manuscritos de suas memórias, “privando desta forma algumas pessoas de

aprender o que eu [Pascual Duarte] não soube antes que fosse já demasiado tarde” (CELA,

1986, p. 9).

A captação do “eu” no livro, a disposição de seus objetivos e limites, bem como do

tipo e nível de ensinamento, tem um problema comum e imediato – o distanciamento.12

A

impossibilidade do narrador de estar presente em tempo diverso e no espaço diferente do seu,

em que viveu e escreveu, reivindica a questão da representação dinâmica, do ser em

movimento, na reconstrução da vida no universo do livro. O movimento em que é

representado o seu autor repousa na dificuldade presente em uma superfície comunicativa,

sem a possibilidade de um diálogo recíproco e constante. Estar dentro de alguma inscrição é o

problema central do conjunto de obra de Pirandello, apontado por Alfredo Bosi quando se

12

Sobre o problema do distanciamento sugerimos a leitura do ensaio “O narrador”. In: (BENJAMIN, 1994).

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refere ao problema vivenciado diretamente por Mattia Pascal de “viver” e “ver-se viver”.13

Esse problema é aplicável aos outros dois narradores, e uma prova disso é quando Pascual

Duarte tenta provar de imediato ao leitor que não é mau, hipótese refutada a todo instante pela

ação e pelo pensamento do protagonista no desenrolar das páginas de suas memórias.

Na captação da individualidade, há a tentativa de recuperar o passado para satisfazer o

ego do narrador em sua ânsia de ocupar o centro da narrativa. Os demais seres da história

devem estar ao redor, em função da subjetividade do protagonista. Os narradores-escritores

pensam ser pessoas acima dos limites sociais, presos, mesmo assim, nos moldes da aparência

pública. Pascual Duarte e Mattia Pascal são limitados pela família e pelo povo de cidades

pequenas. Estão, no pensamento deles, condicionados a seguir sempre errantes, sem nunca

poder ter uma vida alternativa. Diferente é Brás Cubas que, entediado desde quando era vivo,

é escolhido para viver os privilégios de classe. Mesmo tolhido pelo destino em algumas

situações, como a morte de Eulália, o narrador só não mudou de condição porque não quis,

tendo uma maior liberdade de ação que os outros dois narradores. É claro que ele vivencia os

limites sociais e depende deles. Seu amor à fama e o desejo de ser aplaudido e reverenciado

fazem Brás Cubas refém da opinião pública de sua época. E, no estado de morto, as

convenções humanas são mais presentes ainda, pois a escrita é um valor e patrimônio dos

homens e, da mesma forma, os juízos de valores emitidos na invocação do leitor. De modo

que frases jocosas, embora carregadas das rabugens de pessimismo, costumam sempre

ironizar a opinião alheia, mesmo dependendo delas.

Cada confissão do fim leva em si o problema do ver-se morto e, em um ponto distante,

ainda vivo. Os três narradores-escritores prestam homenagem, pelo memorialismo, a si

mesmos e parecem falar de uma outra pessoa. Juracy Assmann Saraiva é da opinião de que o

defunto-autor Brás Cubas, o narrador e escritor de MPBC, não é o Brás Cubas do livro, o

protagonista da história, pois ambos são seres distintos. O narrador que fala de Brás Cubas é o

defunto, tentando assumir diversas vezes o papel de terceira pessoa (SARAIVA, 2009, p. 42-

59). Guido Baldi, em atitude idêntica, afirma que o falecido Mattia Pascal é o narrador que

relata os fatos vividos por Mattia Pascal personagem e, pelo seu desdobramento, o heterônimo

Adriano Meis (BALDI, 2006, p. 33).

Atitude próxima pode-se enxergar mesmo no condenado Pascual Duarte, quando este

13

A citação faz parte da palestra proferida no dia 15 de abril de 2008, na ABL, por Alfredo Bosi, com o título de

“O romance de Machado de Assis”, em comemoração ao centenário da morte de Machado de Assis. O tema

da escrita e do narrador-escritor serve de exemplificação também em Serafino Gubbio, operador, outro livro

de Pirandello, para mostrar a dificuldade do indivíduo em “dizer tudo” e em ser entendido. Outro estudo de

Bosi que fala sobre a questão da aparência pública é o ensaio “A máscara e a fenda” (BOSI, 2007, p. 73-125).

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fala ainda do Pascual Duarte camponês. O distanciamento provocado pela morte gera a

reflexão e o rememorar, aliado ao momento da escrita, possibilita a distinção entre os

narradores e os personagens.

Na perspectiva das considerações feitas acima, pode-se dizer ainda que, fora da prática

da homenagem, a principal função da tentativa de prolongar a permanência da imagem do

morto pelo próprio morto (ou quase morto, ou morto metafórico) seria ver-se viver e olhar

para si de um jeito tal que bem lhe diz respeito, satisfazendo o ego e apresentando, mesmo

assim, um elo coerente com a realidade.

Fora o lado mal-intencionado ou não confiável do narrador cheio de apelos retóricos, a

perpetuação de uma forma de ser visto torna-se um desejo revelado no texto com o objetivo

mesmo de cultuar o morto, no sentido de fazê-lo vivo e presente. “Cultuar”, a palavra já na

origem latina traz essa significação, pois “cultus, us, substantivo, queria dizer não só o trato

da terra como também o culto dos mortos” (BOSI, 1992, p. 13, grifo do autor). A palavra

reveste-se do sentido de cultivar, criar raízes e o seu correspondente ato verbal é não deixar

algo no esquecimento, é lembrar-se antes da condição perpétua do homem social, forçando-o

a ter de meditar sobre o que já serviu de experiências a outras pessoas. É o que liga os vivos

ao plano dos mortos.14

É a sensação vivenciada por Mattia, ao depositar flores no próprio

túmulo. A passagem a seguir é bastante significativa para a conclusão se tornar uma verdade

fundamental para o título do seu livro: “Levei ao túmulo a coroa de flores que prometera e, de

vez em quando, vou lá, ver-me morto e enterrado” (PIRANDELLO, 1972, p. 279).

A imortalidade desejada proporcionaria aos seres vivos a condição seletiva de

assegurar o não-esquecimento de determinados mortos. É o caso da classe aristocrática

egípcia, privilegiada até mesmo após a morte, tanto por conservar na tradição o culto oficial

em memória e invocação dos mortos nas oferendas, como no cultivo dos processos de

preservação corporal chamados de mumificação. Seria também preservar os rastros e os

restos, na prática analítica de Gagnebin, referida na introdução deste estudo.

O processo de mumificação leva em consideração a preservação máxima do rosto e do

corpo. Semelhante emprego tem o livro ao tornar rígidas e bem delineadas as características

corporais, de tal maneira que seja possível ao leitor reconstituir diante de si a imagem do

narrador-escritor sorrindo ou esbravejando, ou se contorcendo em suas caretas, ao desnudar-se

das máscaras sociais.

14

Walter Benjamin explora com muita acuidade essa ideia de transmissão de valores pelo moribundo aos que

ficam, pois este teria a autoridade do mundo dos mortos (BENJAMIN, 1994, p. 207-208). Alfredo Bosi

analisa os significados em latim da palavra culto e suas derivações no processo de colonização das terras

brasileiras (BOSI, 1992).

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Agora, retomando o aspecto da homenagem, nos cabe de imediato uma determinada

pergunta: e se não forem feitas oferendas em prol do personagem por parentes ou amigos?

Caso isso acontecesse, dada a consequente obviedade do fato, o narrador-escritor cairia no

esquecimento e desapareceria. Ele deve, portanto, conquistar leitores, substituindo aqueles

que seriam os invocadores tradicionais da sua memória. Afinal, o manejo das informações já

seria uma delineação dos traços subjetivos. Com essa substituição dos invocadores da

memória, o leitor procura se aproximar do limite de ser capaz de reconhecer a aparência e as

características do personagem.

Posto desse modo a questão, é possível ir além e pensar em um “como” apresentar-se,

desnudar-se, descrevera si próprio narrativo. Pode-se pensar o arranjo desses traços subjetivos

da seguinte forma simbólica da modernidade:15

quando uma pessoa é velada, ela está vestida

e paramentada com roupas condizentes com a situação de velório e a sua própria. O ritual

reafirma os laços humanos no pacto de olhar para o morto antes de desaparecer fisicamente

sob a terra. Logo, se o livro tem a forma estrutural de manifestação similar à estrutura do

túmulo, o leitor é o curioso visitante que lança um último olhar sobre o morto. O diferencial

está no avesso das lamentações (e é possível reconhecê-las em relação aos três narradores-

escritores), compostas pela apreciação de um retrato cômico, mesmo no caso de Pascual

Duarte. A covardia manifesta no episódio final, no qual ele será morto, nega as ponderações

de resignação de um homem honrado, nos moldes antigos, dos tempos dos cavaleiros, em que

o homem que não teme a própria morte, sabe morrer com dignidade. A figura patética acaba

se tornando cômica. Mas essa não é a única razão da comicidade. O estilo de escrever de um

homem inculto, tentando assumir a performance de escritores bíblicos, profetas, literatos, gera

a distorção de formas literárias consagradas para um provável leitor respeitado.

Retomando a afirmação de que o livro é uma espécie de sepultura, temos, em

referência ao uso do nome próprio, na representação de uma vida, a vantagem de o livro ser

um objeto fechado, concluso e mantido com símbolos concretos, visíveis.16

A materialidade

do objeto permite a consulta e serve para confirmar algo como prova, pois o livro está ali,

pronto para ser confrontado em caso de dúvida. As folhas preenchidas e tornadas públicas

estão finalizadas e, com o tempo, fazem-se consagradas (de acordo com o interesse

comunitário) pela leitura, consagrando também determinado(s) olhar(es) sobre o sujeito,

15

Como este trabalho não incluiu nenhuma história dos mortos ou teoria dos atos simbólicos da morte,

presumimos que isto seja uma prática a partir da incorporação do uso do caixão, e da democratização deste e

dos cemitérios dentro dos limites da cidade. 16

O livro seria, nesse caso, a autoridade sobre o caso, pois é a fonte direta, talvez única, do que pensa o

narrador-escritor, e do que ele viveu. Diferente da assimilação de uma tradição, como a “oral” que Benjamin

descreve, valorizando o contador de histórias, para ele, o verdadeiro narrador (BENJAMIN, 1994, p. 201).

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participante da dinâmica social. O livro teria, com isso, vantagens sobre as narrativas orais,

uma vez que a narrativa oral está fadada a desaparecer com a morte do último conhecedor do

relato. Com o livro isso não aconteceria, a não ser que houvesse a destruição cabal de todos os

exemplares e com a morte de todas as pessoas conhecedoras desse texto.

Em seu aspecto funcional, o livro pode ser redescoberto e ressuscitar. Ele sobrevive

mesmo no esquecimento e um dia, se encontrado por acaso e lido de novo ou mesmo pela

primeira vez, consegue restaurar a memória de alguém (a casualidade é um dos pressupostos

da verossimilhança textual, principalmente no caso de Pascual Duarte). A exposição narrativa,

ao transmitir os caracteres biográficos, possibilita a visão de que o sujeito retratado está em

uma presença contemplativa e distante, sentida pela ausência do corpo daquele que dá nome

ao livro.17

Essa visão afastada do seu objeto é uma mediação controlada pela realidade final,

falseada no início, ou simplesmente disfarçada, mas que retoma em todo o seu conjunto a

ideia de ser uma interpretação já de quem narra. No mais, o que importa em narrativas escritas

é ver no livro a possibilidade de servir de meio de informar alguém sobre alguém. É a função

primordial livresca, desde os relatos bíblicos, em que Deus é visto em sua majestade e glória e

o leitor, não podendo ver Deus, deve pelo menos ter a noção da sua grandeza.

O livro, além de economicamente acessível e exemplar para a coletividade, tem a

vantagem da acessibilidade da escrita. Na prática, qualquer pessoa alfabetizada é um autor em

potencial. Sendo assim, cabe a ela decidir se quer ou não registrar sua presença no papel.

Portanto, os narradores-escritores, dispostos a viver dentro do livro em forma de

confissões, no imaginário, em razão do fracasso de suas vidas, objetivam em primeiro lugar,

permanecer presentes, no mundo autoral e, em segundo lugar, por precisarem ser julgados e

justificados na nossa consciência, preferem ser justificados bem mais do que plenamente

julgados. É o caso do já falado episódio no qual Brás Cubas cinicamente se justifica apenas

com a expressão “fui homem” (ASSIS, 1960, p. 170), no desenlace do rápido relacionamento

entre ele e Eugênia, a “flor da moita”.

Contudo, como estamos partindo de regras do universo do livro, mesmo que na ficção,

escrever não significa publicar. São vários os procedimentos de seleção e censura18

para

17

Ecléa Bosi estuda algumas memórias de pessoas mais velhas em São Paulo e destaca como ponto de partida o

pensamento de Henri Bergson e o fato de ele interpretar a memória como um conhecimento mediado pelo

corpo, no momento da rememoração. Mas, como pensar a representação dos narradores já falecidos como

Brás Cubas? A decomposição do corpo, segundo nos parece, pode revelar a decomposição do caráter, quando

se está à frente do sentimento de fracasso ou de ausência. Seu estudo baseia-se nos pressupostos de Bérgson.

Ver: Bosi (1994, p. 44). 18

A respeito desse assunto, recomenda-se ler o excelente ensaio de Michel Foucault, A ordem do discurso, em

que o filósofo trata, entre outros pontos, dos processos de exclusão, entre eles a interdição, e da necessidade

da identificação de uma pessoa para se dar autenticidade e autoridade a um texto (FOUCAULT, 2007).

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determinado texto ser editado e impresso. Porém, há a possibilidade de a leitura ser feita por

alguma pessoa próxima ao original do livro, mesmo (se) não publicado. O argumento da

verossimilhança está em alguém encontrar os manuscritos, ler, resolver publicar, para o acesso

de outros leitores, por achar os papéis importantes para alguém. É o argumento de FPD, em

que existe um personagem identificado como transcritor.

A facilidade advinda de ser o livro um objeto, que se pode carregar para inúmeros

lugares é ainda mais acentuada, quando se leva em conta a questão da intimidade. A leitura

potencializa a aproximação afetiva pelo duplo caráter de sua propriedade. O livro pertence

tanto a quem o escreve, quanto àquele que o compra e o lê. As anotações e juízos de valor

fazem da leitura algo único na vida de cada indivíduo. As relações de empatia ou de inimizade

concretizam esse jogo, no qual o narrador, dono do livro por excelência, procura fazer-se

visível, a seu modo, e compreendido.

A intimidade entre leitor e narrador e as relações resultantes dela passam pelo

discernimento dos problemas inerentes à composição narrativa. No âmbito da teorização da

composição do livro, o primeiro problema a que somos expostos em uma confissão do fim é

entender a dificuldade no planejamento da escrita e a construção do discurso, mediado pela

capacidade do narrador para criar uma unidade potencial que permita ao leitor os meios de

juntar os fatos, depois para construir uma linha reta até chegar ao fracasso final, atravessando

todo o tempo o conjunto das memórias, principalmente no primeiro e nos derradeiros

capítulos, ápices da narrativa. O narrador, pela condição de morto, vê-se livre e com tempo

para escrever, pensa naquilo jamais esquecido, raciocina e delimita o que deve dizer e pensa

como dizer isso ao leitor sem ferir os seus princípios. Por mais que sejam consideradas

ofensa, desrespeito, rebaixamento, as atitudes do narrador Brás Cubas para com o leitor são

verdadeiras provocações, que vistas de forma errada, parecem falsas adulações ao figurino

pseudo-intelectual do leitor invocado.

Cada autor, ao ver-se liberto com a morte (e por isso não dever nada aos vivos), pode,

em tese, dizer tudo sem temer nada. Em outras palavras, a declaração de desprezo por toda a

opinião dos vivos (nessa situação, estão às claras Brás Cubas e Mattia Pascal) é falsa. É ao

mundo dos vivos que se recorre para efeitos de produção de sentido. O altruísmo de ensinar o

próximo sem esperar a opinião dele já seria uma contradição e não coaduna com a verdade. O

motivo essencial não é permitir somente a leitura, mas convencer o leitor.19

O que comprova

19

É com a prática de convencimento que Wayne Booth fala, por exemplo, em apelos retóricos. Tanto Booth

quanto Foucault fazem menção ao uso do comentário. O primeiro para avaliar o que chama retórica da

ficção, e o segundo para investigar a origem do discurso, a representação do autor.

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que, desde o nascimento até a morte, a escrita consiga manter uma unidade pelo fato de, a

todo o momento, em vias de retorno ao título e ainda mediado pela introdução das narrativas

pelos prólogos, ou o próprio fato de, logo nos primeiros capítulos, antecipar o insucesso e

clarificar o contorno da imagem do caráter do narrador, delineado nos respectivos romances

com a tinta da melancolia, a teoria do humorismo,20

ou segundo a lógica de um inculto

homem do campo.

O primeiro ponto para decifrar o morto, analisá-lo e ir contra a sua opinião ou a favor

dela, aparece na dissecação das marcas do estilo composicional, já presentes no título da obra.

Nele, há a interferência de um ser próximo, que provavelmente conheceu o narrador, ou em

outra hipótese alguém mais próximo no tempo ou no espaço em que ele viveu, ou nos dois.

Visto parecer não ser o narrador que outorga o título impresso na capa do livro, de acordo

com a realidade propagada pela ficcionalidade, haveria, assim, um tradutor mínimo e inicial

dos fatos narrados. Um personagem-editor, como o transcritor de FPD.

Como o título é composto com poucas palavras, se bem assimilado, conseguiria

sempre ser espelho e funcionar como padrão ou medida na investigação sobre o discurso do

narrador. Ao considerar o título parte do jogo ficcional que dá vida e voz a Brás, Mattia e

Pascual, e supondo essa interferência de um terceiro elemento narrativo – o personagem-

editor –, além do narrador-escritor e do leitor, teríamos esse ente capaz de realizar a primária

função literária de sugestão de leituras.

Existe em cada romance, caracterizado como uma confissão do fim, o aspecto da

sugestão da leitura em pelo menos dois lugares muito importantes. O primeiro dele diz

respeito ao personagem-editor, que chamaremos de editor ficcional. O papel desse elemento

textual na dinâmica do romance é servir de pista para desvendar o mundo dos narradores. Na

verdade, é a primeira pista, que pode passar despercebida. Porém, a leitura do romance

remeterá sempre ao título, de forma circular. De modo que o leitor encontra as informações

contidas nesse título, começa sua leitura, volta a ele, retorna à leitura e assim por diante.

Vejamos como essa primeira sugestão de leitura ocorre.

Mesmo como uma hipótese, é plausível dizer que um editor ficcional possa ter existido

20

Em 1908, Pirandello escreve seu famoso ensaio “O humorismo”, no qual debate, em primeiro lugar, a ideia de

humorismo no curso da história, e depois propõe uma arte humorística chamada por ele de “sentimento do

contrário”. O humorismo não é uma arte caricatural apenas cômica. Carrega, assim, segundo o conceito

pirandelliano, a dramaticidade de o personagem ter de ser visto e interpretado através de uma máscara. O

conflito da visão interna do personagem em oposição às cem mil imagens e visões dos outros suscita o

problema da necessidade de usar a máscara desenvolvida principalmente no teatro de Pirandello. De acordo

com essa dificuldade de ser visto de diversas formas e assim não ter nenhuma forma fixa e aceitável, Antonio

Candido fala na noção de “verdade plural”, ao citar rapidamente Pirandello no ensaio “A personagem do

romance” (CANDIDO, 2007).

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nos três livros para a escolha do título. Isso faz parte do enredo de FPD e é possível que nos

outros dois romances, para a criação da verossimilhança textual, no uso da aparência do

mundo editorial no universo da constituição das confissões do fim. Em FPD, existe uma

cláusula de um testamento, no qual consta a vontade do proprietário dos manuscritos, em

relação ao “pacote de papéis [...] atado com barbante e rotulado com lápis vermelho dizendo:

Pascual Duarte” (CELA, 1986, p. 12). No livro ainda não publicado existe apenas o nome do

narrador-escritor no conjunto de papéis manuscritos. Em MPBC e em FMP não existe essa

informação. De volta a FPD, o editor ficcional pode representar uma solução interpretativa

para os outros dois romances. Não sabemos quem publica MPBC, por ser um escrito do

mundo de lá da vida. Tomamos conhecimento de que o manuscrito das memórias de Mattia

Pascal encontra-se na Biblioteca de Miragno. Se existe mesmo como personagem esse editor,

receberíamos sua opinião e o modo de entender o problema dos narradores.

Em FPD, o editor ficcional encontra os papéis de Pascual “em meados do ano de 39,

em uma farmácia de Almendralejo” (CELA, 1986, p. 7). O transcritor é quem revisa e publica

o livro, seleciona o que deve vir a público. Nos outros dois livros, as únicas informações que

temos a respeito disso é Mattia Pascal ter deixado suas memórias na biblioteca em que

trabalhou. Em MPBC, nem ao menos temos essa informação. O narrador nega-se a explicar

totalmente o processo de transmissão do livro. Não se sabe quem encontrou os textos nos

casos de Brás Cubas e Mattia Pascal. Os de Pascual Duarte sabe-se que estão de posse do

transcritor.

Se levarmos em consideração a existência do editor ficcional como um dos primeiros

leitores nos três livros, então esse indivíduo da ficção também pode (tentar) manipular o

leitor. Pode fazê-lo, por exemplo, na seleção do que deve vir a público e, em primeira

instância, na escolha do título. Ninguém garante que, além da omissão e seleção de fatos, algo

tenha sido acrescentado à narrativa ou alterado. Acredita-se, de acordo com os padrões de

invocação do leitor, que este vá receber as informações e considerar que o narrador-escritor

usa a veracidade dos fatos no desenrolar da narrativa e que esta venha por via direta da fonte

ao leitor, sem nenhuma alteração. O transcritor mesmo alega ter sido necessário excluir fatos

considerados repugnantes do livro, mesmo depois de afirmar não ter acrescentado nem um til

ou um acento. Então, já podemos desconfiar pelo menos de que a narrativa esteja

intencionalmente incompleta, não só por faltar uma parte, mas por faltar uma parte talvez

necessária ao entendimento do leitor. Sabe-se que Pascual pratica atos repugnantes, mas não

se sabe o quão repugnantes são e quais são os limites do baixo caráter dele.

O editor ficcional seria talvez o primeiro leitor com interesse público e, além do mais,

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bem mais próximo do tempo do narrador, fato capaz de fazê-lo compreender melhor o(s)

objetivo(s) exposto(s) nas memórias e de julgar o modo de levar a público esses textos. Mas,

fugindo das muitas hipóteses possíveis da publicação do livro e da atuação do editor ficcional,

alguém escolheu um título,21

na forma de uma sugestão clara de prender a atenção do leitor e

de iniciar o conteúdo da obra, antes de ser aberta a primeira página do livro. Caso

consideremos a existência desses editores ficcionais para a efetivação do jogo narrativo, estes

seriam importantes também, ao deixarem pistas,22

a ditarem maior veracidade ao texto.

Identificado quem batiza a obra como elemento ficcional, a sua sugestão de leitura está

presente na organização sintática do título. É comum, aos três livros, a presença na capa do

nome do personagem-central antecipado por alguma informação que servirá de guia para a

leitura. Nesse ponto, os autores efetivos (Machado de Assis, Luigi Pirandello e Camilo José

Cela), seguem uma tendência de nominalização antiga, com destaque em romances de

cavalaria, novelas picarescas, e em grande parte da literatura do século XVIII, principalmente

na literatura inglesa. São exemplos os títulos Vida e opiniões de Tristram Shandy, de

Lawrence Sterne (The life and opinions of Tristram Shandy, Gentleman, 1759), ou Moll

Flanders (título em sua forma diminuta, versão em que ficou conhecido), que em inglês é The

fortunes and misfortunes of Moll Flanders, de 1722, e Barry Lyndon, de 1844, que teve pelo

menos dois outros títulos prolongados antes da forma composta apenas pelo nome (o primeiro

deles, quando da sua publicação em fascículos na Fraser’s Magazine, em 1844, The lucky of

Barry Lyndon. O segundo título já aparecendo em dois volumes na sua primeira edição em

livro, em 1852, The memoirs of Barry Lyndon, esq). Estes são, portanto, modelos de

nominalização do título, ao mesmo tempo como uma primeira pista e como sugestão de

leitura proposta pelo editor ficcional. Esse uso do título com o nome vai perder força no

século XX, permitindo que obras como Dom Casmurro, escrita por Machado de Assis e

publicada em 1899, São Bernardo, escrita por Graciliano Ramos e publicada em 1934, e O

túnel, escrita por Ernesto Sábato e publicada em 1948, também possam ser consideradas

21

É claro que se sabe que o autor efetivo deu nome ao seu romance. O que se usa aqui como argumento é o fato

de, no jogo da ficcionalidade, considerar o texto como sendo de um narrador-personagem, um suposto autor,

e, a partir desse argumento, considerar também o romance como um livro com valor confessional. Decorre

disso a possibilidade ficcional de o texto ter sido encontrado e publicado por uma outra pessoa e nomeado

por ela. Assim, teríamos uma intervenção, uma sugestão, e o indício de manipulação de um editor, o qual

poderia ou não selecionar e interferir no texto, censurando, cortando passagens consideradas desnecessárias,

ou ainda acrescentar comentários ou coisas assim. Sobre a noção do desenvolvimento da ficcionalidade, ver

novamente Watt (1990). 22

Essas pistas são, em parte, o que Gérard Genette chama de paratextualidade. Como a construção de romances

por personagens que exercem a função de autores supostos geralmente mistura notas explicativas,

advertências ao leitor e outros meios editoriais, por sua extensão, não se faz aqui uma abordagem

aprofundada com a nomenclatura proposta por Genette, embora se faça alusão ou uso da mesma.

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confissões do fim, mesmo sem trazer o nome do personagem estampado na capa.

Os romances cujos títulos carregam o nome do personagem associado a alguma

informação, como Andanças de Lazarilho de Tormes, novela anônima datada de 1554,

Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, publicado em 1726, A história maravilhosa de Peter

Schlemhl, de Adelbert von Chamisso, publicado em 1814, e outros, podem ser vistos como

demarcadores da atitude do narrador. Olhando o problema apenas do título, existe a ideia da

indicação referencial de um indivíduo, na presença de um delimitador, que serve como uma

prova do tipo de vida ou da situação final, criando um círculo na maneira de se pensar e

definir o protagonista. Enxergamos Brás Cubas como um morto porque ele escreveu um livro

de memórias póstumas. Devemos pensar nas opiniões, talvez extravagantes, do cavalheiro

Tristram Shandy, e o que faz a história da Peter Schlemhl ser maravilhosa. No tocante à

referencialidade da vida de uma pessoa, as confissões do fim são derivações desses romances

e novelas, com a diferença clara da ligação ostensiva com a morte, com o pessimismo,

frustração e derrota no final, sem possibilidade de redenção.

Os títulos23

com nomes de personagens, nos quais aparecem expressões tais como “as

aventuras”, os “infortúnios” ou “memórias”, são abundantes, até por permitirem o uso em

uma mesma frase das indicações do tipo de texto, o objeto de análise, ou das experiências

excêntricas do protagonista. MPBC parece estar próximo e seguir o modelo de Vida e opiniões

de Tristram Shandy. Ou tem a mesma lógica de The memoirs of Barry Lyndon, porém

acrescido da palavra “póstuma”, o que ironicamente diferencia o tipo de escrita e ao mesmo

tempo destaca uma situação controversa, a da escrita de um morto.

Além deles, uma outra forma comum de proposição de leitura do título é a adjetivação

do personagem. Essa caracterização absolutiza, assim, o caso da vida na narração. Dessa

vertente tem-se como modelo um romance francês de 1796, Jacques, o fatalista (Jacques le

fataliste et son maitre). FMP, se comparado com Jacques le fataliste, seria uma inversão de

posicionamento no título, quando este poderia ser “Mattia Pascal, o falecido”, e continuar a

ter o mesmo significado. Na esfera semântica e pragmática, a diferença desse posicionamento

de termos nos faz pensar na estratégia de servir como uma falsa pista, e nós leitores, em um

23

Acerca do título, vale como sugestão a leitura do terceiro capítulo de Seuils, de Gérard Genette. Ele trabalha

questões interessantes, como a divisão dos títulos em temáticos (titres thématiques) e remáticos (titres

rhématiques). Os títulos temáticos destacam basicamente o conteúdo, podendo destacar o objeto central da

obra (primeiro caso, e em um primeiro olhar, o caso dos narradores de confissões do fim). Ou podem destacar

mesmo o desenlace (uma variante do primeiro caso e, pelo que nos parece, em parte, o caso de Mattia

Pascal), um objeto menos central ou marginal na obra (terceiro caso e o caso de FPD), ou ainda ser de um

tipo metafórico como O túnel, de Ernesto Sábato (terceiro caso). Os títulos remáticos são designações

genéricas do tipo de texto e tem no caso de Brás Cubas o gênero “memórias” em destaque (na verdade, um

novo tipo de memórias, que são as póstumas).

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primeiro momento, caímos nessa armadilha, por cultivarmos o tom respeitoso, tal como em

um momento de contemplação na cerimônia fúnebre de um desconhecido. É bem provável

que não seja o riso a nossa primeira reação ao contato, ainda mais se, no plano paratextual, a

capa do livro for preta. Caso haja uma ilustração na capa, aí, sim, talvez possamos ter como

primeira experiência o riso ou um comentário irônico. Ficamos em silêncio, se mantidas as

conveniências quanto às regras de sociabilidade em velórios. Não podemos duvidar ainda da

morte do personagem, justamente por nos apoiarmos no pressuposto de não conhecermos

Mattia Pascal, nem o livro. Sabendo depois que Mattia Pascal não é um falecido, no retorno

ao título, podemos usá-lo para transformar o engano em metáfora de sua morte social. Esse

formato de apresentação de uma falsa pista (Mattia não está morto) encaixa-se no objetivo de

envolver o testemunho no plano da dúvida, esfera a cobrir a imagem metafórica do narrador.

Além de ter o propósito de servir de elemento de sedução (GENETTE, 1987, p. 95-98) do

leitor para este se perguntar, ao deparar-se com a capa do livro e antes de abri-lo e começar a

folheá-lo: quem é este falecido e qual a sua importância?

Se para nós leitores, o que fica mais evidente em um título é o nome de alguém e a

curiosidade de saber quem foi tal pessoa, antepor algo ao nome ganha mais significado, se o

narrador é ainda um indivíduo desconhecido ou alguém com pouco ou nenhum mérito. Temos

a impressão de estarmos sendo seduzidos para escolher o livro por acreditarmos que em sua

construção foram empregadas maneiras para ele ser algo atraente. O título unido à estrutura

do livro pode tornar esse algo aparente em imediatamente agradável ou no mínimo chamativo,

provocante. Dos três livros, FPD é aquele em que isso fica mais evidente, pois, além do título,

a estrutura do livro apresenta o narrador pelas intervenções e acréscimos das cartas de um

pároco e de um militar, das notas do editor ficcional, da carta de envio do manuscrito do

próprio Pascual Duarte, e da cláusula de publicação do testamento de don Joaquín Barrera

López, o personagem que recebe os escritos de Pascual Duarte, sendo provável que haja sido

seu primeiro leitor.

Além do título, existem outros elementos paratextuais que zelam pelo equilíbrio da

lógica da verossimilhança, mas é o título que inicia a retirada do livro do anonimato. Em

FMP, há uma cláusula estranha que falsamente preza pelo anonimato, tendo o efeito

contrário, quando, logo no início do livro, o narrador afirma que escreve para que sirva de

ensinamento a algum leitor curioso. O tipo especificado de leitor remete ao hábito de

personagens afirmarem escrever para o bem do próximo. A alegação de Mattia diz respeito à

utilidade da obra, se esta for capaz de resistir ao ocaso, não sendo destruída nem perdida e

escapando assim do provável desconhecimento ou esquecimento. Diz Mattia Pascal: “deixo

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meu manuscrito, com a obrigação, contudo, de que ninguém possa abri-lo senão cinquenta

anos depois de minha terceira, última e definitiva morte” (PIRANDELLO, 1972, p. 10, grifo

do autor). A cláusula tenta nos fazer acreditar que reza por uma não leitura (mesmo que

temporária) do livro.

A cláusula estipulada por don Joaquín Barrera López em FPD contém algo parecido e

faz questão da permanência no anonimato do livro ou da destruição dos textos antes de sua

publicação. O efeito dessa cláusula parece gerar também o oposto. Tanto que nos diz don

Joaquín Barrera López, o destinatário e proprietário dos papéis com as memórias de Pascual

Duarte:

Ordeno que o pacote de papéis [...] rotulado em lápis vermelho dizendo: Pascual

Duarte, seja dado às chamas [....]. Não obstante, e se a Providência dispuser que [...]

o citado pacote se livre durante dezoito meses da pena que lhe desejo, ordeno a

quem o encontrar que o salve da destruição (CELA, 1986, p.12).24

Outro aspecto importante é a inclusão de dedicatórias por Pascual Duarte e Brás Cubas

em seus livros. Pascual Duarte deixa uma dedicatória a sua mais “valiosa” vítima – don Jesús.

A origem nobre desse personagem foi o real motivo da condenação de Pascual à morte. Brás

Cubas dedica seu livro ao verme que roeu suas carnes frias, decompondo o seu corpo e o resto

de aparência física, elemento ainda capaz de identificar o personagem como humano. Em

ambos os casos, os homenageados com as dedicatórias são, em certo aspecto, os responsáveis

pela condição final dos narradores. Ambas são dedicatórias confusas para o leitor, pois

Pascual mata a pessoa a quem dedica o livro, e Brás dedica o seu ao ser desprezível que

consumiu sem piedade o seu corpo.

Todo esse movimento de inversão de significado, capaz de causar estranheza e

curiosidade no leitor, induz o retorno ao título. Mas este só vai ser atraente se o leitor

conseguir relacionar o título com a condição expressa logo nas primeiras páginas.

A segunda sugestão de leitura diz respeito às frases de apresentação do “eu” narrativo.

Essa sugestão está presente na própria narrativa, em seu início, e é transmitida pelo próprio

narrador, quando sua escrita aparece – o que acontece geralmente quando ele demonstra o que

o motivou a materializar seus pensamentos, em seguida apresentando-se ou apresentando o

livro que se dispôs a escrever.

São elas as seguintes frases: “na qual, eu, Brás Cubas, não sei se lhe meti rabugens de

pessimismo”, “a única coisa que sabia era essa: que me chamava Mattia Pascal”, e “Eu

24

A passagem serve também para manter o jogo com a presença do editor ficcional. Note-se que as memórias

saem das mãos de Pascual e acabam nas mãos de don Joaquín, com o título apenas de “Pascual Duarte”.

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[Pascual Duarte], senhor, não sou mau”. Assim temos para título desse capítulo o “eu”

autorial de Brás Cubas, que sabe que meteu rabugens de pessimismo no livro. Depois temos o

“eu me chamo” de Mattia Pascal, duvidoso por ser uma certeza simples e um outro engano (o

primeiro seria o “falecido” do título), quando o narrador mostrará que sabe várias coisas e

ainda com seus juízos de valor, critica fortemente a sociedade vista na forma de uma prisão. E

por último temos o “eu sou” ou seu inverso (eu não sou) de Pascual Duarte, como tese de

inocência.

Sobre a famosa frase do prólogo de Brás Cubas, quando este define sua obra para o

leitor, além do indício de fracasso camuflado, esse instante de apresentação do livro contém o

momento mesmo do surgimento do seu nome e a consequente apresentação do seu caráter.

Repetindo a citação um pouco mais ampliada, temos: “Trata-se, na verdade, de uma obra

difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de

Maistre, não sei se lhe meti rabugens de pessimismo” (ASSIS, 1960, p. 109). O foco narrativo

centrado no “eu” especificado pela presença do nome lança o leitor na tarefa de decifrar a tese

do uso desse “eu, Brás Cubas”.

Com a declaração do narrador, aliada ao restante do prólogo, nos percalços do

aparecimento do “eu” e do nome próprio, vamos, inicialmente, percebendo interesses de Brás

na admissão de ser o seu livro algo interessante e de realçado valor. Sua fala no prólogo não

tem como escopo, ainda, apresentar-se. Ele se esconde e apresenta em seu lugar o livro. A

atitude narrativa de Brás permite que ele se disfarce, embora, desde já, possamos perceber no

texto a criação de um ponto de incidência da vida do narrador e da existência do livro.

Narrador e obra confundem-se e, no lugar do devaneio do homem-livro, na forma da Summa

Theologica de São Tomás (ASSIS, 1960, p. 120),25

adaptando a metáfora, podemos vê-lo, até

quase todo o percurso literário encerrado em uma espécie de Summa “Galhofeira” ou Summa

“Melancólica”.

Na escolha de destacar no prólogo o livro e o estilo de escrita, falando de estilo no

sentido de conjunto de características textuais, temos o reflexo da identidade do sujeito textual

por ser o meio de reconhecimento imediato – isso se adotarmos uma equação na qual a forma

de agir se iguala à forma de pensar e se expressar. Prefiguração do personagem, este conclama

o leitor em razão de serem suas memórias algo inédito e com merecimento para ser lido.

Primeiro, por ser o livro de um morto, que adotou a forma livre. Segundo, por ser comparável

com os escritos de Moisés, na Bíblia, na porção chamada de “Pentateuco”. Na comparação de

25

A passagem retratada faz parte do capítulo VII, O delírio. Depois de se ver na figura de um barbeiro chinês o

protagonista sentiu-se transformado na Summa Theologica de S. Tomás.

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ambos, há neste o mérito do sagrado e naquele deveria haver o do consagrado (con-sagrado).

E terceiro, por narrar no livro o próprio delírio, coisa, segundo o narrador, jamais feita antes.

Se Brás usa a frase para mostrar o livro, o leitor, ao inverter os polos de identificação

(livro – autor) para (autor – livro), consegue, não só ver o estilo do livro, mas agora a forma

de vida do autor. A ironia dessa mistura livro-autor está em observar como a frase centrada no

“eu” narrativo vai evidenciar o motivo do fracasso de sua vida, esmiuçado no decorrer da

leitura.

Já Mattia Pascal, em seu livro em vez de se apresentar logo (por ser até então um

desconhecido), ele tenta enrolar o leitor ao máximo, mantendo-o preso no desenvolvimento da

narrativa e, por assim dizer, lendo o livro. Não tem a petulância de comparar-se com grandes

escritores, mas deseja ser lido. Mattia Pascal mergulha na figura do filósofo burguês, cria duas

premissas26

sobre o conhecimento – fórmulas deixadas ao leitor para ter inicialmente uma

ideia errada sobre o narrador –, enche os primeiros capítulos de comentários e mostra o seu

pensamento sobre os aspectos de composição do livro, em relação aos aspectos literários da

época. A primeira premissa – saber apenas que se chamava Mattia Pascal – justifica a falta de

clareza e a embromação do narrador.

Com o elemento escolhido para compor o título desse capítulo, o “chamar-se”,

imagina-se que fará o leitor duvidar dessa informação. Difícil existir alguém que só saiba o

seu nome (a não ser que Mattia tenha sofrido alguma espécie de amnésia, e este, com certeza,

não é o seu caso). Em seguida, ele vai gastar um capítulo inteiro para levar o leitor a aceitar

como valiosa a sua proposta de leitura, de perceber por que ele sabe somente isso, ou de

compreender (o leitor, nesse caso) o modo como se deve ver uma outra pessoa. Se o narrador

mesmo não sabe de muita coisa, logo o leitor deverá saber menos ainda, e é essa a ideia

mestra da prática reflexiva do “falecido”: tomar consciência de quem ele é. A frase de

identificação de Mattia Pascal servirá para o surgimento dos acontecimentos e o desfecho

sempre irônico dos fatos.

Em FPD, logo no capítulo inicial, ele se apresenta da seguinte forma:

Eu, senhor, não sou mau, embora não me faltassem motivos para sê-lo. O mesmo

couro temos todos os mortais ao nascer e no entanto, quando vamos crescendo, o

destino se compraz em variar-nos como se fôssemos de cera e em destinar-nos por

sendas diferentes ao mesmo fim: a morte (CELA, 1986, p. 15).

26

A primeira premissa é: “Uma das poucas coisas e, talvez mesmo, a única que eu sabia ao certo era esta: que

me chamava Mattia Pascal” (PIRANDELLO, 1972, p. 9), e pode representar uma questão existencial ou de

auto-reconhecimento. A segunda frase – “maldito seja Copérnico” (PIRANDELLO, 1972, p. 12) – é uma

identificação da visão do mundo a partir do relativismo humano, tendo como ponto de partida a descoberta

do astrônomo polonês, que desenvolveu a teoria heliocêntrica, o que mudou a impressão do homem de herói,

supremo, grandioso, para o homem como ínfimo componente de um sistema, insignificante.

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Se atentarmos para o começo da narração, o texto começa justamente com o aparecimento do

“eu” narrativo, da referência respeitosa a don Joaquín (o “senhor”) e a enunciação de uma

negação (“não sou mau”). Ao pensar se Pascual é um assassino consciente ou apenas

impulsivo devemos indagar a respeito do narrador qual a necessidade dessa negação e o

porquê de não começar com uma afirmação. O relacionamento do paratexto introdutório da

narrativa levanta a hipótese de que Pascual Duarte já é um condenado na primeira linha da sua

trajetória escritural. A negação seria então um ato de defesa, embora Pascual Duarte não nos

apresente quem o acusa, a não ser se pensarmos nele mesmo. Após dizer “eu não sou mau”, o

narrador nos deixa duas justificativas complementares – “embora não me faltassem motivos

para sê-lo” e “o destino se compraz em variar-nos como se fôssemos de cera e em destinar-

nos por sendas diferentes ao mesmo fim: a morte” (CELA, 1986, p. 15).

