Livro - Gerson Moura Tio Sam Chega Ao Brasil

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  • Gerson Moura

    Tio Sam Chega ao Brasil

    A penetrao cultural americana

    Digitalizao: Argo www.portaldocriador.org Para Leandro e Priscila, meus filhos, que esto aprendendo a ser brasileiros e a compreender melhor as outras culturas.

  • NDICE That's the question

    Tio Sam imagina um remdio para a dor de

    cabea chamada Amrica Latina

    Tio Sam chega ao Brasil com a receita no bolso

    A recuperao do paciente... e de Tio Sam

    A receita de Tio Sam tem ampla aceitao

    Indicaes para leitura

  • THAT'S THE QUESTION

    A difuso de certos aspectos da cultura norte-americana um

    fato inescapvel de nosso tempo. Vivemos no Brasil cercados de v-deo-cassetes, vdeo-games e ataris; comemos hot-dogs, hamburgers e chips; tomamos cocas e sodas, vestimos T-shirts e blue-jeans. Os filhos de famlia mais aquinhoadas possuem skates, pranchas de surf e apreciam o moto-cross. Ouvimos rocks e souls produzidos por bands intituladas Kiss, Village People e assemelhados. Fenmenos sociais ligados juventude atravessaram fronteiras e aqui se es-tabeleceram com os nomes de origem, desde os beatniks, passando pelos hippies e chegando aos punks. Temos at a novidade patol-gica do momento: o AIDS.

    No se pode dizer porm que essa histria comeou ontem. Na dcada de 50, as crianas brasileiras j brincavam de bandido e mocinho, reproduzindo o famoso "camni, boy!" consagrado nas telas de cinema. quela poca, j dizamos okay, morvamos num big pas, lamos gibis e amos ao cinema aos sbados ver filmes de far-west. Batman, Capito Marvel, Jesse James e o mito John Wayne povoavam a fantasia infantil brasileira naqueles anos.

    Para sermos mais exatos, a chegada visvel de Tio Sam ao Bra-sil aconteceu mesmo no incio dos anos 40, em condies e com pro-psitos muito bem definidos. A presena econmica, menos visvel, era bem anterior e certas manifestaes culturais, como o cinema de Hollywood, j inculcavam valores e ampliavam mercados no Bra-sil. Mas a dcada de 40 notvel pela presena cultural macia dos Estados Unidos, entendendo-se cultura no sentido amplo dos pa-dres de comportamento, da substncia dos veculos de comunicao social, das expresses artsticas e dos modelos de conhecimento tcnico e saber cientfico. O trao comum s mudanas que ento ocorriam no Brasil na maneira de ver, sentir, explicar e expressar o mundo era a marcante influncia que aquelas mudanas recebiam do "american way of life".

    Proclamava-se naquela poca a idia de uma poltica de boa vi-zinhana entre os Estados Unidos e os demais pases americanos. Essa boa vizinhana significaria um convvio harmnico e respeito-so entre todos os pases do continente. Significaria tambm uma poltica de troca generalizada de mercadorias, valores e bens cul-turais entre Estados Unidos e o restante da Amrica.

    Foi nesse contexto que os brasileiros aprenderam a substituir os sucos de frutas tropicais onipresentes mesa por uma bebida de gosto estranho e artificial chamada coca-cola. Comearam tambm a trocar os sorvetes feitos em pequenas sorveterias por um sucedneo industrial chamado kibon, produzido por uma companhia que se des-locara s pressas da sia, por efeito da guerra. Aprenderam a mas-car uma goma elstica chamada chiclets e comearam a usar palavras novas que foram se incorporando sua lngua falada e escrita. Passaram a ouvir o fox trot, o jazz, o boogie-woogie entre outros ritmos e comearam a ver muito mais filmes produzidos em Hollywo-od. Passaram a voar nas asas da Panair (Pan American), deixando para trs os "aeroplanos" da Lati e da Condor.

  • A boa vizinhana apresentava-se como uma avenida larga, de mo dupla, isto , um intercmbio de valores culturais entre as duas sociedades. Na prtica, a fantstica diferena de recursos de di-fuso cultural dos dois pases produziu uma influncia de direo praticamente nica, de l para c. Nossos compositores populares perceberam a mo nica da troca cultural que ento se propunha e a expressaram criticamente em suas msicas. Nos versos de Assis Va-lente, por exemplo,

    O Tio Sam est querendo conhecer a nossa batucada. Anda dizendo que o molho da baiana melhorou o seu prato... Eu quero ver, eu quero ver eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar...

    Deve-se fazer justia, nesse contexto, ao fato de que o conta-

    to com cientistas norte-americanos foi freqentemente produtivo e que muitos deles, especialmente os cientistas sociais, viam as re-alidades brasileiras com olhos mais capazes que os funcionrios e agentes oficiais do governo norte-americano.

