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1. Introdução A escrita tem um papel central na cultura ocidental. Sob o signo da escrita diversos saberes se constituíram, em diversas áreas, da Filosofia às ciências naturais. Parece ser unânime o reconhecimento de que uma cultura baseada nas letras influencia, objetiva e subjetivamente, todos aqueles que nela estão inseridos, até mesmo os iletrados. Meu interesse na escrita está voltado, porém, para um aspecto específico desta área de estudo. Refiro-me às aplicações da linguagem escrita nas questões de domínio privado. Procurarei explicar, nos próximos parágrafos, como surgiu este interesse. Em diversas situações clínicas de minha prática profissional pude perceber como algumas atividades escritas contribuíam para dinamizar alguns processos de elaboração psíquica. Intrigava-me o efeito clarificador que a escrita de diários e cartas 1 exercia sobre as questões subjetivas levantadas no contexto terapêutico. Um depoimento enviado por um paciente, em viagem ao exterior, confirmou minha impressão. Para falar de si, no entanto, ele utilizou o correio eletrônico – ou e-mail -, uma ferramenta de comunicação disponibilizada pela Internet, a Rede mundial de computadores. Ao final do e-mail uma frase chamou minha atenção. Esta dizia que eu – a destinatária da mensagem - não deveria me preocupar em responder, pois o ato de escrever já havia sido terapêutico, nas palavras do autor. Para concluir este paciente relatou: “É como se eu escrevesse pra mim mesmo, como fazia em uma época da minha vida”. Tal hábito, entretanto, é menos incomum do que se imagina. Muitas pessoas mantém ou já mantiveram, em alguma época da vida, o costume de escrever sobre si. O exemplo mais representativo é a prática do diarismo, bastante difundida entre os adolescentes de várias épocas. Na fase adulta, são poucas as pessoas que conservam o hábito de escrever diários e não é raro que a escrita pessoal passe a se restringir às correspondências íntimas. Com a popularização do telefone, no entanto, ao longo do século XX, a correspondência deixou de ser o principal meio de comunicação à distância reduzindo, dessa forma, o espaço da escrita no terreno da comunicação íntima. A difusão da Internet e das ferramentas de comunicação disponibilizadas no ambiente da Rede, difundidas desde o ano de 1995, parecem estar revertendo o processo descrito anteriormente. Por se basearem predominantemente na linguagem escrita, essas ferramentas, como por exemplo 1 Cartas que muitas vezes não são enviadas para seus destinatários.

Literatura Aos Blogs Escrita de Si (6)

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capitulo seis

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  • 1. Introduo

    A escrita tem um papel central na cultura ocidental. Sob o signo da

    escrita diversos saberes se constituram, em diversas reas, da Filosofia s

    cincias naturais. Parece ser unnime o reconhecimento de que uma cultura

    baseada nas letras influencia, objetiva e subjetivamente, todos aqueles que nela

    esto inseridos, at mesmo os iletrados. Meu interesse na escrita est voltado,

    porm, para um aspecto especfico desta rea de estudo. Refiro-me s

    aplicaes da linguagem escrita nas questes de domnio privado. Procurarei

    explicar, nos prximos pargrafos, como surgiu este interesse.

    Em diversas situaes clnicas de minha prtica profissional pude

    perceber como algumas atividades escritas contribuam para dinamizar alguns

    processos de elaborao psquica. Intrigava-me o efeito clarificador que a escrita

    de dirios e cartas1 exercia sobre as questes subjetivas levantadas no contexto

    teraputico. Um depoimento enviado por um paciente, em viagem ao exterior,

    confirmou minha impresso. Para falar de si, no entanto, ele utilizou o correio

    eletrnico ou e-mail -, uma ferramenta de comunicao disponibilizada pela

    Internet, a Rede mundial de computadores. Ao final do e-mail uma frase chamou

    minha ateno. Esta dizia que eu a destinatria da mensagem - no deveria

    me preocupar em responder, pois o ato de escrever j havia sido teraputico,

    nas palavras do autor. Para concluir este paciente relatou: como se eu

    escrevesse pra mim mesmo, como fazia em uma poca da minha vida.