A lógica apresentada no início da narração resume-se à sentença de que ele não

cometeu os assassinatos por vontade própria e, sim, por necessidade. Pascual não teve a opção

de ser bom e já estaria condenado pelo destino desde o nascimento. Na ociosidade da prisão,

Pascual reflete e sentencia: “Há homens aos quais se ordena caminhar pelo caminho das

flores, e homens aos quais se manda jogar-se pelo caminho dos cardos e dos espinhos”

(CELA, 1986, p. 15).

Após a leitura dos primeiros parágrafos, nos conscientizamos de haver um tom de

morbidez a pautar todo o decorrer da escrita. A predestinação à morte apresenta um

pessimismo influente desde o lugar descrito em que nasceu e viveu, presente já no segundo

parágrafo do primeiro capítulo.

Diferente de Mattia e Brás, Pascual vai direto à narrativa, talvez porque não saiba

envolver o leitor pela falta da capacidade de deixar seu texto mais galante. Sobre o povoado

em que vivia ele diz, de imediato, tentando nos deixar perplexos pela comoção do caso,

apelando para a tese da inocência (o que pode nos deixar perplexos,27

além da escolha do

vocabulário, é a forma de construção textual como no exemplo da palavra longura):

“Almendralejo, agachado à beira de uma estrada lisa e longa como os dias, – de uma lisura e

uma longura que o senhor, para seu bem, nem pode imaginar – de um condenado à morte”

(CELA, 1986, p. 15). Mais à frente, o narrador vai começar a deixar escapar a sua falta de

27

Por ser uma análise e por apelar para a interpretação, grande parte do nosso trabalho está no plano

especulativo. Por ser um texto aberto, e aí nos referimos a Eco em Obra aberta (ECO, 1968), o texto poderia

se apoiar na possibilidade de inocência do personagem, mesmo não sendo inocente o narrador. Voltando a

Eco e às previsões, ele fala em textos direcionados para se pensar de determinada forma. Por isso usamos

ideias e frases como “nos deixar perplexos”, pois é a atitude que os leitores, em sua maioria, poderiam

assumir.

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domínio sobre a linguagem, até expor nela a brutalidade do seu modo costumeiro de agir,

reflexo de um espírito angustiado e agressivo, sendo a brutalidade uma imposição dos

costumes da vida do narrador e uma forma arcaica de se mostrar como homem.

A inconformidade do narrador com sua condição de pobre o faz alegar ser

incompreendido na verdade das coisas. Sua insatisfação é movida pela vontade de viver bem

e livre, talvez com os mesmos direitos de um dom espanhol – o don –, um homem honrado.

Para exemplificar o desnível entre o camponês e o nobre, a zombaria da primeira esposa

ironiza a solicitação de igualdade entre ambos. “Minha mulher, que fazia graça sobre tudo,

dizia que as enguias estavam roliças porque comiam o mesmo que don Jesús, só que um dia

depois” (CELA, 1986, p. 20). O tom irônico está até em entender a dependência e

intermediação de um elemento animal – as enguias – acima dele, pois temos primeiro don

Jesús, depois as enguias, e só depois o pobre semianalfabeto se alimenta, em um efeito quase

parasitário.

As três narrativas apresentam o problema do narrador logo no início. Ou melhor,

resultado de uma inversão estrutural, o leitor conhece já no início qual é o seu final. A

motivação do leitor poderá ser talvez saber como se deram esses acontecimentos estranhos. O

importante então não é o fim, e sim os meios usados e sofridos pelo narrador para compor,28

com toda a problematização textual refletindo os acontecimentos e as angústias vividas pelos

narradores-escritores. Em vista de tudo isso, seria melhor ou mais justo, então, falar em uma

segunda leitura do título, com o leitor consciente do fim, e perceber (mesmo que timidamente)

que o narrador não é tão inocente quanto parece, podendo-se afirmar que nenhum ser da

ficção entra em defesa da honestidade dos narradores. Brás Cubas não explica o processo da

vinda a público de suas memórias e talvez por isso não tenha um prefácio de outra pessoa

para introduzir suas opiniões e relatos (a não ser Machado de Assis, o criador). Quem seria

capaz de escrever um prefácio para um livro de um morto que, não se sabe como, veio ao

mundo? Um outro morto? Qual vivo estaria a favor ou sairia em defesa de Brás Cubas?

Mattia Pascal, crítico da atitude literária de pormenorizar a narração, isolado em uma igreja,

não tem um prefaciador, nem mesmo seu amigo, o padre Elígio Pellegrinotto (incentivador de

Mattia na escrita) é capaz de escrever uma simples nota a seu favor. Ou o padre não quer se

arriscar a desmentir o falecido, ou Mattia mesmo não aceita a intromissão da pretensa verdade

de terceiros, justo por ser ele – o narrador – o detentor da verdade. Apenas em FPD temos a

28

Para Saraiva (2009, p. 59) “o narrador desvia a atenção do objeto proposto – a revelação de uma vida – para

concentrar-se no processo narrativo. [...] Brás Cubas [...] prestigia o nível do discurso em detrimento da

história, fazendo com que o interesse, voltado para a sequência dos episódios, seja truncado, infletindo sobre

a retórica do narrador”.

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intromissão escrita de terceiros.

Em consideração imediata ao assédio irônico e mal-intencionado, é preciso entender

que o leitor, por não dever confiar totalmente no narrador,29

na tendência de deixar de ser um

leitor fiel, distraído ou só entediado com os fatos do mundo, migra para assumir o papel de

curioso e se transformar no leitor consciente. A expressão “leitor curioso” está presente na

narrativa de FMP, e depois em MPBC. Ao se falar em leitor consciente, recomenda-se que

esse leitor deva duvidar em primeiro lugar não das informações, mas da forma como estas são

transmitidas. Já sabendo do intuito de influenciar por meio de apelos retóricos, ao receber as

informações, o leitor deve posicionar-se, se é capaz, duvidando dos comentários do narrador.

São os comentários que anulam a neutralidade e dá-se a entender, a cada comentário, o jogo

intencional do narrador-escritor. Veremos, nos capítulos desta pesquisa, que ele não escreve só

para passar o tempo e muito menos escreve com o intuito de compreender-se melhor. Nesse

caso, a dúvida resulta de provas contra o narrador, dadas pelo narrador mesmo e pelo editor

ficcional.

A segunda sugestão de leitura é apresentada diante do título, confirmando ou

rejeitando o seu poder. Caso o narrador deveras não tenha a mínima noção de como foi

publicado o livro, ele deixa, mesmo assim, sua dica, sua pista, seu convite para o leitor

descobrir se ele fala a verdade ou não.

O leitor, portanto, deverá armar-se igualmente para saber se o narrador fala ou não a

verdade e, em momentos nos quais podemos pensar que o narrador simplesmente não está

dando a mínima a ele, presenciamos que, ao contrário, a concordância do leitor é o seu maior

desejo. Os finais melancólicos das narrativas de Brás Cubas e Mattia Pascal atestam isso. Em

FPD as cartas do pároco e do militar mostram a degradação do ser humano e seu apego à

vida, querendo clemência, rebaixando-se estrategicamente para pedir o indulto e o retirar do

castigo certo. Se o leitor riu durante o percurso narrativo, o final é um território para

compadecer-se do papel do narrador.

É nesse ponto que o narrador desvenda todo o seu paradoxo. Ele quer dizer, mas não

pode dizer por questões morais e jamais vai conseguir “desnudar-se”30

realmente e

29

Nem duvidar em tudo dele. “Não é que Brás Cubas esteja sempre mentindo. Porque se assim fosse seria fácil

para o leitor, mas a narrativa também não se sustentaria. Não é assim, entretanto. Brás Cubas não mente

sempre, embora às vezes o faça descaradamente [...] ” ( FACIOLI, 2002, p. 94). 30

Na obra de Pirandello existe a presença clara do termo “nu” no decorrer do seu teatro e em sua narrativa.

Estar nu, mostrar-se como se é diante de um espelho, é o tema de Um, nenhum, cem mil, último romance

publicado pelo autor. O conjunto de peças teatrais de Pirandello foi denominado por ele de “máscaras nuas”,

pela razão de Pirandello falar muito em tirar a máscara, desmascarar-se e ficar nu na frente de quem nos vê e

de como esse sentimento é capaz de causar constrangimento para quem atua, no palco ou na vida. E o tema

da escrita e do narrador-escritor serve de exemplificação, em Serafino Gubbio, operador e no próprio O

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desmascarar-se para o leitor. Por maior disposição que tenha em contar sua vida, o narrador

tem escrúpulos de dizer tudo, principalmente quando as informações possam servir contra ele

mesmo, ou no momento em que o leitor, entendendo a prova, possa julgar a moral dele.

Para todo discurso há uma ordem. Pensando nisso, Michel Foucault consegue

sistematizar a estrutura textual a partir de condições, pensando na importância dos valores

tradicionais na elaboração de qualquer fala. “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer

tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não

pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2007, p. 9). Aplicando essa forma de ver o

sistema de produção discursiva, incluindo o dito e o não-dito, até o interdito, encontramos um

explícito movimento autodefensivo, de preservação da imagem. Os narradores-escritores se

aproveitam disso e, no que consta ao leitor consciente, este acaba por gerar um movimento de

defesa também, ao ler o livro e imaginar possíveis tentativas de enrolação feitas pelo seu

autor.

Mattia Pascal não jura dizer a verdade, mas ele diz, em lugar disso, estar “fora da vida,

logo, sem obrigações nem escrúpulos de qualquer natureza” (PIRANDELLO, 1972, p. 15).

Porém antes ele usa expressões de alegação de veracidade no primeiro capítulo tais como “é

meu dever avisá-lo” (PIRANDELLO, 1972, p. 9) e “posso testemunhá-lo” (PIRANDELLO,

1972, p. 10). A construção inteira da primeira expressão é: “Mas é meu dever avisá-lo de que

não se trata, propriamente, disso”. O uso do advérbio vai contra o narrador na sua falta de

clareza. O dever do narrador de avisar o leitor, em contrapartida e por ironia, atesta a nosso

favor.

A segunda expressão comprova ser o narrador capaz de repassar o acontecimento tal

qual ocorreu, pois ele pode testemunhar e, lógico, ele viu o que aconteceu. Enquanto o leitor

está distanciado do ocorrido, o narrador extrapola sua autoridade, passando facilmente para o

autoritarismo. Por enquanto, o leitor nada pode fazer senão ler e esperar.

Por estarem separados dos vivos e não tendo na teoria que provar mais sua inocência

ou retidão moral, todos deixam evidências de que o que importa para eles, narradores, é

somente mostrar os fatos, esclarecê-los. Em MPBC, no prólogo, o narrador vira-se para o

leitor e diz que a “obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te

não agradar, pago-te com um piparote, e adeus” (ASSIS, 1960, p. 109).

O final da citação serve para o leitor desatento pensar que, de um jeito estranho, Brás

Cubas importa-se com ele e deixa-lhe o poder aparente da decisão de acreditar ou não,

falecido Mattia Pascal, para mostrar a dificuldade do indivíduo em “dizer tudo” e em ser entendido.

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respeitando até a indiferença do leitor. Em sua escrita, Brás não implora ao leitor, embora

sempre apele para ele. Mattia Pascal nos deixa um “Pois bem, faça-o à vontade”

(PIRANDELLO, 1972, p. 9). Assume não se importar com moralismos e julgamentos, mesmo

com um arrebatamento de seguidores, lamentadores ou pessoas com afinidades de ponto de

vista, e tenta evidenciar isso por se achar “numa condição tão excepcional” (PIRANDELLO,

1972, p. 15). Sua condição é suficiente para o narrador fornecer somente “as notícias que

reputar necessárias”, já sabendo que “algumas delas” não lhe “farão muita honra”

(PIRANDELLO, 1972, p. 14).

Pascual Duarte se aproxima dos seus antecessores, e diferencia-se deles por

demonstrar se importar com o leitor. Com menos intensidade e bem mais cerimônia ao redor

de don Joaquín, a semelhança está em alegar em não se importar mais com a decisão da

opinião do leitor e deixa-o (em teoria) livre para pensar o que quiser. Ainda põe o leitor de

sobreaviso da sua condenação e pena. O narrador dispõe-se a fazer uma confissão pública e

adverte o leitor de que a memória não é o seu forte. Inclina-se “a contar algo do que lembr[a]

de [sua] vida” e “a contar aquela parte que não quis apagar-se em [sua] mente e que a mão

não resistiu a traçar sobre o papel” (CELA, 1986, p. 9). O narrador Pascual Duarte, depois de

confessar ter cometido crimes, pede perdão de Deus e se diz resignado com seu destino:

Confio que o senhor saberá entender o que não lhe digo melhor, porque melhor não

saberia. Estou agora pesaroso por ter errado meu caminho, mas já nem peço perdão

nesta vida. Para quê? Talvez seja melhor que façam comigo o que está disposto, pois

é mais que provável que se não o fizerem eu volte a reincidir no erro. Não quero

pedir o indulto, porque é demasiado o mal que a vida me mostrou e muita minha

fraqueza para resistir ao instinto (CELA, 1986, p.10-11).

No entanto, no final do livro o guarda Cesáreo Martín desmente o narrador. Ele acrescenta

com sua carta que à “vista do patíbulo [Pascual Duarte] desmaiou e, quando voltou a si, tais

berros lançava de que não queria morrer e de que o que faziam com ele não era justo” (CELA,

1986, p.145). O narrador aceita a sua pena nos relatos, antecipando que vai morrer, e no final

demonstra em ação justamente o contrário da resignação de condenado.

Falar de um jeito e agir de outro é prática recorrente em textos tecidos em torno do

problema do modo de configurar a escrita, e de como essa escrita, suscitando a dúvida,

evitaria deixar o leitor em relação de confronto iminente com o narrador e sua narração. A

tarefa agora de aceitar a mensagem do narrador ajusta-se na averiguação dos fatos relevantes

para uma avaliação de sua índole, e do(s) seu(s) respectivo(s) objetivo(s) ao escrever. Em

suma, no levantamento do estilo do narrador.

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1.1. DO PONTO DE PARTIDA E O SEU CONSTANTE RETORNO: A NECESSIDADE

DE SE ENTENDER O TÍTULO

Em MPBC, a indicação de que existe um tipo de escrita póstuma é explicado na

introdução do livro, no prólogo chamado de “Ao leitor”. Brás Cubas afirma ser o seu livro

“obra de finado” (ASSIS, 1960, p. 109), dando mais realce a sua escrita. No capítulo primeiro

acrescenta sua inóspita condição de “defunto autor” (ASSIS, 1960, p. 111). No decorrer do

romance, pelo tom de ironia e melancolia a atravessá-lo, precisamos sempre pensar nas

memórias de Brás Cubas no sentido imprescindível de ser um livro escrito por um morto, mas

não um morto satisfeito com a vida que teve.

A estranheza do fato em si (morto não escreve) acentua sua originalidade (um livro

que começa no fim, a mistura de uma gama muito grande de informações e textos e, mesmo

assim, manter uma unidade) e o seu completo domínio (um morto, pelo fato de já ter vivido

tudo, não deve ficar mudando de opinião). O personagem recebe, de tão diferente que é, a

alcunha de um “autor particular” (ASSIS, 1960, p. 107), no prólogo de Machado de Assis

para o seu romance. O autor efetivo alega que nós estamos diante de um livro de alguém

(Brás Cubas) livre do moralismo dos vivos. Um livro independente, único, de um personagem

diferente. Porém, o livro vai se apresentar não tão independente assim. A alegada

independência é transitória e aparece somente no início do livro, pois Brás está preso ao

mundo dos mortos por ser morto, e preso ao mundo dos vivos na sede de (tentar) conquistar

(ainda) honras e glória ao seu nome. Brás é vítima da opinião pública. Ele pode ser livre para

dizer o que pensa, mas não o faz em sua totalidade (é bom sempre lembrar a afirmação de

Foucault n‟A ordem do discurso, quando ele fala em não poder falar tudo). Em vez de dizer,

na maior parte do tempo, ele sugere com sutileza o que pensa ser a “verdade”. Usa capítulos

digressivos, tenta distorcer os fatos e ludibriar a opinião alheia. E ainda alerta com cinismo o

leitor que o texto foi feito com “a pena da galhofa”.

Próximo de MPBC, FMP traz no título também a alusão à morte. No entanto, não há

memórias de um defunto autor e, sim, de um autor supostamente falecido. Mattia Pascal não

está morto ainda no tempo da escrita do romance. Na condição de (falso) morto, envereda-se

pelos caminhos da narrativa. É, pois, o título uma fala incoerente, quando não manifesta a

verdade. O título é uma demonstração, por ser o primeiro engano do livro, da grande

desventura do narrador. O livro inteiro é repleto de enganos e desventuras, a narrativa do

passado cheia de desmentidas. Segundo nos parece, esta seria a proposta do livro: o leitor será

enganado diversas vezes, se confiar em tudo no narrador, em um jogo de atração na busca

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pela verdade.

Mas quem propõe isso pela primeira vez não é Mattia, e sim quem nomeou o livro. É

Pirandello, ou, no que nós propomos, na hipótese do editor ficcional. Ele quer que vejamos a

grande ironia dos fatos, ainda mais quando uma pessoa comum, sem créditos de um santo

(coisa que Mattia não pode ser) e de hábitos medianos, não pode ressuscitar, voltar ao mundo

dos vivos sem mais nem menos. Caso o fizesse, ao exigir seus direitos de marido, tudo se

transformaria num gigantesco emaranhado de problemas insolúveis (aguentar a sogra,

desfazer o relacionamento de Pomino com a esposa – que é a esposa de Mattia, lutar para

registrar os supostos filhos, trabalhar dignamente e pagar todas as dívidas acumuladas com

credores). Daí Mattia ter de aceitar e permanecer com a fama de falecido.

O título dado às memórias de Pascual Duarte é mais controverso ainda. FPD não tem

como centro da narrativa a família, e sim o fracasso de Pascual Duarte. O centro é ele, o

narrador. Na verdade, se o leitor olha para a família como centro da narrativa e para Pascual

Duarte como ponto paralelo de referência, ele pretende descobrir quem é essa família e qual o

papel de influência de Pascual no grupo. Nas informações do livro, encontramos o contrário e

é a família a fonte de influência. Um título mais adequado ao conteúdo do livro, colocando

Pascual no centro da questão poderia ser: Pascual Duarte e sua família31

. Assim dar-se-ia o

foco à figura de Pascual Duarte e a família, inversamente, serviria como ponto de referência

na atuação do protagonista.

1.2. O “EU” ESCRITURAL: ESTRATÉGIAS E INCOERÊNCIAS DO MUNDO

PARTICULAR DA NARRATIVA

Vistas as duas sugestões de leitura, o título, em contrapartida, é um alerta, por focalizar

como o narrador atravessa o problema do fracasso por meio da sua narração. É uma chamada

de atenção para o leitor perceber a parcialidade do narrador e que é possível que ele ao

escrever se condene, entregando os pontos da verdadeira motivação da escrita. Vejamos como

isso ocorre.

MPBC é a obra de um morto fracassado, nada louvado pelos vivos, a não ser porque o

defunto antecipadamente favoreceu do ponto de vista econômico a um ou dois conhecidos,

sendo que os favorecidos só retribuem os favores, como no caso do personagem que compõe

um discurso em homenagem ao falecido, no dia do seu enterro, pelo favorecimento

31

A versão em inglês segue esse padrão e se intitula Pascual Duarte and his family.

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econômico. Toda a autonomia da autoria galante de Brás é, na verdade, um belo disfarce, que

cai quando o narrador desdenha o poder de opinião do leitor. Brás Cubas é um narrador morto

preso ao mundo dos vivos, mas de qualquer jeito, é um morto e não pode fazer mais nada (a

não ser escrever).

Mattia Pascal não é um falecido de fato, somente o é enquanto cidadão. Sofre a morte

da identidade civil. E esse erro de documentação possibilita ao narrador viver às margens da

sociedade, vagando entre os outros vivos, insepulto e, por isso, mal-resolvido, sem poder

retornar à vida anterior e sem poder chegar ao Paraíso ou ao Hades, que é o mundo dos

mortos. Mattia mesmo não resolve em qual mundo está e acaba por se aproveitar da situação.

Só lhe resta isso em sua condição amórfica. Essa acomodação típica resulta na fuga das

responsabilidades civis, além de o deixar prostrado diante da vida. A ele também não resta

mais nada a fazer, senão escrever.

No caso de Pascual Duarte a proposição para o leitor já dos primeiros capítulos está na

razão de a família de Pascual Duarte ser o próprio problema para ele. O problema começa e

termina com a família. Não expõe sua intolerância, ódio ou insatisfação para com os

opressores por não poder condenar quem é superior a ele. Inconformado com o mundo rural

espanhol, atrasado nas suas particularidades, a alma seca do personagem acaba por favorecer

e perpetuar os valores da injustiça social no livro. Para ele, injusto é nascer pobre. Não é

injusto nascer rico e manter as diferenças de classe.

Em alguns parágrafos anteriores comentou-se sobre o sentido da identidade ao redor

de um “eu” no título do livro. Falou-se também em uma segunda sugestão de leitura. De

alguma forma, a apresentação do “eu” narrativo de cada narrador pode, salvo engano, passar

confiança ao leitor.32

Somado os fatores identidade e sugestão, temos, nas confissões do fim, a

supervalorização dos traços autobiográficos dos narradores-escritores. A justificativa acontece

quando estas são narrativas em que o reconhecimento do “eu” é notório e a predominância

subjetiva permite avaliar um indivíduo escritural, distante e não existente fora do livro. As

características narrativas adotadas pelo aparecimento do “eu” escritural mostra, pelo discurso

sorrateiro ou mesmo escancarado, um sujeito egocêntrico ao extremo.

De acordo com o intuito narrativo de um livro de memórias de posição confessional,

no qual há o egoísmo centrado na sobrevivência do “eu”, temos a intromissão constante do

narrador no uso do comentário em certo ponto perverso, mal-intencionado, malicioso e o fato

de, a todo o momento, o narrador tentar defender-se e jurar ser inocente, demonstrando o

32

Na verdade, apenas convencer o leitor.

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contrário, mostrando-se como um indivíduo desajustado e ainda com o pensamento apenas de

usar o leitor para legitimar suas atitudes contrárias ao convívio social, dentro de padrões

éticos estabelecidos de suas épocas. Além disso, os narradores arrogam uma autoridade

proveniente do mundo dos mortos, possível pela soma e totalidade da vivência e da

experiência sofrida ao longo da vida. Mas o mundo dos mortos nesse ponto serve como forma

adversa ao mundo dos vivos, contradizente ao processo humano da convivência rodeada de

parâmetros morais, pois quem não conseguiu viver com louvor é justamente quem jura

possuir autoridade para falar de padrões morais e deixar claro o seu ponto de vista

tendencioso sobre experiências e circunstâncias ético-sociais.

O projeto narrativo confessional é fruto imediato de algum impedimento. O fracasso

desponta após algum episódio notório – Brás Cubas alega que sua morte teve por motivo uma

ideia fixa sobre a capacidade de produzir um remédio contra a hipocondria. Mattia Pascal não

pode se casar com Adriana e nem pode retornar e assumir seu antigo casamento. E Pascual

Duarte matou a mãe e don Jesús, atrelando ao seu destino o imoral atentado contra a família e

a ordem estabelecida na sociedade, duas entidades quase sagradas e invioláveis. Matar a mãe

e um nobre ofende e fere a moral social. Não há como o narrador libertar-se, somente lhe resta

a possibilidade de explicar-se perante o leitor.

Através dos casos de fracasso por esses impedimentos de vida, vemos a lógica de o

livro remeter também a outros fracassos influentes e secundários: a perda do casamento com

Virgília, em MPBC, a pobreza e o impedimento de ser um rico, em FMP, e os constantes

acessos de cólera, a mancha na honra de marido e de pai, o rebaixamento econômico, moral e

social, em FPD.

O fracasso, sentimento negativo de privação, vale-se de uma via de valores assumidos

de conveniências aparentes. O papel de amante interessa a Brás Cubas, porém o prejudica na

exposição da sua imagem, caso o relacionamento seja descoberto e as provas da imoralidade

conjugal de Virgínia venham à tona. A falta de sorte de Mattia Pascal em não ter dinheiro

quando casou e depois de não poder casar, quando conquistou boa fortuna, pode parecer opor-

se à lógica de casualidade. Mas o que se observa nele é sempre um ato espontâneo de procurar

justificar os seus erros, tirando sempre o melhor proveito, desde que a situação sirva para a

manutenção de sua insustentável liberdade. Também a visibilidade do engano do leitor ao ler

e acreditar no narrador, ao pensar no criminoso confesso Pascual Duarte, talvez deixe a

certeza do grande problema apresentado na superfície da leitura, o qual deve ser visto como a

pobreza material, lado a lado com a influência do destino. Mas, se fosse apenas a pobreza

material ou a influência do destino, qual seria a função social da morte de sua mãe? E qual o

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verdadeiro motivo na morte de don Jesús? Inveja, vingança ou luta de classe? Logo, conclui-

se, o erro do narrador está em pensar atribuir o fracasso de alguém a algum fato específico.

Ao pensar na ênfase do fracasso de uma vida – a impossibilidade de viver –, e no

determinante causal desse fracasso, deve-se pensar, após a conclusão da leitura dos livros de

memórias, que os narradores de confissões do fim revelam sempre fracassar várias vezes, pela

razão de não poderem viver dentro de padrões e de seguir regras de bom convívio e

respeitabilidade estabelecidos. Do rico ao pobre, passando pelo pequeno burguês, os

narradores sofrem influência do meio e de suas condições sociais, mas são dotados de poder

de escolha, superando o determinismo lógico e até o pragmatismo dos romances de classe ou

de cunho político-ideológico. Mattia exemplifica esse pensamento sobre os “ismos”, ao

brincar com o leitor, logo no primeiro capítulo, quando fala do fato de conhecer os seus

antepassados “nada louváveis”. Pascual não mata uma vez apenas, sendo o responsável

confesso pelos assassinatos de algumas pessoas. Ele é agente de outros tantos atos de

agressão, mesmo nos momentos nos quais ele é (ou poderia ser) relativamente feliz.

A escolha do título deste capítulo procurou demonstrar a construção do caráter do

narrador desde o surgimento do nome e a forma como ele se apresenta mediado pelo discurso

da “verdade”. De acordo com a proposta apresentada no aparecimento do “eu” narrativo, é

pertinente fazermos ainda a seguinte pergunta: a escrita de narradores-escritores em

confissões do fim é uma tentativa deles de compreenderem a si mesmos? Ou seria uma forma

(velada ou explícita) de se auto-afirmarem em uma tentativa desesperada de superar ou

escapar à morte? Com a primeira hipótese, haveria a possibilidade de mudança de conduta

(mesmo no caso de Brás Cubas), ainda que a mudança de conduta não represente a mudança

da situação. Brás já está morto, embora pudesse abandonar a atitude sarcástica de se

vangloriar de seus feitos, ou deixar de fazer comentários maldosos, cínicos sobre outras

pessoas.

Em FMP, o narrador poderia “ressurgir”, trabalhar e constituir família, e, inclusive,

poderia assumir “fora da lei” o seu suposto filho. Não existe uma tentativa de lutar contra, de

reagir. No caso de Pascual Duarte, mesmo condenado à morte, ao menos poderia morrer com

dignidade, ou tentar se aproximar da sua esposa e da sua irmã. Ao escrever o seu livro de

memórias, Pascual Duarte não acrescenta nada sobre Esperanza, nem nos avisa do envio de

alguma carta a outras pessoas.

Desse modo, os três, cada um a sua maneira, não demonstram ser confiáveis, têm seus

discursos comprometidos, sem força de vontade de superar a situação do fracasso,

acomodando-se o melhor que podem atrás do livro de confissões. O rico herdeiro, o quase

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bibliotecário e o pobre coitado camponês serão conhecidos mais claramente e se apresentarão

melhor ao falar da família, tema já de outro capítulo.

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2. MARCAS DE UM TEXTO: O PROBLEMA DA IMAGEM DO

PERSONAGEM

Cada vida conquista não uma morte qualquer, mas a sua

própria morte, aquela que ao longo do caminho soube

merecer.

Bontempelli

O capítulo anterior tratou de questões inerentes à necessidade da confecção do livro,

no projeto narrativo dos narradores-escritores de confissões do fim. No desenrolar do

capítulo, foram apresentadas três situações básicas, contemplando sempre a marca da

identidade – o nome –, dando-lhe realce, confundindo sua presença com a presença e a

constituição do livro. A confluência subjetivo-livresca-confessional, pela qual se situa o

narrador, é uma inferência capaz de levar o leitor a identificar o indivíduo pela composição da

identidade narrativa e o respectivo e possível desenho do caráter do narrador. Portanto, a

instauração e posterior sustentação da forma física e psicológica são necessidades que se

equivalem, para nós, à obrigatoriedade de enxergar, o tempo todo, quem nos transmite os

fatos, sua escrita e os próprios fatos apresentados. Todo e qualquer leitor tem diante de si a

tarefa de julgar se o narrador realmente é como ele se descreve. Este capítulo trata dos

aspectos do estilo da escrita do narrador-escritor de confissões do fim: as marcas atuativas,33

que definem o indivíduo central da narrativa, sujeito e objeto dela, e a identidade narrativa

mediada pelos comentários e apelos retóricos.

Tomemos agora como ponto de partida um fato paratextual. Genette (1987) chama

de peritexto (péritexte) a categoria espacial que envolve o texto mesmo, e tudo que está

diretamente ligado a ele, como títulos, prefácios e notas. É comum ver em romances ou

outros textos ficcionais a inclusão do peritexto na ficção, para dar mais veracidade ao

narrado. FPD é um exemplo bem nítido disso. Sissa Jacoby, ao analisar o romance, destaca

33

Embora haja na língua portuguesa a palavra “atuante”, a opção pelo neologismo “atuativa” justifica-se por

destacar (pelo menos esse é o nosso objetivo) que, ao relembrar o passado, as marcas delimitadoras da forma

de agir do personagem o tornam presente, no nível de atividade ao tempo da leitura. As marcas o fazem

sujeito ativo, como se ele tivesse acabado de cometer erros ou acertos. Essa expressão busca entender o

sujeito das ações em sua completude, no pensamento de que, mesmo podendo tecer um destino paralelo, ou

sua forma de atuar, ele não o faz por motivos diversos, entre eles, a vontade de reconstruir seu ego pela

narração do seu passado.

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a presença de quatro narradores, aos quais chama de instâncias narrativas: o transcritor,

Pascual Duarte, o pároco e o militar. O primeiro exerce sobre o texto a autoridade de posse,

introduz o relato e dá voz a outros dois narradores: o padre don Santiago Lurueña e o

guarda civil Cesáreo Martín. Esses dois últimos estão posicionados na obra diferindo de

opinião um do outro. O padre destaca o fato de Pascual ser uma vítima, e o guarda condena

Pascual. O efeito do contraste nos permite realmente pôr em julgamento a figura do

narrador, ainda que sob pontos de vistas sugeridos por outros personagens:

Ainda que perdendo em persuasão, pois nenhum dos três participou da história narrada,

as vozes do transcritor, do padre e do guarda civil, mesmo que em resumidas notas e

cartas, procuram estabelecer um contraponto à auto-imagem apresentada por Pascual

Duarte. (JACOBY, 1994, p. 44).

Toda essa arquitetura textual é a forma que Camilo José Cela usou para chamar a

atenção do leitor e envolvê-lo. Assim, uma carta, um prólogo, uma advertência de outro

personagem presta-se ao serviço de esclarecer algum fato ainda não resolvido ou serve

para introduzir (a polêmica n)o texto de ficções narrativas (GENETTE, 1987, p. 10).

Além da associação de opiniões na arquitetura textual, outro aspecto possível, de

grande importância para a análise do conjunto da obra, são as modificações do texto.

Talvez o exemplo mais claro esteja na primeira edição de MPBC, no capítulo I, no qual

constava em forma de epígrafe uma citação em inglês,34

que, traduzida, significa: “Não é

meu intento criticar nenhum fôlego vivo, mas a mim somente, em quem descubro muitos

senões” (ASSIS, 1960, p. 111). Qualquer leitor, maduro ou não, depois de ler alguns

capítulos, vai descobrir que é hábito comum de Brás Cubas criticar sempre, pouco

elogiando as pessoas envolvidas na narrativa. Caso permanecesse a epígrafe, a afirmação

demonstraria para um leitor atento, pela força imediata do efeito contrário do dito, desde as

primeiras frases, uma definição explícita de como enxergar o narrador, facilitando por

demais a vida desse leitor. A retirada da epígrafe aumentou a zona de liberdade da leitura,

possibilitando um momento mais individualista para avaliação pessoal, no reverso da

constante fluência da atitude do narrador, ele sempre a se apresentar em sua soberania de

homem justificável. Por outro lado, a retirada elevou o nível da nossa responsabilidade nos

momentos de leitura e decodificação das informações no seu conjunto, isso exigindo maior

atenção e envolvimento da nossa parte.

Referindo-se à “manipulação do estado de espírito do leitor”, Booth (1980, p. 216)

34

“I will chide no breather in the / world but myself; against whom / I know most faults”. Shakespeare, As you

like it. act. III, sc. II. As informações são da nota de rodapé da edição aqui utilizada.

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destaca que “os autores estão, com efeito, a exercer cuidadoso controle sobre o grau de

envolvimento ou distanciamento do leitor em relação aos acontecimentos da história”. Em

referência à afirmação de Booth, comparando-a com a retirada do falso aviso na epígrafe, a

mesma situação levanta uma questão bastante interessante para entendermos uma confissão

do fim, e, quem sabe, os demais livros de narradores em primeira pessoa, confessando

algo.

No dever de enxergar bem os narradores, e imbuídos da vontade de julgá-los,

poderíamos chamá-los de egoístas, ávidos pelo sucesso, incultos, enganadores? Deveríamos

nos aproximar da atitude de críticos que já os julgaram? Ou deveríamos permanecer somente

no significado geral da obra, avaliando apenas o processo social, esquecendo e relegando o

narrador-escritor ao papel de pobre coitado, vítima, ou joguete do destino? Ou devemos

ampliar a lista de adjetivos, epítetos e outras tentativas de identificação dos personagens,

sejam elas de rotulação ou não, como aconteceu com Brás Cubas – que já foi chamado de

“brasileiro rico e desocupado” (SCHWARZ, 2000, p. 63), “manhoso” (SCHWARZ, 2000, p.

24), “fátuo” (MERQUIOR, 1990, p. 219) e “defunto estrambótico” (FACIOLI, 2002, título do

livro) –; com Mattia Pascal – já visto como uma espécie de “Orestes transformado em

Hamlet” (CASTRIS, 1992, p. 61, tradução nossa), “vítima-herói da nova consciência

„copernicana‟” (CASTRIS, 1989, p. 141, tradução nossa), “inapto a tudo [...] filho de papai”

(BARILLI, 2003, p. 187, tradução nossa) –; ou ainda com Pascual Duarte, tido como “um

homem cujo evidente gozo seja o sangue alheio derramado” (VICENTE, 1962, p. 25,

tradução nossa)?

No decorrer da narrativa, compete a nós reconhecer a imagem do caráter do narrador,

pensando nele e nas inúmeras limitações individuais e sociais pelas quais ele passa. As marcas

atuativas, em regra, são as constantes necessárias que o leitor usa na formação da equação

para compreender o narrador.

Para efeito de definição, podemos entender as marcas atuativas por meio dos

hábitos frequentes, transformando-os em traços representativos da forma de agir no

passado do narrador, no tempo da ação e da narração. Essa transformação aponta sensações

que se repetem diversas vezes na obra e, mediante um paradoxo, ao mesmo tempo as

imagens de movimento fixam-se na mente do leitor, dando forma a uma imagem estática

exigida pelo próprio narrador-escritor, para tentar entendê-lo como ser existente, humano.

Antonio Candido ressalta que “o problema da verossimilhança no romance depende desta

possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica

a impressão da mais lídima verdade existencial”, e que “o romance se baseia [...] num certo

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tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício” (CANDIDO, 1992, p. 55). E essa é a tese

dos autores efetivos sobre os seus personagens. Não é à toa que nos identificamos com os

casos de vida dos narradores, ou nos sensibilizamos com suas particularidades, bem

próximas às nossas.

Os autores efetivos – Machado de Assis, Luigi Pirandello e Camilo José Cela –, após o

sucesso e o incômodo que suas obras causaram, acrescentaram, cada qual ao seu romance,

uma advertência, uma introdução ou um apêndice crítico, com a finalidade de destacar o

julgamento, não de um ser humano, mas sobre o ser humano. Ou seja, se Pascual Duarte é

culpado ou inocente, se Mattia Pascal é um desafortunado, vítima das circunstâncias, se Brás

Cubas é um representante efetivo da velha sociedade brasileira frente à iminente

modernização de padrões políticos e sociais, todos permanecem com a ressalva de figurarem

como homens e, por tal motivo, precisarem ser avaliados como humanos, com limitações,

servindo de exemplos para se evitar que outras pessoas cometam erros semelhantes.

Machado de Assis deixa um breve prólogo sobre o seu romance e uma importante

frase, no fim do segundo parágrafo, sobre como ele vê Brás Cubas: “De Brás Cubas se pode

talvez dizer que viajou à roda da vida” (ASSIS, 1960, p. 107). Fora esse comentário, Machado

de Assis não entra no julgamento moral de seu personagem, provavelmente por preferir deixar

ao leitor uma escolha livre, fato que ganha mais força no estudo do processo de composição e

exclusão da edição primitiva para a edição definitiva,35

como no exemplo da epígrafe retirada.

No mais, Machado de Assis destaca o aspecto pessimista misturado aos traços do

humorismo, alegando originalidade para com seus predecessores. “Há na alma deste livro, por

mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir dos seus

modelos” (ASSIS, 1960, p. 107). O autor Brás Cubas é chamado de “autor particular” pelas

suas “rabugens de pessimismo” e pela autenticidade de dizer as coisas “conforme lhe pareceu

melhor e mais certo” (ASSIS, 1960, p. 107). Assim, teríamos um narrador mais independente

e mais humano.

Luigi Pirandello não fala especificamente do seu personagem, mas cria um meio de

justificá-lo. Em vez de defender ou incitar o leitor a questionar o narrador, na oportunidade da

publicação da segunda edição de FMP surge um estudo feito a partir de casos verídicos sobre

35

A primeira edição aparece em 1880, em folhetim, na Revista Brasileira. Essa edição não possuía prólogo

algum e, diferentemente das demais, foi escrita com uma epígrafe depois suprimida. A segunda edição,

datada de 1881, é a primeira em livro e foi impressa pela Typographia Nacional. Nela já consta a dedicatória.

A terceira edição foi feita e impressa por H. Garnier, Livreiro Editor, em 1896; a quarta, publicada em 1899

também por H. Garnier, foi a última em vida de Machado de Assis e teve o acréscimo do prólogo de

Machado de Assis. Em todas elas existem modificações, supressões ou acréscimos textuais. Ver nota 1 de

Assis (1960, p. 45-54).

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situações absurdas.36

Discutindo casos retirados de notícias de jornais da época, o autor dava

ênfase a sua tese sobre o humorismo, mostrando como certas notícias poderiam suscitar no

leitor o riso, embora fossem tremendamente tristes para os envolvidos, por tratarem da morte.

Estaria aí a razão de se inserir na segunda edição do livro um apêndice em defesa do autor

Luigi Pirandello e dos seus personagens, entre eles Mattia Pascal, é claro.

Embora não haja um prólogo em defesa do personagem, uma pequena dedicatória

contribui para sabermos sobre como ler o livro e interpretar o protagonista. Em 1908, quatro

anos depois da publicação da primeira edição de FMP, publica-se o ensaio “O humorismo”.

Na folha de rosto do ensaio encontramos, logo abaixo do título, a dedicatória feita “à boa

alma de Mattia Pascal, bibliotecário”37

(PIRANDELLO, 2006, p. 775, tradução nossa). A

opinião desvelada do criador sobre a criatura implica todo um estudo voltado para se fazer

apologia a um tipo de humorismo. Nesse estudo, além da dedicatória, uma explicitação parece

dar mais sentido ao formato risonho da escritura do “falecido”, o qual se consola olhando para

os defeitos dos outros:

Que cara nos deram para representar o papel de vivente? Um nariz feio? Que pena

ter de carregar um feio nariz por toda a vida... Sorte que, com o correr do tempo, já

não mais nos damos conta disso. Os outros se dão conta disso, é verdade, quando

nós chegamos até a crer termos um belo nariz; e então não sabemos mais explicar-

nos por que os outros riem, nos mirando. São tão estúpidos! Consolemo-nos olhando

que orelhas tem aquele e que lábios aqueloutro: e quais nem ao menos se dão conta

disso e têm a coragem de rir de nós. (PIRANDELLO, 1999, p. 171).

Ambos os estudos, “Advertência sobre os escrúpulos da fantasia” e “O humorismo”,

servem para incentivar uma atitude de simpatia e respeito pelo fado de Mattia Pascal e pela

maneira de o personagem encarar a vida.

No prólogo de FPD, Cela faz algumas poucas referências a Pascual Duarte, mais

falando do romance do que do personagem:

Pascual Duarte, por ter passado muito tempo sem mudar de roupa, estava sujo e

quase irreconhecível. Muito limpo, o que se entende por muito limpo, jamais o foi,

isso é verdade, mas tão sujo como andava ultimamente tampouco era seu natural

(CELA, 1986, p. 1).

36

Na época, em 1921, após a encenação de Seis personagens à procura de um autor, Pirandello se vê em meio a

um mundo de críticas e polêmicas, por causa do uso de temas e enredos absurdos como um “falecido-vivo”

ou personagens que realmente estão atrás de alguém para publicar suas lembranças de uma ocasião funesta.

Após o alvoroço da primeira apresentação da peça, Pirandello publica no jornal romano L’Idea Nazionale, de

22 de junho de 1921, um mês e meio depois da estreia do espetáculo, o artigo “Advertências sobre os

escrúpulos da fantasia”. As informações sobre esse estudo são de Mário da Silva e constam na nota de rodapé

da página 281 do romance na versão brasileira de 1972, edição usada para citação neste trabalho. 37

“Alla buon‟anima di Mattia Pascal bibliotecário”. A edição brasileira usada aqui não contém a dedicatória.