    Tambm se poderia lembrar, no plano artstico, "as exportaes do sul do continente para os Estados Unidos e cujo melhor exemplo antes da bossa nova da dcada de 60 foi a nossa Carmen Miran-da, a "Pequena Notvel", at hoje lembrada no mundo anglo-saxo como representante da msica brasileira. No entanto, tambm ver-dade que as contribuies artsticas que seguiam da Amrica Latina para os Estados Unidos tinham seu "exotismo" freqentemente tempe-rado, de acordo com os padres do gosto norte-americano para faci-litar sua digesto por nossos vizinhos. Esse "tempero" tendia a transformar a Amrica Latina numa unidade indistinta em suas mani-festaes culturais, pondo-nos todos a usar sombreros mexicanos, a fazer a siesta e a danar algo semelhante rumba. Cobertos de ra-zo estavam os compositores Gordurinha e A. Castilho ao proporem

    S ponho bi-bop no meu samba quando Tio Sam pegar no tamborim, quando ele pegar no pandeiro e no zabumba, quando ele entender que o samba no rumba.

    J se disse que a fantstica difuso cultural norte-americana

    depois da Segunda Guerra Mundial foi algo no programado e que, por algum motivo, o imperialismo americano teve um sucesso sem precedentes na exportao de padres de comportamento, gostos ar-tsticos, hbitos de consumo o que praticamente universalizou o chamado "american way of life". A existncia de canais e conexes nacionais que reproduziam espontaneamente tais padres de consumo, arte, cincia, tcnica e comportamentos pode ser constatada na d-cada de 50 e da por diante.

    No se pode falar em espontaneidade, entretanto, para os anos 40. A partir de 1941, o Brasil foi literalmente invadido por mis-ses de boa vontade americanas, compostas de professores universi-

  • trios, jornalistas, publicitrios, artistas, militares, cientis-tas, diplomatas, empresrios etc. todos empenhados em estreitar os laos de cooperao com brasileiros alm das mltiplas inici-ativas oficiais.

    Este livro pretende mostrar que o imenso impacto cultural que se produziu como resultado dessa presena norte-americana no Bra-sil no foi aleatrio, mas obedeceu a um planejamento cuidadoso de penetrao ideolgica e conquista de mercado. Alm disso pretende mostrar que esse processo de exportao cultural era parte inte-grante de uma estratgia mais ampla, que procurava assegurar no plano internacional o alinhamento do Brasil (e da Amrica Latina) aos Estados Unidos, pas que naquele momento procurava afirmar-se como uma grande potncia e centro de um novo sistema de poder no plano internacional.

    Deve-se reconhecer os aspectos positivos dessa difuso cultu-ral norte-americana, na medida em que ela contribua de algum modo ao intercmbio de idias e a aquisies reais de saber tcnico e cientfico. De outro lado, porm, preciso reconhecer no s o preconceito e o vis que orientavam boa parte desse intercmbio, como tambm o fato de que essa difuso cultural constitua um ele-mento-chave de uma construo imperialista durante a guerra e o ps-guerra.

  • TIO SAM IMAGINA UM REMDIO PARA A DOR DE CABEA CHAMADA AMRICA LATINA

    Os dez anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial foram dos

    mais convulsionados do Sculo XX. Em meio depresso econmica, os problemas sociais assumiram propores catastrficas e a orga-nizao poltica dos pases liberal-democratas foi abalada nos seus alicerces. Os governos estabelecidos pareciam impotentes para solucionar os problemas do dia; movimentos radicais de vrios ma-tizes clamavam por mudanas drsticas e por todo lado emergiram regimes ditatoriais de cunho ultranacionalista, que anunciavam o fim das liberdades democrticas e o estabelecimento de uma nova "ordem".

    No plano das relaes internacionais, o mesmo panorama: desor-ganizao e diminuio acentuada do comrcio internacional, com reflexos imediatos sobre as economias industriais e no industri-ais; adoo de rgidas polticas protecionistas e reforo dos la-os imperiais por parte das potncias europias; fracasso da ten-tativa de criar uma ordem internacional baseada na cooperao (Li-ga das Naes) e fracasso tambm dos esforos de desarmamento; e, finalmente, o desafio de novas potncias Japo, Itlia e Alema-nha s posies hegemnicas que Gr-Bretanha e Frana ainda de-fendiam dentro e fora da Europa e os Estados Unidos detinham no continente americano e no Pacfico.

    A partir do momento em que o poder na Alemanha foi entregue ao partido nazista (1933), reiniciou-se a projeo germnica no plano internacional. Em relao Amrica Latina, por exemplo, sua pre-sena comercial cresceu rapidamente, graas ao tipo de intercmbio que propunha, com sucesso, aos pases latino-americanos: o comr-cio de compensao, que significava a troca de produtos por produ-tos, sem necessidade de intermediao de moedas fortes como a li-bra ou o dlar, alis escassas tanto na Amrica Latina como na prpria Alemanha.

    Outra dimenso da presena germnica em nosso continente era a influncia poltico-ideolgica. Alm de jogar com afinidades entre movimentos e partidos polticos latino-americanos, a propaganda germnica mobilizava uma bateria de agncias oficiais e informais embaixadas, consulados, empresas comerciais, linhas areas, a-gncias distribuidoras . de notcias, clubes etc. para criar simpatia e at mesmo difundir os valores emanados do nacional-socialismo. Ao mesmo tempo, militantes procuravam aglutinar os a-lemes aqui residentes e seus descendentes em ncleos do partido nazista.