    Tal hbito, entretanto, menos incomum do que se imagina. Muitas

    pessoas mantm ou j mantiveram, em alguma poca da vida, o costume de

    escrever sobre si. O exemplo mais representativo a prtica do diarismo,

    bastante difundida entre os adolescentes de vrias pocas. Na fase adulta, so

    poucas as pessoas que conservam o hbito de escrever dirios e no raro que

    a escrita pessoal passe a se restringir s correspondncias ntimas. Com a

    popularizao do telefone, no entanto, ao longo do sculo XX, a correspondncia

    deixou de ser o principal meio de comunicao distncia reduzindo, dessa

    forma, o espao da escrita no terreno da comunicao ntima.

    A difuso da Internet e das ferramentas de comunicao disponibilizadas

    no ambiente da Rede, difundidas desde o ano de 1995, parecem estar

    revertendo o processo descrito anteriormente. Por se basearem

    predominantemente na linguagem escrita, essas ferramentas, como por exemplo

    1 Cartas que muitas vezes no so enviadas para seus destinatrios.

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    o e-mail representam, at certo ponto, um resgate da importncia da escrita nas

    trocas interpessoais e na histria dos auto-relatos. A rpida difuso destas

    prticas levou-me a refletir sobre os motivos que levam milhes de pessoas a

    passarem horas em frente a uma tela de computador trocando mensagens com

    pessoas ntimas ou com pessoas desconhecidas.

    Interessada em investigar a comunicao online mais a fundo, bem como

    seus impactos sobre a intimidade, vim a conhecer a professora Ana Maria

    Nicolaci-da-Costa. A professora coordena uma equipe de pesquisas que tem

    como objetivo geral investigar os efeitos das tecnologias de comunicao sobre

    a subjetividade contempornea. Como mestranda de psicologia da PUC-Rio e

    integrante dessa equipe desde maro de 2001, pude amadurecer a reflexo

    despertada pela prtica clnica e elaborar minha questo de pesquisa, a ser

    apresentada no decorrer deste trabalho.

    Neste estudo estarei mostrando como essas ferramentas virtuais so,

    tambm, espaos nos quais as pessoas escrevem sobre si, mesmo quando

    protegidas pelo anonimato. O foco deste estudo , porm, sobre apenas uma

    dessas ferramentas, os blogs.

    Para pesquisar os blogs, parto de um panorama das diversas formas de

    auto-relatos escritos praticadas ao longo da Histria, desde a Antigidade. Este

    percurso apresentado no primeiro captulo e foi dividido em trs eixos de

    anlise. Um deles refere-se s funes dos auto-relatos escritos, o segundo eixo

    aos destinos pretendidos pelos autores, quando escrevem textos auto-

    referentes, e o terceiro diz respeito aos diferentes nveis de explicitao de si

    encontrados nos auto-relatos.

    No segundo captulo estarei tratando do ambiente no qual o objeto deste

    estudo a ferramenta de criao dos blogs - se localiza: o ambiente virtual.

    Procuro, nesta parte do trabalho, comentar a respeito de algumas das

    ferramentas de comunicao disponibilizadas pela Internet, e tambm explicar o

    que so os blogs e como surgiram.

    No terceiro captulo apresento os resultados de uma pesquisa qualitativa

    realizada com dez blogs pessoais de autoria feminina. Nesta parte do trabalho

    procuro sobrescrever, no universo dos blogs, as categorias construdas no

    primeiro captulo, relativas s vrias formas de auto-relatos escritos que j

    existiam anteriormente, identificando ainda semelhanas e diferenas existentes

    entre as formas tradicionais de escrita pessoal e os blogs.

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