Não sabemos se outras edições em português preservaram ou não o elemento paratextual.

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Se limpeza coincidir com inocência, ou se sujeira, na devida medida metafórica,

significar culpa, pecado ou erros, então teríamos um criminoso sem méritos a serem

justificados. Mas o autor efetivo quase nada diz do que acha de seu personagem. Não

sabemos se Cela fala só da sujeira material de Pascual, tanto quanto ignoramos a razão de o

narrador ser apresentado como imundo. A postura, entre outras possibilidades, parece uma

indicação sobre a censura feita à forma de agir do “criminoso”, sugerindo uma limpeza para a

obra, disfarçando a verdadeira estatura do seu personagem central.

No fim do primeiro parágrafo, Cela se presta a lamentar o seu personagem e a destacá-

lo como um possível inocente, sem o dizer, afinal. “Não me agradaria que a lembrança de

Pascual Duarte – pobre Pascual Duarte, morto no garrote! – morresse como don Romualdo,

devido a seu medo à água” (CELA, 1986, p. 1). Além de provocar uma inquietação por meio

da imagem do narrador, Cela se dá ao trabalho de, pelo menos, amainar a figura de um

condenado à morte, para afastá-lo do ridículo e possibilitar que pensemos em um injustiçado.

A sentença de Cela reflete o fato de um homem que, mesmo com muitos defeitos e erros,

justamente por ser uma pessoa, alguém, no mínimo é digno de viver e de pagar suas culpas de

outras formas.

As hipóteses de julgamento se tornam mais relevantes, se pensarmos na forma

aviltante da morte do narrador, se comparada ao tipo de morte por condenação de uma pessoa

rica ou nobre, quando, nesse caso, o normal seria essa pessoa pelo seu destaque econômico

ser condenada ao fuzilamento ou à forca, maneiras rápidas e bem menos dolorosas de punição

extrema. A morte por garrote38

era reservada aos criminosos baixos, uma forma de prolongar

o sofrimento e, é claro, de humilhá-los ainda mais. Desde o início, Cela propicia (mas não

outorga) a hipótese da morte injusta, de um caso determinista em que a sociedade é a grande

vilã. Mesmo assim, com a hipótese social, Cela não fecha a porta para outras possibilidades,

permitindo a si nada mais declarar sobre sua criatura, a não ser a lamúria já dita em “pobre

Pascual Duarte”.

O autor efetivo volta a falar de Pascual Duarte no último parágrafo do prólogo. Nesse

parágrafo, Cela acentua os traços humanos de seu personagem e o seu destino moral na

literatura: “Concluindo: Pascual Duarte está limpo, isto é o que importa. Agora dispõe-se a

começar a morrer de novo, pouco a pouco” (CELA, 1986, p. 4). Estar limpo pode significar

ter uma imagem final digna. Na nossa sociedade, estar limpo também é estar no nível de ser

38

O garrote era um tipo de assento em que o preso era asfixiado, com muita dor e sofrimento. Assim, o

condenado com certeza morreria decomposto, com expressões de angústia e bem mais lentamente que nos

outros tipos mais “nobres” de execução.

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visto, de não ser inferior. Começar a morrer de novo, pouco a pouco, resume a missão de nos

fazer pensar nas pessoas e naquilo em que não queremos e não podemos nos tornar.

A falta de limpeza do personagem coincide com o título do prólogo, que é “Pascual

Duarte, a limpo”. Teríamos aí o propósito de falar no narrador e declarar algo inédito, com o

mesmo sentido de “passar a história a limpo”. A surpresa procede no elemento novo da

interseção da história e de sua antítese (limpo-imundo) não estar apenas a falar

especificamente no personagem. O questionamento transfere-se para o outro lado. O

julgamento do narrador pelo leitor esconde outro julgamento, que é o do próprio leitor com

suas práticas moralistas e suas aptidões partidárias. A demonstração do que realmente

representa o narrador dentro dos padrões morais do leitor, se um simples caso de julgamento

moral do indivíduo ou se um caso de julgamento dos padrões humanos em geral, referencia o

conflito de ponto de vista. A falta de um direcionamento sobre o destino moral do narrador,

rumo à condenação ou à redenção, serve para predestinar a obra a uma variação de pontos de

vista. Não é apenas a história de Pascual Duarte que está sendo passada a limpo. São os

valores da obra. E esses valores refletem os valores do leitor. Haveria o problema do foco, o

objetivo de encontrar e dissecar o “eu” do narrador. Por suas marcas atuativas, torna-se

possível julgá-lo. Pode parecer estranha essa afirmação, depois de falar que o julgamento

representa a parcialidade do leitor, a particularidade das suas emoções e escolhas. Contudo, o

julgamento moral é uma construção necessária ao romance em que se destacam narradores-

escritores confessando suas vidas. E, ainda mais, seria apenas o narrador a estar no centro do

jogo? Ou encontraríamos um duplo, múltiplo julgamento? Individualista, coletivista e da

leitura mesmo?39

Até porque a ênfase na variação do foco resulta na certeza de que nenhum

juízo do sujeito do relato será isento de conflito de interesses e terá a plenitude da justiça.

A dificuldade de encontrar uma medida justa aparece ainda na conclusão do último

parágrafo do prólogo. O contraste da sujeira e a frase “isso que importa” mostram um padrão.

Quando falamos em um padrão, nos vêm à mente os traços, o contorno, a lógica da

visibilidade, o retrato. Acima de tudo, a uniformidade de uma maneira de ver o personagem.

Na fala de Brás Cubas, por exemplo, é possível perceber o estar ainda preso, depois de

morto, aos laços terrenos da miséria espiritual. Schwarz comenta a escrita de Brás e o seu

“descompromisso dos defuntos” (SCHWARZ, 2000, p. 60) para com os vivos. Em tese, o

39

Sobre Pascual Duarte, por exemplo, sugerimos a leitura de Zamora Vicente, o qual afirma que “lendo

calmamente e à distância a breve autobiografia de Pascual Duarte, damo-nos conta, acima de tudo, de que os

crimes não são o mais importante e, o que é pior, sentimo-nos envolvidos em uma densa cumplicidade

justificadora dos fatos” (VICENTE, 1962, p. 23, tradução nossa).

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descompromisso transforma-se em uma liberdade máxima de expressão e outorga-lhe o

direito de desrespeitar o leitor em prol de uma suposta verdade. Essa verdade torna-se um

argumento insustentável, à deriva da adoção de um egocentrismo prático: “Apesar da

autoridade do avalista-narrador, que é nenhuma, esta perspectiva não leva longe”

(SCHWARZ, 2000, p. 60). Até porque uma das razões é defensiva. Tanto, que ela

oculta o principal, a saber, que o Brás Cubas „desafrontado da brevidade do século‟ é

tão mesquinho e perseguido por vaidades sociais quanto a mais lamentável de suas

personagens, o que está claro desde a primeira página, onde ele se resigna mal ao

número diminuto dos presentes a seu enterro. A comédia está justamente nas paixões

terrenas do vivíssimo defunto. (SCHWARZ, 2000, p. 60-61).

Se o narrador comenta com deboche seu enterro é, em parte, graças ao discurso

estapafúrdio do “bom e fiel amigo” e da ênfase pessoal em aproveitar até os requintes

climáticos para efeito de dramaticidade no funeral, ao qual apareceram somente onze pessoas.

Esse bom e fiel amigo recebera antes a vistosa quantia de vinte apólices do defunto.

A acanhada quantidade de participantes no enterro contesta o valor do morto, pois está

em contraste com o querer ser aplaudido e tratado com deferência por, no mínimo, uma

multidão, ideia propagada desde os primeiros capítulos. A atitude narrativa, como pensa

Schwarz (2000), afiança o apego ainda aos valores terrenos, mesmo após a morte e em

oposição ao tal desdém dos finados.

Em outro caso, podemos avaliar os valores assumidos pelo narrador, com a revelação

dos seus pensamentos diante de atitudes passadas e dos comentários rodeados pelo cinismo,

formando um padrão subjetivista altamente egoísta, e sem nenhum humanismo, para com

outras pessoas. O caso que gostaríamos de enfatizar refere-se aos dois encontros com

Eugênia. A “flor da moita” era coxa, pobre e deveria ser rejeitada por quem almejava a fama e

a glória na elite financeira da sociedade da época do protagonista. Na primeira vez em que se

encontram, ambos são jovens. Ela recebe de Brás seu primeiro beijo. Nesse encontro a

característica que o narrador mais repara é a arte de dissimular da moça, quando a mãe dela

entra subitamente e os dois enamorados agem como se nenhum carinho houvesse ocorrido e

eles apenas conversassem. “Que dissimulação graciosa! Que arte infinita e delicada! Que

tartufice profunda! E tudo isso tão natural, vivo, não estudado” (ASSIS, 1960, p. 169). O

narrador nos deixa a imagem da sua admiração pela capacidade da moça de disfarçar e ocultar

tão bem um fato tão espontâneo, sem malícia, porém inconveniente para duas pessoas sem

compromisso oficial em uma época bastante conservadora.

Depois, muitos anos à frente, ele, um burguês assumido, guiando seus pensamentos

pelo interesse, reencontra a pobre Eugênia. Ela está “tão coxa como [Brás] a deixara, e ainda

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mais triste” (ASSIS, 1960, p. 302). O comentário assinala ainda “uma impressão profunda”

determinada pela imagem da mulher “coxa”, “triste”, e moradora de um cubículo em um

cortiço. Em parte, a impressão acontece porque Eugênia reconhece o autor do seu primeiro

beijo e ergue logo a cabeça. Brás evidencia que ela “fitou-[lhe] com muita dignidade”,

“cortejou-[o] e fechou-se no cubículo” (ASSIS, 1960, p. 302). Na visão do reencontro, as

informações seriam meros detalhes, se não estivessem postas no capítulo seguinte àquele em

que Brás Cubas narra sua “fase brilhante” (título do capítulo CLVII), de doador e beneficiário

de entidades e de pobres bastante carentes. A fase brilhante atestaria um Brás humanista e

digno, caridoso e devotado ao bem do próximo.

Ao fim dos dois capítulos, é Eugênia quem age dignamente, soberana sobre si e de tal

forma idêntica “a uma mulher de um capitalista” (ASSIS, 1960, p. 302), mesmo habitando

uma moradia socialmente desqualificada, sem dignidade para os padrões dos ricos. Além da

surpresa, o ocioso Brás só é capaz de pensar rapidamente em dar esmolas, na forma de um

dever para com sua antiga “namorada”. A surpresa dele está presa ainda ao beijo da juventude

e ao falso hábito de moralista em uma sociedade cristã-escravocrata. Brás sente piedade da

pobre mulher, mas não se compadece por muito tempo. A evidência seguinte completa a

informação do estado de espírito do surpreso senhor de bens a pensar em um relacionamento

sem muita importância ocorrido no passado. Brás fala na falta de informações do destino de

Eugênia, habilitando o leitor a ponderar sobre a inexistência de verdadeira compaixão do rico

para com a pobre mulher. A ausência de devido comentário mostra que ele não se arrepende

do que fez em sua juventude, pois não a procura, muito menos tenta resgatar sua velha

conhecida, deixando-a na obscuridade de sua tristeza e pobreza. Brás ainda está solteiro e ela,

provavelmente, da mesma forma. Mas a admiração de Brás Cubas não nasce em um coração

arrependido e humanista e, sim, no de um homem de posses, sem apego a compromissos.

Uma ilustração semelhante do caráter do narrador é proposta por Merquior (1990), em

seu estudo sobre o gênero e o estilo de Brás Cubas, exibindo o lado interesseiro, raiz do

fracasso e da melancolia do protagonista e mola propulsora da sua escrita. Nele prefigura o

egocentrismo manifesto pelo reflexo de classe, no instante em que é mostrada a sede de glória

permanente: “Brás Cubas é um fátuo, um prisioneiro dos desejos, que aspira egoisticamente

ao gozo, ao poder e à glória” (MERQUIOR, 1990, p. 335).

Se isso for real, então, das três funções recomendadas por Merquior (1996, p. 208)40

para a literatura – edificação moral, divertimento e problematização da vida –, a primeira seria

40

Merquior cita apenas as três funções, sem se ater a elas com profundidade, em seu artigo sobre Machado de

Assis e a prosa impressionista.

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primordial, se respeitadas as conveniências dos livros modelares, como os romances ingleses

de Defoe ou Richardson, ou, no mesmo caminho ficcional, da obra Peter Schlemihl, de

Chamisso. Embora pensar sobre os escritos de um defunto possa suscitar o sentido de

edificação moral, parece não prevalecer em MPBC essa visão de boa exemplaridade. Brás

Cubas fala mais de si, quase a orgulhar-se sempre dos seus defeitos de rico e falso aristocrata

(dos quais o cinismo é o mais evidente), enquanto descreve outras pessoas desnudas de sua

honra, com suas falhas sendo recriminadas constantemente e sem piedade.

A segunda função seria visível em FMP, no momento em que o narrador chama seu

livro de “distração”, argumentando que “por sorte, o homem distrai-se facilmente”

(PIRANDELLO, 1972, p. 14). A distração é uma pseudomotivação para a escrita, porém o

motivo de divertimento não é real e o célebre estudo de Pirandello sobre o humorismo atesta a

favor da humanização do protagonista Mattia Pascal.

A terceira função licencia o narrador a compor, em um livro de memórias, a equação

da sua vida. Uma equação cuja resposta é uma sequência de negativas para Brás; tentativa de

existencialismo surreal para Mattia; condenação e esforço de redenção para Pascual.

Sobre Brás Cubas, vale ainda mencionar o desejo dele de sonhar com a glória de ter

um filho orador e de fazer o emplasto. Família e trabalho só ocupam algum lugar em sua

mente quando os frutos são o reconhecimento e a fama. O filho não vem e a produção do

remédio é interrompida. Se Brás quer ser um renomado cientista, um farmacêutico de

primeira, como é capaz de esquecer-se de cuidar da própria saúde? Ele parece ser nada

confiável como farmacêutico, mesmo sem saber se o remédio realmente chegou a ser

fabricado. Não fala dos métodos químicos usados para a composição do remédio, nem

transmite a fórmula41

por meio do livro das memórias. O egoísmo permanece após a morte.

As prováveis deficiências de caráter do falecido Mattia Pascal são analisadas, na

maioria das vezes, pela indissolubilidade do binômio casamento-(in)sucesso financeiro.

Considerado um pequeno burguês, o protagonista sofre vários reveses em uma sequência de

escolhas malfeitas.

A primeira delas é o cortejo da camponesa Oliva. Em seguida, para ajudar o seu amigo

Pomino, Mattia acaba se aproximando afetivamente de Romilda. Entre as duas mulheres,

estão os desejos de Batta Malagna de ser pai e senhor das terras, mas ele não pode ter filhos.

Mattia engravida ambas. A confusão de ser e não ser pai ou mãe, entre esses personagens,

nasce do fato de que todos precisam derrotar ou se vingar de pelo menos um dos demais.

41

Salvo engano, se a fórmula for o próprio livro.

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Mattia humilha duas vezes Batta e este se aproveita dos dois casos para resolver o seu

problema de infertilidade. Batta vinga-se de Mattia duas vezes e o obriga a casar por ter de

assumir a mulher grávida (Romilda) na legalidade (da época) dos filhos no casamento. Em

um plano geral, todos perdem e muito pouco eles ganham. Não há propriamente vencedores e

vencidos. O destino vai sendo feito na adição das ações em conjunto. O casamento movido

pelo desejo econômico e a concretização do sonho de Batta Malagna de ter herdeiros

equivalem à obrigatoriedade do casamento do seu oponente, razão por que o trabalho é

imposto a Mattia.

Olhando o narrador pelo viés do trabalho, seu pensamento medíocre, com traços de

covardia, desenha o necessário do seu caráter, desde a tentativa de retorno ao lar, após a fuga

para uma mesa de cassino em Milão, ainda com o primeiro Mattia Pascal vivo, marido oficial

de Romilda e genro da detestável viúva Pescatore. O capítulo sete tem início com a palavra

“pensava”, a qual indica o conjunto de ideias que permeavam a mente do narrador durante

essa viagem, em breve, interrompida. A palavra introduz o tipo de confusão mental sofrida

pelo recente rico e afortunado e causada por uma torrente de ideias a se misturarem no tempo

de permanência de Mattia em um dos vagões do trem.

Com a posse do dinheiro ganho no jogo de apostas, o primeiro pensamento de Pascal

se volta para destacar um plano definido e a escolha de uma profissão: “Vou resgatar a Stìa e

retirar-me para lá, no campo; serei moleiro” (PIRANDELLO, 1972, p. 85). A escolha da

profissão sem notoriedade é justificada logo em seguida com a frase “todo ofício, no fundo,

tem seu consolo” (PIRANDELLO, 1972, p. 85).

A sequência imediata desse pensamento reverencia o começo do abalo “no fundo” da

instantânea convicção do pretenso sonho de ser fazendeiro. Ele interrompe esse impulso por

instantes, quando relembra o sítio, no levantamento de uma única conjuntura de decadência

deste e na avaliação das reais e possíveis condições existentes naqueles dias da fazenda. O

terceiro raciocínio – “Tenho certeza de que, por enquanto, não se mói um só saco, lá, no

moinho. Mas assim que eu voltar a tê-lo” (PIRANDELLO, 1972, p. 85) – poderia vir em

auxílio ao repentino espírito empreendedor, se o pensamento seguinte não se concluísse com o

negativismo preguiçoso de Mattia: “Senhor Mattia, a tranqueta do eixo! Senhor Mattia,

partiu-se o mancal do cubo! Senhor Mattia, os dentes da segunda roda!” (PIRANDELLO,

1972, p. 85). O passado ocioso o faz relembrar outro agravante: “Como quando mamãe ainda

vivia e Malagna administrava” (PIRANDELLO, 1972, p. 85). Na imprescindibilidade do

serviço de terceiros, a conclusão dos pensamentos anteriores leva-o a temer o trabalho. Os

resultados incertos e o relacionamento com virtuais empregados fraudulentos causam a

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metamorfose imediata do espírito empreendedor e decidido em um acanhado e duvidoso

sonho de propriedade: “E, enquanto eu estiver tomando conta do moinho, o feitor me roubará

os frutos dos campos; e, se, ao contrário, me puser a cuidar destes, o moleiro me roubará a

moenda” (PIRANDELLO, 1972, p. 85).

Os relances de memória não param e resgatam a lembrança da existência da sogra, da

mulher e do desprezo de ambas pelo personagem. O narrador planeja vingar-se,

surpreendendo a indiferença feminina (decorrente da inexistência constante de recursos por

parte do “homem da casa”, na falta de um trabalho digno e gratificante) com o saque brusco

do bolso do paletó das notas bem contadas, na exata e vultosa quantia de “oitenta e uma mil,

setecentas e vinte e cinco liras e quarenta cêntimos” (PIRANDELLO, 1972, p. 87). A

perfeição da cena imaginada é rompida pelo reconhecimento do outro lado da moeda: com a

mostra da riqueza repentina, os antigos credores não deixariam por menos as cobranças,

implicando o pagamento de velhos débitos e a transferência do bem financeiro recente para

outras mãos. Mattia ganharia da mulher e da sogra e perderia para os banqueiros e demais

credores:

Escondê-las [as notas de dinheiro], não podia. E, aliás, de que me serviriam,

escondidas? [...]. Gozá-las é que aqueles cães esfaimados [os credores] certamente

não me deixariam. [...] No final das contas, ganhara em Monte Carlo para eles.

(PIRANDELLO, 1972, p. 87-88).

A última ideia antes da descoberta da notícia de sua “morte” nas páginas de um jornal

é uma lamentação esbravejante contra si, fazendo referência à interrupção de sua sorte nas

mesas de jogo de um cassino: “Que raiva! Por aqueles dois dias de perda! Senão, estaria

novamente rico... rico!” (PIRANDELLO, 1972, p. 88).

Em evento rememorativo semelhante, em vez de um trem, é na estadia em uma prisão

que acontece todo esse processo, só que para outro narrador. O capítulo doze de FPD é

construído por algumas frases, resgatadas pela memória, dos diálogos do narrador com sua

mãe, com Lola e com Rosário, depois da morte do filho de Pascual Duarte. As quatro

primeiras frases são ditas pela primeira esposa. A primeira delas (“Estou até aqui do teu

corpo!”) indica o descontentamento da mulher com o casamento. O motivo baseia-se na

indicação de um Pascual sempre a reclamar (“De tua carne de homem que não agüenta os

tempos”) e pressupõe a atitude do protagonista diante do trabalho e do convívio com os

outros: “Nem aguenta o sol do estio!”, “Nem os frios de dezembro!” (CELA, 1986, p. 85).

As frases do diálogo com a esposa já são suficientes para atribuir-lhe a posição de

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fracassado. Elas terão outra função – indiciativa –, pois antecedem o embate com a mãe,

introduzindo o pensamento da conveniência de eliminar aqueles que depreciam sua figura no

dia a dia. A rememoração de um diálogo com a mãe descreve a disputa em termos de ofensa.

À medida que as páginas se sucedem em nossa leitura do romance, vamos percebendo que

Pascual vive o dilema de não saber se expressar bem, situação que o domina até o desfecho do

livro. O conflito entre mãe e filho é uma prova da falta de comunicação, movida pelas intrigas

e pela escassez do domínio da lógica e das palavras, na aceitação do convívio pacífico com

seus familiares, amigos e demais citadinos, recaindo em uma evidente predisposição para o

mal. As frases entre eles mostram o envolvimento em uma discussão recheada de afrontas.

Para não ficar em desvantagem na rede de impropérios, Pascual ameaça a mãe usando um

enigma. Fala da astúcia dos lobos, do gavião e da víbora, de como todos esses animais

escolhem e esperam por suas vítimas. Não satisfeito, concretiza seu enigma: “Pois pior que

todos juntos é o homem!”. A mãe, sem entender ainda, mas já desconfiada, pergunta: “Por que

me dizes isto?”, recebendo a evasiva e perversa resposta final do filho: “Por nada!”, quando o

pensamento dele já demonstra o desejo impetuoso de matar a mãe e a esposa. “Pensei dizer-

lhe: – Porque hei de matá-las!”. O silêncio se estabelece pela covardia ante a oportunidade de

falar: “Mas a voz se me travou na língua” (CELA, 1986, p. 87).

Em seguida, Rosário, a quem chama de “a desgraçada, a desonrada, aquela que

conspurcava o olhar das mulheres decentes” (CELA, 1986, p. 87), é a única que procura fazer

o narrador enxergar o bem e não se entregar ao mal nos seus intentos. A tentativa de elevá-lo

acontece durante uma conversa entre Rosário e Pascual, ambos muito nervosos, ela talvez

prevendo um triste desfecho para a vida do irmão. “Rosário estava chorosa. – Por que dizes

que és um homem maldito? – Não sou eu quem o diz” (CELA, 1986, p. 87). O término

imediato do diálogo serve para ele validar sua tese da predestinação. Se Pascual é visto como

maldito, a razão está no fato de o destino lhe fazer trilhar um caminho ruim.

2.1. DUAS QUESTÕES DE ESTILO: O MODELO E A FISIONOMIA DE CLASSE

Ao levarmos em conta que Brás Cubas, Mattia Pascal e Pascual Duarte escreveram

suas narrativas (sabe-se que isso só é real se pensarmos na organização e no papel ficcional

dos supostos autores), cria-se a ilusão da veracidade. Essa elaboração se dá por meio de

mecanismos literários próprios, desde o peritexto até a forma de se referir ao leitor,

chamando-o para participar do texto naquilo que podemos chamar de jogo.

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Chamamos apenas de jogo, mas na verdade trata-se de uma rede de jogos. Temos (pelo

menos) a presença do jogo narrativo, de leitura, estilístico. Poderíamos ainda falar de jogo de

manipulação, de convencimento; seria possível, inclusive, separar e diferenciar o jogo

narrativo do jogo escritural. Importa, em todo caso, pensar que em um extremo está o

narrador-escritor; no outro, o leitor (o ficcional, do livro, e o real); e, no meio de ambos, o

autor efetivo, o compositor de todo esse jogo, a pessoa responsável por pensar na estratégia de

atingir o leitor real. Por um lado há, com bastante evidência, a necessidade de participar desse

jogo, jogando-o pelas regras impostas pelo suposto autor, após o medido cálculo a efetivar a

aceitação da sua opinião, segundo critérios outorgados para o cumprimento do desejo. Por

outro lado, aspiramos bem mais profundamente à compreensão das questões do tempo do

autor, mergulhando nossas limitações em variáveis (às vezes contraditórias), como elementos

para decisões, quando não estamos mais livres da tentação de expressarmos nosso ponto de

vista, talvez no desespero de querer entender a mente do autor efetivo.

A macropercepção do jogo, a compreensão textual das várias metas impostas no seu

organismo (zombar do leitor, convencê-lo, tornar o texto agradável, enxergar a malícia do

narrador, provocar uma leitura minuciosa, questionar as mazelas históricas, fugir da realidade,

entendê-la, contextualizar dificuldades de pretensas filosofias, comparar vidas e outras

questões as mais existencialistas possíveis) remete-nos a uma variação não de definição, mas

de foco. Falamos anteriormente de estilo como sinônimo de escritura e modo de exprimir-se

literariamente, além de aludir ao método. Essas formas de falar do estilo enfatizam bem o

autor de um texto.

Outra variação da palavra estilo pode ser encontrada em Schwarz (2000, p. 47),

quando ele analisa o romance MPBC, pois este fala em “padrão narrativo”. Com relação ao

jogo, pensando em um padrão, com características que funcionam como constantes, é

preponderante destacá-lo em sua materialidade. Ou seja, o jogo está contextualizado,

envolvendo paradoxos de um povo e também ideais de classes sociais, sejam elas altruístas ou

mesmo apenas impregnadas de viciosos pensamentos egoístas, autopreservadores, na

defensiva da sobrevivência e do melhor proveito obtido pela escala social. Em confissões do

fim, os instintos humanos que se consagraram pelas manifestações organizacionais

econômicas, desde o surgimento das nações, são notórios. O mais rico defende suas riquezas,

o burguês condena os ricos, ao mesmo tempo em que procura usufruir das vantagens dos mais

privilegiados; os pobres, miseráveis, ou simples trabalhadores campestres com pouco ensino,

lutam tanto pela sobrevivência como pela equivalência de privilégios e, na medida do

possível, querem subtrair para si direitos alheios.

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É inegável essa presença de um discurso de classe, tanto que um dos mais profundos

estudos sobre o romance de Machado de Assis, a consagrada obra de Schwarz utilizada neste

trabalho, focaliza o problema da volubilidade do narrador, sem deixar de reafirmar que “tudo

que ficou dito [da análise teórica] decorre da identificação da fisionomia de classe do

narrador” (SCHWARZ, 2000, p. 172, grifo do autor). Por considerar imprescindível,

arriscamo-nos a afirmar ser impossível mesmo a análise dos problemas inseridos no romance

sem “perceber [nele] o caráter social de suas infrações [do narrador]” (SCHWARZ, 2000, p.

174).

Mediante a centralização do caráter social nos diversos temas constituintes do

romance – nas múltiplas realidades do jogo, não apenas para interferir no posicionamento do

leitor, pela adulação ou pela provocação, dependendo de como são interpretadas as atitudes do

narrador –, o crítico desenvolve sua tese seguindo a trama construída pela afirmação da

identidade financeira através de posicionamentos intelectuais: “a sua dicção impregnada de

racionalismo clássico francês, naturalmente serve à vaidade social” (SCHWARZ, 2000, p.

176). O desenho de intelectualidade exagerada causa impressionante efeito de

deslumbramento, por conter tantas informações. No entanto, esse quase nocaute histórico-

semântico, esse contínuo jorrar de dados (sendo outros tantos exigidos para a atualização da

mensagem do narrador) escancara a fraqueza do narrador – “O leitor [deve] descobrir que não

está diante de um exemplo de auto-exame e requintada franqueza” (SCHWARZ, 2000, p.

190). O leitor deve também pensar que um dos objetivos do narrador é, ao defender-se,

defender as imposições de sua classe. Esta é sempre a mais favorecida socialmente, nutrindo-

se das mazelas do poder estatal da época e imiscuindo-se dos impropérios do restante da

população, que deveria sustentar a duras penas os luxos da elite financeira brasileira. Logo

vemos, pelo discurso, que quem não está no centro da avaliação narrativa é o narrador. A

inserção da rede de denúncias da sociedade ocupa o lugar cabível a ele, quando se leva em

conta que um dos papéis tradicionais do autor de um livro de memórias é o

autorreconhecimento.42

Ainda falando em jogo, uma de suas variações – o jogo de convencimento pelo qual

passa o leitor – desenvolve-se ora com a verdade, ora com a falsidade, ora com meios-termos.

Esses três elementos fazem parte de uma estratégia intitulada por Wayne Booth de retórica da

42

Existem os termos histoire de vie, recit de vie e “escrituras de si”. Encontramos, pelo menos nos dois primeiros

termos, o intuito de reconhecimento e transformação, dado o poder terapêutico que a escrita autobiográfica

pode possuir.

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ficção.43

Essa espécie de meio de convencimento faz uso de apelos retóricos, com vistas à

formação (das regras) do jogo ficcional-narrativo. Booth argumenta, no prefácio do seu livro,

a favor da existência de uma “arte da comunicação com os leitores”, explicitando essa arte

como retórica. Logo em seguida, ao nos dizer que existem “recursos retóricos que se

encontram ao alcance do escritor [...] na sua tentativa, consciente ou inconsciente, de impor ao

leitor um mundo fictício” (BOOTH, 1980, p. 12), ele introduz o pensamento do domínio que

cada autor, suspeito ou não, tem do seu texto e do poder do narrador sobre os fatos narrados.

Tal afirmação seria simplista e tautológica, se desconsiderássemos que o autor (efetivo ou

suposto, dentro da ficção) é (ou pode ser) um ser suspeito, justamente por esse domínio. E,

ainda, o domínio dos fatos e o poder sobre o texto não seriam meros itens do jogo, se não

pensássemos nos narradores com as suas várias intromissões planejadas, deixando o texto

cheio de “impurezas da casa da ficção” (BOOTH, 1980, p. 27). Estruturalmente, essas

impurezas servem para dificultar a leitura direta, pois não repassam todas as informações,

tudo o que aconteceu em sua plenitude.

A falta de informações causada pelo domínio autoral, derivando em o leitor não saber

tudo, permite que as evidências em narrações ficcionais, muitas vezes, sejam da existência de

enigmas indecifráveis, ou com ampla matéria de defesas para mais de um ponto de vista,

mostrando a complexidade dos valores e dos muitos tipos de campos de visão. Para

exemplificar, pensemos, por exemplo, na dedicatória do livro de Pascual Duarte. “Em

memória do insigne patrício don Jesús Gonzalez de la Riva, conde de Torremejía, o qual, ao ir

matá-lo o autor deste escrito, chamou-o de Pascualillo e sorria” (CELA, 1986, p. 13).

A intriga nessa parte do texto aparece na curta frase “chamou-o de Pascualillo e

sorria”. O narrador não apresenta uma razão plausível que o fizesse ser visto como vítima

social direta de don Jesús, legitimando o assassinato. O nobre ter sorrido antes de morrer

levantou e levanta teses interessantes, das quais podemos apontar pelo menos duas. A

primeira seria a surpresa do nobre por ser morto por Pascual, um homem medíocre e

rebaixado na hierarquia social da vila. A segunda é defendida pelo espanhol Allonso Zamora

Vicente e pela brasileira Sissa Jacoby. Na opinião deles, o protagonista encontrou o “nobre já

moribundo, por possíveis torturas [políticas] anteriores”, motivadas na ocasião da eclosão da

Guerra Civil Espanhola, e matou-o, “crendo cumprir uma caridade”, dando o “tiro de

misericórdia” (VICENTE, 1962, p. 44, tradução nossa). Haveria, nesse caso, o entendimento

43

Esse é o título do livro. No prefácio, Booth explica, com muita objetividade e rapidez, o que pretende, ao

destacar o uso dos apelos retóricos. Estes, em grande parte, serão estudados em relação aos narradores de

confissões do fim como comentários e invocações ao leitor.

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da inocência, apoiado na “tese do ato de misericórdia”, pela qual “a morte de don Jesús

revela-se, assim, um ato de humanidade” (JACOBY, 1994, p. 81).

Fora o lado do não dito, no qual se insere o narrador, a dedicatória permitiria pensar

nas hipóteses de absolvição e de condenação. Diante do paradoxo, o leitor tende a ler as

memórias, expondo o protagonista a essas duas possibilidades-chaves.44

No início das narrativas, o indivíduo alega uma porção de coisas. O efeito das marcas

atuativas no estudo do caráter do narrador evidencia a importância de se pensar no esquema

do restante do livro, considerando se houve ou não um planejamento na sua composição e nos

seus objetivos. Em narrações do tipo confissões do fim, o narrador é reconhecido também

pelo estilo de escrita. Basta agora pôr em relevo as informações do padrão adotado pelos três

narradores.

No caso da estratégia do livro, em FPD, após o término do relato, o autor efetivo do

romance acrescenta uma segunda intervenção explicativa. A intervenção é intitulada “Outra

nota do transcritor” e relata a conclusão desse personagem:

A carta de Pascual Duarte a don Joaquín Barrera deve ter sido escrita na época dos

capítulos XII e XIII, os dois únicos em que empregou tinta roxa, idêntica à da carta

ao citado senhor, o que vem demonstrar que Pascual não suspendeu definitivamente,

como dizia, seu relato, senão que preparou a carta com toda premeditação para que

surtisse efeito no devido momento, precaução que mostra nosso personagem nem

tão esquecido ou tonto como pareceria à primeira vista. (CELA, 1986, p. 140).

Com esse acréscimo, a construção do jogo paratextual nos faz pensar em que medida o

acaso e o planejamento narrativo interferem no texto e na prerrogativa do narrador-escritor de

ter segundas intenções. O fato implica a revelação do raciocínio do transcritor, que confronta

e rejeita a afirmação de Pascual de escrever simplesmente ao correr da pena. Caso seja

verdadeira a tese do transcritor, então a noção de veracidade apenas no contar pelo narrar

perde o poder de revestir o texto com o predomínio da objetividade. A não ser que haja o

entendimento de se escrever com objetivos – e esses são particulares – de convencimento.

Teríamos, assim, uma objetividade subjetiva ou uma subjetividade com objetivo(s). Nas

confissões do fim existem indícios do uso de um padrão selecionado, bem medido, e

atravessado pela reflexão e pelo cálculo.

Em uso comum, a necessidade comunicativa de uma confissão escrita requer a escolha

de um padrão legível para a compreensão do leitor (é claro, se essa for a vontade do narrador).

44

Em MPBC e em FMP, os protagonistas não estão presos, à espera do cumprimento de uma sentença de morte

e, por isso, não se enquadrariam no paradoxo da condenação-absolvição por um crime. Em contrapartida,

eles estariam presos a esse paradoxo por participaram do jogo de dizer ou não a verdade, comprovar ou não o

que dizem, enganar ou não seus leitores.

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Brás Cubas deixa isso claro, quando admite usar o método difuso, as digressões e os modelos

de Sterne e Xavier de Maistre. A estratégia é um ato legítimo para alcançar o leitor. Além

disso, vimos, no primeiro capítulo deste trabalho, que falar tudo o que se pensa é algo

impossível para o narrador, mesmo estando morto, esquecido ou isolado em uma prisão.

Novamente é importante lembrar que “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode

falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer

coisa” (FOUCAULT, 2007, p. 9). Naquele momento em que foi citado o enunciado de

Foucault, falávamos em preservação da imagem. Mas a exclusão discursiva pela interdição do

que o narrador pensa e não pode dizer indica outro ponto, no qual se tem por meta pensar a

estratégia da equação narrativa de cada livro. Nessa equação, a justificação permite pensar em

culpa, logo, em condenação, o que nos permite falar em prisão e, por analogia, em cárcere da

identidade e do discurso.

A ideia da prisão soa na consonância dos dizeres de Arcângelo Leone de Castris,

crítico do romance de Luigi Pirandello. Referindo-se ao protagonista, ele atesta que “a vida é

uma prisão absurda de formas provisórias e vãs, e ainda opressivas e alienantes” (CASTRIS,

1992, p. 63, tradução nossa) e que a “liberdade é arbítrio” (CASTRIS, 1992, p. 64, tradução

nossa). Guido Baldi, outro crítico, destaca o fato de o protagonista de FMP “responde[r] à

fisionomia fixada de muitos dos personagens que povoam as novelas pirandellianas,

aprisionados no cárcere opressivo e sufocante da família e de uma condição socioeconômica”

(BALDI, 2006, p. 31, tradução nossa) e ainda fala na luta contra a “mecanicidade da

existência”45

(BALDI, 2006, p. 31, tradução nossa). Privado de liberdade na vida, preso à

família e às condições de cada classe social, a única liberdade (aparente) é a falsa premissa de

tudo poder falar na confissão.

Porém, o constante pensamento da prisão simbólica e o reconhecimento da exigência

da condenação do crime, do erro, requerem que pensemos em julgar alguém somente se

tivermos as provas a favor ou contra essa pessoa. E como ter provas se quem tem o direito de

narrar e de interpretar os fatos é justamente o acusado? Ficamos, assim, à mercê da escrita e

dos deslizes textuais do narrador, deixando vestígios, aqui e acolá, da sua vontade, do seu

instinto e dos seus sentimentos disfarçados. Diante desse impasse, na recorrência direta ao

texto do narrador é que podemos visualizar o discurso prisioneiro.

45

O trecho completo das citações de Baldi é: “Il protagonista del Fu Mattia Pascal risponde alla fisionomia

fissata da molti dei personaggi che popolano le novelle pirandelliane, imprigionati nel cárcere oppressivo e

soffocante della famiglia e di uma condizione socioeconômica misera e frustrante, anelanti ad‟una evasione e

ad una liberazione che sperimentano in varie forme, la fuga in senso físico e spaziale, il rifugio

nell‟immaginazione o nel sogno notturno, il ricorso a gesti gratuiti ed assurdi che rompano la mecanicità

dell‟esistenza.”

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Tratar de nomear um discurso por prisioneiro, justamente por esse discurso surgir de

uma prisão, de um cárcere, significa contrastar a figura metafórica do cárcere com a noção de

planejamento e de descobrir o que se esconde por trás da vontade de escrita do seu emissor.

Quando o ideal do livro surge e se impõe? Quando ele é imprescindível e o narrador não

consegue fazer outra coisa senão pensar no inesquecível. Temos, então, o tema desta pesquisa,

expresso no subtítulo do nosso trabalho: “a necessidade de existir transforma-se na

necessidade de escrever”. Com tempo de sobra, sem nada mais a fazer, a única alternativa

seria escrever, pôr no papel as angústias dos narradores e sistematizar racionalmente o

fracasso.

O cárcere também representa o lugar onde o narrador teve de enfrentar os seus

fantasmas e rever-se diante do espelho, com e sem a máscara social. Esse ambiente limitador

resulta na conjunção de fatos que, de certa forma, atuam no desenvolvimento da maneira de

configurar-se o agir do personagem. Haveria na escrita um parâmetro para o qual os

narradores olham a cada instante, no momento de materialização das narrativas.

Na de Brás Cubas predomina a fala atravessada pela morte, um discurso proveniente

do túmulo. É a fala do indesejado, já que o morto é mandado para o cemitério para ser, de

certa forma, excluído.

Na narrativa de Mattia Pascal, acima do indesejável, está o inconveniente. Este se

impõe quando ocorre o retorno de um suposto falecido, vivo, naquele momento, apenas na

memória dos concidadãos de Miragno, tendo, as mesmas pessoas, a impressão de que o

personagem já havia morrido. O aparecimento do morto sem sepultura torna risível a sua

condição, compactuando a maneira humorística de narrar com a problemática existência do

narrador. Merece ressalva o imbroglio vivido pelo narrador diante dos limites de

inconveniência. É inconveniente para ele, totalmente consciente de sua realidade, e para as

pessoas próximas (mulher, amigo, irmão, tia e até o inimigo Batta Malagna), mas não é

inconveniente para o leitor aproveitar o que aconteceu com outra pessoa para dar boas risadas.

Mattia é sabedor também disso e prefere utilizar a seu favor a simpatia risível dos leitores,

causada pela conformidade humorística da narração.

No primeiro capítulo da narração, Mattia declara sua “tão escassa estima pelos livros”

(PIRANDELLO, 1972, p. 10). No segundo, ele vem nos dizer da existência de “volumes

curiosos e de agradabilíssima leitura” (PIRANDELLO, 1972, p. 12). Sem saber o transcurso

temporal de um capítulo para o outro, a mudança de opinião revela ser a marca registrada de

Mattia, como demonstrado pelo seu “também não achava muito” (PIRANDELLO, 1972, p.

9). O texto ainda parece seguir a prática significativa da expressão “e, se...”, com o intuito do

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narrador de não dizer tudo o que sabe, mas de fazer o leitor descobrir os vitupérios por um

caminho cínico mesmo. O parágrafo inteiro em que se encontra a expressão é o seguinte:

“Pois, então. Já se dera mais de um caso de alguém ter filhos mesmo dez anos depois, mesmo

quinze anos depois do casamento. Quinze? Mas... e ele? Ele já era velho; e, se...”

(PIRANDELLO, 1972, p. 34). Seguindo a sugestão, o narrador pôs ao alcance do leitor

indícios para este perceber, na interrupção da fala, o adultério de Oliva e a vingança inusitada

de Mattia sobre o trapaceiro administrador das antigas propriedades da família Pascal.