    No se deve esquecer tambm a influncia do pensamento militar alemo na formao dos militares latino-americanos, graas ao en-vio de misses que desde h muito tempo tinham treinado exrcitos e assegurado influncia no ensino militar de vrios pases do con-tinente. Acrescente-se, na dcada de 30, a pragmtica venda de ar-mas, mediante acordos de compensao. A admirao pela eficincia

  • da mquina de guerra alem era uma constante nos altos crculos militares da Amrica Latina (e do Brasil).

    * * * Essa persuasiva presena alem preocupava o governo dos Esta-

    dos Unidos, empenhado, nessa mesma dcada, em passar uma borracha no passado e apagar as marcas deixadas nos inquietos vizinhos do sul pela poltica do "porrete grande" (big stick) e suas varian-tes, que Tio Sam adotara nos primeiros trintas anos do Sculo XX.

    Vamos abrir parntese para lembrar o que foi essa poltica do big stick. Desde a independncia das naes latino-americanas no incio do Sculo XIX, Tio Sam firmara o p na idia de que as po-tncias europias no tinham o direito de intervir ou de tentar recolonizar a Amrica. Isso foi feito por intermdio da "Doutrina Monroe", uma declarao solene de poltica exterior feita pelo presidente dos Estados Unidos. Embora no tivesse fora suficiente para fazer valer essa doutrina naquele momento, Washington afirma-va em princpio seu papel protetor em relao ao conjunto das Am-ricas.

    No final do Sculo XIX, os polticos americanos constataram que "as grandes naes do mundo esto devorando rapidamente todos os lugares desocupados da terra" e que "os Estados Unidos no de-vem ficar atrs". Tio Sam entrou tambm na corrida imperialista desde a guerra contra a Espanha em 1898, o que lhe permitiu ocupar territrios no Pacfico (Hava, Filipinas), no Caribe (Porto Ri-co), assim como estabelecer o direito de intervir em Cuba e esti-mular o separatismo panamenho em relao Colmbia, a fim de construir o canal do Panam (que o Congresso colombiano recusara em princpio).

    Desde ento, os Estados Unidos intervieram poltica e militar-mente vrias vezes em pases do continente, em especial no Caribe e Amrica Central, sempre que julgaram estarem ameaados seus in-teresses polticos ou econmicos. Esse intervencionismo declarado foi chamado de big stick, inspirado numa frase famosa do presiden-te Theodore Roosevelt sobre a poltica americana para o continen-te.

    Tio Sam justificou esse intervencionismo de vrias maneiras. O prprio Theodore Roosevelt disse que havendo no continente inci-dentes crnicos ou governos incapazes de manter a ordem, uma nao civilizada deveria interferir com poderes de polcia internacional para solver os problemas. Ora, a Doutrina Monroe impedia que go-vernos europeus assumissem esse papel policial nas Amricas; por-tanto, os Estados Unidos deveriam arcar com essa responsabilidade. Justificativa menos sofisticada foi formulada pelo presidente Taft, para quem uma poltica exterior justa no exclua uma inter-veno ativa para "assegurar a nossas mercadorias e a nossos capi-talistas facilidades para investimentos lucrativos". Houve tambm justificativas de tonalidade moralista, do tipo luta contra a ini-qidade, diviso dos benefcios da civilizao com outros povos etc, mas em todos os casos o rbitro supremo da deciso de inter-vir nos vizinhos era o prprio Tio Sam.

    No final da dcada de 20, os governos latino-americanos, can-

  • sados dessa vizinhana, comearam a exigir nas conferncias inte-ramericanas o respeito ao direito de autodeterminao dos povos e ao princpio da no-interveno. Foi nesse contexto que Franklin D. Roosevelt elegeu-se presidente dos Estados Unidos (1933) e a-nunciou uma nova poltica em relao s naes latino-americanas: a poltica da boa vizinhana, que se fundava nas seguintes idias: os Estados Unidos tinham abandonado sua poltica de interveno na Amrica Latina; reconheciam a igualdade jurdica entre todas as naes do continente; aceitavam a necessidade de consultas peri-dicas para resolver os problemas que surgissem entre as repbli-cas; e concordava em cooperar por todos os meios para o bem-estar dos povos da Amrica.

    Muitos historiadores americanos, inclusive concordam hoje que o governo Roosevelt livrou-se dos aspectos intervencionistas obsoletos da poltica exterior americana, retendo entretanto os elementos considerados vitais. Os mtodos mudaram, mas os objeti-vos permaneceram os mesmos: minimizar a influncia europia na A-mrica Latina, manter a liderana norte-americana e encorajar a estabilidade poltica do continente.

    Nessa linha, o governo americano combateu ativamente entre 1935-1939 o comrcio compensado proposto pela Alemanha e insistiu no livre-comrcio como o melhor remdio para recuperar o intercm-bio de mercadorias no plano internacional. Realizou tambm um tra-balho poltico-diplomtico em escala continental, por meio das conferncias interamericanas, que prepararam o terreno para posi-es de consenso no caso de uma guerra que atingisse a Amrica. A partir da ecloso da guerra na Europa (1939), procurou tambm ob-ter a concordncia dos militares latino-americanos para os seus planos de defesa continental.