O narrador, também no primeiro capítulo, adverte o leitor de que conheceu seu pai e

sua mãe e não foi pelo parentesco que se tornou um fracassado. No início do capítulo três, ele

se desmente em relação ao fato de ter conhecido o pai. “Fui um pouco precipitado, no início,

em dizer que conheci meu pai. Não o conheci. Tinha quatro anos e meio, quando ele morreu”

(PIRANDELLO, 1972, p. 17). E não param por aí os desmentidos. Ainda no terceiro capítulo,

o narrador se supera, desmentindo-se no menor espaço de linhas. Primeiro, ele se refere ao

personagem Gerolamo como grande amigo, para, duas linhas abaixo, falar o contrário: “Desde

menino, vinha com o pai à nossa casa e era o meu desespero e o de meu irmão”

(PIRANDELLO, 1972, p. 20). Os aparentes equívocos de Mattia Pascal abrem pressuposto

para a ironia de um grande farsante, capaz de fazer rir o leitor e o conquistar. O riso é o estado

de consumação da simpatia entre leitor e narrador. Mesmo enganado, o leitor entra no jogo da

engenhosidade textual e caminha por entre as páginas, escutando aquelas informações que o

narrador “reputar necessárias” (PIRANDELLO, 1972, p. 14).

Falamos do indesejável e do inconveniente para Brás Cubas e Mattia Pascal,

respectivamente. Para Pascual Duarte, há os vestígios do medo, da desonra, da falta de

humanidade, sobretudo da condenação. Ele está sempre se lembrando de sua pena que virá em

breve, a morte, e interrompe em diversos pontos a narração para relembrar que seu destino

próximo é o fim. Sua fala de possível conformidade com os fatos volta-se para o mundo-além.

Nas cartas adicionais do pároco e do guarda civil, ganha destaque a repetição, em ambas, da

fala do condenado, alguns instantes antes de sua execução: “Faça-se a vontade do Senhor”

(CELA, 1986, p. 143, 145). Mesmo assim, o narrador morre inconformado, dizendo que “não

queria morrer e [...] o que faziam com ele não era justo” (CELA, 1986, p. 145).

O destaque dos termos “indesejável” e “inconveniente”, quando pensamos no papel

dos narradores para a sociedade, ressalta a eclosão de um problema grave, que é a dificuldade

do ser humano de conviver com seres que, por alguma razão adversa, estão em posição de

desajuste social. Nesse panorama, temos a exigência da separação do convívio, a segregação,

a imprescindibilidade do rompimento das ligações sociais, até tocar no contentamento alheio

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de ver a parte em desequilíbrio à distância, localizando-a na prisão, em estado constante de

isolamento.

E mais, ligando os termos “indesejável” e “inconveniente” a “inconformado”,

podemos caracterizar a separação social do condenado e encontrar para ele o destino do lugar-

prisão. É nesse ambiente e nessa situação que se passa a racionalizar os sentimentos de

frustração e impotência. Para os narradores de confissões do fim, a prisão significa separação

da sociedade, meio de manter-se no afastamento requerido pelos outros, de não poder viver na

zona de normalidade de uma comunidade.

Se em ordem temos três presos – Brás Cubas, Mattia Pascal e Pascual Duarte –, eles

vivem, na mesma proporção, em três lugares-prisões: a sepultura, a igreja-biblioteca e o

cárcere. Porém, apenas o último narrador é quem realmente escreve enquanto está em uma

prisão institucional – a de Badajoz. Por Mattia e Brás, a imagem do cárcere nos é repassada

em sentido figurado. A prisão de Mattia é simbólica. Ele vive (trabalha) em uma igreja

desativada. Não pode voltar para o lar (até porque ele não tem um). Deve viver confinado até

a chegada de sua terceira e definitiva morte. É um morto à espera da morte. E a prisão de

Mattia na falsa igreja-biblioteca acaba por ser, na verdade, a subtração que permite ao

personagem a escapatória da prisão do casamento. Brás, preso no túmulo, também escapa da

prisão (da necessidade) do casamento. Mas, de todas as outras prisões – identidade, cárcere,

sepultura –, de nenhuma delas os narradores podem fugir. Da mesma forma eles não podem

fugir do passado. Mattia Pascal e Pascual Duarte até tentam, e fracassam. E por que não dizer

o mesmo de Brás Cubas, quando ele tenta disfarçar sua imagem nas memórias escritas, nas

últimas linhas do romance. Os três, ao final, aprisionar-se-ão em uma prisão necessária, que é

o livro.

O lugar-prisão serve, então, para o narrador-escritor refletir, rever e pesar os fatos não

esquecidos, adquirir e desenvolver um modo de escrever e realizar uma dupla discussão,

literária e moral, além de estar em contato com outros livros e casos. A biblioteca de Mattia

Pascal e as conversas com o padre Elígio Pellegrinotto exemplificam bem isso. Mas a

interlocução por si só não é suficiente. O isolamento tende a ser o elemento maior para se

chegar à interseção dos princípios morais, individuais e coletivos do livro.

Outros aspectos inerentes ao método de escrita são a assimilação dos modelos

literários, a intertextualidade e o uso de uma tradição, reparando-se na transformação em

estilo individual a favor de cada narrador-escritor. Da mesma forma que há o sobrenome

representando uma filiação, um laço de parentesco, notamos em cada narrador a filiação a um

tipo de escrita. Podemos nomear, grosso modo, de obra difusa a de Brás Cubas, de

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humorística a de Mattia Pascal, e de tremendista (com traços picarescos, quixotescos, próprios

da novela de cavalaria) as memórias de Pascual Duarte.

Seguindo essa proposição de filiação, temos evidências de que cada narrador compõe

suas memórias segundo paradigmas, em geral, literários. Essa hipótese é interessante na

medida em que sabemos que Brás é rico, culto e tem a seu dispor toda uma biblioteca que lhe

pertence. Como o narrador é um homem de posses, arrogante, quer demonstrar até o direito

sobre o modo de escrever que empregou. Mattia não tem uma biblioteca, mas está “enterrado”

em uma. Tem a seu dispor um interlocutor. Afirma ler alguns livros. Questiona os métodos,

mas não deixa de se aproveitar deles. Pascual Duarte não tem biblioteca, não está em uma

delas, mas, ao dizer que está preso, leva-nos, leitores, a acreditar que o mais coerente é pensar

que ele tenha lido alguns livros indicados e disponíveis na prisão, com a ajuda do pároco. O

narrador mesmo afirma escrever o livro de memórias “sem que tenha de deter-[se] a construí-

lo como um romance” (CELA, 1986, p. 37), em uma indicação prévia de que sabia (ou

reconhecia) o que era um, ou mesmo que já tivesse lido ou escutado o termo literário algumas

vezes.

Brás Cubas é o caso mais manifesto do uso de paradigmas literários, por mencionar,

desde o início, nomes de escritores.46

Brás cita Stendhal e se diz seguidor dos modelos de

Sterne e Xavier de Maistre. É interessante pensarmos que, antes mesmo de explicar o método

e o estilo, Brás Cubas já havia se filiado a uma tradição encabeçada por Sterne, com seu

personagem Tristram Shandy, de Vida e opiniões de Tristram Shandy. Daí, Rouanet (2007, p.

30-33) definir essa forma como shandiana, por enxergar nela uma tradição à qual Brás Cubas

se filia, acrescentando aos nomes de Sterne e Xavier de Maistre os de Diderot e Almeida

Garrett, este citado por Machado de Assis no prefácio da quarta edição.47

Dos três autores apontados por Brás no seu prólogo, apenas os dois últimos o narrador

faz questão de incluir no seu organismo textual, em forma de tradição literária assumida. O

primeiro (Stendhal) é também reconhecido, consagrado. Sendo um autor de qualidade e com

autoridade, haveria o repasse ao leitor da impressão de um livro dialogar em alto nível com

outro (De l’amour) ou com outras obras e autores (Tartufo, de Molière; a Bíblia; a Divina

comédia, de Dante Alighieri; Dom Quixote, de Cervantes; Suetônio; Pascal; Buffon, entre

outros).

46

Passos (1996) estuda essas relações intertextuais de citações e alusões e define assim uma chamada “poética

do legado”. O termo é o nome mesmo do seu livro e da sua tese de doutoramento. 47

Rego (1989) identifica Brás Cubas dentro de uma tradição luciânica, ao ver nas memórias póstumas a

descendência moderna da sátira menipeia, da qual o principal escritor foi Luciano de Samósasta. Se unirmos

a sátira menipeia com a forma shandiana, se pensarmos em uma poética de filiação, teremos bem visível o

ato notório de Brás Cubas escritor.

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Brás Cubas tem um modelo de escrita culto e exagerado, como atributo de homem

instruído, superior. Ele demonstra referências de filiação de sua obra a uma tradição com a

potencialidade de lhe dar autoridade sobre o leitor, diferenciando o narrador-escritor das

pessoas comuns. E esse ato deliberado de outorga de autoridade desenvolve-se por todo o

texto, nas constantes citações e referências a outros autores e suas obras.

Brás descreve o tipo de estilo adotado em suas memórias, explicando logo o que viria

a ser a rotulação de póstumas. Para ele, além de serem obra de finado, as memórias são

definidas pela “forma livre”, “difusa” e escrita com “a pena da galhofa e a tinta da

melancolia” (ASSIS, 1960, p. 109). Outra característica forte é a presença das “rabugens de

pessimismo”, como ressalta também Machado de Assis no prólogo da terceira edição do

romance. O autor efetivo vai além da sua criatura e denomina essas rabugens de pessimismo

de “sentimento amargo e áspero” (ASSIS, 1960, p. 107). Nos outros dois romances, as

rabugens de pessimismo e a forma difusa e livre podem ser vistas, porém em outro grau e com

outra intensidade. A tinta da melancolia pode ser contemplada, mas a pena da galhofa

raramente poderia entrar, por exemplo, no estilo inculto de Pascual Duarte.

O método, em MPBC, tendo no centro as rabugens de pessimismo, professa a pose de

filosofia quando sua definição tende a se voltar para o individualismo. Em vez do próximo,

está o pessoal. No lugar de definir um humanismo prático, está em voga a outorga do

humanitismo. E desde criança, a padronização pela exploração e o seu entendimento de

benefícios pelo livre proveito adquire um formato: “Outrossim, afeiçoei-me à contemplação

da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-

la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares” (ASSIS, 1960,

p. 129). É essa, então, a forma delineada do seu modo de julgar os fatos, se dignos ou não, se

oportunos ou desaprováveis, sempre “ao sabor das circunstâncias e lugares”.

Mattia Pascal escreve em uma biblioteca, convivendo com um padre leitor assíduo,

com o nome de Elígio Pellegrinotto. Ambos, Mattia e padre Elígio, têm ao seu dispor textos

antigos de literatura italiana, sendo em grande parte escritos religiosos e de libertinagem. Os

dois discutem, nos capítulos dois e três, a forma literária adequada para as memórias. Padre

Elígio cita Boccaccio e Bandello (PIRANDELLO, 1972, p. 27), aproximando-os de Mattia. A

mistura dos textos de temas religiosos e profanos apresenta a célula central para o humorismo

do livro, não sendo este o desrespeito aberto, mas a reflexão sobre a fragilidade moral das

atitudes alheias.

Segundo a definição de Pirandello, “o humorismo consiste no sentimento do contrário,

provocado pela atividade especial da reflexão” (PIRANDELLO, 1999, p. 177). O “sentimento

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do contrário” seria a percepção do problema em que alguém se encontra, sem ter como deixar

de estar envolvido, e o lamento por não poder sair da situação. Talvez a expressão popular “rir

para não chorar” exprima bem à moda brasileira esse sentimento do contrário.

Outro ponto de filiação também agracia o método de outro escritor italiano. Ao citar

um conceito de Quintiliano, Mattia lança a base da sua maneira de encarar literatura e o adota

na sua forma de escrever: “Lê-se ou não lê-se em Quintiliano, como o senhor me ensinou, que

a História devia ser feita para narrar e não para demonstrar?” (PIRANDELLO, 1972, p. 13). O

método escritural de Mattia Pascal resulta em assumir como lema literário a expressão

“maldito seja Copérnico”48

(PIRANDELLO, 1972, p. 12), como forma de se aproximar ou de

ter a relatividade como predicado de um realismo atípico.49

Entre os estilos de filiação de Brás Cubas e Mattia Pascal existe a diferença de que o

segundo não cita constantemente autores, nem faz indicações diretas do uso da tradição

literária. Há, no entanto, as alusões feitas no ensaio “O humorismo”, provavelmente escrito

com base no romance. Nele se revelam influências de dois grandes livros modelos do

humorismo universal – o espanhol Dom Quixote, de Cervantes, e o italiano Os noivos, de

Manzoni –, além de ser citado o nome de Sterne, entre tantos outros escritores. As figuras de

dom Quixote e de dom Abbondio representam a filiação ao tipo de humorismo que Pirandello

reivindica para o seu livro. A escolha de Pirandello aponta para a aceitação dos personagens,

nos seus papéis, da atmosfera capaz de causar o riso. O ato reflexivo sobre o tipo de vida e

máscara social que os personagens usam favorece o ver-se em um plano definitivo

indesejável. Além desses fatores, da filiação humorística (Boccaccio, Cervantes, Manzoni,

Sterne) e de Mattia ser contra a pormenorização desnecessária, avesso ao pragmatismo dos

“ismos”, ele se aproxima da forma shandiana e difusa de Brás Cubas, quando fala em um

novo estilo fundamentado na providencial distração humana, ao escrever “ao correr da pena”

(PIRANDELLO, 1972, p. 27), e quando formula as regras que servem como parâmetros na

visão geral do livro. O narrador, assim como Brás Cubas, explica o livro ao leitor e ainda diz

como deve ser lido o seu romance. O humor orienta toda a escrita e torna-se quase uma

fórmula contra a melancolia. A narração se assemelha às memórias de Brás Cubas, e nela a

48

Copérnico foi o autor da teoria do heliocentrismo (o Sol no centro do sistema solar, e não a Terra). Essa teoria

tornou-se a base para a Astronomia moderna. Ao usar o nome de Copérnico, Pirandello (1972, p. 12-13;

1999, p. 174), argumenta que – com a superação do conceito bem definido de a Terra ser o centro do sistema

solar – a descoberta humana de sua real significação, sem a visão heroica da mitologia grega e da história de

dominação romana, sem as máscaras sociais, pode causar o mal-estar e o sentimento de impotência. 49

Watt (1990, p. 13-33), na introdução de sua tese de ascensão do romance na Inglaterra, destaca o valor obtido

pelo termo “realismo”, com o tempo. Ele apresenta a palavra com o significado de particularidade e de

valorização da diferença. Aí estaria, desde o século XVII, aberto o caminho que consagraria o relativismo dos

romances de Pirandello.

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ironia se volta para o lado triste da vida, no sentimento do contrário, em vez do sarcástico

sentimento depreciativo do rico brasileiro do século XIX.

O inculto Pascual Duarte escreve pensando em enviar seus escritos a um sujeito rico e

influente. Enviar um texto a um homem culto – é muito provável que o seja, uma vez que

quem tem condições financeiras pode defender o status de grandeza, assumindo a postura de

autoridade no agir, falar e escrever, de quem teve que estudar para dar ordens – deve ser

compreendido considerando-se os valores históricos. Não sabemos até que ponto o

destinatário dos escritos exerce o poder de influência ou até onde vai o poder de decisão a ele

outorgado em plena sociedade interiorana. Mesmo assim, a cláusula de publicação ou

destruição dos papéis escritos – “cláusula do testamento hológrafo outorgado por don Joaquín

Barrera López, o qual, por morrer sem descendência,50

deixou seus bens às monjas do serviço

doméstico” (CELA, 1986, p. 12, grifo nosso) – serve de testemunho de que ele aparenta ser

não simplesmente um homem culto, mas um senhor de posses, possuidor de muitas riquezas.

Em contrapartida, causaria estranhamento o domínio das regras gramaticais por parte

do narrador, quando o texto de Pascual, por ser escrito por alguém que abandonou a escola

com a idade de “apenas doze anos” (CELA, 1986, p. 27), reclamaria como remetente justo um

homem culto. A incongruência da situação (ter de escrever e não ter o domínio sobre a escrita)

é perpassada pela possível incoerência do envio (mandar logo os escritos para um amigo de

don Jesús!), tudo isso tendo em mente que o narrador se depara com a data do seu fim, já

próximo. Conviver com a mesma marca temporal – o dia de sua pena de morte – o faz

premeditar os termos de sua mensagem, além de pensar em concretizar os seus objetivos de

libertação com reconhecimento público de causa.

Do ponto de vista estilístico-gramatical, o suposto autor encontra a solução para a

escassez dos seus dotes literários nos contatos de prisão, o lugar em que ele escreve. Como

abandonou cedo os estudos, o narrador buscará modelos praticáveis e convencionais. Quando

Pascual Duarte escreve preso em Badajoz, as pessoas com quem mais tem contato e que

possuem domínio ou maior conhecimento da escrita são os padres capelães da prisão. O livro

50

A comparação desse trecho do título da cláusula (“o qual, por morrer sem descendência”) com o trecho da

dedicatória de Pascual Duarte, feita a don Jesús (“o qual, ao ir matá-lo o autor deste escrito”) serviria de

amostra de que Pascual utilizou uma espécie de fórmula convencional para a introdução de uma

personalidade em um texto. Pela mediocridade estilística, pela absurda incapacidade de ser elegante,

dialógico, Pascual não absorve e adapta conceitos retóricos de outros autores. Ele simplesmente copia o

máximo que pode, até onde sua inteligência permite, o que faz do seu texto algo calculado, porém sem

efetivo poder de convencimento, tanto pelas contradições moralísticas como pelos idiotismos (“modismos

deslocados que, seguindo uma sintaxe caprichosa, ou por desconhecida e remota elipse, veio a apresentar

incongruências de construções inexplicáveis”, nota de rodapé em Solís, 1969, p. 255, tradução nossa)

lexicais, até o iminente cruzamento de vulgaridade pessoal e requinte importado.

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cita o padre Santiago Lurueña. Ao final da obra, a carta desse personagem demonstra

considerar o assassino confesso “um manso cordeiro, encurralado e assustado pela vida”

(CELA, 1986, p. 143). Pelo discurso religioso, a maneira de se relacionar e o tratamento

assistencial dispensado a um condenado sugerem o uso da Bíblia, a pregação dos temas de

salvação e condenação, a anunciação repetitiva dos dogmas da igreja. Se o protagonista

afirma ser um camponês inculto, a melhor maneira de pensarmos como Pascual conseguiu

escrever e criar uma lógica – com elementos comparativos e uso de certa forma consciente de

recursos estilísticos, como diversas figuras de linguagem – talvez seja afirmar que ele sofreu a

influência intelectual dos domínios culturais dos padres capelães. Ou, quem sabe, dos poucos

livros lícitos na prisão, entre eles provavelmente o livro sagrado do Cristianismo.

Para representar o estilo de classe e o estilo individual contemplando a passionalidade

de Pascual, podemos enxergar no seu registro o nervosismo, a confusão, a tensão dos

sentimentos e o excesso de comparações.51

Pascual Duarte usa muito esse recurso,

principalmente no aspecto figurativo com animais. O conectivo “como” é um elemento

estético constante, de forma exagerada até. Na maioria das vezes, as comparações são fracas e

simplistas, embora tentem comprovar um narrador competente no seu narrar. Seus

paralelismos procuram causar efeitos metafóricos, tomando elementos do cotidiano do

narrador como “uma estrada lisa e longa como um dia sem pão” (CELA, 1986, p. 15), ou “a

câmara municipal que era grande e quadrada como uma caixa de tabaco, com uma torre no

meio, e na torre um relógio, branco como uma hóstia” (CELA, 1986, p. 16). Outra forma

comum de comparar é impactar o leitor pela bestialização das pessoas envolvidas nas

comparações: “minha mãe apanhou Mário, colocou-o no regaço e ficou a lamber-lhe a ferida

a noite toda, como uma cadela parida lambendo seus filhotes” (CELA, 1986, p. 42), “eu a

mordi [Lola] até sangrar, até ficar rendida e dócil como uma égua nova” (CELA, 1986, p. 48).

Às vezes, Pascual consegue emitir frases com certo padrão filosófico: “a mulher que não

chora é como a fonte que não mana, que para nada serve, ou como a ave do céu que não

canta” (CELA, 1986, p. 43-44). Em outros momentos, ao contrário, o efeito é retirado de sua

subjetividade, deixando transparecer uma sensação intensa sua, mas nada lírico, filosófico ou

impregnado de valor estético: “Me confessei, e fiquei tão mole e manso como se me tivessem

dado um banho de água quente” (CELA, 1986, p. 59). Seus exemplos, talvez retirados de

diversos livros por não demonstrar um padrão (a não ser o de um homem inculto), parecem

imitar, por exemplo, passagens bíblicas, como em “ – Vê os lobos que vagam pelo monte, o

51

Sobre o estilo de Pascual Duarte, a melhor sugestão de leitura é Solís, Sara Suárez. El léxico de Camilo José

Cela. Madri: Alfaguarra, 1969.

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gavião que voa até as nuvens, a víbora que espera entre as pedras?” (CELA, 1986, p. 87), em

confronto e aproximação com o capítulo 30 do livro de “Provérbios”. O texto bíblico procura

causar o efeito da dignidade e habilidade dos animais. Pascual inversamente apresenta o lado

sombrio, negativo, perigoso deles. Solís (1969, p. 304) destaca a cobra, a ratazana e o

cachorro como os principais animais usados em comparações. Poder-se-ia, para

complementar, até acrescentar que o lado normativo dos ditos de Pascual aproveita-se de

modelos éticos presentes nas novelas de cavalaria, onde a defesa da honra e da justiça são os

ideais maiores.52

O espelhamento nesses modelos causa efeito contrário, pois trata, em seu

corpus, de questões éticas. Visto por cima, o narrador é um ótimo exemplo de personagem

antiético.

Embora sejam aproveitados os modelos da tradição espanhola, podemos aplicar em

parte a FPD a advertência de Machado de Assis sobre MPBC. O livro “está longe de vir dos

seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho” (ASSIS,

1960, p. 107). O narrador falseia seu relato com a impressão de seguimento de orientação

ética na escrita, embora deforme a composição e o conteúdo de seus antecessores em proveito

próprio.

Na introdução de uma das edições de FPD, Sotelo levanta a hipótese de “a confissão

de Pascual, sabedor de que o seu destino está fatalmente traçado,” causar a necessidade de o

narrador “interpretar sua vida com seu próprio critério autônomo de condenado à morte”

(SOTELO, 2006, p. 66, tradução nossa).53

É esse critério autônomo o problema-chave: como

falar para os outros, como, alguém aparentemente desprovido de tais domínios, transformar

um assunto que envolve a ética e a moral de outras pessoas? Se o livro é uma prisão

requerida, então o julgamento moral torna-se uma premissa e o menosprezar a opinião do

leitor, como fazem Mattia Pascal e Brás Cubas, é uma falsa assertiva. Portanto, para condenar

ou não cada narrador, ao seguir o caminho de desvios dos padrões sociais, e ao avaliar as

variáveis das possibilidades textuais, deparamo-nos com a inclusão de outra circunstância, na

possibilidade de uma autoimagem distorcida.

52

Em um conto intitulado “Memórias del cabrito Smith, chivo inssurrecto”, Camilo José Cela cria um

personagem com os mesmos instintos e quase os mesmos sentimentos de Pascual. A diferença é que o

narrador-escritor agora é um cabrito. Este luta pela liberdade e defende a honra do clã dos cabritos perante os

homens. Pascual, em geral, declara ter matado para defender a sua honra. Ver Cela (1981, p. 141-150). 53

“la confessión de Pascual sabedor de que su destino está fatalmente cerrado, y necesita interpretar su vida con

su próprio criterio autonomo de condenado a muerte”.

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2.2. O PROBLEMA DA (DISTORÇÃO DA) IMAGEM

No capítulo introdutório desta dissertação, falamos a respeito de os narradores serem

pouco dignos de confiança e do problema da constituição do jogo no qual o leitor é envolvido

em ponderações de diversas hipóteses sobre a sua vitimização. Fazendo a experiência de

conceituar os narradores-escritores como narradores pouco dignos de confiança, sugerimos

avaliá-los na expectativa da virtualidade da expressão “mundo fictício”, da sua similar

“mundo propriamente seu”, ou “mundo criado pelo autor (suposto)”. Estaríamos assim diante

da possibilidade de pensar a narração e a criação, dentro dela, de um mundo ilusório, justo no

ponto de imaginarmos como os narradores-escritores se enxergam no passado. O pensamento

dos narradores de se incluírem em um universo com a obrigatoriedade de favorecimento

descritivo, no qual eles situam-se em quadros delimitados de sua personalidade, revela que os

relatos sobre o seu “eu” são de interpretações das imagens distanciadas, presentes na atitude

de rememorar de um indivíduo incapaz (talvez) de dizer tudo, de confessar toda a verdade de

sua existência problemática.

A ilustração pessoal evidencia os moldes da opinião dos narradores e serve para

constatar a ilusão criada por eles na distorção de suas imagens, ainda mais de acordo com o

propósito de justificação, sem excluir a necessidade de angariar a simpatia do leitor. E isso

ocorre quando pensamos no posicionamento estratégico do livro a retratar o fim deles. Com o

deslumbramento do sujeito pelo seu ego, o narrador só trata de lamentar a vida que era

possível em algum momento; porém, no instante da escrita, já é irrealizável.

Brás Cubas é o primeiro a provar do poder da distorção da imagem, logo nos primeiros

capítulos, quando fala no remédio cujo efeito mudaria o mundo. Mesmo estando na zona da

afirmação autoral, o leitor não chega a presenciar a invenção de tal remédio nem sente os

efeitos milagrosos da substância anti-hipocondríaca, porque ela não existe senão nos dizeres

do narrador. Não há vestígios do processo empregado, dos testes ou dos resultados.

Antes um pouco, encontramos o ponto de partida para a distorção da imagem do

protagonista, no prólogo das suas memórias. Esse ponto está na citação dos nomes já referidos

de Stendhal, Sterne e Xavier de Maistre. Ainda sobre cotejar traços autorais de personalidades

famosas, no primeiro capítulo, o narrador iguala-se a Moisés,54

cujo último livro,

“Deuteronômio”, traz o relato de sua morte, assim como acontece no de Brás Cubas. Para o

54

Para um cristão, e mesmo para um judeu, a Bíblia é um livro sagrado e Moisés é aquele que as tradições

judaicas e cristãs afirmam ser o escolhido divino para entregar os Dez Mandamentos e oficializar a lei para o

chamado povo de Deus. De acordo com esse pensamento, a comparação seria considerada ofensiva, por

desrespeitar a consagração do livro e do personagem religioso.

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leitor, possivelmente cristão, parecerá afrontosa alguma ligação com esse tipo de escrita, por

envolver o texto religioso de maior importância no programa presunçoso de requerimento de

glórias terrenas, na disposição de sublimar sem nenhum decoro algo incapaz de pertencer a

uma tradição milenar beatificada.

A presença arrogante apenas de figuras de alto destaque em todas as comparações, as

relações alusivas ou alguma espécie de contorno intertextual advêm da falta de humildade do

morto, variando entre igualdade e consideração de superioridade. A afirmação de que o

remédio é um divino emplasto auxilia a bancar o espírito de grandeza, de soberba e de ser, em

primeiro lugar, no mínimo igual, e, depois, provavelmente melhor.

Ao destrinçar os pormenores, a lógica dos fatos narrados está na ordem de Brás

diferenciar o seu prólogo do de De l’amour, de Stendhal, no nível da quantidade de leitores,

destacando sua primazia por ter escrito como morto, algo que o escritor francês não fez. Se o

personagem de Sterne, Tristram Shandy, narrou o próprio nascimento, Brás irá demonstrar o

próprio delírio, além mesmo do psicologismo frio e analítico experimentado durante o

desenrolar do seu enterro, ambos, fatos inéditos, segundo ele. E mais, nenhum livro do

“Pentateuco”, conjunto de livros bíblicos escritos por Moisés, começa pelo fim. O de Brás

sim, na sua audácia de desligar-se das conveniências humanas, superando os autores

supracitados.

Os argumentos de Brás relativos à sua grandeza são expostos na medida em que

manifestam uma possível e bastante provável falsificação do próprio desenho descritivo-

biográfico. Consequência do ego corrompido nos dilemas de uma sociedade fortemente

marcada pelas mesclas de inevitáveis antagonismos, tornando a figura de Brás Cubas bem

melhor do que era ou havia sido. É nesse ponto que o leitor terá de dizer a si mesmo se está

sendo enganado ou mesmo se considera que o narrador cria um “eu” personagem como efígie

imediata de si. “Narrar não é, para Brás Cubas, reproduzir fielmente a vida, mas pôr em ação

regras que concretizam o relato, de modo a dimensionar uma ilusão de vida” (SARAIVA,

2009, p. 42). Caso seja aceita, essa lógica ecoa até nós, trazendo consigo indícios de

ficcionalização do “eu” do defunto-autor, expressa em eventos consecutivos ou simultâneos

de elevação pessoal e rebaixamento de seus leitores.

Podemos tomar, por exemplo, um caso de má vontade do suposto autor e torná-la um

dos índices de excentricidade planejada. A perspectiva narrativa, em outro episódio, projeta a

falta de confiabilidade nos fatos narrados e na seriedade do modo de nos dizer no que

devemos acreditar, resultando ainda mais na nossa insegurança semântica, motivo próprio

para causar a revolta contra esse narrador arrogante. O capítulo CLVII faz parte da engenharia

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do jogo, contrapondo dizer e não dizer bem aquilo que o narrador propaga ser sua fase

brilhante.55

Brás Cubas demonstra patente falta de clareza narrativa, contrariando o objetivo

comum de uma confissão,56

o de dizer tudo, de contar sua trajetória até a morte, sem omitir

pelo menos os detalhes importantes.

E vede agora a minha modéstia; filiei-me na Ordem Terceira de ***, exerci ali

cargos, foi essa a fase mais brilhante da minha vida. Não obstante, calo-me, não digo

nada, não conto os meus serviços, o que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as

recompensas que recebi, nada, não digo absolutamente nada. (ASSIS, 1960, p. 301).

O parágrafo inteiro desenvolve-se sob o pretexto da dita modéstia do narrador. Não

temos o complemento das informações necessárias. Não sabemos mais da atividade social do

rico. Tampouco sabemos se o que é dito é verdade, mesmo havendo grande probabilidade de

sê-lo, até porque a atividade social seria, no mínimo, uma forma positiva de divulgação do

nome da pessoa. O que intriga o leitor é o que ele deveria saber e não sabe por causa da

teimosia do narrador em não contar as informações que queremos para efeito de julgamento

do indivíduo. A especulação em torno das razões pelas quais o narrador interrompe a narração

sobre seus feitos humanísticos não nos deixa outro caminho senão focalizar nossas dúvidas

sobre a intenção, velada ou não, de passar-nos para trás e meter-nos em ardis, sem que o

tenhamos ofendido. De novo, ele constrói a imagem de um “eu” mais aperfeiçoado do que

certamente fora em vida.

Mattia Pascal fala do seu “eu” personagem e o redefine em um “eu” fictício. O crítico

de literatura italiana Guido Baldi relata o problema do protagonista em romper a fixidez da

imagem. Para ele, existe nos personagens pirandellianos, “anelantes por uma evasão e uma

liberação”, a tendência de seguir o caminho ficcional do “refúgio na imaginação ou no sonho

noturno” (BALDI, 2006, p. 31, tradução nossa). As reviravoltas do romance destacam duas

mortes e, do outro lado, por razão simples, duas vidas. As mortes antecedem fugas e surgem

da necessidade de Mattia Pascal evadir-se do sofrimento. Ele cria um personagem próprio na

trajetória de sua primeira fuga. É Adriano Meis, cujo nome é a mistura do nome do imperador

romano com o sobrenome do filósofo, cientista e político Camillo de Meis.57

Ambos o

narrador retirou de um debate entre dois italianos fervorosos a discutirem em um trem e os

projetou ao acaso em uma personalidade sem raízes, mas que atende plenamente ao seu

55

“Fase brilhante” é o título do capítulo. 56

Em teoria, a confissão é o ato de falar e confirmar o que está escondido, detalhando uma vida com os fatos,

vindo à tona o que é necessário saber. 57

As informações constam no capítulo 8 (PIRANDELLO, 1972, p. 102-103). Angello Camillo de Meis viveu

entre os anos de 1817 e 1891. Conheceu e conviveu com grande parte da intelectualidade italiana de sua

época, entre os quais o crítico de literatura Francesco de Sanctis e o filósofo e médico Pietro Siciliani.

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projeto de suplantação do passado desfavorável aos seus empreendimentos. O indivíduo

ficcional, ou a nova identidade assumida, mostrar-se-á de fato insustentável na superfície do

sentimento insuportável de inatividade cívica. Se considerado em seus limites, o personagem

Adriano Meis deixa Mattia Pascal em uma escala de impossibilidades: “Se salva uma

prostituta de uma agressão pelo caminho não pode assumir o mérito do gesto heróico; se ele

se enamora de uma mulher, está impossibilitado de estreitar qualquer ligação com ela”

(BALDI, 2006, p. 34, tradução nossa).58

Não pode sequer ter amigos, porque não pode dizer a

verdade. O resultado é a morte do personagem Adriano Meis.

Outra circunstância acentua o problema da ficcionalização do “eu”. Retornar vivo a

sua cidade natal lhe é vedado. Existe a sepultura com seu nome e alguém foi enterrado lá,

representando Mattia Pascal. Por estar enterrado, sua esposa casa-se novamente, saindo do

estado de aparente viuvez. Mattia percebe que ressuscitar tornou-o inconveniente para os

vivos, e mal-ressurreto, é preferível continuar morto. “Minha mulher é mulher de Pomino”

(PIRANDELLO, 1972, p. 279). Diante de tal estado e sem estar disposto a enfrentar as

correntes contrárias, uma via de escape interrompe o seu mal-estar para amenizá-lo. O

surgimento dessa via aguça a imaginação do personagem e passa pela apropriação de uma

técnica interessante para a sua sobrevivência em paz com os demais personagens.

A consequência – o enterro com lápide e tudo – torna-se muito atraente para o

protagonista falso morto, sem o devido prejuízo de contrariar o aproveitamento proposto no

primeiro parágrafo da sua narração. E tudo à custa de encarar a proposição coletiva, na

impressão da frase mortuária na lápide. Sua inscrição inspira uma série de ponderações, todas

em sequência: “Vítima de adversos fados, Mattia Pascal, bibliotecário, alma generosa,

coração aberto. Aqui voluntariamente repousa. A piedade dos concidadãos pôs esta lápide”

(PIRANDELLO, 1972, p. 279). De fracassado, passa a vítima do destino. Sua morte

teoricamente foi sentida pela piedade da comunidade. Miragno perdeu uma alma generosa. A

pequena comunidade também perdeu um coração aberto, um homem beneficiador dos outros,

talvez e principalmente dos pobres. Embora Mattia não fosse afeito ao trabalho ou sequer apto

a administrar os bens da família, a inscrição ameniza a figura negativa que tinham dele. A

opinião expressa naquelas frases deixa-o, pelo menos, em estado de beneficiário pela história

recente do seu malfadado destino.

Sobre ser alma generosa, coração aberto, lembremos que Mattia deixa provas de que

engravidou Oliva, a esposa do seu inimigo Batta Malagna, impotente sexual, e, em vez de

58

“Se salva una prostituta da un‟aggressione per strada non può assumere il merito del gesto eroico; se si

innamora di una donna si vede impossibilitato a stringere qualunque legame con lei”.

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ajudar, ele conquista Romilda, mulher que o seu amigo Pomino ama. A conclusão do leitor

pode ser (e acreditamos ser a mais provável) de que o narrador sabe que tudo não passa de

conveniências, não indo além do tal aproveitamento das circunstâncias. Dessa lição ele

também vai tentar tirar o máximo proveito e não se escusará mais da falsa condição de

falecido.

A solução para o problema inquietante envolvendo o narrador toma o rumo da

construção de outra personalidade. Se Mattia Pascal e Adriano Meis estão mortos, existe o

vestígio de uma terceira identificação. A demonstração da terceira vida do narrador vem na

última frase do romance: “Eu sou o falecido Mattia Pascal” (PIRANDELLO, 1972, p. 279).

Ele não é mais simplesmente Mattia Pascal, aquele que se chamava assim no início do livro.

Agora ele é o falecido.59

O terceiro narrador também ficcionaliza sua personalidade. É importante saber que

Camilo José Cela planejou o personagem de forma a seguir parâmetros, referenciados por

outros estudos, de personagens literários a habitar a riqueza do século de ouro espanhol, do

barroco, das novelas de cavalaria, de Lazarilho de Tormes. Isso tem sentido para nós, como

pretendemos comparar de forma rápida, quando temos a evidência da luta pela honra, o que

permite aproximar Pascual Duarte principalmente do personagem homônimo do livro Dom

Quixote, de Cervantes. Wasserman acredita que

Pascual Duarte não fez mais que seguir uma tradição bem delimitada nas artes

espanholas desde vários séculos, tanto na linguagem e nas ações como nos

personagens desenvolvidos pelo autor [...]. O pessimismo extremo, os atos “feios” e

o primeiro parágrafo [...] recordam vivamente ao Quevedo do Buscón ou do Sonho.

(Wasserman, 1990, p. 40, tradução nossa)

A autora ainda acrescenta que “ter como protagonista um homem humilde não é nada

novo, e a ideia da ação e reflexão no mesmo personagem já se encontra em Don Quixote ou

em San Manuel Bueno” (WASSERMAN, 1990, p. 40, tradução nossa). Ela compara

principalmente o estilo da carta de Pascual Duarte ao da escrita por don Alonso Ramplón,

personagem do livro espanhol Historia del Buscón, de Francisco de Quevedo

(WASSERMAN, 1990, p. 24-26), enquanto Charlebois (1998, p. 11) fala de Pascual seguir os

passos do personagem homônimo da obra Lazarilho de Tormes.

Essa tradição de personagens espanhóis toma por base o envolvimento deles nos

59

A imagem narrativa está cercada pela estranheza. Baldi (2006) faz o estudo do romance de Pirandello através

da distração aludida por Mattia. “Por sorte, o homem distrai-se facilmente. [...] Pois bem, graças a essa

providencial distração, bem como a estranheza do meu caso” (PIRANDELLO, 1972, p. 14, grifo nosso).

Assim as duas cordas circulantes dessa confissão são a estranheza e a distração.

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valores do mundo católico, variando entre a esperteza e a mentira em um ponto, até a honra e

o cultivo dos motivos nobres, pelo bem do próximo, em outro. Essa corrente acaba por ser

adaptada até assumir, já no século XX, o caráter do que se entendeu por tremendismo.

A introdução do termo, de acordo com Cela, é de autoria incerta, porém o poeta

Zubiaurre e o crítico Vázquez-Zamora disputam a paternidade do vocábulo (CELA, 1972, p.

19). A terminologia representa o realismo literário espanhol do pós-guerra. Através do seu

campo semântico, a palavra proporciona a visão da agressividade de cenas e da linguagem.

Na leitura de obras que se inserem nessa escola realista, somos surpreendidos pela brutalidade

construída por narrações que estão sempre a falar de sangue e de violência, além de se

expressarem com termos baixos, xingamentos, expressões irônicas ou não, com conotação

sexual. É comum a crítica espanhola alegar que o tremendismo tenha seu princípio com a

publicação de FPD, embora Cela defenda que essa corrente “não tem pai” e “em literatura

espanhola [o tremendismo] é tão velho como ela mesma” (CELA, 1972, p. 19, tradução

nossa). Cela conceitua o termo partindo do princípio de que “a vida é tremenda” (CELA,

1972, p. 20, tradução nossa). Para ele

uma obra tremendista [...] há de retratar o mundo com uma cruel e descarnada

sinceridade; há de contar sempre toda a verdade; jamais poderá ser desleal ao seu

tempo e a sua geografia; há de ser clara [...], caridosa [...], terna [...], honesta sem

tabus nem jogos de palavras (CELA, 1972, p. 21, tradução nossa).

Pascual Duarte exerce uma relação controversa, dentro da tradição de personagens

espanhóis, por estar apoiado não só na questão do caráter, mas por envolver propriamente as

características do tremendismo em um problema de julgamento do caráter e da escrita. Ele

pode ser visto em ambas as pontas (homem honrado, cavaleiro ou vagabundo esperto, pícaro),

na ação motivada da luta pela justiça de forma correta ou na vivência usando a malandragem

e a mentira. Seu texto está repleto de alusões ao primeiro tipo, porém suas ações nos servem

de inclinações para imaginá-lo já no segundo. É esse o problema aparente da distorção da

imagem do narrador visto por ele mesmo, anunciando-nos um Pascual diferente daquele que

percebemos no momento da leitura.

A comparação de Pascual aos personagens das novelas de cavalaria indica a nobreza

existente apenas enquanto ato de pronúncia, na fala, segundo o narrador tenta nos fazer

acreditar no que diz. Ao colocá-lo perante Lazarilho de Tormes e outros personagens

picarescos, Pascual não é só o embusteiro, o mentiroso. Sua imagem final é a de um covarde,

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além de egoísta, incapaz de agir em prol dos outros, não conseguindo valorizar outras pessoas

e se preocupar com elas, ultrapassando o seu ego. E, por fim, ao dizer que é possível

compará-lo a dom Quixote, estamos falando de proximidade em razão do espírito passional de

ambos, de os dois tentarem defender a honra acima de tudo, de serem agressivos quando não

deveriam ser, embora a agressividade de dom Quixote seja burlesca. A diferença imediata

entre os dois está na alegação da nobreza do desvairado dom Quixote e no egoísmo de

Pascual, capaz de ultrapassar os limites sociais e morais do seu tempo para viver e ver-se

superior aos outros. Em ambos os casos, as figuras do falso nobre dom Quixote e do falso

nobre de espírito Pascual Duarte são ridículas pelo absurdo inerente na forma de agir dos dois.

Envoltos pelos disparates do seu tempo, os parâmetros da moralidade católica da

sociedade espanhola aliam-se logo à razão pronunciada de ser o livro de memórias uma

confissão escrita, com o objetivo expresso de purgar os pecados. A deliberação condicional,

exigida na pronúncia racional do sentido de confissão nos termos católicos e literários, deixa-

nos entrever na leitura do romance que a imagem a ser defendida é a de um homem em busca

da espiritualidade futura, uma tese, portanto, de arrependimento de cunho religioso,

acreditando no resgate da alma. Ainda, e em seguida, temos o conhecimento de que, como

Pascual intenta escrever para um homem culto (o don espanhol), passa pela obrigação de

adotar um padrão o mais legível possível para ser aceito. Inicialmente, Pascual precisa ser o

que não é: um escritor, alguém que tenha o domínio sobre a escrita.

Pela suposta imitação do formato proverbial da Bíblia, os moldes da escrita nos fazem

pensar que Pascual quer que acreditemos estar escrevendo para confessar-se e purgar seus

erros, purificando sua alma nos dias finais da vida, ultrapassando o seu “eu” e chegando à

tentativa de prover o próximo de conhecimento, para aprender o que ele não pôde a tempo de

viver em paz com os outros. O estilo bíblico dos livros de sabedoria e o enxerto de

comparações à moda dos livros de Salomão misturam-se com a pobreza da mente de um

homem bruto, acrescentando a ele retratos de um percurso de vida cheio de cenas de

agressões físicas e morais, repassando às frases mesmas o sentimento de inconformidade em

juízos contra a família (principalmente) e outros compatriotas. Pascual, ao falar de si, deixa

uma série de observações, expondo seu espírito com egoísmo, agressividade e outros atributos

estranhos a uma alma arrependida, o que contradiz uma confissão no sentido de

arrependimento com vistas à purificação no plano espiritual cristão.

As atitudes passionais do Pascual Duarte narrador refletem uma lógica de ação, a de

confronto verbal passando logo ao confronto físico. Essa parece ser a prática de convivência

do Pascual Duarte personagem. Sua imagem no passado é transmitida a todo instante,

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apontando para a justificativa de ser homem. Enquanto Brás Cubas alega ser homem por ser

cínico, aproveitador, Pascual Duarte carrega na sua justificativa uma forte impressão de

virilidade. Toda ação adversa causada por outra pessoa, por menor ofensa que seja, deve, pois,

ser retratada com sangue e dor.

Robert Kirsner destaca a frequência da palavra “sangue” em vários capítulos de FPD.

Segundo sua análise do romance, “tanto na vida como na morte, no amor como no ódio, as

características chegam vivas ao redor da aparência da palavra sangue” (KIRSNER, 1963, p.

22, grifo do autor, tradução nossa). Quem analisar os momentos mais intensos do romance, os

três momentos de maior gozo do personagem (fora o nascimento dos filhos), encontra na

descrição da primeira relação sexual de Pascual com Lola, na morte de Estirao e no

assassinato da mãe do protagonista a recorrência da mesma palavra: “Eu a mordi [Lola] até

sangrar, até ficar rendida e dócil” (CELA, 1986, p. 48); “[Estirao] Começou a lançar sangue

pela boca” (CELA, 1986, p. 114); “Foi quando pude cravar [em sua mãe] a lâmina na

garganta. [...] O sangue corria sem freios e me bateu no rosto. Estava quente como um ventre”

(CELA, 1986, p. 138, grifo nosso).

Em termos gerais, a imagem total do personagem é uma construção baseada na

interpretação que o narrador faz de si mesmo, com o propósito de pedir indulto. Pela

aparência da justiça, seria mais que natural que ele pudesse defender a sua honra e a da sua

família. Pascual estaria a nos dizer que é um homem nobre, na importância dos seus

sentimentos, mesmo que não o seja no plano material.

A seção antecedente das memórias de Pascual Duarte, com o título “Carta anunciando

o envio do original”, funciona já para demonstrar as diferenças de classe entre o narrador e

um privilegiado social, que ainda tem o título de don, a ser entendido como nobre de berço ou

de natureza. O título está a atestar os privilégios de classe. O papel de don vai ser requerido

para se provar a um deles (don Joaquín) que um pobre camponês agiu errado, fiado no destino

e nos impulsos de um ser de intelecto arcaico, sem refinamento. A dedicatória a don Jesús

apresenta a diferenciação social. Nela, temos o problema de pensar o que ela significa para o

seu enunciador, visto nesse trecho haver o detalhe de o narrador ser nomeado no diminutivo,

pelo apelido de Pascualillo. O fato aponta para a enunciação do nobre assassinado e para a

forma de aceitação da expressão. Temos, no mínimo, duas maneiras de interpretá-lo. Talvez o

diminutivo do nome tenha sido enunciado com intuito carinhoso, depreciativo ou irônico. E

recebido e aceito da mesma forma, com intuito carinhoso, depreciativo ou irônico. Assim,

Pascual poderia estar apontando para as diferenças sociais. Ser diminuído no nome pode ser o

indício de revolta ou não do personagem.

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Como só temos a frase e nenhum comentário sobre ela, no capítulo primeiro, o terceiro

parágrafo vai ser gasto quase todo para falar da riqueza da casa de don Jesús: “havia uma

[casa] de dois andares, a de don Jesús, que dava gosto vê-la com sua ante-sala toda cheia de

azulejos e vasos” (CELA, 1986, p. 16). Com isso, e com o caso de o narrador nada mais falar

sobre sua principal vítima, apenas podemos imaginar que estamos entre duas possibilidades

bastante viáveis, acima de tudo, pessoais. Pascual tanto pode ser vítima como pode ser

assassino. Na verdade, uma situação não exclui a outra.

Se Pascual começou o romance comparando a pequenez do seu nome com a

superioridade econômica e aristocrática de don Jesús, é na relação com os personagens

decaídos moralmente que ele apresentará ser digno e defensor da honra. Kirsner cita em nota

de rodapé o prólogo de Marañon para embasar sua afirmação, em transparente discordância

com o primeiro prefaciador do romance FPD. São palavras de Marañon (1951 apud

KIRSNER, 1963, p. 22, tradução nossa): “[Pascual] Duarte é melhor pessoa que suas vítimas

e que seus arrebatamentos criminosos representam uma sorte de abstrata e bárbara, porém,

inegável justiça”. São palavras de Kirsner (1963, p. 22, tradução nossa): “Talvez o ato mais

ofensivo da novela é o fazer o criminoso uma pessoa bem melhor que suas vítimas”.

Por preferir em primeiro plano a análise do conjunto textual, muito mais que avaliar a

conduta do personagem, mesmo assim, optamos por arriscar o apoio à opinião de Kirsner.

Predisposto à barbárie por seu temperamento sanguíneo e truculento de homem latino,

Pascual comete uma série de atentados contra outros seres, sem perdoar parentes, conhecidos,

desconhecidos e até animais domésticos. Ele abusa da desculpa de defender-se por não aceitar

ser ofendido. No fim do capítulo três, o narrador reproduz o diálogo de Estirao e Rosa. Estirao

a espanca e a provoca, referindo-se a Pascual, inferiorizando-o, no intuito de humilhá-la ainda

mais e mostrando como ele não teria poder de defendê-

não é homem nem coisa alguma?” (CELA, 1986, p. 36). Para Pascual, conhecendo o diálogo

entre sua irmã e o amante, pior do que não ser homem é ser rebaixado ainda mais, sem poder

chegar a ser considerado sequer um animal. A fala provocativa atinge o orgulho já ferido do

narrador, deixando a ele a obrigação de ter de se livrar de um inimigo público. Mas não é só

Estirao que fala com a intenção de rebaixar e ferir os sentimentos do protagonista. Lola, antes

de casar-se, faz semelhante provocação, comparando Pascual a um deficiente, que não pode

agir como um homem (principalmente no âmbito sexual, em uma atitude capaz de ferir ainda

mais a honra do ofendido): “ – És como teu irmão [Mário, o deficiente físico e mental]!”

(CELA, 1986, p. 48). Só depois de ser dominada e se relacionar sexualmente com Pascual é

que ela mudará o discurso. Ao atingir o objetivo da provocação, Lola diz sem remorso algum:

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“ – Não és como teu irmão...! És um homem...!” (CELA, 1986, p. 49).

Ler os dois exemplos isolados do restante do livro já é suficiente para apontar o

principal lado do caráter do narrador. A descrição da primeira relação sexual de Pascual com

Lola demonstra como o narrador é facilmente envolvido pelo instinto. Esse procedimento

deve ser visto em consonância com a seguinte ponderação: “A importância de conservar a

dignidade masculina é essencial na atitude de homens da categoria de Pascual”, diz Ilie (1963,

p. 50, tradução nossa), um dos analistas mais importante da obra de Cela. O crítico literário

faz essa consideração a partir da proposta de uma tese de primitivismo do personagem,

seguindo o princípio de identificação da categoria em que se inclui o narrador. Segundo ele,

isso ocorre porque a sua personalidade está imersa em um primitivismo mental, diferente e

abaixo do homem comum. As características desse primitivismo são respostas fisiológicas

imediatas, no lugar de estímulos corporais para a ação do indivíduo mediada pela reflexão,

pelo raciocínio pautado na lógica que preza, entre outras qualidades, a preservação da

alteridade.

O egocentrismo é prática inegável na mentalidade desse tipo de pessoa que só

consegue enxergar o imediato. Mentalidade tanto mais acentuada quanto mais forem vistas

em destaque as limitações humanas impostas, cujas causas encontram-se na escassez

financeira, na aridez do lugar, na falta de contato sadio com outras pessoas, familiares ou

amigos.

Para embasar sua tese do primitivismo do personagem, Ilie cita que o sentimento de

“carinho de Pascual é um produto, não uma afeição espontânea” (ILIE, 1963, p. 41, tradução

nossa), que “os sentidos [dele] são irracionais, [...] opostos às faculdades intelectuais” (ILIE,

1963, p. 44, tradução nossa) e que “a resposta mais básica dada por Pascual aos

acontecimentos, particularmente quando estes são difíceis, é a fisiológica, na qual não aparece

esforço de pensamento nem sequer emoção. Ela é automática e irresponsável” (ILIE, 1963, p.

48, tradução nossa).

A brutalidade sensorial analisada por Ilie já por si seria um forte indício contra a

humanidade do narrador, transformando-o em um ser humano um pouco superior aos animais,

sendo mesmo assim bestializado, em um processo cujo destaque é o fato de ser a sua

“sensibilidade mais dominante [no relato] a olfativa” (ILIE, 1963, p. 44, tradução nossa),

como mostra a seguinte declaração do narrador: “É curioso, mas, quando moço, se me

privavam daquele cheiro [de animal morto em decomposição, jogado em uma vala] eu era

tomado por angústias de morte” (CELA, 1986, p. 19). Decorre disso uma estranheza estética,

propícia ainda mais à inferiorização do personagem: “as pessoas com um refinado sentido de

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olfato se encontram restringidas ao prazer que a série de odores agradáveis ou aromas lhe

proporciona” (ILIE, 1963, p. 45, tradução nossa) como perfumes ou cheiros aceitáveis,

enquanto “a diferença que situa a Pascual em um plano inferior na escala da sensibilidade”

indica a presença do gosto primitivo, “atento a odores nada delicados com específicas

associações animais ou corporais, sejam estas orgânicas ou funcionais” (ILIE, 1963, p. 46,

tradução nossa). Ilie completa: “A relativa escassez de referências mais „agradáveis‟ pode

atribuir-se a uma falta de refinamento na percepção sensorial” (ILIE, 1963, p. 46, tradução

nossa).

Um último detalhe mostrará ainda mais o caráter ficcional desenvolvido acima das

características de camponês simples e limitado. Don Santiago Lurueña e Cesáreo Martín

atestam ouvir antes do fuzilamento a expressão “faça-se a vontade de Deus!”, chegando a

deixar maravilhado o pároco, além de demonstrar muita valentia, talvez honra, na visão do

guarda civil. O prosseguimento da cena mostra o contrário. O personagem Pascual Duarte

desmaia quando se vê na iminência de ser morto, grita que não quer morrer, beija o crucifixo

e termina “seus dias cuspindo e escoiceando, sem cuidado nenhum para com os circunstantes

e da maneira mais ruim e mais baixa que alguém pode terminar; demonstrando a todos seu

medo da morte” (CELA, 1986, p. 145-146).

Após falar na ficcionalização do personagem feita por ele mesmo, temos em mente

que ele é o sujeito e o objeto dos relatos memorialísticos, sendo o personagem no passado um

duplo do narrador que, presente nos próprios relatos, obriga o leitor a pensar na existência da

sua “imagem oficial”. Se há uma imagem oficial construída pelo suposto autor, existe então

um discurso oficial, considerado como verdade pelos narradores-escritores, desembocando

cada estilo próprio na capacidade de caracterizar-se como personagem e narrador, ambos

sendo categorias a representarem seres escriturais distanciados. Teríamos, de um lado, o

discurso oficial, a imagem, o estilo e, do outro, o leitor tentando identificar e correlacionar

texto com nome, vida com texto, e coerência narrativa com coerência da vida, digamos,

interrompida, claramente desperdiçada.

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3. ÁLBUM DE RETRATO: AS RELAÇÕES DE FAMÍLIA, O FRACASSO

E O LEGADO

– Oh! – fazia então, balançando a cabeça com um sorriso.

– Sorte tua, meu amigo. É bom ser defunto?

Pirandello

As marcas atuativas ocorrem principalmente na intimidade da família do narrador.

Mesmo que elas acabem por concretizar-se na recorrência à caracterização da enunciação do

“eu sou”, “me chamo” ou simplesmente o uso do “eu”, na representação do sujeito, a

individualidade sofre a influência da aproximação do meio. O fracasso não deriva, por via

exclusiva, das escolhas pessoais, como poderíamos pensar ao analisar o primeiro capítulo de

Mattia Pascal, nem é a pura e simples concretização das potências do destino, como alega

também no primeiro capítulo Pascual Duarte. Nesse meio-termo, outra instância prisional é

comum aos três narradores-escritores. A prisão está presente desde o lar, e o nome familiar é

uma espécie de cárcere. O lar é o lugar em que surge e ocorre o erro, em que o crime (desvio)

se materializa. As redes familiar e comunitária propiciam o ato do erro, porém não são elas as

entidades que finalizam o ato. Das duas, é a família o maior polo de intromissão nos passos

do narrador no passado.

De outra forma, nos três romances, a presença do tema família exerce papel

fundamental, pela capacidade de despir e tornar os sentimentos íntimos dos narradores mais

nítidos, quando estes esbarram na dificuldade de falar dos seus entes sem atingir quem os lê.

Querendo ou não, é de aceitação comum que a família tem algo de sagrado, que não se pode

falar mal dela nem tentar transferir toda a provável culpa para uma educação falha, na medida

em que, mesmo que seja o caso, esteja envolvida a possibilidade da escolha, o livre arbítrio.

O narrador-escritor é o espelho das atitudes e decisões da família. Por essa razão, para

não cair apenas no determinismo e na predestinação da pessoa ao fracasso, é preciso avaliar

na escrita do narrador-escritor as suas escolhas, se ele optou, de plena consciência, por

assumir ou não aquela herança. Mediante a atitude da escolha, devemos nos perguntar se

pessoas com características semelhantes a Pascual Duarte serão sempre assassinas, ou se

pessoas bem-nascidas, ricas, de famílias chamadas nobres, não predestinadas ao trabalho e ao

casamento, manterão o ócio de Brás Cubas. A família pode – ou não – ser vista como o

elemento castrador, a ponto de moldar vidas, transformar indivíduos e destiná-los a serem

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imutáveis, escondendo-os atrás de eternas e intransponíveis máscaras sociais. O que parece

evidente nos três romances, em referência ao narrador perante o lar, é a atitude de transferir

para a família, célula social de formação e desenvolvimento, algumas responsabilidades suas

na hora de realizar determinadas escolhas, satisfazendo o interesse pessoal.

O ambiente familiar é o cenário da descrição do nascimento, da infância, do

crescimento e desenvolvimento do indivíduo, dos sonhos de juventude fracassados, até a

tentativa malograda do casamento. Não é à toa que os narradores se dedicam a pormenorizar

determinados detalhes dessas fases, mostrando ora suas traquinagens, ora a permissividade

dos pais. A visão da família como grupo traz o pressuposto de o indivíduo viver entre regras

de convívio e hierarquia. As regras de convívio são impedimentos ao narrador para agir

livremente. Os narradores vivem com dificuldades no seio familiar e, no momento em que as

dificuldades são encobertas, com a complacência paterna, consagra-se o caminho mais curto

para o fracasso.

No caso dos problemas familiares ou das relações em família, a existência do elo

sanguíneo remete o narrador a duas localidades semânticas necessárias em referência ao nome

composto. Há a origem (a família e o problema do sobrenome) e há a vivência na fase adulta,

com a constituição de uma nova célula familiar mediante o casamento. Em confissões do fim,

ambas estão rodeadas e infladas na descrição da intimidade do protagonista pelo sentimento

do fracasso.

Da mesma maneira, consideradas as duas circunstâncias de relação familiar (a anterior,

valorizando o patrimônio, e a posterior, assumida ou requerida no matrimônio), notamos que

o narrador adota uma forma de apontar na direção da primeira o erro que culminou no

fracasso. Assumindo o erro por ter de angariar a opinião dos leitores, ele nos deixa a

proposição de que esse fracasso antecede a formação do seu caráter, predestinando-o ao

desvio do caminho de virtudes. A tentativa de justificar o erro pela família está manifesta nos

comentários, desde a falência da força de mediação educadora dos pais.

A informação sobre a família aparece pela primeira vez no título. Este apresenta

alguma consideração adicional referente ao indivíduo, identificado por nome e sobrenome.

Nos três títulos, o sobrenome é o último termo e parece ser a marca da herança carregada pelo

narrador para delimitá-lo, diferenciando-o de outros seres e aproximando-o de um grupo. O

sobrenome assume, assim, duas verdades contraditórias, sendo, a um só tempo, capaz de

servir como elo de aproximação e semelhança e de ser um ponto de diferenciação e definição

exclusiva. A primeira condição está ligada à família, e a segunda, ao meio externo ao

ambiente familiar. Temos de imediato os Cubas, os Pascal e os Duarte. A lógica indica que

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Brás é justamente um “Cubas”.60

Essa expressão nominal liga o personagem a uma casa. O

seu reconhecimento leva em si tal desígnio. Ou seja, entre outras pessoas chamadas de Brás,

apenas uma, com sobrenome Cubas, é pertencente a essa família abastada: o autor das

memórias póstumas.

O narrador tem nome e identidade dupla, formada de valores anteriores assumidos,

somados, ainda, às escolhas requeridas pelo tipo de vida. Logo, a função da identidade não se

refere somente ao predomínio do nome individual ou do sobrenome. E o mesmo ocorre com

os demais narradores-escritores de confissões do fim, quando estes têm ou não seus nomes

estampados na capa do romance.61

Os personagens têm problemas iniciais de relacionamento e também intensas relações

de parentesco. Para narrar, agora eles precisam descrever uma seleção de acontecimentos com

o auxílio do comentário. E estas serão para eles suas duas armas de defesa, na tese de fruto do

lar: a descrição e o comentário.

A liberdade excessiva na infância, as relações com a mãe (de afetividade ou ódio) e o

pai (no ato de assumir diretamente a herança) aproximam os narradores e centralizam todo o

seu desenvolvimento. Ao começar a descrever o caso familiar, Brás Cubas assume a relação

de abstenção do mea culpa, na tentativa de mostrar a responsabilidade dos pais e outros

parentes na criação e constituição do seu caráter, desde criança. No capítulo XI, “O menino é

pai do homem”, a abertura é singular: “Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci

naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos” (ASSIS, 1960, p. 128). A hipótese do

crescimento livre, sem parâmetros reguladores satisfatórios para o desenvolvimento de uma

identidade menos egoísta, tenta demonstrar a parcela máxima de culpa alheia. Logo, é a

família a entidade responsabilizada, porque é ela a responsável legal e moral pela educação

dos filhos.

Em MPBC, por ser o livro também uma defesa dos direitos de classe e uma

autobajulação,62

o narrador nos informa que, em sua infância, era ele um “dos mais

malignos”, “arguto”, “indiscreto”, “traquinas e voluntarioso” (ASSIS, 1960, p. 129). O

protagonista, na posse dos adjetivos nada recomendáveis para uma criança, não para por aí e

60

Título do capítulo XLIV. Nesse capítulo a expressão é usada quatro vezes, sendo pronunciada, em pelo menos

duas delas, pelo personagem-pai do narrador. 61

Consideramos também confissões do fim os livros Dom Casmurro, de Machado de Assis, São Bernardo, de

Graciliano Ramos, e O túnel, de Ernesto Sábato, embora não haja, nos títulos dessas obras, a presença dos

nomes no título do livro. 62

O capítulo X, por exemplo, no qual narra os seus primeiros anos de vida, Brás inaugura-o falando que no dia

20 de outubro, data do seu nascimento, na “árvore dos Cubas brotou uma graciosa flor”; depois, foi ele

recebido por “Pascoela, insigne parteira”, seu batizado “foi uma das mais galhardas festas do ano seguinte”

(ASSIS, 1960, p. 127) e começou a andar “antes do tempo” (ASSIS, 1960, p. 128).

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vai bem mais além, chegando a desenvolver e aperfeiçoar ainda a qualidade da “contemplação

da injustiça humana” (ASSIS, 1960, p. 129). Afirma-nos isso sem nenhum arrependimento e,

“ao sabor das circunstâncias e lugares” (ASSIS, 1960, p. 129) é que Brás vai viver como

reflexo do menino indiscreto e voluntarioso que foi. A respeito disso, Saraiva fala que “as

origens do protagonista e sua infância definem o homem que ele viria a ser, pois o „menino é

pai do homem‟” e ainda que “Brás Cubas adulto não desmente o „menino diabo‟, continuando

a ser pela vida afora „opiniático e algo contemptor dos homens‟” (SARAIVA, 2009, p. 46).

A liberdade excessiva será marca atuante na ação do protagonista, ao abusar do

desrespeito aos limites de convívio. Seu pai é um grande responsável por isso, mas não é o

único. Em geral, essa responsabilidade, a da educação, recai sobre os ombros da mãe e dela se

cobra muito, quando se vive em uma sociedade com a tradição de o homem ser o mantenedor

da família, e a mulher, a educadora por natureza.

A figura da mãe é preponderante na ação dos três personagens aqui analisados. Brás

Cubas e Mattia Pascal veem nela um ente querido, carinhoso e falho, por ser permissivo.

Brás Cubas refere-se à sua mãe como “fraca, de pouco cérebro e muito coração” (ASSIS,

1960, p. 130). Mattia Pascal adora sua mãe por ela ser “uma santa mulher”, de “índole

retraída” e, acima de tudo, “muito pacata” (PIRANDELLO, 1972, p. 18). Até porque ela

permitiu suas vontades e em nada procurou influenciar na formação ou no desenvolvimento

do seu caráter. Ao contrário dos dois, Pascual Duarte detesta a mãe desde a infância e

identifica-a com termos como espancadora, bruta, suja, xingadora, mal-humorada, insatisfeita

com a vida e alcoólatra:

[...] era também áspera e violenta, tinha um humor infernal e uma linguagem na

boca que Deus nos livre, pois blasfemava as piores coisas a toda hora [...]. Estava

sempre de luto e era pouco amiga da água [...]. O vinho, em compensação, já não lhe

desagradava tanto. (CELA, 1986, p. 24).

Nos três casos, serve de lição não apenas a atitude das mães de (não) educar os filhos,

mas também a forma como os narradores são vistos nas relações com os familiares. Estes, em

suas descrições, acusam os narradores de serem egocêntricos ao extremo. Brás Cubas pouco

fala da relação com a mãe (embora veja nela um ente querido) e vai apresentá-la apenas no

capítulo XI. Mattia exalta a figura materna e a eleva ao status de santa, principalmente porque

ela tolera suas vontades e pouco faz para adverti-lo. Pascual, já desde cedo, deixa entrever o

ódio pela mãe, razão que o faz acreditar ser melhor se livrar dela. Assim, na maneira de falar a

respeito de suas mães, cada narrador entrega-se, revela a mais íntima relação de parentesco,

pelo uso da linguagem em sua forma mais íntima possível. Aí teríamos novamente o

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aparecimento do discurso encarcerado e das marcas atuativas.

No romance em que esse tipo de discurso é mais nítido, Pascual Duarte fala da família

com violência e desprezo. Ele está preso ao ódio e à insatisfação, além de outros sentimentos

negativos. Voltemos antes à primeira frase do seu relato – “Eu, senhor, não sou mau” – e ao

seu respectivo complemento – “embora não me faltassem motivos para sê-lo” (CELA, 1986,

p. 15). No mesmo capítulo, o narrador, pela primeira vez, diz algo sobre a família: “Em um

dos aposentos dormíamos eu e minha mulher, e no outro meus pais até que Deus, ou quem

sabe o diabo, quis levá-los” (CELA, 1986, p. 18, grifo nosso). O rancor e a ironia em relação

à família vão ao encontro da primeira frase do relato e deixam ao leitor duas possibilidades

básicas. Ou o narrador está se firmando no propósito de que a família está incluída na segunda

frase (“embora não me faltassem motivos para sê-lo”) – e aí o leitor vai ter de descobrir o que

se passou entre a família e ele, se um problema de criação, perseguição ou outro tipo de

atitude – ou o narrador desmente sua afirmação inicial (“Eu, senhor, não sou mau”) logo de

saída e se perde, condenando a si mesmo, sem perceber.

Continuando com Pascual Duarte, no capítulo dois, passamos a saber que o pai se

chamava Esteban, era um português alto e gordo como uma montanha. O narrador descreve o

bigode dele e acrescenta: “Eu lhe tinha um grande respeito e não pouco medo” (CELA, 1986,

p. 23). Fala mais: “era áspero e brusco e não tolerava que o contradissessem em nada”

(CELA, 1986, p. 23). Não para por aí e deixa o leitor saber que, quando “se enfurecia, coisa

que acontecia com mais freqüência do que o necessário, dava grande surra em mim e em

minha mãe” (CELA, 1986, p. 23). Conclui o primeiro parágrafo do segundo capítulo com sua

filosofia imediatista de homem inculto: “Nossas carnes são tão delicadas em idade tão tenra”

(CELA, 1986, p. 23), deixando claro que ele era inocente na infância e a culpa pela sua

transformação era dos seus pais. É possível afirmar que, em momento algum, o narrador

demonstra “grande respeito pelo pai” e, sim, medo. O tempo todo, o que se mostra é o pavor

de uma criança de sofrer as agressões físicas.

Ao voltarmos à figura materna, percebemos que a mãe de Pascual não é nomeada, e

não se sabe o motivo dessa falta de nomeação. Conforme vimos, sobre a mãe ele nos informa

que era áspera e violenta, xingava muito, tinha uma aparência de luto permanente, nunca

alegre. Até aqui tudo bem, pareceria apenas uma descrição simples. No entanto, a ironia aflora

em Pascual e, nesse momento, ele faz o leitor saber ser sua mãe “pouco amiga da água”,

emendando um comentário acerca do vinho, que “não lhe desagradava tanto”. Pascual declara

o gosto da mãe pelo vinho, depois de haver dito que o seu pai já a chamara de bêbada. Ele

aproveita para confirmar, de maneira sutil, o retrato da mãe, tendo por bordas a qualificação

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depreciativa de ser pouco amiga da água e muito amiga do vinho.

Na descrição do pai e da mãe, nada de positivo aparece e ambos não se diferenciam

muito entre si. Isso, se tivermos em mente a frase inicial de Pascual. Mas outro tópico do

relacionamento dos pais e do filho chama bastante atenção, quando o narrador toca no assunto

“escola”. Se em uma primeira vista a mãe sofria constantes surras, o leitor pode pensar na

mulher agredida e no direito dela à defesa. Pascual logo desmente a figura de agredida e de

coitada da mãe, delineada pela forma agressiva e quase disfarçada da escrita dele, narrador,

conforme vimos antes, com a expressão “pouco amiga da água”. Agora, pela primeira vez,

alguém vai ser defendido na obra. “Minha mãe não sabia ler nem escrever; meu pai sim”

(CELA, 1986, p. 25).

A consequência, no entanto, vai ser a inversão imediata da defesa, passando da mãe

para o pai em favor dos estudos do filho: “meu pai dizia que a luta pela vida era muito dura e

que devia ir me preparando para enfrentá-la com as únicas armas com que podíamos dominá-

la, as armas da inteligência” (CELA, 1986, p. 26). A mãe, ao contrário, entendia que se

Pascual estudasse se tornaria superior a ela, e não aceitava que isso acontecesse na família:

“Minha mãe não queria que eu fosse à escola” (CELA, 1986, p. 27). O resultado foi a pouca

permanência do menino e, logo em seguida, a sua saída do meio educacional. “Já sabia ler e

escrever, e somar e diminuir, e na realidade já tinha o suficiente para conduzir-me. Quando

deixei a escola tinha doze anos” (CELA, 1986, p. 27).

Diante desse panorama, o pai, prevendo as dificuldades da vida, formaliza seu

pensamento sobre a necessidade de usar “as armas da inteligência” e parece lamentar-se por

não ter estudado mais. Ele aconselha o filho a manter uma preocupação com os estudos e uma

dedicação a eles. O narrador alega ter “o suficiente para conduzir” seus passos na caminhada

da vida. Os estudos eram a arma para se viver melhor, quem sabe, mais equilibradamente,

sem levar tudo como motivo de ofensa. A ofensa e a brutalidade originária da vingança seria

uma justificação para a defesa da honra do indivíduo e da família. Eram os costumes da terra,

tanto que tudo se resolvia, na cabeça de Pascual e do povo de Almendralejo, à base de

navalhadas. “Os amigos [no episódio da luta, em um bar do vilarejo, entre Pascual e Zacarias,

um zombador e piadista imoral] se puseram de um lado, que nunca foi coisa de homens

meter-se a evitar as punhaladas” (CELA, 1986, p. 68). Mais tarde, em seus relatos, depois da

fuga para Madri, o narrador mostrar-se-á admirado do comportamento diferente dos espanhóis

da capital. Dois homens em uma caminhada se encontram e começam a dizer inconveniências

um sobre o outro. Depois, cada um vai embora e ali não acontece nada. A surpresa de Pascual

leva-o a fazer a seguinte ponderação: “Assim dá gosto! Se os homens do campo tivéssemos a

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tolerância dos homens das cidades, os presídios estariam desabitados como ilhas” (CELA,

1986, p. 100).

Além da mãe alcoólatra e adúltera, o elemento feminino mais desonroso para o

narrador é a sua irmã, Rosário. Esta surge no capítulo três e é quem permite o contato direto

de Pascual com Estirao, seu grande inimigo. Desde o nascimento, Rosário traz problemas para

a família e o narrador quase não sente orgulho da irmã, ou enxerga nela beleza ou virtude.

Além do mais, com a aparição dela, no processo de escrita, o narrador confessa não se

lembrar bem de alguns eventos. Em compensação, para sua desgraça, as poucas lembranças

que tem demonstram uma visão pessimista e um lado sombrio do narrador: “só me lembro da

má impressão que me deu minha irmãzinha quando a vi pegajosa e vermelha” (CELA, 1986,

p. 29). A sujeira física envolve a pequenina e permanece com ela, mesmo após um banho: “A

senhora Engrácia [...] lavou-a bem lavada com água perfumada; envolveu-a de novo nos

panos que estavam menos sujos” (CELA, 1986, p. 29). Essa falta de higiene (os panos menos

sujos) deixa entrever a condição financeira da família. A criança nasce já destinada a se

envolver em algo impuro. Depois, cresce doente até certa idade, quando se demonstra “mais

viva que um lagarto” (CELA, 1986, p. 31). Nesse momento, a sujeira física dá lugar a outra, a

moral: “Se o bem fosse seu instinto natural, teria podido fazer grandes coisas, mas como Deus

bem sabe [...] não quis que nenhum de nós nos distinguíssemos pelas boas inclinações”

(CELA, 1986, p. 31). Nesse ponto, Deus é visto e avaliado pela sua injustiça, mas o narrador

receia falar abertamente isso, por temer o leitor e seus preceitos morais.

Mesmo transferindo a responsabilidade para a figura divina, o narrador ressalta que

Rosário “servia para tudo e para nada de bom: roubava com a mesma graça e donaire de uma

cigana velha, [entregara-se] à bebida ainda bem jovem, servia de alcoviteira para os

namoricos da velha [mãe]” (CELA, 1986, p. 31). Em outro momento, a filosofia de Pascual

mescla sabedoria popular e falso moralismo, servindo para atacar a moral de Rosário: “Como

bem diz o refrão, erva daninha geada não mata” (CELA, 1986, p. 32). Acrescenta e disfarça

sua opinião em construções capazes de suscitar a dúvida – “sem que queira dizer com isto que

Rosário fosse má” (CELA, 1986, p. 32) – para, em seguida, suscitar a certeza no coração do

leitor: “se bem que tampouco poria a mão no fogo para sustentar que fosse boa” (CELA,

1986, p. 32).

O legado dos Duarte seria a falta de virtudes. Cada membro da família carregaria em si

um alto vício e faria algo notório apenas por ser ilícito ou indecoroso. Com o pai

contrabandista, a mãe entregue às bebidas e adúltera, a irmã roubando a própria família e se

prostituindo, Pascual não se torna diferente e assume o papel de assassino. O único membro

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da família que não comete erros é o deficiente físico e mental, Mário, que, por outro lado,

levando em conta o preconceito físico, também não aparece na visão dos concidadãos de

Almendralejo como uma criatura digna.

Diante de um panorama desfavorável, se pensássemos em Pascual querer ser um

homem honrado dentro das limitações impostas pela sociedade de então,63

quais seriam as

condições para isso? Pelo seu raciocínio, sabemos que o narrador descende de pessoas pobres,

ignorantes e cheias de vícios. Por causa de sua origem, ele acusa Deus de não deixar

alternativa para a mudança de vida. E ainda vive em um povoado à beira de uma estrada, um

lugarejo sem beleza e sem destaque, onde só se poderia viver uma vida medíocre, a não ser

um nobre, alguém de posses. Almendralejo era “um povoado quente e ensolarado, bastante

rico em oliveiras e porcos, com as casas pintadas tão brancas que ainda me dói a vista ao

lembrá-las” (CELA, 1986, p. 15). O retrato expressa a impossibilidade de viver feliz em um

lugar insuportável, mesmo tendo “uma praça cheia de lajes, com uma linda fonte de três

jorros, no meio” (CELA, 1986, p. 16). Quando elogia, só o faz para em seguida desqualificar:

“Quando saí do povoado, já fazia vários anos que a água não corria das três bocas” (CELA,

1986, p. 16). Tendo o título de don, a riqueza seria o necessário para ter honra.

Então, se, e somente se, Deus destinou todos os Duarte para um caminho diferente das

boas inclinações, se ele – Pascual Duarte – não soube encontrar uma solução para isso,

assume o que acredita ser o seu destino e não luta contra ele, não demonstrando bondade em

momento algum e sendo capaz apenas de acusar, ironizar, ridicularizar. Se Pascual é um

assassino confesso de mais de uma vítima, se foi capaz de matar a própria mãe para ver-se

livre, se tem tantas provas contra si, difícil acreditar que ele não seja mau.

Mattia Pascal não usa a ironia ferina para apontar a degradação moral; em seu lugar,

utiliza o argumento físico. Ele descreve cada personagem, deformando-os. A vantagem ou

função da descrição deformatória parece ser a apresentação da índole do personagem, de

maneira a encaixar esse personagem na sua autodefesa. Seria, por assim dizer, o efeito da

sombra, expresso em “O humorismo”.64

63

Acerca da honra, se compararmos a atitude de Pascual com a posição do cavaleiro nas novelas de cavalaria,

teremos as normas de avaliação dos desvios de conduta e da falta de honra por escolha, não por destino. “Por

necessidade procede que o cavaleiro tenha bons costumes e boa formação” (LLULL, 1949, p. 75). É

justamente o que Pascual não tem. Em decorrência, “a cavalaria é um ofício honrado, bastante necessário

para o bom andamento do mundo; e o cavaleiro, por esta razão e por todas aquelas razões e muitas mais, deve

ser honrado pela população” (LLULL, 1949, p. 90, tradução nossa). A função da cavalaria, “para o bom

andamento do mundo”, requer que o cavaleiro aja em favor dos outros, e não de si apenas. Aí estaria a

condição de homem honrado, propagada desde a Idade Média nos liames culturais do povo. 64

“o humorista cuida do corpo e da sombra, e talvez mais da sombra que do corpo; nota todos os gracejos desta

sombra, como ela ora se alonga ora se encolhe, quase a fazer o arremedo do corpo, que no entanto não a

calcula e nem se preocupa com ela” (PIRANDELLO, 1999, p. 177).

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O narrador Mattia Pascal começa a falar da família desmentindo-se. No primeiro

capítulo, ele diz ser possível “demonstrar que não só conhec[eu seu] pai e [sua] mãe, mas

ainda, todos os antepassados” e suas ações, “nem todas, realmente, louváveis”

(PIRANDELLO, 1972, p. 9). Depois, no terceiro capítulo, a primeira frase desmente em parte

a afirmação do narrador: “Fui um pouco precipitado, no início, em dizer que conheci meu pai.

Não o conheci. Tinha quatro anos e meio, quando ele morreu” (PIRANDELLO, 1972, p. 17).

Mattia tem do pai uma ideia econômica de consumo e posses. Seu pai era um

comerciante que “deixou [...] na abastança a mulher e os dois filhos: Mattia [...] e Roberto,

dois anos mais velho” (PIRANDELLO, 1972, p. 17). Não descreve fisicamente o pai, e

moralmente alude a um comentário de terceiros: “alguns velhotes da nossa aldeia ainda

gostam de fazer crer que a riqueza de meu pai [...] possuía origens, digamos assim,

misteriosas. Pretendem que a conseguiu jogando cartas, em Marselha” (PIRANDELLO, 1972,

p. 17). Acrescenta que “sagaz e aventuroso, [seu] pai nunca teve, para seus negócios, sede

permanente [...] porque não o tentassem empresas demasiado grandes e arriscadas, ia

investindo os lucros, à medida que os realizava, em terras e casas, aqui, na própria aldeia”. E

termina falando do pai como alguém responsável e amante do lar “onde talvez contasse,

dentro em breve, repousar no conforto das riquezas fadigosamente adquiridas, contente e

sossegado, entre a mulher e os filhos” (PIRANDELLO, 1972, p. 18). No meio da descrição

mercantil, Mattia usa o plural para tomar posse de um passado econômico estável, de onde faz

a ponte para descrever a mãe. As frases “Possuíamos terras e casas” (PIRANDELLO, 1972, p.

17) e “sua morte [do pai] foi a nossa ruína” (PIRANDELLO, 1972, p. 18) faz o leitor se

achegar a uma realidade decadente para o narrador. A partir da morte do pai, Mattia vai sofrer

economicamente até retornar ao seu estado do início do livro.

Sobre a mãe, o leitor descobre que ela era “incapaz de administrar a herança” e “teve

de confiá-la a um indivíduo” (PIRANDELLO, 1972, p. 18). Também o leitor encontrará na

narração as definições de “santa mulher”, de “índole retraída e muito pacata”

(PIRANDELLO, 1972, p. 18). Quanto ao aspecto moral, era um ser dedicado ao lar. Mas do

momento em que Mattia começa a descrever fisicamente a mãe até a descrição de outros

personagens, ele usa uma linguagem capaz de sempre demonstrar a deformidade como

característica dela: “[A mãe] Falava em tom fanhoso e ria, também, com o nariz”

(PIRANDELLO, 1972, p. 18).

Após descrever a mãe, é a irmã do seu pai a vítima, a tia Scolastica, uma “solteirona

rabugenta, com dois olhos de fuinha, morena e altiva” (PIRANDELLO, 1972, p. 19). Sobre o

irmão quase nada diz, a não ser que era bonito. Ele mesmo, Mattia Pascal, é chamado pela tia

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de “focinho de cachorro”. A explicação para ele é o uso dos óculos e a “cara plácida e

provocante” (PIRANDELLO, 1972, p. 25). Pascal confessa usar os óculos por causa de um

olho vesgo. E ainda relata conquistar aos dezoito anos “uma grande barba arruivada e crespa,

em prejuízo do nariz, bastante pequeno” (PIRANDELLO, 1972, p. 25).

Além de descrever a família, ao falar de Batta Malagna, o administrador corrupto,

mostra como Mattia sempre se apega fácil ao hábito de pintar com excessos as deformidades

das pessoas, causando o efeito do riso.

Ora, como podia Malagna, com uma cara e um corpo desses, ser tão ladrão, não sei!

Também os ladrões precisam de uma certa apresentação, que ele não me parecia ter.

Caminhava devagar, com aquela pança pendente, sempre com as mãos atrás das

costas; e que esforço fazia, para emitir a voz mole, lamentosa! [...] Talvez, digo eu,

roubasse para, de algum modo, distrair-se, coitado. (PIRANDELLO, 1972, p. 29-

30).

Mattia procura aguçar o leitor com provocações duvidosas. Gosta de emitir

comentários sobre a feiúra alheia e o fracasso sexual. Ri da sua sogra e ainda causa um dos

momentos mais cômicos nesse momento. Ela, a viúva Pescatore, nervosa, começa a se despir,

fora de si, e Pascal procura deliciar o leitor, rebaixando-a em razão de seu corpo feio, dando

destaque para as pernas: “– As pernas! as pernas! – berrava para a viúva Pescatore no chão. –

Não me mostre as pernas, pelo amor de Deus!” (PIRANDELLO, 1972, p. 53).