    De qualquer modo, ao iniciar-se a guerra europia, a Amrica Latina constitua um campo de batalha indeciso. Graas ao bloqueio naval britnico, as linhas de comrcio com a Alemanha decaram ra-pidamente em 1940. De outro lado, porm, as vitrias dos exrcitos germnicos sugeriam uma fora irresistvel, angariando novos sim-patizantes e acirrando as divises polticas no continente. Lem-bremo-nos de que nessa dcada os nacionalismos autoritrios que floresciam na Amrica Latina guardavam alguma afinidade com os fascismos europeus ou alimentavam, ao menos, pretenses antiimpe-rialistas. Tudo isso tornava muito difcil a realizao dos obje-tivos norte-americanos. Tio Sam monta o laboratrio...

    Para a poltica exterior do governo Roosevelt, a Amrica Lati-

    na era uma regio essencial naquele momento. Embora alimentasse uma viso estratgica globalista, isto , que projetasse os Esta-dos Unidos na poltica mundial como ator de relevo, o governo ame-ricano achava-se tolhido pela poltica isolacionista que caracte-rizara as relaes entre Estados Unidos e Europa durante a dcada de 20. Impedido, por razes de poltica interna, de atuar no tabu-leiro europeu, o governo Roosevelt concentrou seus esforos na A-

  • mrica Latina, procurando aqui os recursos polticos e materiais que constitussem uma base slida para futuros movimentos no xa-drez universal.

    O diagnstico de Washington sobre a Amrica Latina era o se-guinte: as Amricas Central e do Sul constituam parte importante dos planos de dominao mundial dos nazistas; alm disso, consti-tuam um campo de colonizao potencial, em virtude dos alemes que viviam nessas regies; esses pases tinham sido importantes para o rearmamento alemo, visto que forneceram s indstrias ger-mnicas matrias-primas vitais, por intermdio do comrcio compen-sado. Ainda mais: muitos desses pases centro e sul-americanos ti-nham suas foras armadas instrudas por misses alems e eram alvo de uma propaganda sistemtica que procurava criar um antagonismo entre esses pases e os Estados Unidos. Tambm a guerra afetara seriamente as exportaes de muitos desses pases, que enfrentavam novas dificuldades econmicas. Finalmente, as vitrias do Eixo em vrias partes do mundo estavam retirando do alcance dos Estados Unidos muitos materiais estratgicos, que poderiam ser encontrados no sul do continente americano. Esse conjunto de circunstncias exigia maior coordenao de esforos dos vrios departamentos go-vernamentais em Washington em relao Amrica Latina.

    Por isso tudo e depois de muito debate, o governo Roosevelt criou no dia 16 de agosto de 1940 um Bir destinado a coordenar os esforos dos Estados Unidos no plano das relaes econmicas e culturais com a Amrica Latina. Chefiado pelo jovem Nelson Rocke-feller, essa superagncia chamou-se a princpio Office for Coordi-nation of Commercial and Cultural Relations between the American Republics. Um ano mais tarde, o nome foi simplificado para Office of the Coordinator of Inter-American Affairs, pelo qual ficou co-nhecido at o final da guerra. Esse Bir encerrou suas atividades em 1946, mas alguns de seus projetos subsistiram at 1949 e muitas de suas atividades tornaram-se parte rotineira das tarefas da Em-baixada americana. Para facilitar, vamos cham-lo neste livro de Bir Interamericano, ou simplesmente Bir.

    De acordo com as definies oficiais, esse laboratrio estra-tgico recm-criado era um organismo destinado a promover "a coo-perao interamericana e a solidariedade hemisfrica". Na realida-de, os programas de cooperao e solidariedade hemisfrica consti-tuam instrumentos para atingir outros fins, a saber: enfrentar o desafio do Eixo no plano internacional e consolidar o Estado nor-te-americano como grande potncia. Das prprias publicaes ameri-canas pode-se concluir que Washington estava convencida da neces-sidade de proteger sua posio internacional, a partir de medidas abrangentes (econmicas, polticas e de propaganda) que enfrentas-sem com sucesso o desafio nazista. Na formulao do governo Roose-velt, estava em jogo a prpria segurana da nao americana, assim como sua posio econmica no hemisfrio. Da que o Bir Interame-ricano deveria promover medidas de curto e longo alcance para re-cuperar as economias combalidas dos vizinhos latino-americanos (comprando sua produo agrcola e mineral exportvel), bem como estabelecer um vigoroso programa educacional, de relaes cultu-rais, de informao e de propaganda.

    Ateno para o detalhe: o Bir no era uma mera extenso de

  • programas de colaborao interamericana j existentes. Era uma a-gncia coordenadora de esforos, ligada segurana nacional dos Estados Unidos. Por isso, ele surgiu como parte dos programas de defesa nacional e estava subordinado ao Conselho de Defesa Nacio-nal dos Estados Unidos. Em seus relatrios privados, o Bir reco-nhecia que seus esforos de fortalecimento da solidariedade he-misfrica se faziam no interesse da defesa nacional de seu pas.

    O Bir era, portanto, parte do esforo de preparao para a guerra, em que se achava empenhado o governo Roosevelt, convencido de sua inevitabilidade desde o incio de 1939. Antes mesmo que os Estados Unidos entrassem na guerra, em 1941, o Bir j estava a-gindo a todo vapor no sentido de afastar das Amricas a influncia do Eixo e assegurar a "posio internacional" de seu pas. Em pou-cos anos de existncia, sob a batuta de Nelson Rockefeller, ele coordenou agncias estatais e privadas norte-americanas na compra de excedentes de produo e materiais estratgicos latino-americanos; participou de outras iniciativas de carter econmico; atacou problemas ligados sade pblica e nutrio; e concentrou seus melhores esforos no campo da informao, desenvolvendo rapi-damente uma complexa operao de influncia exclusiva sobre os meios de comunicao de massa no sul do continente.

    No faltaram recursos para a montagem desse imenso laboratrio poltico: o Bir gastou cerca de 140 milhes de dlares em 6 anos de atividades. Nos tempos de maior ao, empregava 1100 pessoas nos Estados Unidos e 200 no estrangeiro, alm dos comits volunt-rios de cidados norte-americanos (geralmente empresrios) que a-poiavam as atividades do Bir em 20 pases americanos. A estrutura do Bir comportava 4 Divises: comunicaes, relaes culturais, sade, comercial/financeira. Cada uma delas se subdividia em se-es, com ampla margem de atuao. Comunicaes abrangia rdio, cinema, imprensa, viagens e esportes; relaes culturais inclua, arte, msica, literatura, publicaes, intercmbio e educao. Sa-de trabalhava com problemas sanitrios em geral. A Diviso comer-cial/financeira lidava com prioridades de exportao, transporte, finanas e desenvolvimento.

    Tambm no foi difcil, sob a direo de Rockefeller, mobili-zar a "comunidade americana de negcios" nos Estados Unidos e na Amrica Latina para a solidariedade hemisfrica: aos empresrios americanos se apelou para que colaborassem patrioticamente com a poltica de seu governo, ao mesmo tempo que se lhes apontavam as melhores oportunidades de negcios ao sul do continente. O conjun-to das atividades do Bir era, por isso mesmo, considerado um front da guerra: o front comercial, poltico e psicolgico. Nesse front, o objetivo era obter o apoio decidido dos governos e das sociedades latino-americanas para a causa dos Estados Unidos. ... e inventa a frmula correta

    Que filosofia iria orientar o programa do Bir Interamericano

    para a Amrica Latina? esta foi a grande questo que o prprio Bir se colocou em seus primeiros meses de existncia.

  • Rockefeller percebia claramente que os Estados Unidos no ti-nham uma definio muito clara de suas relaes com o hemisfrio, ao passo que o Eixo possua idias muito precisas sobre a "nova ordem" que intentava construir. Ele mesmo reconheceu, realistica-mente, que o nico tema que os norte-americanos estavam "tentando vender" aos seus vizinhos do sul era o da democracia, mas exata-mente esse tema tinha escassa popularidade entre suas classes do-minantes a maior parte dos governos com os quais os Estados Uni-dos teriam de lidar nada mais eram do que ditaduras. De outro la-do, a mensagem de bom vizinho tambm era por ele considerada um tema vago que pouco dizia aos povos do hemisfrio.

    Por isso mesmo, o Bir convocou uma srie de especialistas (especialmente das universidades) para debater uma "filosofia" pa-ra orientar sua ao. Estes peritos sugeriram ento que o Bir se fixasse em temas que pudessem ser considerados valores comuns civilizao norte-americana, por um lado, e civilizao ibero-americana, por outro. ( interessante, que pouco tempo depois, au-tores brasileiros estavam tambm procurando as razes comuns das duas civilizaes.) As dificuldades evidentes de encontrar valores e heranas comuns s duas civilizaes levaram afinal o Bir a se fixar na idia do panamericanismo uma realidade fundada em ide-ais comuns de organizao republicana, na aceitao da democracia como um ideal, na defesa da liberdade e dignidade do indivduo, na crena na soluo pacfica das disputas e na adeso aos princpios de soberania nacional e cuja manifestao concreta seriam os programas de solidariedade hemisfrica.

    Tio Sam j tinha a essa altura uma idia clara dos programas de solidariedade que iria desenvolver no plano econmico e cultu-ral. A filosofia panamericanista vinha para dar cobertura e justi-ficar esses programas de ao. Se quisermos, portanto, ter uma i-dia clara do significado desses programas, no devemos julg-los pela "filosofia" que advogam, mas por suas realidades implcitas. Pragmticos imbatveis, os prprios funcionrios do Bir reconhe-ciam que a "filosofia" adotada visava melhor vender os programas de ao Amrica Latina. O utilitarismo prevaleceria em toda a linha no programa cultural e econmico desencadeado desde ento no continente.