Brás Cubas não usa a agressividade de Pascual nem ressalta o lado físico das pessoas,

puxando para o cômico. Brás descreve na base da conveniência e pouco acrescenta sobre os

seus familiares, falando mais em Virgília, Quincas Borba, Eugênia, Eulália, Marcela e dona

Plácida do que nos seus parentes. Fala da sobrinha Venância, o “lírio do vale, que é a flor das

damas do seu tempo” (ASSIS, 1960, p. 115). Dos tios, João, o militar, “era um homem de

língua solta, vida galante, conversa picaresca” (ASSIS, 1960, p. 130) e que não respeitava

ninguém, nem a batina do irmão. O tio cônego, Ildefonso, “tinha muita austeridade e pureza;

tais dotes, contudo, não realçavam um espírito superior, apenas compensavam um espírito

medíocre” (ASSIS, 1960, p. 131). Havia uma tia materna, dona Emerenciana, “a pessoa que

mais autoridade tinha sobre” Brás Cubas. Ela “diferençava-se grandemente dos outros; mas

viveu pouco tempo em [sua] companhia, uns dois anos” (ASSIS, 1960, p. 131). Da irmã

Sabina e do cunhado Cotrim pouco fala, dando destaque ao lado interesseiro de ambos.

Sobre o pai, Brás nos faz saber que “era homem de imaginação”, “um bom caráter”,

um “varão digno e leal como poucos” (ASSIS, 1960, p. 114). E ainda usa uma ressalva para

complementar o nosso conhecimento do seu modo de narrar. “Releva notar que ele não

recorreu à inventiva senão depois de experimentar a falsificação” (ASSIS, 1960, p. 114).

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Colocando lado a lado, os dois trechos dizem, ao mesmo tempo, que a figura paterna é digna,

leal, inventiva e falsificadora, adjetivos contraditórios entre si. Uma pessoa digna não pode

ser vista na forma de uma pessoa falsificadora. Nem um homem leal deve ser entendido por

um inventor de fatos. Seu pai sonha sempre com a grandeza do filho. Morre sem ver realizado

sonho algum, pronunciando um repetitivo lamento, “– Um Cubas!” (ASSIS, 1960, p. 180),

depois de ver-se logrado em sua vontade de ver o filho contraindo matrimônio e se tornando

deputado.

Com a morte, o pai deixa uma herança vistosa para Brás Cubas. E é esse o

acontecimento que focalizaremos melhor neste capítulo. Brás procura ressaltar o lado

inventivo do pai e não fala em momento algum do trabalho do seu progenitor. A herança é um

direito assumido e passado de pai para filho. Mas não é só o dinheiro que Brás herda de seu

pai.

3.1. O LEGADO65

A herança – ou o legado, como preferimos chamar – é muito mais que a aceitação do

patrimônio material. Ela é a escolha de carregar uma série de características comuns à família,

em grande parte advindas do contato direto dos filhos com os pais, assim como o sobrenome.

Para definirmos o legado, não basta pensar somente no problema do sobrenome. O

nome da família é característica central para a transmissão desse legado, mas não é a única,

pois a perpetuação do sobrenome é interrompida com a morte do narrador. Para resolver esse

dilema, ao deixar o seu legado, a solução encontrada é o herdeiro não ser mais aquele que

carrega o sobrenome pelos laços sanguíneos. A inexistência da sua própria prole faz o

narrador pensar em outro herdeiro, por adoção, que se insere no processo por meio da leitura

das memórias de Brás Cubas. Na falta do matrimônio e com base na singularidade de ideia de

como uma família deixa o legado para os filhos, a pessoa beneficiada pelo elemento

hereditário passa a ser o leitor, mesmo que não o seja financeiramente. Essa mudança de

sujeito e de critério, do fruto do sangue para alguém interessado em gastar seu tempo lendo e

considerando posicionamentos ideológicos do narrador, acarreta em passarmos da função de

comparsa e de juiz para o papel de seguidor, discípulo, justamente por estarmos em um nível

de inferioridade em relação aos narradores-escritores.

Mesmo que o leitor não seja um Cubas, ele pode ser chamado figurativamente de filho

65

A ideia de o legado transmitido ser o próprio livro foi sugerida por Passos (1996, p. 144-145). Retirada do final

de MPBC, a expressão “legado de nossa miséria” serve para que pensemos no narrador que põe em pauta os

valores culturais de nossa herança de cidadão brasileiro e de sujeito ocidentalizado.

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de Brás, pois está recebendo a herança expressa nos dizeres do narrador. Temos, em

consequência, para o processo transmissivo, duas instâncias. As duas pontas da herança (a

financeira e a ideológica) de valores do legado66

do autor-livro são: a família, o ato

genealógico como instância anterior, antecipadora da forma de agir do narrador; e o leitor, no

rompimento do contrato familiar e no simultâneo aparecimento de um novo contrato com

bases narrativo-livrescas, já como instância posterior.

Os três narradores analisados se assemelham aos seus pais e repetem atitudes paternas.

Rico por herança, Brás Cubas vive e age, na maioria das vezes, da forma que lhe parece mais

conveniente. Pode-se dizer que o legado de Brás está relacionado ao ver-se bem superior e

mais digno do que realmente é.67

Essa atitude origina-se no pai, responsável por inventar a

grandeza do nome Cubas. “Releva notar que ele [o pai] não recorreu à inventiva senão depois

de experimentar a falsificação” (ASSIS, 1960, p. 114). Brás recebe um nome, na concepção

paterna, honrado, mas somente pela inventividade e falsificação.68

Ao transmitir a nós, leitores, o seu legado, que é o de nossa miséria, ele também nos

repassa seu nome como portador do querer sempre existir um pouco mais. Sua carta de

autoridade parece ser a experiência sofrida no delírio, quando manteve contato com Pandora.

Os polos, nesse processo, acabam invertidos, com a honra assinalando não a glória pessoal,

mas a miséria moral vivida por ele.

Mattia Pascal encara o legado como uma questão de reconhecimento, no “eu”

escritural, do seu “eu” existencial. Seu livro tem como destino a transmissão do estranho caso

de vida para leitores curiosos, a fim de desvendar alguns mistérios que envolvem a vida

humana. Pelo lado do narrador, ele aproveita para expressar que temos na sua escrita a

procura do sentido, resultando na tentativa de viver. A vida assume ares de lógica do absurdo,

contrastando com o mundo possível e verossímil na lógica simplista da maioria das pessoas.69

O absurdo começa quando Mattia inicia (e termina também) o livro falando do seu

nome, de como se chamava. Diz não saber quase nada, e atesta conhecer seus antepassados.

66

Interessante pensar que o legado que Brás Cubas recebeu de seu pai é de riquezas, à base de propriedades e

dinheiro, e o legado que ele transmite ao seu leitor não é o do dinheiro e, sim, o da “miséria”, como ele

mesmo afirma. É o legado da condição humana, da qual nenhum homem pode escapar. 67

Brás Cubas, no final do livro de memórias, fala no “legado de nossa miséria”. Porém, com o objetivo de o

livro ser publicado, o seu legado se contrasta com a miséria, a qual é demonstrada pelo seu inverso, o

orgulho. 68

Vimos como Brás Cubas constrói uma imagem de si superior ao que ele apresenta no texto. Pai e filho atuam

com a falsificação das imagens familiar e individual. 69

O posfácio de FMP tem por título “Advertência sobre os escrúpulos da fantasia”, e trata especificamente sobre

o verdadeiro e o verossímil da arte. Pirandello (1972, p. 281-289) fala que a vida não precisa demonstrar

verossimilhança, enquanto a arte é obrigada pelos críticos, que não conseguem se livrar dessa ideia de

representação dos absurdos da vida.

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Desmente-se e afirma não ter conhecido seu pai. Reconhece no final quem realmente é – o

falecido. Mattia, quase que em um espelho, mostra como o legado provém de conhecer (ou

não) o pai e reconhecer-se quem é (saber que se chama tal e tal).

O legado do livro é de teor humanístico e existencial. O narrador repassa a ideia de

autoconhecimento e direito, ao afirmar-se no intuito de existir, de ser. Em todo caso, o

provérbio socrático “conhece-te a ti mesmo” está em vias de ser reformulado para “conheces

a tua família” e emendado com “e recebe a tua herança moral”. Comparando pai e filho,

Mattia assume o legado das riquezas ganhas em jogos de aposta e rejeita o lado empreendedor

de investir aqui e ali para o conforto da família.

Pascual Duarte, com a descrição e a narração dos fatos familiares, tenta convencer o

leitor da sua inocência, decorrente da falta de uma educação consistente e com padrões

adequados a uma criança. A família teria sido responsável, em meio à ausência de afetividade,

pela má criação. Embora fale em destino – “o destino se compraz em variar-nos como se

fôssemos de cera e em destinar-nos por sendas diferentes ao mesmo fim: a morte” (CELA,

1986, p. 15) –, é a família a entidade responsabilizada.

Para Pascual Duarte, de sua “infância não são exatamente boas as lembrança que

guarda” (CELA, 1986, p. 23). Seus pais “brigavam mais do que era conveniente” (CELA,

1986, p. 23) e sempre “se comportavam mal”. Acrescenta que “à sua pouca [de seus pais]

educação se unia sua escassez de virtudes e sua falta de concordância com o que Deus lhes

dava – defeitos todos estes que para [sua] desgraça [acabara] herdando” (CELA, 1986, p. 25).

O legado que Pascual teria herdado serve como justificativa para seu propósito de convencer

don Joaquín Barrera López de que ele, o narrador, não é um homem mau. E se o é, ele é fruto

do acaso, do destino, da situação familiar, tendo por pai um contrabandista patético, uma mãe

alcoólatra e amante de alguns homens da comunidade e uma irmã sem moral, amigada vez

por outra com outros homens de má índole.

Ao correr da leitura, se o leitor guardou bem as informações sobre Esteban, o pai do

personagem, veremos que Pascual age segundo o modelo paterno. Se o narrador reclama do

pai porque este se enfurecia com mais frequência do que o necessário, se já havia vivido isso,

ao testemunhar a experiência paterna, tudo poderia ter sido evitado, caso ele não assumisse o

legado familiar, isto é, tal maneira de agir. Mas, ainda sem saber se o narrador é bom ou mau,

o leitor presenciará a primeira informação sobre a mãe – ela recebia grandes surras do marido.

O leitor pode pensar na defesa da mulher ou na revolta do filho, em pensamentos, em relação

à mãe como sendo um ente mais fraco e submisso. No romance, é preciso esperar um pouco

mais para confirmar as opiniões apreendidas.

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Há outro complemento da herança assumida por Pascual da influência paterna. O pai,

Esteban, estava envolvido com atos ilícitos, com contrabando. “Prenderam-no como

contrabandista” (CELA, 1986, p. 24). O primeiro contato com o ambiente prisional é por

causa do pai, embora Pascual jure não se lembrar de nada. De qualquer forma, no livro, é a

primeira vez de um Duarte na cadeia. Pai e filho passam pela mesma situação. Os casos de

condenação são distintos, mas o destino é o mesmo. Pascual não é preso por contrabando, mas

acaba indo para a cadeia, como o pai. Em compensação, o filho supera, em muito, o pai nas

estadias prisionais. No mínimo, três. Uma pela morte de Paco, outra pela morte da mãe e a

última, e definitiva, pela morte de don Jesús.

Há, ainda, a se destacar que, enquanto seu pai morre, sua mãe, que havia traído o

esposo, dá à luz um filho deficiente, Mário. O pai, mordido por um cachorro com raiva, treme

muito e, convulsivo, vem a falecer. Nessa esfera do relato, em vez do lamento, a ironia

assume a enunciação da interpretação da lembrança. Pascual confirma seu modo de ver os

outros e fala sobre o pai: “a morte de meu pai, [...] se não houvesse sido tão trágica seria de rir

se pensada a frio” (CELA, 1986, p. 38). Se assumíssemos o ponto de vista do narrador,

veríamos o quanto a morte paterna marca-se pelo ridículo, embora trágica. Em proporção,

esse laço da herança é assumido por Pascual nos acontecimentos da sua morte. Mesmo sendo

uma morte trágica, haveria o predomínio do ridículo, além, é claro, do caso da traição da

primeira esposa.

A herança deixada por Pascual Duarte é uma herança às avessas. Seu legado se

confirmaria se pensássemos naquilo que podemos fazer para poder respirar, viver em paz, ser

livre e feliz.

Nas primeiras partes do livro, Pascual Duarte narrador e o personagem-transcritor

dizem que a vida do protagonista é um modelo de condutas. A partir dessa afirmação e

avaliando o alcance do fracasso existencial, o motivo de Pascual Duarte ser um fracassado

tem sua forma de geração na violência física e verbal que vem de todos os lados do seu meio

de convívio. A violência verbal serve para alimentar a mínima temperança do personagem

central. A luta pela honra no pensamento do seu mundo, cheio de limitações, do machismo

prático do trabalhador braçal, prevalece em um povoado de habitantes sem (ou quase sem)

educação e riquezas. Conforme professa Lola, “o sangue parece ser o adubo” (CELA, 1986, p.

108) que nutre toda a existência conturbada de Pascual Duarte. Não é por menos que podemos

dizer que ele é fruto de uma geração do campo, perdida nos ditames que culminaram na

Guerra Civil Espanhola.

O autor efetivo, Camilo José Cela, clarificará, em parte, essa questão, ao usar o termo

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tremendismo e ao compor a dedicatória de outro livro seu, San Camilo, 1936, voltando-se

para as questões da violência do seu povo nos anos antecedentes e nos anos da ditadura

franquista. A dedicatória desse livro é feita “aos jovens da sucessão de 1937, todos perdedores

de algo: da vida, da liberdade, da ilusão, da esperança, da decência” (CELA, 1982, p. 9,

tradução nossa).70

Tudo que foi citado na dedicatória de San Camilo, 1936, Pascual perdeu na

fase infantil, na juventude e perde novamente na fase adulta. Em todas as estações da vida,

notamos o autor suposto a permanecer no ataque a alguém, sendo sucessivos os dirigidos à

sua mãe. O legado às avessas resplandece na voz do transcritor que, desde então, dá um

conselho claro aos leitores dessas memórias: “ – Está vendo o que ele faz? Pois é o contrário

do que deveria fazer” (CELA, 1986, p. 8).

Seguir o conselho de um transcritor, um editor ficcional, não representaria, no entanto,

o legado de Pascual. Esse é propriamente um legado de violência, de sofrimento à base de

muitas ofensas e desventuras. Mesmo com tanta negatividade, o autor suposto deixa-nos a

indagação sobre se é válido agir como ele agiu.

A questão familiar torna-se o recebimento e a aceitação da herança e todo o legado só

se transforma em elemento particular quando, após ser transmitido, é assumido. Brás, Mattia e

Pascual recebem cada um e usam a seu modo o legado consubstanciado na presença do

sobrenome. Cada herança é aceita e modificada nos termos de dependência dos seus

respectivos novos donos. Como para os três protagonistas não há descendência legítima, o

legado se perderia, se não houvesse surgido a necessidade de compor um livro. A solução para

o problema da transmissão da herança interrompida é encontrada e esta nos é entregue, ao

contrário da falsa afirmação da última frase do livro das memórias de Brás Cubas: “não

transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” (ASSIS, 1960, p. 304). O livro é o

melhor exemplo do legado de nossa miséria, um legado moral e não financeiro.

O legado presente no livro afirma-se consoante com a alegação de a obra de Mattia

Pascal servir como ensinamento a algum leitor curioso e compactua, assim, com os (talvez)

falsos sentimentos de humanismo e renúncia de Pascual Duarte, ao afirmar sua intenção de

que seu livro possa servir de ensinamento e modelo. Este narrador chega ao ponto de ter o

ímpeto de destruir seus escritos (e aí não ousamos afirmar até onde vai o seu cinismo ou a

verdade) e não o faz por considerar estar “privando desta forma algumas pessoas de aprender

o que eu [Pascual Duarte] não soube antes que fosse já demasiado tarde” (CELA, 1986, p. 9).

Depois dessas ponderações acerca da família de origem dos narradores, vejamos,

70

“A los mozos del reemplazo del 37, todos perdedores de algo: de la vida, de la libertad, de la ilusión, de la

esperanza, de la decencia”.

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então, com brevidade, algo sobre a segunda instância familiar, o matrimônio.

É princípio básico que a formação do novo lar preserva o nome duplo (nome

individual e sobrenome), dando-lhe continuidade. No entanto, um fato comum perpassa o

problema familiar, na visão de uma posteridade jamais existente. Seguindo os padrões da

maioria dos romances em que um narrador-escritor masculino fala de toda a sua vida, para os

três personagens o patriarcalismo é um valor primordial nos seus planos. A escrita desses três

narradores, sob esse ponto de vista masculino, revisita o ideal de enxergar e depositar no filho

todo o orgulho paterno, em uma sociedade orientada por padrões tradicionais, com o homem

no papel principal familiar. É o nome do pai, do personagem masculino (Brás Cubas, Mattia

Pascal, Pascual Duarte), que está em jogo na posteridade, a se concretizar nos filhos, futuros

homens.

Os três narradores pensam em filhos. Primeiro, Pascual quase tem um, mas essa quase

paternidade termina em um aborto. Depois tem um menino por filho, embora a relação de pai

seja temporária. O menino é apelidado pelo pai, com carinho, de Pascualillo,71

e morre onze

meses depois de nascer. Brás Cubas não tem a sorte de concretizar o sonho de ser pai, sabe da

gravidez de Virgília, vê à distância e em pensamento o filho já bacharel, depois discursando

na câmara dos deputados (ASSIS, 1960, p. 239), mas tudo não passa de um sonho. E Mattia

tem um filho que, à exceção dos outros dois narradores, permanece vivo. É um menino

“saudável e bonito” (PIRANDELLO, 1972, p. 278) como a mãe. Mas o menino, que seria o

orgulho de Mattia Pascal, é filho legal de Batta Malagna, pelo casamento deste com Oliva, a

quem por direito se transfere o poder de se orgulhar publicamente como pai. Mattia não pode

considerar sua essa criança, por não ter contraído o matrimônio. E, não fazendo parte do

matrimônio, a criança não faz parte do patrimônio nem pode prolongar a herança. Mesmo

assim, Mattia usa a expressão “meu filho”, também usada por Brás no capítulo XC. O desejo

de ser pai, por causa do patriarcalismo, torna-se o meio para cada narrador realizar a

transmissão da herança ou legado. A herança é, nesse caso, mais que um meio econômico;

passam a ser valorizados, como a verdadeira herança, os filhos. Estes, como legado,

representariam todo o orgulho masculino, levariam o nome do pai adiante.

Cabe notar outro aspecto da segunda instância da significação da família: a

71

O apelido no diminutivo de Pascual, “Pascualillo”, surge no livro pela primeira vez na dedicatória, como a

forma pela qual o assassinado don Jesús nomeia o narrador. Ao se referir ao filho, o diminutivo assume o

papel sentimental de carinho, de demonstração de afeto, de amor. As duas hipóteses mais prováveis segundo

as quais o nobre chama Pascual assim, falam, de um lado, em desprezo, diminuição da figura da pessoa, e, de

outro, em aproximação, respeito afetivo, consideração por ela. Pensar esse problema do apelido seria uma

forma de tentarmos resolver o enigma sobre qual motivação levou Pascual a cometer seu último crime e se

ele é ou não uma pessoa má. Para aprofundar a discussão, confrontar Jacoby (1994) e Kirsner (1963).

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composição do lar, através da escolha de uma esposa, acontece em harmonia com a vontade

do narrador (exceto com a indecisão inicial de Mattia Pascal). Diferente da primeira situação,

quando ocorre justamente o contrário, ele não tem a alternativa de escolher estar na família,

pois ele nasce sem poder decidir72

se faz parte ou não desse grupo, enquanto que, na

perspectiva masculina do casamento, esse indivíduo, ao assumir o papel de “cabeça do lar”,

torna-se (ao tomar essa decisão) o responsável por mantê-lo.

Nos três livros, os três narradores-escritores não conseguem exercer a função de pai e

o projeto familiar acaba na frustração. O caso de Pascual Duarte, que engravida e se casa com

a mulher escolhida, Lola, envolve a decadência maior da figura de pai por exigir o filho na

defesa da honra de homem. Isso significa que no mundo machista do narrador a virilidade

masculina se exprime por meio do respeito alheio e da existência dos filhos. A morte não só

envolve o desrespeito à honra masculina do pai, mas ainda afronta mais seu orgulho porque

Estirao consegue dar a Lola um filho, e Pascual não.

O segundo casamento representaria o renascimento para uma nova vida, o

esquecimento do passado. O que ocorre é que Pascual está preso à falta de honra e, mesmo na

perspectiva do segundo casamento, e com a possibilidade de ser pai efetivo, ele não suporta

estar diante da mãe, símbolo desse passado familiar inglório. Em vista do caso de Pascual

Duarte, chegamos a afirmar que, em nenhum dos três casos, prevalece para os narradores o

desenvolvimento dos filhos e muito menos do casamento, no sentido de um matrimônio feliz,

normal e bem vivido. A frustração envolve os demais sentimentos, até chegar a se revelar

publicamente nas páginas de livros de memórias.

3.2. O TIPO DE LEITOR

Há, no enredo e na existência de narradores-escritores fictícios, no jogo elaborado

pelos autores efetivos, a exigência da inserção de um leitor específico como participante da

narração. Este é feito personagem e modelo para os questionamentos do leitor real, garantindo

a expectativa73

da recepção da interpretação da vida do narrador, permitindo que aquele que

72

Caso fosse permitido escolher o primeiro grupo familiar, com certeza, Pascual Duarte escolheria uma família

rica, talvez mesmo a de don Jésus González de la Riva. 73

No livro Literatura confessional (REMÉDIOS, 1997, p. 9), no capítulo de abertura (“Literatura confessional:

espaço autobiográfico”), deparamo-nos com a seguinte pergunta: “quais as razões que movem o leitor [a

debruçar-se sobre esse tipo de literatura]: a curiosidade, a identificação com os problemas postos pelo autor, a

procura de uma consolação, a admiração por um herói, por um artista, por uma pessoa qualquer?”. Para a

autora, a “literatura confessional é aquela que mais se aproxima do leitor, porque fala de um eu, de uma

pessoa viva que ali se encontra e que diante do leitor desnuda sua vida” (REMÉDIOS, 1997, p. 9, grifo do

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narra projete sobre si uma imagem “oficial”.

O álbum de retrato74

é uma fixação das imagens na mente do narrador. As imagens

servem como meio de prova contra ele, por serem abundantes. Se o leitor deseja condenar o

narrador-personagem, é no exame da escrita do narrador que encontrará o meio de dar o seu

veredito. As provas emergem da descrição dos outros, segundo um padrão viciado, em que

são rotuladas e recriminadas algumas pessoas próximas. E é justamente o leitor o primeiro a

sofrer na mão do narrador, receber a rotulação, a sanção da imagem, de acordo com a

classificação do tipo de qualificação exigida para a leitura.

Em MPBC, o narrador nomeia seu leitor e reclama-o, incitando-o a participar do livro.

O narrador invoca o seu leitor e chama-o de “fino”. A expressão aparece no fim do prólogo

“Ao leitor”: “A obra em si mesma é tudo; se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te

não agradar, pago-te com um piparote” (ASSIS, 1960, p. 109, grifo nosso). A forma ousada de

chamar de fino o leitor e de logo em seguida prometer-lhe em pagamento um piparote fica

suspensa no ar, indicando ironia ou assédio. Na nossa opinião, os dois casos. Ironia por ser

uma provocação ao leitor, um desafio à leitura, e assédio por tratar (embora com ironia) de

elevar a figura desse leitor (mesmo que para rebaixá-la logo a seguir). Ambas remetem à

leitura do livro.

Levando em consideração ainda a definição inicial do modelo de leitor de Brás Cubas,

o narrador pensa realmente nele como fino, desde que este represente um leitor culto, de

conhecimento enciclopédico, capaz de atualizar sempre o texto e os seus dados. Caso isso não

ocorra, a cooperação textual não procede e a provocação feita ao leitor resulta vã, perdendo

todo o sentido, quando não pode ser compreendida. Ambos – leitor e narrador – devem ser,

em teoria e em pose, cultos. Haveria um jogo de aparências. Sobre esse fato, vale ressaltar as

opiniões de Schwarz em referência à citação constante e à necessidade do leitor de ter a noção

sobre o que diz o defunto autor: “A prosa culta [de Brás] – que é pose ela também – empresta

um verniz de respeitabilidade a pulos, manobras e transformações do narrador, [...] ao mesmo

tempo que aprofunda o seu tipo social” (SCHWARZ, 2000, p. 22, grifo nosso). E ainda:

Note-se que as páginas iniciais trazem o nome de mais de trinta homens ilustres,

personagens literárias, monumentos célebres, datas capitais. Estão mencionados

autor). Fora as ressalvas da ficcionalidade, em uma época em que reality shows, como o Big Brother e outros,

fazem imenso sucesso, a curiosidade do leitor pode representar uma fuga e identificação, ou mesmo o ato

(talvez o mais defendido aqui) de julgar os outros, tendo, assim, uma momentânea e suposta superioridade,

quando quem está na condição de réu é o narrador. 74

A metáfora que intitula o presente capítulo compõe a proposta de olharmos para as imagens-retratos que o

narrador nos apresenta. Assim como nas fotografias de um álbum, haveria o problema do olhar de quem

focou os personagens (os familiares). O narrador foi quem concebeu a forma de retratar pessoas; daí,

julgando as imagens, podemos julgá-lo.

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tempos bíblicos, homéricos e romanos, Idade Média, Renascimento e Reforma,

século clássico francês, Guerra Civil Inglesa e as unificações italiana e alemã.

(SCHWARZ, 2000, p. 31).

O narrador (apesar de cínico) exige, além da obediência, o esforço e o reconhecimento

intelectual em grande quantia do seu leitor. Depois de chamá-lo de fino, veremos um narrador

envolvendo o seu leitor em um processo de renomeação constante.

A segunda referência feita ao leitor encontra-se no fim do primeiro capítulo: “É

possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso.

Julgue-o por si mesmo” (ASSIS, 1960, p. 113). No capítulo seguinte, também no seu fim,

aparece novamente a mesma palavra – “Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao

emplastro” (ASSIS, 1960, p. 114). Até agora notamos uma liberdade do leitor para escolher,

uma invocação para que ele decida.

As três aparições da palavra “leitor” estão associadas a algum dualismo (estar ou não

satisfeito, crer ou não, apoiar o ponto de vista do militar ou do cônego) e, em tese, parece que

o narrador satisfaz-se apenas em contar seu caso de vida. Rouanet analisa essa relação da

seguinte maneira: “O narrador dá a impressão de respeitar o julgamento do leitor”, “a

reciprocidade [do poder de decisão do narrador e do leitor] é falsa [...]. De fato, não há

equivalência, porque, se a liberdade do narrador é original, a do leitor é outorgada”. E, por

fim, conclui ele: “a liberdade, quando existe, é ilusória” (ROUANET, 2007, p. 54).

Visto como livre, o leitor deixa de ser apenas fino, para ser tratado com bem mais

proximidade pelo narrador, quase em uma relação de compadres. Um exemplo é o capítulo IV,

quando ele recebe um conselho – “Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa” (ASSIS, 1960, p.

115). Sem falar que a cordialidade do conselho é um ato falho, uma vez que o narrador passa

a experiência de o livro ser para ele uma ideia fixa e, por trás da cordialidade e liberdade, está

seu intento de agregar um seguidor, de fazê-lo aceitar seu ponto de vista, sendo também isso

uma ideia fixa.

A relação de cordialidade encaminha-se para uma relação de intimidade. E é tal a

intimidade que parece renovar os votos de liberdade de opinião, perante fatos bem íntimos e

ponderados, sobre o passado do narrador: “Imagine o leitor que nos amamos, ela e eu, muitos

anos antes, e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar à porta da alcova [...] Quem diria? De

dois grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois”

(ASSIS, 1960, p. 117-118).

Ao pensarmos no leitor, é importante entender que, ao imaginá-lo, o narrador é capaz

de fazer uma previsão das atitudes dele. As frases “Vamos lá; retifique o seu nariz, e tornemos

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ao emplasto” (ASSIS, 1960, p. 116) e “Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à

casa” (ASSIS, 1960, p. 125) exemplificam bem isso. Depois, o narrador precisa ter sua

opinião aceita. Retomar o texto e não torcer o nariz é uma atitude esperada para o sucesso dos

objetivos do narrador. Além do mais, é preciso aceitar os caprichos de Brás e admitir sofrer o

impacto da sua atitude “sencerimoniosa”.75

Caso contrário, se o leitor levar para o campo da

honra e tomar tudo como ofensa, o resultado será a recusa do livro. A não ser que o leitor, não

entendendo muita coisa, pergunte-se qual seria a razão das contínuas ofensas, dando uma

nova chance ao narrador. A esse respeito, vale citar o pensamento de Kayser acerca da atitude

do leitor diante do romance: “O leitor, participando desta ficção [...] fica assim, desde o início,

com a curiosidade de saber o que este narrador lhe vai dizer do seu estranho ponto de vista”

(KAYSER, 1985, p. 223).

A relação de cordialidade e assédio não dura muito tempo, começando a ser

substituída pelo egocentrismo do autor. O foco de interesse, que inicialmente parecia recair

sobre o leitor, desloca-se para o defunto autor: “E vejam agora com que destreza, com que

arte faço eu a maior transição deste livro” (ASSIS, 1960, p. 126). Pulando e selecionando

fatos, o narrador tenta justificar seu método ainda no assédio ao seu leitor, comparando-se a

ele. No capítulo XXII, o contorno da forma do narrador de conquistar o seu leitor está

justamente nessa comparação, quando, apoiados em Rouanet, vimos recentemente que a

liberdade do leitor é ilusória e frágil: “e nós não somos um público in-folio, mas in-12, pouco

texto, larga margem, tipo elegante...” (ASSIS, 1960, p. 153, grifo do autor). O destaque da

expressão “tipo elegante” na comparação envolve o narrador e todo o seu discurso. Assim

sendo, os apelos retóricos, os comentários e as situações narradas deixam o leitor sempre em

alerta na representação do seu mundo.

A transição identifica logo uma ruptura dos valores apresentados. Antes o livro era

exaltado, pois “a obra em si mesma é tudo” (ASSIS, 1960, p. 107). No senão do livro, título

do capítulo LXXI, o “livro é enfadonho” e, se a obra é tudo, “o maior defeito deste livro [é o]

leitor” (ASSIS, 1960, p. 214). As simpatias de opinião ainda estão em jogo e, no mesmo

capítulo, é feita a defesa do livro de memórias, diferenciando-se o tempo da leitura, com

“pressa de envelhecer”, do tempo “devagar” (ASSIS, 1960, p. 214) da narração. O leitor deve,

neste ponto, sustentar sua paciência, para não abandonar a leitura.

Em seguida, a presunção assume logo ares de hostilidade e repreensão. O leitor é

chamado de obtuso, no capítulo XLIX (ASSIS, 1960, p. 186), e depois, no capítulo CXVI, de

75

Termo cunhado por Mattoso Câmara Jr. para referir-se à atitude do narrador. Seu texto fala nas “apóstrofes

sencerimoniosas ao leitor” (CÂMARA JR., 1979, p. 64).

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ignaro (ASSIS, 1960, p. 263).76

As incitações continuam. “Eis aí um mistério; deixemos ao

leitor o tempo de decifrar este mistério” (ASSIS, 1960, p. 233). A intenção inicial de “explicar

sumariamente o caso” (ASSIS, 1960, p. 109) não permanece mais em sua totalidade. Vários

detalhes são negaceados. Os fatos que envolvem os mistérios nem sempre são desvendados e

a justificativa para isso é somente um “valha-me Deus! é preciso explicar tudo” (ASSIS,

1960, p. 285).

A transição do foco do leitor para o narrador conclui-se no capítulo denominado “Fase

brilhante”. Nele, o narrador faz a última invocação ao leitor e mostra-se abertamente, quase a

concluir o livro: “E vede [leitor] agora a minha modéstia; filiei-me na Ordem Terceira de ***,

exerci ali alguns cargos, foi essa a fase mais brilhante da minha vida” (ASSIS, 1960, p. 301).

A continuação do texto indicia um narrador capaz de negar abertamente informações ao leitor.

Esse desprezo evidencia o capricho do narrador em poder imaginar que o leitor irá até o fim.

“Não obstante, calo-me, não digo nada, não conto os meus serviços, o que fiz aos pobres e aos

enfermos, nem as recompensas que recebi, nada, não digo absolutamente nada” (ASSIS,

1960, p. 301). Durante todo o relato, o texto apresentou várias negativas de informações e

esclarecimentos, mas é próximo da sua conclusão que o narrador fará isso mais abertamente.

O capítulo final segue processo semelhante no uso do “não”, chegando a ser intitulado

capítulo “De negativas”. As referências e invocações cessam e a palavra leitor sequer é

mencionada nos três últimos capítulos. O fino leitor desaparece e a expressão “qualquer

pessoa” toma seu lugar: “Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que

houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida” (ASSIS, 1960, p.

304). O rebaixamento expressivo se dá quando o objetivo do narrador é alcançado. O livro foi

lido e Brás Cubas não precisa mais continuar sua rede de provocações.

Para os outros dois narradores-escritores, o leitor é nomeado e invocado, embora com

menor frequência do que em MPBC. O jogo de provocações é irrelevante perto do primeiro

narrador, em razão do respeito, em FPD, e da acomodação de Mattia Pascal. Temos, de um

lado, a escolha de um leitor qualquer, que deva ser curioso, e, do outro, um leitor específico.

Em FMP, o narrador disposto a escrever sua história, trabalha em uma babel, meio

igreja, meio biblioteca. Existem lá diversos manuscritos e outros livros abandonados.

Raramente há um leitor no povoado. “É evidente que o Monsenhor devia conhecer pouco a

índole e os hábitos de seus concidadãos” (PIRANDELLO, 1972, p. 10), porque eles não são

76

De acordo com Ferreira (2004), uma das definições para obtuso é “rude, bronco, estúpido” (p. 1424); e para

ignaro é “falto de instrução, ignorante, bronco, rude” (p. 1068). Por aí já se vê o gênio forte e inconstante,

arbitrário, manifestamente, provocando atração para o leitor entender os intempestivos mistérios da alma do

narrador.

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adeptos de leituras nem têm, em sua maioria, “o amor pelos estudos” (PIRANDELLO, 1972,

p. 10). O narrador afirma que ele mesmo tinha pouca estima pelos livros. Trabalhar e conviver

com um leitor e não ter mais nada que se possa fazer são incentivos para Mattia entregar-se ao

desejo de confessar suas falsas mortes e seus problemas. Assim, as memórias são compostas

no tempo “perto de seis meses” (PIRANDELLO, 1972, p. 279) na ociosidade da espera pela

“terceira, última e definitiva morte” (PIRANDELLO, 1972, p. 10). E a narração das memórias

contou ainda com a “ideia ou, antes, o conselho de escrever” do “amigo Padre Elígio

Pellegrinotto” (PIRANDELLO, 1972, p. 11), a quem coube a guarda dos livros do

Monsenhor. A obra segue o pensamento de narrar os casos estranhos de Mattia a fim de se

tirar o máximo de proveito dos conselhos ali obtidos e expressar a utilidade das

“particularidades, alegres, ou tristes que sejam, graças às quais [conclusão do padre Elígio

Pellegrinottto] nós somos nós” e fora delas “não é possível viver” (PIRANDELLO, 1972, p.

279). Ao aceitar o conselho do amigo para escrever esse tipo de livro “útil”, a expectativa só

pode ser de que seu destino seja “algum leitor curioso” (PIRANDELLO, 1972, p. 10). Este é

visto como alguém que aparecerá tardiamente. Tanto que o narrador cria uma cláusula cômica

“de que ninguém possa abri-lo senão cinquenta anos depois da terceira, última e definitiva

morte [dele]” (PIRANDELLO, 1972, p. 10).

Com a situação já conhecida de Pascual Duarte ser um condenado à morte por

assassinato, temos duas hipóteses básicas para a motivação da escrita. Uma dita, e a outra não

dita. A primeira apoia-se na leitura da “Carta anunciando o envio do original”, título do

paratexto, no qual Pascual afirma que não poderia privar “algumas pessoas de aprender o que

[ele] não soube antes que fosse já demasiado tarde” (CELA, 1986, p. 9). Depois, ele fala que

não quer o perdão e que talvez “seja melhor que façam com [ele] o que está disposto, pois é

mais que provável que se não o fizerem [ele] volte a reincidir no erro” (CELA, 1986, p. 10-

11). E continua até chegar ao ponto de esclarecer que não deseja pedir o indulto, “porque é

demasiado o mal que a vida [lhe] mostrou e muita [sua] fraqueza para resistir ao instinto”

(CELA, 1986, p. 11). A conclusão apela para o aspecto religioso: “Faça-se o que está escrito

no livro dos Céus” (CELA, 1986, p. 11). A segunda hipótese está na referência ao destinatário

da carta – Senhor don Joaquín Barrera López. Ela seria uma tentativa de se salvar da morte

por garrote, principalmente se levantados indícios do porquê da escolha de tal receptor.

Pascual Duarte apresenta-se ao leitor e aparece para ele em três circunstâncias.

Primeiro, ao enviar o original dos seus escritos a don Joaquín. A segunda vez em que aparece

é em uma epígrafe, dedicada a don Jesús Gonzáles de la Riva, uma de suas vítimas. Sua

terceira forma de mostrar-se ao leitor é a apresentação propriamente dita, feita no primeiro

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capítulo. Essa terceira apresentação inicia-se com a negação de uma previsível acusação.

Ao enviar o original, Pascual Duarte mostra-se humilde diante de don Joaquín. Há a

visível distinção social entre o emissor e o receptor da escrita. Pascual assume a figura de

subordinado e dirige-se ao amigo de don Jesús. No desenrolar do romance, don Jesús será

descrito como o principal homem de posses de Almendralejo. O mais provável, nessa

hipótese, é que o título e a relação de amizade que mantinham don Joaquín e don Jesús

indiquem que ambos fossem nobres e proprietários de terras, homens de destaque. O leitor vai

descobrir, mais ou menos três páginas à frente, que o camponês matara don Jesús.

A estratégia narrativa de Pascual de agir com humildade parece duvidosa pelos

indícios expostos a seguir. Primeiro, ele parece insurgir-se contra um nobre e depois refere-se

a outro – “Prezado senhor [don Joaquín Barrera López]. O senhor há de me desculpar por

enviar-lhe este longo relato” (CELA, 1986, p. 9). A impressão inicial seria de que realmente

Pascual Duarte se arrepende, ao escrever suas memórias. Mas poderia ser também uma tática

do narrador para pedir clemência, mesmo não estando arrependido. De forma mais objetiva,

ele, Pascual Duarte, teme a morte, embora tente não demonstrar isso e, ao contrário, simule

estar resignado ao seu destino. Segundo, Pascual diz ao nobre que ele “é o único do qual [ele]

lembr[a] o endereço” (CELA, 1986, p. 9). Mas Pascual poderia ter deixado os manuscritos

originais do texto a cargo do pároco da prisão ou de um jornalista, ou mesmo de um militar,

ou de um conhecido seu. Qual seria, então, o objetivo de endereçar ao nobre esse relato em

um livro de memórias? Não poderia ser comover alguém capaz de agir na esfera de

influências políticas da época? O envio da carta com a narrativa, o endereço, talvez seja uma

tentativa de induzir o primeiro leitor dos relatos de Pascual. Terceiro e quarto, Pascual Duarte

apresenta o motivo e a consequência de escrever um longo relato sobre os seus infortúnios –

“quero enviá-lo ao senhor para livrar-me de sua companhia [do relato dos seus assassinatos],

que me queima só ao pensar que tenha podido escrevê-lo” (CELA, 1986, p. 9). Novamente a

tática da escrita e da sugestão para a leitura parece ser a de que Pascual Duarte se arrependeu

das mortes que causou e, por isso, o leitor deverá ler todo o relato considerando o

arrependimento. Quinto, Pascual ressalta pela primeira vez no texto, e vai repeti-la ao longo

de todo o relato, a vontade de Deus e a ação do destino: “e para evitar que o jogue fora em um

momento de tristeza, os quais Deus quer dar-me muito nesses dias, privando desta forma

algumas pessoas de aprender o que eu não soube antes que fosse já demasiado tarde” (CELA,

1986, p. 9). Ao escolher destinar o livro aos cuidados de don Joaquín, Pascual estaria, na

segunda hipótese, escolhendo um nobre, alguém com poder de julgamento, uma pessoa cuja

opinião tem valor.

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Depois de percorrida grande parte do caminho para compreendermos uma confissão

do fim, a razão deste capítulo foi entender como o narrador age no meio textual,

especificamente na descrição do grupo familiar, como ele se porta discursivamente, estando

diante do leitor, invocando-o com apelos retóricos e definindo-o também antes de falar dos

outros. O leitor não é mais aquele que lê, mas é, antes de tudo, uma exigência interpretativa,

um ente em forma de perspectiva, a quem o narrador procura confidenciar fatos e, com

métodos peculiares, educar, criando ou moldando nele o seu confidente legitimador. Nessa

transmissão narrativa, o leitor é convocado a se tornar parceiro dos dizeres escriturais do autor

suposto. E, logo em seguida, a participar daquilo que se convencionou chamar de transmissão

do legado, entendendo esse ato comunicativo como elemento justificador para o pensamento

de Brás, Mattia e Pascual, em virtude dos acontecimentos em vida, sob a sombra da morte.

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4. O DISCURSO PÓSTUMO: CONDIÇÃO DA ESCRITA, EXIGÊNCIA DA MORTE

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.