    Havia um elemento perturbador na "filosofia" do Bir, j que acentuava os valores comuns aos norte e sul-americanos, mas tinha que fazer referncia democracia (mesmo que fosse como um "ideal" a ser atingido) e aos direitos individuais, num continente em que esses valores eram simplesmente ignorados. A distncia entre o discurso e as prticas polticas era, portanto, abismal; na prti-ca as autoridades estavam mais ou menos convencidas de que os go-vernos autoritrios eram um meio de obter estabilidade poltica ao sul do Rio Grande. Dessa perspectiva, a existncia de um sistema interamericano e de uma colaborao hemisfrica no dependiam de uma identidade de regimes ou da aceitao de um iderio poltico comum s vinte repblicas. Dependia to somente da adeso grande potncia norte-americana. Estava em jogo uma questo de poder e no de princpios polticos.

    Isso no quer dizer que a "filosofia" fosse desimportante. Ao contrrio, era importante como uma imagem de relaes ideais, cu-

  • jos componentes j teriam plena vigncia na parte norte do conti-nente. Os Estados Unidos seriam a encarnao dessa "filosofia" e, desse ponto de vista, constituiriam um modelo de civilizao para seus vizinhos. A "filosofia" cumpria o papel de cimento do sistema de poder que Washington estava modelando no continente.

  • TIO SAM CHEGA AO BRASIL COM A RECEITA NO BOLSO

    Quando Franklin Roosevelt chegou presidncia dos Estados U-

    nidos, o Brasil ainda vivia o rescaldo poltico resultante da re-voluo de 30, que levara Getlio Vargas ao poder. Como sabemos, tambm no Brasil os anos 30 marcaram uma intensa mobilizao pol-tica e social: o governo provisrio de j Getlio, resultante da aliana entre os tenentes e oligarquias regionais rebeladas, durou de 1930 a 1934. A revolta constitucionalista de 1932 teve como principal resultado poltico a convocao de uma Assemblia Cons-tituinte, da qual emergiu um regime constitucional que durou de 934 a 1937, tendo Vargas sido eleito presidente. Foi este um per-odo de grande agitao e polarizao poltico-ideolgica, repre-sentadas especialmente pela Ao Integralista Brasileira e pela Aliana Nacional Libertadora. Ao mesmo tempo, no interior do Esta-do ganhavam terreno os defensores do estreitamento das liberdades polticas e de solues de fora. A tentativa insurrecional de 1935 promovida pelo partido comunista reforou os elementos que planejaram e executaram, em 1937, um golpe de Estado: Getlio tor-nou-se ditador com o apoio militar e inaugurou-se ento o chamado Estado Novo, que duraria at 1945.

    A poltica exterior do Brasil na dcada de 30 tinha muito que ver com as questes econmicas vitais especialmente o comrcio exterior e com as profundas divises polticas internas, que se combinavam inevitavelmente s novas configuraes e atores da po-ltica internacional. Dessa constelao de fatores resultou uma disposio permanente de explorar as oportunidades criadas pela competio entre Alemanha e Estados Unidos por influncia poltica e econmica na Amrica Latina. No seu conjunto, a poltica externa do Brasil caracterizava-se por uma eqidistncia pragmtica entre as potncias, na busca de benefcios comerciais. A partir do esta-belecimento do Estado Novo, a formulao de dois grandes projetos a grande siderurgia e o re-equipamento das Foras Armadas veio juntar-se aos problemas a serem encaminhados por nossa poltica exterior. A diviso entre os elementos pr-germnicos e pr-americanos dentro do governo brasileiro no facilitava, claro, a sua soluo.

    * * * Pois esse Brasil dividido era um dos pases mais importantes

    do continente para Tio Sam no final dos anos 30, tanto do ponto de vista poltico como pelo prisma estratgico. Politicamente a posi-o brasileira afetava a posio de vrios outros pases da Amri-ca do Sul. Alm disso, dentre os produtores de matrias-primas es-tratgicas necessrias ao esforo de guerra americano o Brasil se apresentava na linha de frente com a borracha, o mangans, o min-rio de ferro, os cristais de quartzo, as areias monazticas, os leos vegetais e as plantas medicinais, entre outros produtos.

  • Considere-se ainda a posio geogrfica do Norte/Nordeste do Bra-sil que assumiu importncia crescente na conjuntura dos anos 30. .

    Desde os incios do Sculo XX, as linhas de defesa dos Estados Unidos incluam, alm do seu prprio territrio continental, os pases do Caribe,e da Amrica Central; esse conjunto e sua respec-tiva estratgia de defesa eram conhecidos como o "lago americano". Nas condies conturbadas da dcada de 30, no entanto, os planeja-dores militares de Washington ampliaram suas linhas de defesa, que passaram a abranger o conjunto do continente, desde a Terra Nova (no norte) aos Galpagos (no sul), tendo como ponto particularmen-te importante, a leste, a salincia do Nordeste brasileiro, devido sua proximidade com o norte da frica e sua posio para a vigi-lncia do Oceano Atlntico.

    A estratgia ento elaborada pelos militares dos Estados Uni-dos previa a defesa continental a partir de suas prprias foras, entrando as foras latino-americanas com a cesso de bases areas e navais, alm de se encarregarem da ordem social e poltica de seus pases. No incio de 1939, o governo americano j se prepara-va econmica e militarmente para a eventualidade da guerra; por isso mesmo, o presidente Roosevelt disse naquela ocasio ao minis-tro das Relaes Exteriores do Brasil, Osvaldo Aranha, que seus planos estratgicos incluam a defesa da Amrica do Sul. Comeou a um processo de colaborao (difcil) entre militares americanos e brasileiros, os primeiros solicitando aos ltimos que elimi-nassem a influncia germnica no Brasil e permitissem a presena de tropas americanas em territrio brasileiro (Nordeste). A divergncia entre militares americanos e brasileiros naquele mo-mento foi muito importante, pois se constituiu num dos dados pol-ticos na relao entre os dois pases. A perspectiva estratgica dos dois lados era diferente: os americanos desejavam encarregar-se da defesa global do continente, inclusive do Brasil; os brasi-leiros asseguravam sua inteno de defender o territrio nacional, devendo entrar os americanos com as armas e munies necessrias. Os militares de Tio Sam no queriam fornecer armas ao Brasil, pois consideravam que muitos elementos da alta oficialidade brasileira tinham sentimentos pr-Eixo; ao mesmo tempo, insistiam na coloca-o de suas tropas no Nordeste do Brasil. Entre 1939-1941, vrias tentativas e propostas de colaborao imaginadas pelos militares americanos esbarraram numa slida resistncia dos militares brasi-leiros.

    No se tratava de resistncia militar somente. Outros setores pr-germnicos ou de neutralistas sinceros no governo Vargas re-sistiam s investidas de Tio Sam, adiando ao mximo o processo de colaborao Brasil-Estados Unidos.

    O trabalho do Bir Interamericano no Brasil se revestia, por-tanto, de um aspecto poltico vital: era necessrio ganhar os co-raes e mentes dos lderes polticos e militares brasileiros, sem cuja cooperao os planos estratgicos dos Estados Unidos iriam por gua abaixo. Mais ainda: era necessrio assegurar no apenas o acesso s agncias do Estado brasileiro, mas tambm ganhar os gru-pos sociais mais significativos do ponto de vista da formulao de polticas, assim como, na medida do possvel, a massa da populao politicamente significativa.

  • * * *

    O Bir era dirigido no Brasil por Berent Friele e suas ativi-

    dades tinham todo apoio da Embaixada americana no Rio, alm do su-porte de um Comit de Coordenao composto por empresrios. Assen-tavam-se nesse Comit, no ano de 1943, por exemplo, representantes da General Electric, Standard Oil, Metro Goldwin Mayer, Light and Power Co., The National City Bank of New York e outros. Esse co-mit propunha-se a colaborar com o Bir e a Embaixada em tudo que "contribusse para aumentar a compreenso mtua entre Brasil e Es-tados Unidos ou que pudesse ser til no combate influncia do Eixo no Brasil". Tambm So Paulo, por sua importncia, tinha uma agncia do Bir, enquanto cidades do porte de Belm, Fortaleza, Natal, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba, Florianpolis e Porto Alegre contavam com subcomits de apoio.

    O prprio Rockefeller visitou o Brasil em 1942 para examinar o andamento do programa e estimular suas atividades de propaganda. Aproveitou a ocasio para fazer uma poltica de aproximao com militares brasileiros e vender a imagem da "colaborao hemisfri-ca". A visita, muito bem preparada, foi considerada um sucesso, A popularidade atribuda ao coordenador do Bir pela imprensa do Rio de Janeiro naquela ocasio foi candidamente explicada por um dos seus assessores nos seguintes termos: "Mister Rockefeller um vendedor de primeira "classe"... A aplicao do remdio

    O Bir aplicou seus programas no Brasil em trs grandes reas

    interligadas: informao, sade e alimentao. A Diviso de Informaes

    Seguramente, a mais importante do ponto de vista da penetrao

    cultural e ideolgica, essa Diviso compreendia as seguintes se-es: imprensa, rdio, filmes, anlises de opinio pblica e cin-cia/educao. Os objetivos mais imediatos dessa diviso variaram segundo a conjuntura da guerra. Antes do desembarque anglo-americano no norte da frica (novembro de 1942), quando a situao militar no hemisfrio era incerta, a nfase recaa na demonstrao do poderio militar dos Estados Unidos. Depois do desembarque, con-centrou-se na necessidade de colaborao entre os dois povos e na apresentao do estilo de vida norte-americano aos brasileiros. Nesse sentido, considerava-se da maior importncia o trabalho do dr. Charles Chandler, historiador das relaes interamericanas que, mediante intensa atividade de pesquisa, palestras e publica-es tornou possvel o desenvolvimento intensivo do tema de que "as relaes brasileiro-americanas no eram um expediente de mo-mento, mas tinham razes em muitos anos de histria".

    A imprensa Essa noo de uma colaborao enraizada na hist-ria dos dois pases constitua tema privilegiado das notcias transmitidas pelas agncias de notcias imprensa brasileira. As-sim tambm os sacrifcios dos americanos na guerra e o ponto de

  • vista do seu governo constituam objetivos explcitos dessa ativi-dade.