Manuel Bandeira

A morte mantém forte influência na atitude escritural dos indivíduos em desajuste com

a sociedade. Na história da humanidade, o medo do fim conflagrou o ato de rememorar e o

mesmo, uma série constituída de metas (tardar a morte, encontrar a salvação, garantir um

lugar em uma esfera além da vida, despedir-se, tentar entender o que aconteceu para algo dar

errado, descobrir o lugar de desvio de conduta, recompensar erros). Esse conjunto de metas

envolve preceitos de sobrevivência, seja ela espiritual, seja ela na memória em meio à

tradição do culto aos mortos, seja ela para prolongar por pouco tempo que seja a vida. Como

cremos ser possível percebê-la por qualquer pessoa, em nossa análise, a morte é elemento

essencial a atravessar toda a estrutura de confissões do fim. Quando propomos analisar três

romances sob a perspectiva da necessidade da escrita, pensamos em avaliar em que medida

seus respectivos narradores-escritores usufruíram livremente da tática de fingimento, no uso

da mentira e da manipulação dos fatos. Depois, em outra questão, pensamos em se os mesmos

narradores não conseguem enfrentar o problema do fracasso por não terem o devido

distanciamento, necessário para se autoavaliarem. Pois bem, apoiados nos mesmos desejos de

analisar os protagonistas, ao levar em consideração a medida do fingimento consciente junto à

medida da falta de reconhecimento de um diagnóstico preciso sobre si mesmo, nesse último

capítulo vamos tratar da parte da análise dos três romances sob a tensão causada pela força de

influência da morte, capaz de projetar moldes literários, sendo ela, em certa medida, o ponto

de obrigatoriedade para os três narradores-escritores escreverem. Propomos agora novamente

decifrar a expressão “confissão do fim” pelos dois termos que a formam.

O conceito de confessar pode ser tomado, comumente, por “reconhecer, tornar

público, revelar algo muito bem guardado”. Em literatura a palavra identifica uma variação de

um gênero textual, representando um tipo de narrativa autobiográfica em que o autor

proclama (jura) com sinceridade os erros que em vida cometeu. No latim clássico significa

“declaração, reconhecimento”. Susan Bernstein, no seu livro Confessional subjects, ao

teorizar confissão, nos orienta a avaliar o ato sob a teoria de dois grandes pensadores da

realidade do homem no século passado: Foucault e Freud. Para o primeiro, “confissão

significa polícia[mento]”, “garante o controle ideológico”, e “é [portanto] uma forma de

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subjugação” (BERNSTEIN, 1997, p. 15, tradução nossa). Ressaltando outros aspectos, Freud

entende confissão como “ato da cura na fala”, algo que “supera a repressão psicológica” e, por

fim, a “divulgação direta da psicanálise das memórias traumáticas, muitas das vezes da

transgressão sexual, [tanto que] significa a liberação psíquica [do sujeito]” (BERNSTEIN,

1997, p. 15, tradução nossa). Seguindo os passos diretivos de Bernstein, ela nos deixa a

alternativa de pensar em Foucault apreciando um lado negativo do termo, em favor do

equilíbrio da comunidade; e algo positivo, com Freud, destacando o lado terapêutico do ato de

confessar, permitindo a quem confessa se libertar do mal da consciência reprimida.

Há, entretanto, algo comum para os dois filósofos. Ambos entendem confissão como

“um evento dialógico que ocorre entre confessor e confesso, analista e [o emissor do discurso]

analisado. Neste intercâmbio, ambos os teóricos assinalam o enorme poder [oriundo] da

posição do confessor” (BERNSTEIN, 1997, p. 15-16, tradução nossa). Lembremos, por

exemplo, do poder do confessor no caso de Pascual Duarte. O destinatário do texto de suas

memórias, don Joaquín, visto no capítulo anterior como cidadão provavelmente influente,

como provável indivíduo competente para interceder pela vida do infortunado narrador. Os

dois, Foucault e Freud, também concordam ao falar do poder da força sexual inserido na

confissão. Como não somos expert nos dois estudiosos, não nos arriscaremos a tratar desse

aspecto na escrita dos narradores-escritores (é tentador pensar nisso, por exemplo, em FPD,

quando para o narrador a sexualidade parece representar a realização, tanto quanto

manifestação de um status de “homem”).

O outro termo, fim, nós o entendemos geralmente por término de algo, limite,

desenlace. Algo chega ao fim quando acaba, deixa de existir, deteriora-se, perde sua

mobilidade, desaparece. Na perspectiva das religiões reencarnacionistas77

(espírita, católica,

evangélicas), ao fim sucede um recomeço, com a nova realidade em um outro corpo. Essas

doutrinas e suas variações designam o fim como sendo uma mudança de corpo, na assunção

de uma ordem formal ainda não conhecida pela pessoa.

Falamos sobre confissões do fim no decorrer deste trabalho, cuidando de alguns

aspectos, como o motivo, o desenvolvimento da escrita, o foco, a caracterização no uso do

comentário e na descrição exagerada. Fixamos nosso olhar a maior parte do tempo nos

77

As doutrinas católicas e evangélicas baseiam-se na reencarnação após o dia do julgamento final da

humanidade, como aparece em “Apocalipse”, livro final da Bíblia. Os espíritas acreditam na reencarnação

após a morte, sem esperar, contudo, pelo grande dia do julgamento final. Grande parta da questão levantada

na interpretação feita no nosso trabalho requer pensar em os narradores reencarnarem. Por ser o livro o novo

corpo, em vez de reencarnarem, eles “rematerializam-se”, corporificam-se de novo no objeto. Brás Cubas

usa esse argumento em duas passagens já citadas ou pelo menos sugere-o nas mesmas. Uma delas está no

delírio e na outra ele indica que “não somos [os seus leitores] um público in-folio, mas in-12, pouco texto,

larga margem, tipo elegante” (ASSIS, 1969, p. 153, grifos do autor).

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capítulos iniciais dos romances. Defendemos que o livro de memórias do narrador-escritor,

artifício da ficcionalidade, é um projeto de justificação. Cada linha, parágrafo, capítulo dos

romances, encaminha-se para fechar com êxito o questionamento dos valores comunitários,

quase como uma tese de defesa pessoal e não mais que isso, já que na exposição dos fatos

cada narrador fez questão de ressaltar com grande alarde a importância de sua narrativa.

Ao alcançar os capítulos finais, a síntese de todo o projeto narrativo aparece para

retomar tudo que foi propagado por todo o texto narrativo. Deparamo-nos no final do relato,

pela retórica, com alguma declaração conclusiva, na procura de um eventual sucesso

expositivo para alcançar do leitor uma confirmação, por meio do convencimento, na

concordância com a tese do seu narrador, quando ele defende seus erros sem o seu esperado

arrependimento. Ao argumentar ser homem e igual aos demais, o narrador intenta obter o

condescendente reconhecimento de que é portador de limitações, passível de falhas e,

portanto, não deve ser julgado, mas apenas relembrado e aceito.

Por ser um relato dos erros cometidos no curso da vida, no momento de lermos

inicialmente cada confissão, torna-se importante cultivarmos a praxe de dar crédito à plena ou

momentânea sinceridade da pessoa que nos narra algo, mesmo que já saibamos pelo estilo do

autor efetivo o tipo de narrador preferido por ele. É provável que a maioria dos leitores já

saiba que a credibilidade no máximo é virtual. Mas não devemos fugir ao ímpeto de aceitar o

contrato inicial de veracidade, até porque o narrador tem precisão dele para quebrá-lo logo em

seguida. Essa atitude visa ligar os meios artísticos que o autor efetivo julga melhor para

causar a nossa reflexão sobre as condições literárias e humanas inseridas nas confissões do

fim.

Outros dois conceitos servem de apoio para o previsto contrato de relacionamento por

meio do texto. O caso temporal é um deles.78

O segundo diz respeito à pratica comum de

repassar experiência de vida através do texto escrito a alguém. Normalmente alguém escreve

memórias no final de sua vida e esse argumento acentua o uso da sinceridade. Pela lógica,

preferimos acreditar que, por já ser velho, o autor não tem que esconder muita coisa ou ele,

por algum outro motivo, tomou coragem para dizer o que não conseguia por ser jovem e

depender publicamente de sua imagem.

78

Em Teoria da ficção: indagações à obra de Wolfgang Iser, o próprio Iser abre a discussão sobre recepção

literária firmado no propósito de pensar “como compreender a literatura em sua relação com a ambiência

cultural em que foi produzida e em que nós mesmos nos encontramos” (ROCHA, 1999, p. 19). O leitor do

teórico tem diante de si dois problemas para onde olhar. Nos preceitos de Iser e em relação aos romances aqui

analisados, gostaríamos apenas de destacar a necessidade de sugerir um ponto onde possamos fixar nosso

campo de visão, no caso, os primeiros leitores e nos modelos de leitores propostos nos três romances. Essa

questão já foi vista no capítulo anterior deste trabalho, quando tratamos do tipo de leitor, e no primeiro

capítulo, na hipótese ficcional do editor ou do transcritor.

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No entanto, no tocante à sinceridade, vimos que nem sempre é assim o que acontece.

Várias vezes somos deixados na dúvida de propósito (o suposto autor algumas vezes colabora

para isso e o planejamento do autor efetivo o proporciona em quase todo o livro) e nos

perdemos nas contradições das narrações, que abrem um leque imenso de opções para o nosso

posicionamento. Temos diversos caminhos, algumas provas e uma proposta manhosa, às

vezes, suave e agradável, outras, bem mais provocantes. Se o fim da trajetória humana é o

desenlace da obra literária, a confissão não poderia ultrapassar esse limite e estacaria nos

momentos antecedentes da morbidez definitiva. O desrespeito a essa fronteira novamente nos

leva a pensar em, se quem narra ou quem publica, tem por trás de tudo algum objetivo de real

valor para romper com a sua malfadada voz o silêncio imposto pelo cessar das atividades

reconhecidas no terreno profícuo da corporeidade.

As vozes implorantes do além se perderiam com facilidade se não estivessem

devidamente documentadas. Como construções ficcionais, o formato de livro é uma aquisição

material cara às confissões do fim. Nele há o entrecruzamento de diversos discursos. Essa

miscelânea de tópicos conceituais e de falas formaliza a intencionalidade do personagem de

contar algo parcialmente. Depois de destacar aqui, no segundo capítulo, o discurso

prisioneiro, poderíamos retornar ao primeiro capítulo a fim de reconhecer nele a aplicação da

terminologia de discurso narcisista, expressão um tanto quanto competente para o enfoque do

surgimento da motivação do livro, concebido como um relato implicativo, em que o fim

limita todos os eventos e incentiva a produção específica da escrita. A visibilidade do ego

centralizador de toda narração é notória e, em momento algum, o foco parece se transferir do

“eu” para o “outro”, a não ser na medida em que o outro satisfaz a disposição de espírito do

“eu” autoral do narrador-escritor. Existe, ainda, um terceiro discurso componente do livro, no

qual se destaca, com bastante ênfase, a morte. Sem encontrar um termo melhor, aproveitando

a sugestão de Machado de Assis e Brás Cubas, optamos, para nomear esse discurso, pela

nomenclatura sugestiva de discurso póstumo.

Embora o discurso póstumo seja efetuado em circunstâncias, é claro, de morte

(proximidade ou concretização), na conceituação deste trabalho merece ressalva o fato de não

ser suficiente para sua compreensão entendê-lo unicamente como o resultado de igualar o fim

à morte. Daí termos de, conforme a aglutinação dos narradores-escritores e os seus textos sob

a denominação de confissões do fim, agora a necessidade de definir o que o fim representa e

por que ele diferencia dos outros livros o tipo de confissão dos três narradores, aproximando-

os entre si.

Pelo caminho de raciocínio mais curto, vale aproximar a definição característica

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dessas confissões – o fim – da presença, nos três livros, da significação da morte. Já

referenciamos o encontro da figura ingrata para seus narradores desde o primeiro elemento de

contato: o título. Em MPBC e FMP, temos, pela primeira vez, a presença dessa variante de

discurso. Estendendo essa conceituação imediatista até FPD, encontramos, no espírito das

memórias, autores falecidos e livros póstumos. Nos três romances, a conotação de

memorialismo é ainda mais acentuada porque, no ato de elaborar o passado, encontramos a

atitude de repensar, reviver, rememorar a vida inteira de personagens que se identificam em

livros específicos para se autonomearem perante casos de experiências desumanizadoras,

desagradáveis para o ser humano, além de justificar, negar, rejeitar, condenar o mundo em sua

realidade de ambiente possibilitador de todas essas experiências.

Avançando no propósito deste estudo, a partir de agora, faz-se necessário expandir o

conceito do fim para além da morte, considerando-o em dois sentidos: o fim encontrado na

morte e o fim entendido por estado permanente, status contínuo, mesmo que antes da morte

física. No mais fúnebre dos três livros, MPBC, logo após o título, deparamos-nos com uma

das marcas predominantes do estilo do narrador, o qual surge do seu aprendizado após

observar, apreender e refletir sobre a culminância da morte. A abrangência dela serve como

uma espécie de instância mestra por permitir a ele, pela observação, definir a parte mais

importante dos traços estruturais do seu texto. Na página de abertura, a famosa dedicatória do

defunto autor a um verme resvala na singularidade da escolha. Em geral, uma dedicatória é

dirigida a alguém ou a algo importante para a vida de quem escreveu o livro. O destaque

desse acréscimo paratextual estranhamente é dado a esse “verme [específico] que primeiro

roeu as [suas] frias carnes” (ASSIS, 1960, p. 105), impactando a leitura, surpreendendo o

leitor. O desprendimento irônico presente antes da narração é já um alerta para a verdade mais

simples das limitações do ser humano, condizente com a infelicidade em saber que não

podemos fazer tudo o que desejamos, pois nos limitamos desde o nascimento pela

insuficiência corporal, até atingir a falência absoluta.

Na leitura desse pequeno e tão significativo pré-texto, o mesmo funciona como

pretexto estético de uma maneira de escrever. Nós, leitores, entrevemos o cinismo. Porém, a

“saudosa lembrança” do verme sugere ainda o estilo como fruto da decomposição,

característica evidente em toda a narrativa e que será o modo de analisar os outros e compor o

livro. Essa dedicatória autoriza-nos a pensar que Brás Cubas compõe (a mensagem)

decompondo (o caráter das pessoas). Fora o lado provável, é na observância do conjunto

formador do romance que podemos encontrar solo para desvendar a perspectiva contingente

de um morto bastante insatisfeito.

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A transferência parcial de foco, quando aumentamos a visualização sobre a matriz das

costuras de discursos em um discurso, no caso o autor efetivo, o realizador pragmático desse

empreendimento, pela arquitetura textual traçada por ele para o romance, na comparação de

suas edições ainda vivo, ou seja, na busca por descobrir se houve ou não mudanças

importantes na estrutura do texto, podemos entender melhor o romance se nos questionarmos

que valores expressivos ele adquiriu até a edição definitiva.

O paralelismo do efeito das impressões textuais nessas mudanças transfere a

notoriedade do autor para a sua criatura, pois assim passamos a julgar mais a moral do

narrador do que a do seu criador. E isso começa a se evidenciar no arranjo visual da ordem

das partes do paratexto. Fora a exclusão da epígrafe, outra mudança muito interessante ocorre

em observar o posicionamento da dedicatória. Conforme esclarece a nota de rodapé da edição

crítica de 1960, do Instituto Nacional do Livro, em que as edições são identificadas por letras

maiúsculas, a edição “A [de 1880] não traz a dedicatória. B [edição de 1881] traz a

dedicatória depois de „Ao leitor‟, podendo ser por malbarato da ordem de impressão ao ser

encadernado o exemplar da colação” (ASSIS, 1960, p. 105). Segundo essa informação, na

edição definitiva, após a capa, a primeira seção paratextual que encontramos é a dedicatória,

antes mesmo do prólogo de Machado de Assis.

Em FPD, não há essa ordem e o prefácio “Pascual Duarte, a limpo” vem antes da

dedicatória a don Jesús. Em outros livros nos quais se identificam figuras de personagens-

escritores, é normal haver notas, introduções ou outros textos antecipando a ficcionalidade da

suposta autoria para dar mais verossimilhança à escrita.

Retomando a referência a Brás Cubas, a dedicatória, por ser um elemento textual

posterior,79

é uma indicação planejada do pessimismo do narrador, a guiar-nos pelas margens

da melancolia encontrada na morte e nos seus mistérios. A dedicatória dá mais autenticidade

ao padrão do morto, pela mesma razão de serem póstumas as suas memórias, em consonânia

com a alegação de Brás Cubas ser um defunto autor e não um autor defunto. O informe

diferenciador acaba quase por transformar-se numa reivindicação o ter de se identificar

imediatamente como um falecido, na imitação clara dos padrões literários de usar prefácios ou

prólogos, adotados por grande parte dos homens que consagraram seus livros, mas tiveram

antes que explicar o seu padrão visionário para a época em que viveram, a ponto de terem que

apresentar antes suas credenciais de escritor.

Pensando um pouco mais na inclusão da dedicatória no resto do texto do protagonista,

79

Na forma de classificação de Genette (1987), porque ela foi escrita e incorporada depois da primeira edição.

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supomos antes de ler propriamente a confissão que exista a repetitiva exposição do tema na

narração. Antecipar o conteúdo da mensagem por essa curta preliminar do seguimento

escritural, com suas bases retiradas na ocorrência inevitável da morte, revela que esse modelo

de discurso atravessa a narrativa do início ao fim e está presente, com alta frequência, nos

títulos em MPBC e em FMP, nas dedicatórias de Brás Cubas e Pascual Duarte, no último e no

primeiro capítulo do relato dos três narradores; nos prólogos de Machado de Assis, do

personagem Brás Cubas, de Camilo José Cela; bem como no ensaio em forma de posfácio de

Luigi Pirandello. E, possivelmente, está presente até na possibilidade de significação dos

nomes das principais vítimas e do seu algoz em FPD. Em MPBC, FMP, e em FPD, antes do

primeiro capítulo, já somos informados que os três narradores já estão no “undiscovered

country de Hamlet” (ASSIS, 1960, p. 112). O início do livro é uma antecipação do final, na

mesma proporção em que o fim é um retorno ao seu início.

A marca da decomposição causada pela morte aparece em FMP também, escondida

atrás do riso, do humor. Quando se relata a notícia da primeira morte fictícia do narrador,

impressa em um jornal, este deixa aflorar sua indignação, valendo-se do inconformismo para

questionar o mundo de então. Nesse ponto, os traços da decomposição ultrapassam o

humorismo e torna tudo muito sério. Pascal reporta que, em Miragno, “foi encontrado, na

levada de uma azenha, um cadáver em estado de adiantada putrefação...” (PIRANDELLO,

1972, p. 89). Embora envelhecendo, seu estado espiritual aponta para esse laço de

desintegração física. No seu caso, o processo atinge diretamente não o corpo, mas a

identidade e a moral. Justamente nesse ponto de “adiantada putrefação” é que surge a repulsa

e nasce o problema de se depender da opinião alheia. Mattia Pascal já deixara de ser desejado

faz tempo e sua mulher e sua sogra, querendo aproveitar a chance, foram capazes de, para se

verem livres dele, afirmarem ser seu o corpo encontrado. E não era só para elas que o

personagem assumiu essa aparência. Seu irmão aproveitou o engano para se livrar de dívidas

e Batta Malagna também tirou proveito do suposto reconhecimento do corpo, favorecendo

seus interesses financeiros e familiares.

Embora seja difícil afirmar quais pessoas realmente lamentaram aquela morte, parece

ter sido unânime a sua aceitação. O corpo encontrado “foi reconhecido como o do nosso

bibliotecário Mattia Pascal, desaparecido há vários dias. Causa do suicídio: dificuldades

financeiras” (PIRANDELLO, 1972, p. 89) dizia a notícia estampada em página do Il

foglietto.80

Mesmo sendo a notícia parte verdadeira e parte falsa, Mattia Pascal rejeita ser esse

80

Nome do jornal de Miragno, cidade de Mattia Pascal.

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o motivo de sua morte, mas, tendo em vista a morte da sua mãe e de sua filha, passa a repetir

parte de um discurso consumado, favorável para delinear a efetuação da sua falsa morte: “ –

EU? ... „Desaparecido... Reconhecido... Mattia Pascal...‟” (PIRANDELLO, 1972, p. 89).

Na repetição da fala alheia, ele acolhe aquela opinião, não porque seja uma verdade

plena. A razão de consentir em tal concepção está na possibilidade de ela transparecer e

funcionar como uma verdade, permitindo ao narrador fugir e não ser mais importunado.

Mesmo sendo uma forma errônea de concretizar o seu desejo de liberdade, suprimindo seu

passado, ainda assim ela depende das circunstâncias. Como toda atitude social, a morte não é

um evento simplesmente individual: ela só se concretiza se os outros indivíduos a

reconhecerem. Tanto que a fala do narrador, eco da fala de uma outra pessoa, o jornalista,

apresenta, em sua pronúncia, duas faces do problema da morte para ele – o reconhecimento e

o desaparecimento. Ele só pode ser um morto se o seu corpo for reconhecido e desaparecer

para quem o conhece. A resposta para (tentar) finalizar esse problema é sua fuga pela segunda

vez, desviando seu caminho de volta ao lar para vários lugares até chegar a Roma, adiando

por algum tempo seu retorno a Miragno.

Para ratificar a vantajosa notícia da morte, o narrador não desmente o jornal, nem

contradiz a esposa, dando o direito a ela, pelo silêncio dele, de se separar do corpo do marido

e de depositá-lo em uma sepultura. Só que, após encarnar esse papel, de desaparecer da visão

dos seus concidadãos e de ser reconhecido como finado pela família e pelos meios públicos, a

ordem dos termos de sua nomeação na capa do livro, o adjetivo “falecido”, antecipando o

nome do protagonista, remete-nos ao problema dos narradores no início do enredo. Quando se

deparam com a perspectiva do desaparecimento, o medo de migrarem da existência para o

nada faz de cada narrador um escritor que tenta, na medida do possível, se fazer reconhecido.

Os narradores-escritores são obrigados por esse destino a apelarem para fórmulas literárias em

que predominam o exagero de alguma maneira. As extravagâncias literárias de Brás Cubas

não são meros símbolos de opulência. Elas atuam na razão de o leitor precisar ser conquistado

– incomodado mesmo, se necessário – para não se desgrudar do texto. Mattia age da mesma

forma. Quando quer desvencilhar-se do humorismo, só consegue fazê-lo porque o mesmo

atributo artístico já fez rir muito o leitor e este pensa que logo voltará a rir em companhia de

tão agradável leitura. Permanece, para o leitor, antes de alcançar a última página, ainda a

expectativa de desfrutar das graças do texto. E até o inculto Pascual Duarte tem seus meios de

persuasão. O uso de reflexões a representar uma filosofia de homem do campo, um

acumulado de ideias de teor moralístico, com base em pensamentos do dia-a-dia, às vezes faz

o leitor concordar com ele, com suas sentenças secas, porém verdadeiras.

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Ainda sobre a aceitação dos termos que mudariam a vida do narrador, mesmo após o

desaparecimento e o reconhecimento, essa mesma fala resvala para uma terceira vertente do

problema. Não dura muito o sossego de Mattia, agora Adriano Meis, com a morte e a vida

fictícia apontando para a insustentabilidade dessa mentira de um ser que vive pelo engano.

Após ter-se transformado em Adriano Meis e encontrado refúgio na casa de Anselmo Paleari,

no contato com a filha deste, o episódio da pia com água benta81

faz o narrador encarar o

problema muito mal resolvido da fuga. Ele relembra que “desde menino” “descurara [de]

todos os deveres religiosos e não entrara mais em nenhuma igreja”. A visão do fato permite a

ele repensar seu destino ilusório. “Subitamente, vi-me numa condição bastante especiosa.

Para todos os que me conheciam, eu me libertara – bem ou mal – do pensamento mais

incômodo e angustiante que se pode ter, vivendo: o da morte” (PIRANDELLO, 1972, p. 134).

A percepção da irrealidade dessa ilusória imagem, na migração de identidade, leva-o a

perceber “de repente, que ainda tinha mesmo, de morrer: esse, o mal [da humanidade]”

(PIRANDELLO, 1972, p. 135).

O reposicionamento de significação no jogo entre a verdade e o engano pode nos fazer

olhar para a morte, se estamos pensando no sumiço dos rastros do antigo homem vivo, agora

morto. E para evitar tal desgosto, o de desaparecer, o discurso póstumo acontece para evitar

algo futuro para o ato de narrar, o aparecimento de uma espécie de discurso fúnebre: aquele

que indicaria o fim das lembranças, o esquecimento total, que por assim dizer, geraria a maior

de todas as mortes: aquela que não haveria nem sequer a possibilidade de se viver na mente

de algum curioso, de um pesquisador, de um parente ou amigo. O nome repousaria entre

tantos outros apenas no ato da pronúncia, sem ter nele qualquer lembrança do seu dono.

A ideia da morte aflige Mattia Pascal e os outros dois narradores. Mas a morte física,

encarada como o mal da vida, entrevê essa outra desilusão, a do esquecimento. E aí, sim,

temos o entendimento de ser a morte o desaparecimento do corpo físico e também das

lembranças, restando como conhecimento possível apenas o nome, no exato papel de uma

palavra passível de se decorar, mesmo sem saber o seu significado. Todos os humanos

comuns igualam-se quando se aproximam do “mesmo fim: a morte” (CELA, 1986, p. 15).

Temos nesse meio humano uma multidão de nomes e identidades. Um mar de pessoas que,

por praticidade, não desejamos saber quem foram. Até a morte funciona nesse caso por

81

No décimo capítulo, “Pia de água benta e cinzeiro”, no quarto no qual se hospeda na casa de Anselmo Paleari,

havia uma pia com água benta que o narrador usa como cinzeiro, por que essa pia veio a cair e partiu-se,

acabando não servindo para mais nada, além de um cinzeiro.

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selecionar as pessoas de quem procuramos descobrir o seu passado.82

Por mais que se possa vislumbrar a imposição do fim comum, para Pascual Duarte a

morte é ainda mais agressiva porque ele sabe que em breve sofrerá o seu suplício. Mattia

Pascal não sabe ao certo, mas, como para os outros ele já está morto, não pode nem ter o

conforto do lamento de sua esposa e de seu suposto filho no momento da partida definitiva. Já

com o defunto Brás Cubas, o tédio da morte, a falta do casamento, da consagração advinda da

invenção do remédio e o fracasso nas carreiras política e literária fazem-no meditar que, em

breve, ele poderá desaparecer da memória dos demais indivíduos, por não ter tido méritos em

boas ações ou em quaisquer empreitadas e, assim, inexistir para sempre. Os três morrem, mas

não querem desaparecer. Assim como os faraós, eles lutam para permanecer entre os vivos.

A morte, além de ser um evento social, um rito de despedida, na visão de Brás Cubas

é um acontecimento “triste, mas curto”,83

algo passageiro na lembrança e, pela dinâmica da

vida, pouco perdura na esfera emocional, em razão de haver coisas bem mais interessante do

que relembrar com pesar um morto. E quem demonstra isso é o próprio narrador, ao

rememorar suas atitudes após a morte da sua mãe e do seu pai. O capítulo sobre a morte e o

enterro do pai vem depois e é bem menor do que o da mãe. Em ambos, nos capítulos

seguintes aos dos relatos dos velórios, há pelo menos uma referência temporal justa, no intuito

de se avaliar a rapidez de nos adaptarmos à ausência causada pela separação fúnebre. No

capítulo XXV, no “sétimo dia” depois do falecimento da mãe, ele procura refúgio, devido a

sua tristeza, “numa velha casa” (ASSIS, 1960, p. 156) de propriedade da família e aí conhece,

em pouco tempo, a filha do Vilaça e de dona Eusébia, consolando-se nos braços e nos beijos e

carinhos da moça coxa. No outro extremo, no capítulo XLVI, “oito dias depois da morte de

[seu] pai” (ASSIS, 1960, p. 181), o narrador, sua irmã e o cunhado vão debater sobre a forma

correta de dividir a herança. O narrador briga com ela e o marido, isola-se da sociedade, mas

em breve ele vê Virgília retornar, acontece o reencontro com ela, reatando e fortalecendo

ainda mais os laços sentimentais entre ambos. Outra vez o narrador encontra consolo no afago

de uma mulher e logo esquece os mortos. Nem mesmo as mortes mais dolorosas para o

narrador custaram muito tempo para serem superadas.

82

Antigamente, um hábito comum era a construção, nos cemitérios, de criptas cheias de detalhes, estátuas,

desenhos em mármore, frases impactantes, citações de textos religiosos ou literários, jurídicos. Tudo isso

chamava a atenção dos visitantes. Hoje, os cemitérios-jardins, com sua placidez e uniformidade, vêm

ocupando o imaginário da maioria das pessoas, revertendo o medo, o sofrimento em algo em que predomina

a calma, a pacificidade do rito de passagem e despedida. 83

Título do capítulo 23, em que é narrado o enterro da mãe do personagem. É nesse capítulo que a morte

alcança, na vida do personagem, um grande impacto por atingir um ente tão querido. Provavelmente é o

momento em que o processo da morte lhe “pareceu [mais] obscuro, incongruente, insano” (ASSIS, 1960, p.

155).

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Diferentemente de Brás Cubas, a medida de sofrimento dos outros dois narradores

varia, embora Mattia Pascal e Pascual Duarte sofram mais as perdas quando estas são de

filhos. Dos três, quem sente mais o sofrimento de perda aparenta ser Mattia Pascal. Sua fuga

tem um quê de ensinamento na proposta de se entender a pronúncia da frase “me chamava

Mattia Pascal”. Já fomos informados que o narrador foge por “motivos financeiros”.

Imaginamos que a morte, na verdade, deriva das perdas simultâneas da filha e da mãe.

Poderíamos alegar que a união dos dois motivos força o narrador a se “matar”. O certo,

segundo nos parece, é que com os falecimentos das duas, avó e filha, ele acaba por perder sua

identidade. E isso se explica se imaginarmos na mãe a presença do passado e na filha, a

hipótese do futuro. No momento em que morrem, ele perde passado e futuro. Só lhe resta

viver o presente. Contudo, essa fase deve ser pensada logo na presença da figura da sogra

insatisfeita. O presente pode ter sua representação nela. Viver o presente, para o narrador, será

viver em agonia a cada momento. Se não se tem outra espécie de presente na vida, o melhor a

fazer é abandoná-la, morrendo.

O forte egoísmo que cerca a vida e a narração de Brás Cubas e de Mattia Pascal

estende-se a Pascual Duarte. Este não vive aproveitando-se dos fatos para sobreviver e nem

fala sequer em trabalho. Estamos cientes que é um homem do campo, morador de um vilarejo

e sabemos, ainda, do seu baixo poder aquisitivo. Ele é pai de família (por um breve período) e

precisa custear os gastos da casa. Precisa comer, precisa até do dinheiro para beber e coisas

assim. Por outro lado, ele não relata qualquer ligação com criminosos ou trabalhos ilícitos (o

único caso é o do pai, contrabandista e preso alguns anos atrás). Não menciona a exploração

de mulheres (fora sua irmã, por Estirao). Daí deduzirmos ser a sua ocupação remunerada

procedente do trabalho braçal.

Mesmo não tirando melhor proveito da vida, em algumas passagens ele se satisfaz

com as oportunidades que o destino lhe oferece. É possível mesmo que na situação de

insurgência dos conflitos armados em seu vilarejo, ele aproveite para se vingar do nobre don

Jesús, a quem invejava. Mas, fora essa questão em que temos vários caminhos hipotéticos a

seguir, ele narra certo acontecimento, sobre outra pessoa, sem deixar nenhuma espécie de

dúvida. A morte do seu irmão Mário fornece o argumento para o narrador criticar ainda mais e

sem nenhuma piedade, sua mãe, diferenciando-a da atitude esperada das outras mães. Ela

“tampouco chorou a morte de seu filho; secas deveriam ser as entranhas de uma mulher com

coração tão duro que não lhe sobrassem sequer algumas lágrimas para assinalar a desgraça de

uma criança” (CELA, 1986, p. 43). Ele, pelo contrário, confessa que chorou com sua irmã a

perda do infeliz menino.

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Um pouco mais a frente, em contrapartida ao sentimento de tristeza pela despedida do

pequeno parente, nesse mesmo capítulo, ele encontra Lola, sua noiva à época. Durante o

enterro de Mário, escuta don Rafael, amante da mãe, pronunciar repetidas vezes “Os anjinhos

vão para o céu” (CELA, 1986, p. 45) e revolta-se, em pensamento, contra o falso sentimento

do nobre. Don Rafael, comumente, espancava o indefeso Mário. Naquele momento, Pascual

não o agride porque estava mais interessado em olhar “as pernas à mostra [de Lola, ao

ajoelhar-se], brancas e apertadas como morcilhas, acima das meias pretas” (CELA, 1986, p.

47). Notamos que a narração guiava-nos até então para pensar que o narrador era um pobre

coitado que não podia lutar contra todas as injustiças do mundo (no caso de Mário, contra don

Rafael), mesmo não as aceitando. A expectativa gerada pelo efeito do sentimento de nobreza é

quebrada e desvia-se para declarar a perversão de alguém capaz de desejar a noiva nua, em

lugar de lamentar a criança morta.

Para não ficar sozinho no rebaixamento moral, ele, à sua maneira, vai desqualificar a

integridade da futura mulher, por demonstrar que ela estava se insinuando, deixando visível

alguns atributos físicos seus. A conclusão de semelhante ousadia terminará no selvagem ato

sexual no meio do campo, no mesmo dia do enterro do irmão. Antes de dominá-la no campo,

ele surpreende ainda mais o leitor e não apenas sugere, mas declara abertamente que “naquele

momento [ele se alegrou] pela morte do [seu] irmão” (CELA, 1986, p. 47).

Ainda em FPD, no desenrolar do romance, somos informados da morte do pai e do

irmão do narrador, de seu filho, do aborto de Lola, da morte dela, sem contar as vítimas do

narrador. Por Mário, mesmo por pouco tempo, são derramadas algumas lágrimas. Pelos pais

não há indícios de nenhum remorso. Lola, da mesma forma. Apenas as crianças, os seus

filhos, é que causam grande desgosto e comoção. Pascual lamenta-os muito, demarcando bem

o retorno à questão do destino dele. No meio da sua narração, no capítulo 10, o pouco de

felicidade pelo nascimento de Pascuallilo logo se converte em profunda amargura. A criança

morre em seguida. Pascual não consegue mais equilibrar-se e fará uma peregrinação, saindo

do inferno do lar depois da morte da criança, passando pelo purgatório em Madri, retorna ao

inferno do lar, vai para o purgatório da cadeia, contempla de perto o paraíso na saída da

prisão, cai no inferno do lar, depois, em definitivo, no inferno da prisão.

Talvez o mais conhecido aproveitador dos três narradores seja Brás Cubas. Não

demora muito para nos lembrarmos das muitas inconveniências éticas de um homem nunca

trabalhar, gastar sem remorsos o dinheiro deixado pela família, não casar e manter relações

sexuais com a esposa de outro homem – Lobo Neves. Por haver nascido e crescido rico, Brás

“conheceu todas as facilidades, todos os prazeres [da vida]. E porque teve tudo, mas não se

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deixou empolgar por coisa alguma, cedo conheceu o tédio” (PEREIRA, 1988, p. 196). Em

várias passagens do romance há recorrência ao sentido dessa palavra. Mesmo assim, em

momento algum o narrador pensa em morrer, ou abre mão de sua fortuna ou, ainda, se

aventura por lugares desconhecidos. O tédio é marca constante, embora o desejo de viver

supere esse sentimento.

A prática de Mattia e dos dois outros narradores do livre proveito é um forte vetor que

cerca o alter ego de cada um. Mostra, às vezes, que eles não estão preocupados senão consigo

mesmos. Brás Cubas, por exemplo, torna-se tão cínico, que em suas ponderações a teoria do

humanitismo transforma-se em mero pretexto para defender suas ações. Entende até que “se

não fosse dona Plácida, talvez os [...] amores com Virgília tivessem sido interrompidos, ou

imediatamente quebrados, em plena efervescência; tal foi, portanto, a utilidade da vida de

dona Plácida” (ASSIS, 1960, p. 291). Na sua identificação da teoria do humanitismo, o mais

desvalido só nasceu para servir ao gozo de quem usufrui a mais valia. Até aí tudo bem. No

entanto, ele comete o disparate de afirmar isso em referência a Virgília, quando a regra é o

mais forte dominar e usufruir, e esse mais forte era Lobo Neves, o esposo dela, um político,

na devida medida, bem sucedido. Brás, dos dois o mais fraco socialmente, é quem consegue

gozar dos amores dela. “E, bem pesadas as coisas, não era outra a razão da existência de

Virgília: não podia ser” (ASSIS, 1960, p. 202). A razão da existência de sua amante rica só

poderia ser satisfazer o egocentrismo do narrador, é o que ele pensa sem se preocupar se está

errado ou não.

Depois de reconquistar Virgília, após consolidar a relação de adultério, os “amores”

(os prazeres) vividos por ambos não comprovam o sentimento de amor entre eles. Haveria o

desejo movido pela atração, mas sem ter a necessidade de querer o outro para si pelos

parâmetros da integridade. Identificamos a anulação do desejo de casar-se. Brás Cubas rejeita

o cumprimento dos princípios do matrimônio em nossa sociedade. Tanto é verdade, que um

fato, em especial, atesta contra o narrador. Lobo Neves morre antes de Brás Cubas. Com a

viuvez de sua amante, nada o impedia mais de procurá-la para casar-se. Mas não: sua vontade

afetiva em relação a ela arrefece até desaparecer. Ambos tornam-se apenas conhecidos de

outrora. O caso com Virgília termina seguindo a mesma direção de sua importância viver no

passado do narrador, como no caso de Eugênia, com a diferença de ser essa última deficiente

e pobre.

A prática do livre proveito é muito comum a narradores egocêntricos. Devemos pensar

se o livre proveito também se transfere para o discurso. Quando isso ocorre, podemos

perceber que o narrador mostra-se o mais falho e o mais tendencioso possível. No caso de

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Mattia, isso parece uma evidência necessária. Por ter tido o privilégio de ver-se “morto e

enterrado” (PIRANDELLO, 1972, p. 279), depois de receber a notícia de sua falsa morte nos

vagões de um trem, Mattia utiliza-se da prática também no discurso para fazer-se de vítima.

Conforme tomamos conhecimento, o argumento de tirar proveito da morte justifica seu plano

de gozar uma nova vida e este cresce na mesma medida em que vamos encontrando na leitura

das páginas do romance o ápice do ódio guardado pela sogra. O caso do reconhecimento do

corpo seria culpa dela. “Reconheceu-me [a viúva Pescatore] imediatamente! Nunca alguma

coisa lhe viera tão a calhar, ora!” (PIRANDELLO, 1972, p. 90). A viúva, assim como Mattia,

parece aproveitar-se das circunstâncias. A diferença está em Mattia autorizar sua atitude como

justa e condenar a da sogra, obra de uma perversa. “„É ele, é ele! Meu genro! Ah, pobre

Mattia! Ah, pobre filho meu!‟ E, talvez, terá, também, desatado em pranto; terá, também,

ajoelhado junto ao cadáver daquele coitadinho” (PIRANDELLO, 1972, p. 90, grifo do autor).

O narrador informa-nos o quadro de sua mente sem se importar de ser julgado. Para

ele, o que está em jogo é o mal (ou o bem) cometido pela velha. Aproveitando essa mesma

imagem, na totalidade do quadro, temos, de um lado, o defunto e, do outro, os parentes e mais

as pessoas próximas. A aplicação desse princípio mostra o rito de despedida do corpo. Ele nos

leva a pensar no fato comum da presença dessas pessoas – pelo menos dos parentes. Caso

ninguém vá se despedir, do morto, então ele não passa de um indigente e, logo, não faz falta

alguma à sociedade. Agora, pensemos na hipótese de o narrador não ter quem o chore. Sem

filhos, quem invocaria a sua presença? O não cumprimento do matrimônio, a carência da

prole, envolve o narrador na conscientização do perigo do desaparecimento definitivo.

A falta de familiares para lamentar suas mortes revela-se outra dificuldade para os três

narradores, despontando, em seguida, a tentativa de suprir essa ausência com o leitor. Mesmo

que Brás Cubas fale no desdém dos finados e que afirme que no outro mundo “não há

plateia”, ele admite que “o olhar da opinião” (ASSIS, 1960, p. 156) se estenda para lá, a

examinar e a julgar os mortos. Na aritmética da necessidade da opinião alheia, a plateia de

Brás não pode ser do mundo dos mortos. Pelo contrário, tem de ser dos vivos. São eles, os

vivos, os responsáveis pela manutenção da memória. Scarpelli (2001) trata esse problema,

comparando o destino do personagem ao de Sherazade, personagem d‟As mil e uma noites.

Brás Cubas foge do tédio sem fim da morte encontrando na narrativa uma alternativa contra o

mundo dos mortos: “narra-se para não morrer” (SCARPELLI, 2001, p. 35). “Brás Cubas [...]

volta à vida através de suas próprias „memórias póstumas‟ [e] lança a seus leitores futuros [...]

seu legado estético: fora da arte, a vida não tem visibilidade” (SCARPELLI, 2001, p. 35).

Essa espécie de solução atinge bem o núcleo do conflito vivido antes do memorialismo

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narcisista, deixando entrever que o fim não é apenas a morte. O fim é a ausência da

possibilidade de mudança. Sem poder mudar, o retorno ao passado só se torna um meio de

superar o seu mal-estar temporariamente, na perspectiva de se imaginar inocente perante um

outro indivíduo – inocente, nesse caso, não é o justo, mas o justificado.

Os narradores de confissões do fim, em suas narrativas, apegam-se com facilidade à

aceitação do paradigma de que “narro [escrevo], logo existo”. Essa adaptação do axioma de

Descartes é extremamente contundente para os narradores se afirmarem desde o princípio.

Além do mais, as primeiras e as últimas frases dos relatos realinham os polos valorativos do

enredo, invertendo-os. Seria interessante avaliar, portanto, o fim das confissões dos narradores

em confronto direto com o início das memórias. Estabelece-se, assim, a possibilidade de

expor os intentos do narrador em face das previsões do leitor e ver se aquele mudou ou não o

trajeto, se confirmou ou negou seus propósitos no projeto textual a que se dedicou.

Brás Cubas começa sua narração empenhado em explicar a composição do seu livro,

sendo que isso já fora feito, em parte, no prólogo do livro. No primeiro capítulo, o narrador

resvala logo para o problema do estilo, do poder e da escolha. “Algum tempo hesitei se devia

abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim” (ASSIS, 1960, p. 111). A prolixidade inicial

do narrador faz com que as primeiras linhas do primeiro capítulo sofram uma perda na

objetividade narrativa e não fuja à regra de expor a arrogância de elevar o nível e a

importância do seu livro. Por ser o mais fúnebre dos narradores – tanto que define suas

memórias como póstumas –, ele insiste na qualidade e na superioridade do livro e até deixa

entrever seu orgulho no subsequente realçar da sua pessoa e dos seus dotes literários pela

estranheza e absurdo do fato. Dando tanta honra a si, ele rebaixa o seu leitor, depois dos

argumentos da sua expressividade estética impressa no prólogo, tendo até de explicar a

escolha ousada de quebrar a linearidade do texto, até então tradicional, para começar pelo fim.

Essa característica de começar pelo fim o seu texto estende-se aos outros dois

narradores, porque o fim é o ponto de encontro imediato de todo o fracasso não superado. O

fim, na verdade, é o enfrentamento de toda a vida e, por isso, dos fantasmas dos seus

narradores-escritores. Em referência a eles, num discurso póstumo, o fim é também o ponto

material de partida de todo questionamento do mundo. Desde o princípio, lança-se, por

inteiro, sobre o fim o foco, quebrando a expectativa do leitor de saber o que acontecerá com o

centro das atenções, que é o egocêntrico narrador-escritor.

De volta a Brás Cubas, ele invoca a autoridade da morte, pensando no processo em

que ela serve de guia ao seu intento literário, como se pode ver em sua postura inicial de

escritor, “para quem a campa foi outro berço” (ASSIS, 1960, p. 111). Por ter origem e fim na

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morte, o discurso póstumo, outra consideração disfarça a presença negativa do que o ser

humano em geral abomina. Ao revelar a preocupação em tornar o texto agradável e aceitável,

ele reflete, assim, acerca da função de um escritor real, de ter um estilo sóbrio, culto e, acima

de tudo, inovador: “o escrito ficaria assim mais galante e mais novo” (ASSIS, 1960, p.111),

deixando repercutir na mente de quem lê benefícios literários para a reflexão sobre o

insuperável “problema da vida e da morte” (ASSIS, 1960, p. 155). Falando assim, podemos

pensar no narrador preocupado em manter uma tênue linha entre a vida e a morte, a fim de

inventariar seus limites.

O intuito narrativo originário do defunto autor implica logo a caracterização, em todo

o texto, do seu desdém, o seu descompromisso moral, suas inovações a evocarem uma nova

tradição shandiana ou luciânica, sem contar as demais características, destinando-as a

demarcar o dito discurso póstumo. O uso do termo – discurso póstumo – refletido no “eu”

narrativo, consegue enfatizar bem o exagero, no prólogo e no início dos primeiros capítulos,

da exaltação da sua figura. O suposto autor vangloria-se com muita facilidade. Ele mesmo

confessa ter por desejo o “amor da glória” (ASSIS, 1960, p. 113). O natural então é que tudo

na obra aponte para o morto Brás Cubas. Em decorrência disso, resta a confusão ao avaliar

qual é a intenção do defunto-autor: destacar sua vida ou destacar sua morte? Essa dicotomia

assumida permitiria o leitor perguntar-se qual a função de começar pelo fim. Se a intenção

dele é realmente contar sua vida, o confronto que se cria é para com os efeitos da morte e não

poderá se esquecer nunca dessa condição do narrador. Não obstante, se o “uso vulgar [em um

texto de teor autobiográfico] é começar pelo nascimento” (ASSIS, 1960, p. 111), Brás deixa

escapar que alcançou uma fase em que ele contraria a vida, ou os seus valores. Essa

contrariedade esclarece-se no reconhecimento do fato de que, enquanto esteve vivo, não

conseguiu ser alguém famoso, embora sempre o desejasse, até para manter a conquista de

permanecer na lembrança e do reconhecimento do seu nome.

O sentimento de contrariedade da vida persegue o narrador até a conclusão do livro.

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” (ASSIS, 1960,

p. 304). O tom narrativo assume, em seu final, o pressuposto de que não há razão para viver.

Tudo é pura ilusão, não existe nada nobre na vida. O que está à espera de quem vai entrar na

vida é o tédio, o sofrimento e outros sentimentos negativos.

Brás Cubas constrói o fechamento do seu livro após ter narrado a decadência e o

falecimento de algumas pessoas. No capítulo CXXV, encontramos apenas a seguinte inscrição

talhada no túmulo: “Aqui jaz dona Eulália Damasceno de Brito, morta aos dezenoves anos de

idade. Orai por ela!” (ASSIS, 1960, p. 274). A construção de um capítulo inteiro somente com

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a redação mortuária do epitáfio a respeito da perda da provocante Eulália põe em evidência o

recado da morte: ela prevalece sobre velhos e jovens. Mesmo sem dizer, temos a impressão de

que, se possível, o narrador optaria por trocar o fim do texto (“Orai por ela”), pela frase

“lamentai a perda de uma mulher tão atraente e tão jovem”.

Alguns capítulos à frente, a narrativa de morte será a de Lobo Neves. No capítulo CL,

o título “Rotação e translação” representa os dois lados de um mesmo fracasso. Ambos, Brás

Cubas e Lobo Neves não alcançam o sucesso pleno. O jornal de Brás Cubas vai à falência,

enquanto a nomeação de ministro de Lobo Neves não sai. E, pior, o último, a quem o narrador

atribui vitórias na política, falha e falece, quando estava tão perto de concretizar o desejo de

ser ministro. “Morria com o pé na escada ministerial” (ASSIS, 1960, p. 296).

Os próximos na lista fatídica de Brás Cubas serão os personagens Marcela e Quincas

Borba. Ela morre na decadência física (ela que era tão bonita) e ele, na decadência mental (ele

que foi o criador da teoria do benefício, relator do princípio de humanitas).

A sequência das mortes contribui para o narrador mostrar que sua morte não foi tão

grave assim e sua derrota não foi a pior de todas. Todos os personagens falham naquilo em

que mais se destacaram. A mulher, na beleza; os homens, na filosofia e na política. Brás, por

não se destacar em nada, sai do espetáculo da vida discretamente. Aproveitou o máximo que

pôde. Gastou e viveu o luxo permitido por sua condição. Fugiu de todas as responsabilidades.

Insatisfeito, do outro lado, decide-se pela permanência do lado de cá – no livro.

Se no começo era evidente a arrogância do narrador, o final representa o seu inverso.

Sem ironias, a sinceridade parece permear as últimas frases, muito mais que em qualquer

outra parte do texto. O tom irônico, de zombaria, perde-se porque a morte invade todos os

espaços. O narrador deixa de falar sobre seus últimos dias para desviar o nosso olhar para o

fim de outros personagens. Lobo Neves, Quincas Borba, Eulália, Marcela, dona Plácida.

Todos morrem, servindo suas mortes para demonstrar o resultado do teorema da miséria

humana. Para que, então, ter filhos, se pensarmos no destino deles de fracassar? Para

conquistar algo na política e morrer antes mesmo de alguém que não conquistou quase nada?

Ou ser traído pela esposa e tornar-se alvo da chacota pública, até não saber qual é a verdade

dos fatos? Ou ser uma pessoa bonita, atraente e morrer, cedo ou tarde, na deformidade de uma

doença, ou ainda, por fim, viver, sofrer, servir apenas para a alegria das outras pessoas, sem

nunca desfrutar de verdade das alegrias da vida?

Brás Cubas, já no velório de Lobo Neves, entende a incomensurável derrota para a

morte. Resta a ele tentar ludibriá-la com a publicação de suas memórias. É este o seu legado

que, por acaso, é o legado de nossa miséria. Só o é por ser o retrato do fracasso humano em

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todos os níveis, para todos os sexos e idades. Todos são vítimas da voracidade de Pandora.

Encontramos na obra exemplos para cada caso de idade, classe social dos personagens

retratados, menos os escravos. De qualquer forma, a seriedade do final contraria o humor. A

sinceridade é o oposto da farsa de um livro que não se preocupa com o seu leitor. A humildade

brota da junção apreciativa da sinceridade e da seriedade. O estilo espalhafatoso de citações e

alusões acaba e resta-nos apenas a opinião livre de rodeios do escritor-defunto.

Antes de passar para o falso falecido Mattia Pascal, estamos diante de mais uma

semelhança entre ambos. Há uma mudança de atitude do “defunto-autor” Brás Cubas e o

mesmo acontece com o “falecido”. Pela razão de seus supostos autores terem de conquistar

primeiro a atenção do leitor, ambos fazem uso retórico da dúvida na introdução de seus

relatos, terminando com a opção de reforçar uma certeza que foi exposta durante todo o livro.

Brás Cubas fez o devido uso da dúvida na apresentação do seu poder como narrador. Em sua

decisão pesou a irreverência em assumir o desprezo e a zombaria que atinge o leitor, a ponto

de desobedecer ao processo comum de começar pelo começo. Depois, afirmou a sua com toda

a certeza, falsa, atitude de nobreza de não ter tido filhos para sofrerem no mundo.

Em FMP, o elemento da dúvida dissolve-se no problema da identidade. O narrador

começa o discurso do seu triste caso, afirmando: “Uma das poucas coisas e, talvez mesmo, a

única que eu sabia ao certo era esta: que me chamava Mattia Pascal. E dela me aproveitava”

(PIRANDELLO, 1970, p. 9). Depois, o romance conclui-se com uma fala: “ – Ora, meu

caro... Eu sou o falecido Mattia Pascal” (PIRANDELLO, 1970, p. 279). Entre o início e o fim,

haveria uma mudança na definição do narrador, feita por ele mesmo na sua forma de

identificar-se.

O elemento central na temática do romance – saber quem ele é para si mesmo e para

os outros, pensar naquilo em que ele se tornou – apenas muda de aspecto. Do “eu me chamo”

inicial ele se transforma no “eu sou” final. Sem contar que, tal como Brás Cubas, se no

começo o ponto de partida era a dúvida, agora, no final, o ponto de destaque é a certeza. No

seu caso, a certeza de quem ele realmente é no mundo simbólico da vida. Só assim ele

entende ser possível a autodefinição. Na verdade, apenas a aceitação da máscara que ele

assume resulta no poder de se identificar. No mais, “Mattia Pascal, transformado em

„falecido‟ e excluindo de si a possibilidade de viver da persona, transforma-se em

personagem” (LUPERINI, 2008, p. 65, tradução nossa) e aí adquire a chance de viver na

realidade dos outros, no cotidiano da alteridade. Esse convívio é o único meio de sobreviver,

sem cair na total negação com o absurdo. Ou Mattia Pascal vive esse absurdo da negação e

interpreta a figura do falecido, ou ele não existe. Na segunda opção, a incoerência seria bem

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maior do que se ele vivesse a primeira alternativa.

Fazendo o trajeto do início ao fim do narrador no livro, todo o problema da existência,

envolto agora na vida de morto, acaba por alcançar o nível do reconhecimento da identidade.

A capacidade de nomear-se esbarra na impotência de encarar-se e dizer quem ele é. É isso o

que o narrador propõe nas primeiras linhas do romance. A essa certeza serão somadas as

constantes possibilidades de mudança a impedirem-no de encontrar um desenho de sua

personalidade. A única forma de chegar a uma definição será viver na morte, porque a morte

exonera-o de qualquer mudança (a não ser a decomposição física). A opinião de Luperini a

respeito da transmigração da persona para o papel de personagem sugere a deficiência da

descrição moralística e física. Se esses itens descritivos são insuficientes, a solução tem de ser

buscada na descrição humorística, sendo esta uma resposta metafórica perante o mundo

desumanizador da realidade.

Paralelamente à transformação do estado para identificar-se, duas consequências

surgem do efeito imediato do discurso póstumo, em FMP. Ele vive uma mentira (ele está

morto) e é ele mesmo que oficializa essa mentira (ele agora é um morto), elevando-a ao

patamar de verdade. Ambas funcionam como indicativos aceitos da fuga do mundo decadente.

Falar a verdade resulta em um modo de interpretar. A percepção particular expressa nas

reviravoltas da verdade protegeria o narrador, ao viver no discurso. E aí chegamos a uma

aproximação dele com o nosso terceiro narrador.

A primeira e a última frase da narrativa das memórias, tanto de Mattia Pascal quanto

de Pascual Duarte, permitem que os olhemos pelo viés do inconformismo decorrente da luta

da sobrevivência. A permanência da tese de vítima social nos dois, diferencia-os de Brás

Cubas, que apregoa ser bom (pelo menos por ter tido um ato nobre, embora hipócrita), não

tendo filhos. Mesmo com o fingido ato de humanismo, em momento algum na conclusão do

livro ele declara que precisa resolver seu problema insolúvel para ser livre e usufruir dessa

liberdade.

Em FMP e em FPD, as primeiras e últimas frases criam esse embate entre o viver de

acordo com os preceitos morais da sociedade burguesa e viver livremente. O “eu sou” do

primeiro enfatiza o direito à existência. Mas o dilema existencial não é suficiente. A

autenticidade não permanece apenas na maneira de afirmar-se perante os outros. Ela se

amplifica na maneira de afirmar o seu direito de viver como deseja. Daí envolver-se em uma

mesma equação o ser e o (tentar) viver do personagem.

O relato confessional de Pascual Duarte começa com a frase “Eu, senhor, não sou

mau” (CELA, 1986, p. 15). O último parágrafo inteiro resume-se a uma única frase. E esta é

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dita depois de, nos parágrafos anteriores, o narrador descrever a sensação de alívio na fuga

após matar sua mãe: “Podia respirar...” (CELA, 1986, p. 138).

Em seu devido destaque, começo e fim narrativos aparentam fazer parte do plano do

narrador em se mostrar inocente. Esse propósito coaduna com o fato de Pascual remeter seus

escritos ao nobre don Joaquín. Perante esse panorama, o isolamento das frases nos lança o

desafio de pensar na negativa inicial e em sua motivação. Há uma acusação implícita (Pascual

é culpado) e algumas conclusões genéricas (se Pascual é culpado, logo deve ser condenado; se

condenado, ele o é por que razão? Se é por várias razões ou crimes, então Pascual é mau e

assim por diante).

Como a leitura dessas memórias representou a sua defesa, a frase final testifica o

alívio e demonstra, nele, o encontro momentâneo com a liberdade que Pascual deseja. Vê-se,

nessa situação, que é apenas no final que Pascual consegue respirar, sentir-se aliviado. Todo o

decorrer dos passos revividos do narrador está envolto pelo sentimento da angústia. Na

comparação das duas frases, Pascual não apenas narra a sua vida, o seu caso, mas apregoa o

direito de ser livre. Em sua tese de defesa, ele parte da acusação implícita e assume no final o

desejo expresso no sentimento de liberdade e pára por aí, interrompendo sua narrativa sem

chegar a tocar na morte do nobre, por razões, talvez, do planejamento escritural.

A interrupção sem motivo aparente das memórias de Pascual Duarte indicia algumas

possibilidades imediatas. De todas, vale destacar o fato de chegar o dia da morte de Pascual e

ele não poder continuar. Ou talvez ele interrompa a narrativa no propósito de não chegar à

morte de don Jesús porque já se sabia em sua época sua motivação ou porque ele mesmo

entende que não pode justificar o injustificável. Essa interrupção força o leitor a fazer um

panorâmico levantamento de dados. Por que o relato termina em sua mãe e não na figura de

don Jesús? Por que ele, antes do início, antecipa o relato com a informação sobre don Jesús e

não com alguma menção sobre sua mãe?

A resposta desenha-se na hipótese da tentativa da destruição dos traços temporais. A

morte da mãe resulta em ato semelhante ao encontrado em FMP. Ela é o elo com o passado.

Pascual tende a querer eliminar essa época. Por sua vez, a morte de don Jesús prende-se ao

presente e aponta para o futuro. Ela é a condição do tempo vindouro. Superar o nobre iguala-

se, no raciocínio do camponês, ao direito de viver, porém ele jamais pode admitir isso. Se ele

confessa, toda a tática defensiva (que consiste em se aproximar da vontade de abandonar o

passado, destruir o presente e construir seu futuro, sem falar abertamente sobre seus motivos

ocultos nos intentos contra pessoas “boas”, que no caso são ricas), seria desperdiçada. Para

ele, seu grande problema tem suas bases na pobreza.

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Diferente dos outros dois narradores por virem de lares abastados, o nome Pascual é,

ainda em uma primeira leitura, um nome comum e o sobrenome Duarte não tem realce por si

próprio e está, por isso, impossibilitado de chamar a atenção. O sobrenome também é um

nome familiar comum. A soma dos dois mais o caso de vida do narrador é o que o fará

reconhecido. No tocante ao nome, mesmo que comum, a construção de sentido ocorre pela

confluência da imagística religiosa. No entanto, como nada no livro é inocente ou casual, a

relação de significância deverá ser e será ampliada na razão do nome.

Recorrendo a Ítalo Calvino, um romancista que também buscou teorizar a prática

autoral na ficção, em um estudo bastante sucinto e prático, Mondo scritto, mondo non scritto

(2002), com um título muito sugestivo, “Nomes e personagens”, ele esclarece que, para os

nomes dos personagens, existem (pelo menos) dois grandes grupos: um é o grupo dos nomes

simples, “quase números para distinguir um personagem do outro” (CALVINO, 2002, p. 8,

tradução nossa). O outro é o grupo dos personagens que tem um “poder evocativo”, “uma

espécie de definição fonética dos respectivos personagens” (CALVINO, 2002, p. 8, tradução

nossa). O escritor italiano opta pelo segundo grupo, ao considerar que, “ligado a ele, [o nome

do personagem] adquire todo um significado especial” (CALVINO, 2002, p. 9, tradução

nossa), em vez de originar-se o significado principal da trama diretamente dele, explicitando

por demais a opinião do autor efetivo, podendo, seguindo apenas essa tendência, ver nele a

verdade esclarecida, quando levadas em conta apenas suas circunstâncias semânticas

originais, e não as que podem assumir no decorrer do romance.

Com o aspecto de querer contrariar em um primeiro momento a tendência de esconder

no nome um direcionamento temático, ao pensamento de Calvino pode somar-se a essa

relação de significação, no caso dos romances, um segundo momento, no qual encontramos o

sentido da evocação direta da imagem que o nome insinua.

Em FPD, a morte encontra-se nos nomes, desde a pretensa dedicação das memórias.

Como já sabemos, Pascual mata don Jesús e não se sabe o motivo, tendo apenas no

levantamento de provas a oportunidade de formulação de hipóteses.

Pensando nisso, haveria, escondida nos nomes, uma tese de significação contra o

narrador. Pascual deriva de Páscoa. Segundo a tradição judaica, era o momento de oferecer

em sacrifício um animal, na maioria das vezes, uma ovelha, para remissão dos pecados, tendo,

por outro lado, a função de reafirmar o pacto com Deus, na instituição do governo teocrático

do povo de Israel nos tempos do Antigo Testamento. “Ao evocar o sacrifício da ovelha que

este nome representa, Pascual era a ovelha negra apropriada para incitar a consciência pública

sobre as perversidades na Espanha” (CHARLEBOIS, 1998, p. 11, tradução nossa). Visto à

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beira do cumprimento da sua pena de morte, este seria o seu holocausto. Pascual não fala

dessa forma, mas podemos encontrar nele a figura da ovelha, consoante a citação de

Charlebois. Mesmo não percebendo (e essa é uma grande possibilidade) Pascual paga pelos

seus erros com sangue, e o derramamento de sangue da ovelha é condição básica para a

efetivação do intento simbólico remissivo, de acordo com as exigências das leis judaicas de

outrora. Pela lógica simbólica, caso haja essa aproximação, Pascual precisa pagar pelos seus

graves erros. Ele tem de sacrificar algo. O problema é que o único meio sacrifical encontrado

(não por ele, é claro, embora ele admita ser justo, pelo menos, no início do livro) é ele

próprio.

Outro aspecto de aproximação com a Páscoa judaica está no efeito rememorativo que

esta causa naqueles que, por tradição, foram libertos de um destino de dor e sofrimento. Há,

na morte do narrador, a aplicação desse efeito. Charlebois (1998) relaciona o lado simbólico

do nome à provocação histórica que culminaria na morte de mais de meio milhão de pessoas,

confrontando a parcela esquecida da população, trazendo à luz da história os renegados

sociais. Reconhecido em larga escala, o caso de Pascual Duarte, em vez de proclamar um

pacto de justiça, revela no ato convencional um suposto sentimento público de (in)justiça.

Ademais, a Páscoa não é um evento apenas do mundo hebraico. Segundo a tradição

cristã, Jesus morre durante a realização desse evento para redimir, pela ressurreição, o ser

humano em geral do status de pecador, de ser mau. No romance, don Jesús é morto por

Pascual, invertendo a finalidade sacrifical da história bíblica. Em vez de salvar, a morte do

Jesús nobre condena. Ao observar outro aspecto religioso, relacionado à Eucaristia, o

pronunciamento da frase “Em memória do insigne...” vem ao encontro do raciocínio aqui

tecido, uma vez que os cristãos, na comunhão da Santa Ceia, tomam o pão e o vinho,

símbolos metonímicos, e pronunciam a frase “em memória de Cristo”. Novamente a relação

de inversão ocorre, e a memória do Jesús nobre revalida a condenação. A afirmação de

casualidade no lugar de causalidade ganharia muita força, se a dedicatória não fosse

simplesmente feita a don Jesús. Aqui, cabe-nos fazer a seguinte pergunta: por que o foco da

dedicatória foi don Jesús e não don Joaquín?

A persistência na tese da significação dos nomes justifica-se e intensifica mais o valor

do texto, sobretudo quando pensamos no hábito – comum nas culturas de influência espanhola

– de as pessoas darem a seus filhos nomes de personagens sagrados na religião católica. São

muito importantes nessa relação, e servem de agravante, os nomes de origem religiosa de

mais dois dos cinco integrantes da família de Pascual Duarte, além do dele próprio. Fora

Mário, o irmão deficiente, o pai se chamava Esteban; a irmã, Rosário. Da mãe desconhecemos

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por completo o nome. Da mesma forma, ignoramos a razão de esse nome ser omitido no

relato, visto ser ela a segunda vítima mais importante da narrativa. De tanto Pascual falar mal

da mãe, das suas atitudes, do seu baixo nível de respeitabilidade, podemos presumir o ódio

como impedimento da pronúncia do nome dela.

Além dessa dificuldade imposta ao leitor, a de não saber o nome de um participante

influente na história de Pascual, merece destaque também outra atitude do personagem: na

luta para se mostrar como vítima, ele deixa de incluir nas memórias informações de valor

imprescindível. Além de não dizer o nome da mãe, também não fornece muitos detalhes do

dia do assassinato de don Jesús. Sendo o livro o relato de uma vida inteira, não parece ser

mero esquecimento o fato de o nome da mãe não ser mencionado, assim como não poderia ser

um simples descuido deixar de incluir na narração o dia da morte – da qual Pascual participa

– do mais influente proprietário da região.

Se por um lado Pascual aparenta não querer que o leitor saiba o nome de sua mãe,

Cela (1986) nos proporciona, por outro, uma situação bastante significativa no texto. O nome

da segunda esposa de Pascual, embora sem referência religiosa, alcança a órbita das relações

de significação do romance, logo nos momentos decisivos de planejamento de como eliminar

a figura materna. Por representar algo positivo, o sentimento impresso no nome da mulher

contrasta com os passos do narrador na direção de não mais poder fugir do destino e da

vontade de eliminar a mãe. Após sair da cadeia, Pascual, por solicitação da irmã, casa-se com

Esperanza. Esse nome deveria sinalizar uma reviravolta no destino do desconsolado narrador,

no momento em que ele busca afeto materno e uma nova vida. Quando Pascual deveria

acreditar em tempos melhores, termina por achar mais conveniente agir para encurtar o seu

sofrimento, neutralizando o que ele achava um empecilho para sua forma de compreender a

felicidade (sem ninguém para impedi-lo ou confrontá-lo). Pascual não tem esperança de que

uma nova vida vá chegar por si própria, algum dia. Ele espera, pelo contrário, ao fazer o mal,

determinar em seu favor a construção de um tempo mais digno.

Ainda sobre essa questão, o dualismo contrastante no jogo dos nomes integra a rede de

significações em outro ambiente, fora da instância familiar. Orientado pela influência da lei e

da igreja no mundo espanhol de então, o âmbito social do final da vida do protagonista

presencia a participação de dois personagens, peças-chaves para o desvendamento dos

acontecimentos derradeiros. O padre capelão Santiago Lurueña, responsável pela confissão e

pela extrema unção, é um dos responsáveis por elucidar os últimos dias da vítima-assassina

Pascual Duarte. O outro, o guarda civil, chama-se Cesáreo Martín e exerce a mesma função

narrativa. Se um relembra os santos e um dos discípulos de Cristo, o outro relembra César, o

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grande imperador de Roma. A religião remete à lei divina, e esta chega como apelação para a

redenção do pecador. A presença de Roma antiga no nome de Cesáreo sugere a lei jurídica, o

código romano e, a partir deste, o caminho é a condenação do culpado. Entre os dois limites

– religioso e jurídico – temos a emissão de dois pareceres. Um justifica, o outro condena.

Na realidade dos outros dois romances, a tese da significação do nome tem proporção

diversa e não exerce tanto valor, a ponto de influenciar com bastante intensidade o discurso

póstumo. Os nomes Brás Cubas e Mattia Pascal têm um sentido especial para o entendimento

da obra, mas não acentuam, em sua expressividade, diretamente o discurso póstumo.

De Brás Cubas, qualquer pessoa pode pensar na sua origem, no quanto o seu nome se

parece com as letras iniciais de Brasil.84

E aí, pela lógica simples, encontraríamos a indicação

do modelo ideal de um brasileiro da época. Schwarz afirma que a “descoberta” alusiva (Brás-

Brasil) é de Gledson, embora o crítico (Gledson) praticamente não “escreveu sobre Brás

Cubas” (SCHWARZ, 2000, p. 75, grifo do autor). No desejo de comprovar a assertiva,

Schwarz é quem procura detalhar essa leitura proposta, alertando antes que ela pode

transformar “o romance em alegoria política” (SCHWARZ, 2000, p. 74) e que “o risco de

arbitrariedade nesse tipo de decifração naturalmente é grande” (SCHWARZ, 2000, p. 76). Ele

ainda comenta que “a charada histórica é uma presença importante na obra machadiana” e que

“é imprescindível levá-la em conta, sob a pena de desconhecer a razão de grande número de

pormenores” (SCHWARZ, 2000, p. 76).

Se for verdade, além do nome, o sobrenome do personagem é ainda mais significativo,

a ponto de amplificar a rede de ponderações sobre a figura do narrador. O sobrenome Cubas

deriva de um objeto comum, de uso serviçal, afeito às mãos escravas. “Como este apelido de

Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria”, era melhor recriar os fatos e propagar que “o

dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha que

praticou, arrebatando trezentas cubas aos mouros” (ASSIS, 1960, p. 114). Assim, o “apelido”

representativo de algo com baixo valor se alça para um nível não só rico mas até heroico. O

nome familiar para o lar abonado espelha o desejo aristocrático de se destacar no meio dos

outros pela superioridade do novo valor de significação, agora positivo.

A tal “façanha” de arrebatar trezentas cubas remete à apropriação das riquezas alheias,

uma prática comum na época, com o perfil escravocrata ainda em voga no Brasil do Segundo

Reinado. Enriquecer com o trabalho dos outros era preciso; trabalhar, nem sempre. Cotrim, o

cunhado do protagonista, aproveita o tráfico de escravos para enriquecer. Brás não se

84

Scarpelli (2001, p. 57-59) também faz essa menção e ainda associa MPBC a uma tradição carnavalesca, tendo

como maior representante Cervantes e o seu Dom Quixote.

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preocupa nem em crescer pelos próprios meios ou em aumentar a riqueza pela apropriação de

bens, pois, mesmo isso, ainda acarretaria esforço – e esforço não é bem o desejado pelos três

narradores.

A versão paterna da história das trezentas cubas acaba por ser uma forma de

apropriação por meio de um discurso “oficial”. Seu conteúdo legitima e projeta o direito de

viver a posse do fruto do trabalho de outras pessoas. O sobrenome Cubas resulta, assim, da

falsidade da conquista de um “cavaleiro” e “herói”. O desprendimento heroico do suposto

parente distante cristaliza-se no motivo particular do pai do protagonista, de criar meios de

gozar uma vida de privilégios, sugerindo grandezas e fidalguia desde o nome. A presença do

sobrenome aponta para esse aspecto, coparticipante também no discurso póstumo: no túmulo,

carrega-se a conquista de uma imagem definitiva e, para tanto, luta-se para se ter um retrato o

mais coerente possível. Caso bem mais próximo da ideologia do narrador em FMP, por

exemplo.

Mattia significa louco. Seu caso, logo no primeiro capítulo, mais parece um devaneio.

Quem morre duas, três vezes, em uma primeira leitura não pode ser uma pessoa normal, ou

seu discurso não é tão são assim. No começo do livro, Mattia é mais louco que outra coisa, e

as suas falas derivam do mistério dessa loucura de viver-morrer, ao mesmo tempo, fora da

realidade, por exemplo, de um livro feito por pessoas de orientação espírita. Mesmo assim,

seguindo a teologia espírita e comparando-a ao plano de elaboração do livro, esse retorno do

espírito não se confirmaria, porque seria necessária a materialização no corpo de outra pessoa,

em uma reencarnação temporária.

A prática de inverter os polos iniciais da narração no fim do romance acontece aqui

também, e temos a surpresa de encontrar, na alegação da última frase, parecendo loucura para

quem não leu todo o relato, a sua sensatez. Mattia adquire, pela exposição de um contexto

aparente de demência, um espaço valorativo na nossa mente, em razão da profundidade da

discussão sobre os valores existenciais. Sua loucura-sensatez conquista a vida na leitura. É até

difícil acreditar, pela excentricidade do caso de vida e dos comentários expostos na obra, que

ele será rapidamente esquecido pelo leitor. Da mesma forma, o injuriado Brás Cubas. E

também Pascual Duarte.

Por haver a vontade de possuir um retrato oficial conquistado com a morte, diante da

falsa realidade de morto de Mattia Pascal, sua imagem é construída, em parte, principalmente,

pelo sentido metafórico, na representação proposta pelo personagem de prestar homenagem a

si mesmo. Mattia visita sua sepultura, onde jaz um “pobre desconhecido que se matou na

Stía”, para, “de vez em quando”, levar “ao túmulo a coroa de flores” e ver-se “morto e

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enterrado” (PIRANDELLO, 1972, p. 279). A consequência da estranheza da falsa

homenagem a si mesmo implica para ele a posição de auto-observador assumida no passado.

O ato memorialístico imprime no ego o fim aceito, mesmo que impróprio. A atitude in

memorian poderia representar o fim como “a morte e acabou”, mas apresenta ainda outro

aspecto. É outro o lugar em que a morte simbólica realmente se concretiza – o livro.

O respeito à morte, mediante o reconhecimento da despedida do corpo, é altamente

simbólico, exigindo em nossa sociedade uma série de preceitos, os quais constituem a base

ritualística do velório. A morte, seguida do rito de separação e do desaparecimento do corpo,

acarreta para os vivos algumas imposições, e a primeira delas é o posicionamento do corpo

fora do meio cotidiano das outras pessoas. Esse afastamento requer o desaparecimento físico

do corpo para a sociedade. O morto é alguém que não podemos mais ver, salvo no anseio da

memória. Isso quer dizer que se considerarmos o discurso dos três narradores-escritores um

indicativo da morte, é fato os narradores estarem nessa condição de afastamento específico.

Daí procurarmos agora, para entendê-los, o lugar final no túmulo real ou imaginário.

O cemitério, além de ser um local próprio para as homenagens, a exposição de

sentimentos reflexivos e o isolamento do mundo do trabalho, possibilita o pensar naqueles

que já partiram. A delimitação desse espaço faz-se um meio de evitar que a decomposição

corporal afete o dia a dia da sociedade. É fato que isso influenciou em grande parte a

localização dos cemitérios fora da cidade, às vezes em locais até bem mais afastados, longe da

visão das pessoas, quando estas caminham pelas ruas. O mal-estar causado pelo corpo

decomposto torna-o indesejado. Ao transferirmos esse fato para o discurso, é natural que a

fala dos narradores nessa posição fira a moral dos vivos. Se voltarmos a pensar na dedicatória

de Brás Cubas, perceberemos a decomposição física servindo como modelo de avaliação do

leitor.

O cemitério era (pelo menos no Brasil) um lugar destinado a servir de depósito de

corpos de indigentes, pobres e escravos. Havia outros lugares no espaço da cidade no qual se

costumava enterrar as pessoas de famílias ricas ou os membros de ordens religiosas. De modo

similar ao cemitério de indigentes, as igrejas cumpriam o mesmo papel de manter escondido o

corpo; porém, cabia-lhes, ao permitir ou não o sepultamento em seu interior, a pretensa honra

de dizer quem era nobre (quem está sepulto nas igrejas) e quem não era (sepulto em

cemitérios). Assim como o cemitério passou a ser chamado de “campo santo”, pela tradição,

as igrejas católicas também o são, quando em seu espaço existe forte ligação com os mortos,

tanto que em sua liturgia prepondera a morte como um dos temas religiosos de maior

destaque.

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Os dois primeiros narradores têm em comum estarem em “campo santo”, meio

insepultos, além de não serem, ambos, pessoas de boa índole, louváveis. Brás Cubas é um dos

narradores indesejados, crítico fervoroso até do interesseiro orador de seu velório. Morre “às

duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869”, na “bela chácara de

Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos”, “era solteiro, possuía cerca de trezentos contos” e

foi acompanhado “ao cemitério por onze amigos” (ASSIS, 1960, p. 111). A sequência

expressa pela exatidão meticulosa, na ocasião da morte, reitera o potencial de um mesquinho

homem rico.

É provável que Brás Cubas depois de morto não haja abandonado o Catumbi, pela

razão de ali estar o primeiro cemitério a céu aberto do Brasil para pessoas ricas. A definição

“bela chácara”, dada à residência dele, destaca o ego do narrador. Revela, na proporção

devida, que ele não está mais preocupado em narrar do que em ostentar seu papel de rico.

Deixa entrever que o “descuido” em não falar do cemitério, mas em apresentar logo a

importância da sua pessoa, advém do seu apego aos valores terrenos e do seu desejo de glória,

da exaltação sua pelos vivos, tornando, é claro, desnecessário fazer tal alusão sobre o lugar da

sepultura, a sua moradia definitiva. O fino leitor, como representação, deve dispor da

informação de o nome do cemitério ser provavelmente Catumbi ou relacioná-lo.

Desde os primórdios da cristianização acredita-se na ideia da ressurreição dos mortos

no dia do juízo final e na preservação material da identidade. Sendo assim, a remissão dos

salvos permite a referência ao cemitério como campo santo, por manter em estado latente o

corpo das pessoas para esse tão importante dia. Na teoria cristã, toda igreja é santa, uma vez

que guarda nela a presença divina. A igreja de Santa Maria Liberal deve ser um campo santo

por essa razão, exercendo a função de lugar destinado ao descanso de parte dos cristãos

professos. O falso morto, o morto-vivo Mattia informa-nos da dessacralização da igreja,

rebaixada de seu posto religioso – espiritualmente “nobre”, de realização de atividades

eclesiásticas, como missas e aconselhamentos com os padres no ato da confissão – para ser

destinada a depósito de livros apenas, provenientes da doação feita pelo Monsenhor

Boccamazza, em uma localidade sem leitores. O rebaixamento da igreja a biblioteca, e da

biblioteca a depósito de livros, identifica-a como “igrejinha [...] fora de mão [...] dessagrada”

(PIRANDELLO, 1972, p. 10).

Se antigamente às igrejas coube o privilégio de permitir o enterro de pessoas nobres

em seu átrio, o narrador, enclausurado lá, assim o faz pela viabilidade de manter-se de alguma

forma ainda presente na realidade cotidiana da época. Trabalhando e descansando naquele

ambiente, fora dele, Mattia sofreria o mal da insustentabilidade de se relacionar normalmente

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com outras pessoas sem a proteção e os benefícios do devido isolamento. Da sua posição

metafórica, presumimos que a significação ainda decorre da proximidade com a morte: se em

séculos passados igrejas funcionavam como cemitérios para pessoas especiais, agora, no

presente caso, a estadia de Mattia Pascal é garantida não por mérito pessoal, seja ele de

nobreza, santidade ou intelecto. Em nível bem abaixo, sua permanência é permitida e

condicionada pela desativação da capela para reuniões de cultos e atividades afins. A

dessacralização corrobora a presença do personagem. Só lhe é permitido estar em uma igreja

depois da condição de morto, quando o lugar deixa de ser um privilégio para a elite e torna-se

a única possibilidade de se resolver um problema prioritário para a comunidade de Miragno –

um morto não pode permanecer fora de um local próprio, sem sepultura. O antigo campo

santo passa a abrigar então um simples “vadio bem epistolado” (PIRANDELLO, 1972, p. 10).

Já não seria, portanto, sacrilégio algum uma igreja daquele nível ser habitada por um finado

homem nada arrependido de seus pecados.

Em síntese, comparados os dois primeiros narradores, temos uma sepultura concreta

para o primeiro e, para o segundo, apenas metafórica. No terceiro caso, temos a junção das

duas modalidades de sepultura, porém em sentido inverso do de campo santo. Pascual Duarte

já está morto antes mesmo de morrer. Ele assim está por ter desaparecido do círculo dos

outros. A cova, por processo de exclusão do corpo em decomposição, é imitada

antecipadamente pela cela pública de condenados à morte. Quando alguém é enterrado, ele

desaparece do nível aproximativo da visão. O preso Pascual some do convívio alheio e não

pode mais retornar, ele mesmo admitindo isso: “Estou agora pesaroso por ter errado meu

caminho, mas já nem peço perdão nesta vida. Para quê? Talvez seja melhor que façam comigo

o que está disposto, pois é mais que provável que se não o fizerem eu volte a reincidir no

erro” (CELA, 1986, p. 10).

Enfim, é bom repetirmos mais uma vez que confissões do fim são narrativas geradas

no fracasso. Não obstante, o livro tem um lado positivo, por permitir o encontro de diversos

tipos de pensamentos. Tanto que temos nesses romances a inserção do problema do olhar, que

é, para Bosi (2007), ao falar no olhar machadiano, uma espécie de engenharia literária, um

mecanismo originário de competência do autor efetivo. Como o autor efetivo textualiza em

um plano determinado diversos tópicos discursivos, cada um em sua peculiaridade, Iser

(1999) aproveita dessa complexidade para tratar do ponto de vista em movimento, uma

estratégia de proteção, agora, por parte do leitor. Se para Bosi o “Olhar tem a vantagem de ser

móvel, o que não é o caso, por exemplo, de ponto de vista” (BOSI, 2007, p. 10, grifo do

autor), para Iser “o leitor se move constantemente no texto, presenciando-o somente em fases

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[exercendo o modo de apreensão em] sínteses [sendo que] a atividade sintética continua em

cada fase em que se move o ponto de vista do leitor” (ISER, 1999, p. 13). Tanto Iser (1999)

como Bosi (2007) alertam para a dificuldade de começarmos a ler já definindo uma posição

específica, arbitrária por sua específica composição. No universo de enigmas, a mobilidade do

leitor, percebidos todos os meandros narrativos, prescreve a dificuldade de adotarmos, em

razão de sua fixidez, um ponto de vista, porque, talvez, haja a possibilidade de ser esse ponto

de vista um pensamento viciado ou errôneo, parcialmente ou não. No entanto, faz parte do

jogo ver que o problema do olhar é também um requisito internalizado, uma parte atuante no

cálculo da sua elaboração.

E, aqui, terminamos falando do autor efetivo. É ele o responsável pela construção do

enigma e não é ele quem nos dá a resposta. Até deixa pistas, aponta os caminhos possíveis.

Mas o autor efetivo ultrapassa essas indicações e cria a dúvida ou as falsas verdades, as quais

são mesmo tendenciosas, com o leitor, talvez, inconsciente de sua incapacidade de enxergar

sequer outras alternativas.

Os três narradores-escritores, é verdade, mostram, cada qual à sua maneira, o fracasso

como resultante da incondicional finitude. Ela, por ser um dado da existência, é um mal

temido que a maioria das pessoas tenta de todas as formas adiar.

Pelo poder da ficcionalidade, o livro de memórias vira uma alternativa para vencer o

inimigo comum (Brás representa-o na figura de Pandora): a morte. É interessante olhar para o

ideal do livro, bem como para o seu narrador-escritor. Em termos literários, ele precisou

escrever e agora e sempre precisa ser lido. Ele está em uma sepultura e luta, com as palavras,

para permanecer no imaginário do leitor. Todo o seu esforço pode ser em vão, se ele viver

apenas dentro do livro, outra espécie de sepultura. Uma biblioteca é, em si, um cemitério de

milhares de livros-sepulturas esquecidos.

A humanização, talvez uma teoria do humanismo presente em cada romance, seja

mesmo o grande intento dos autores efetivos de, audaciosamente, romperem as fronteiras da

realidade histórica de suas épocas, a fim de valorizar o princípio básico do desejo e

necessidade da realização integral das pessoas (pelo menos satisfatória) diante de um mundo

devastador de individualidades. As confissões do fim são relatos subjetivos, retratos, acima de

tudo, do desejo de viver. São formadas por conjunções que representam assim diversos temas,

todos envoltos na necessidade desesperada de escrever. Imagens de nós, seres humanos, os

narradores-escritores seguem fielmente seu calvário em cada leitura nossa: reconhecemos

neles algo que está em nós, como bem mostra Bontempelli, ao falar dos personagens

pirandellianos: “Na realidade, todas aquelas pessoas [personagens] não estão totalmente

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prontas para a morte, penam porque não se sentem bastante vivas” (BONTEMPELLI, 2004,

p. 818, tradução nossa).

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