    Desde o incio do programa, o Bir promovera negociaes com as agncias de notcias United Press e Associated Press, no senti-do de elaborarem e difundirem notcias favorveis aos Estados Uni-dos, assim como notcias sobre a Amrica Latina para a imprensa dos Estados Unidos. (No poupou esforos tambm para obter o afas-tamento da agncia de notcias alem e italiana do Brasil.) Desse modo, 422 publicaes (jornais e revistas) das principais cidades brasileiras recebiam, a cada ano que passava, dezenas de milhares de notcias e fotografias, assim como milhares de artigos sobre as relaes interamericanas.

    Foi graas ao Bir que o Rio de Janeiro obteve o primeiro apa-relho de recepo e transmisso de radiofotos. A primeira radiofo-to transmitida do Brasil para os Estados Unidos mostrava o presi-dente Vargas juntamente com Jefferson Caffery, o embaixador ameri-cano no Rio. E quando a imprensa brasileira comunicou os resulta-dos da Conferncia de Teer (28 de novembro 1 de dezembro de 1943) pde apresentar, ao mesmo tempo, uma fotografia das reuni-es.

    A operao "divulgao de notcias" se fazia em duas direes: havia notcias dos Estados Unidos no Brasil e notcias do Brasil nos Estados Unidos (estas em menor escala, reproduzidas depois nos jornais brasileiros). Em duas direes tambm se faziam as visitas de editores e jornalistas dos dois pases: os americanos vinham conhecer o Brasil, enquanto os brasileiros iam aprender a tcnica e os progressos do jornalismo e da atividade editorial americana.

    Era uma ao avassaladora, que assustava outros agentes es-trangeiros tambm interessados em exercer alguma influncia sobre a imprensa brasileira. Os britnicos encarregados desse mesmo tipo de atuao, comentavam ao final de 1942 que "agora que a organiza-o de Rockefeller comea a funcionar no Rio de Janeiro, devemos nos preparar para perder terreno, pois tememos que mesmo nossos melhores amigos sucumbiro ao todo-poderoso dlar". E tinham boas razes para temer: alm das tradicionais formas de subsdio aos jornais e revistas brasileiros, o Bir dispunha de uma arma pode-rosa para assegurar sua boa vontade. Devido escassez de papel de imprensa, as licenas de exportao de papel dos Estados Unidos eram facilitadas para os jornais favorveis causa americana. A-lm do papel de imprensa, os jornais favorveis eram tambm bene-ficiados com a propaganda de produtos americanos um projeto con-cebido pelo Bir nos Estados Unidos com a finalidade de dar assis-tncia econmica aos jornais da Amrica Latina e, concomitantemen-te, assegurar uma reserva de mercado no continente, para o ps-guerra.

    Alm de atuar na imprensa brasileira, a Diviso de Informaes do Bir dedicava-se a outras atividades de divulgao. Publicava e distribua sries de folhetos, entre os quais um se mostrou parti-cularmente bem-sucedido. Intitulava-se "Em Guarda" e sua distribu-io mdia na Amrica latina alcanava 500000 exemplares mensais. S em 1943 no Brasil foram distribudas 658 360 cpias desse fo-lheto, cada cpia alcanando em mdia 5 leitores, de acordo com o prprio Bir. Outros folhetos muito cotados na poca intitulavam-

  • se "Ldice", "Heris verdadeiros" e "Sonho alemo". Alm de pan-fletos, produziam-se tambm mapas, posters e caricaturas. Entre os posters, os mais populares eram "A marinha de dois oceanos", "No deixemos o Eixo meter suas garras nas Amricas", "Lutamos pela li-berdade de todos" e "A unio faz a fora". Era grande tambm a distribuio de bandeiras norte-americanas e retratos dos presi-dentes Washington e Roosevelt. As empresas de transporte america-nas e britnicas (como a Panair e a Leopoldina) colaboravam na distribuio desses materiais pelo interior do Brasil, alm dos Correios do Rio e So Paulo.

    Cinema Uma seo particularmente importante na Diviso de Informaes era a de filmes. O Bir deu grande ateno a esse meio de comunicao social, convencido de sua extraordinria capacidade de penetrao ideolgica. Elaborou, por isso, um programa de pro-pores ambiciosas, tanto para filmes de fico, como para docu-mentrios. Em relao aos filmes ficcionais, desde muito cedo o Bir entrou em contato com os estdios de Hollywood para enquadr-los na estratgia geral do governo americano para a Amrica Lati-na: era necessrio evitar a divulgao de filmes que pusessem em ridculo ou questionassem qualquer instituio norte-americana (por exemplo, filmes sobre relaes raciais) ou ferissem susceti-bilidades dos latino-americanos. Da que o Bir conseguiu vetar filmes ou cenas inconvenientes, obtendo mudana de roteiros e re-filmagens, at obter produtos "adequados" ao pblico do sul do continente. Nesta poca, por fora da atuao do Bir, os tradi-cionais "bandidos mexicanos" dos filmes de faroeste desapareceram das telas de cinema. Alm disso, o Bir sugeria aos estdios de Hollywood os "temas" que gostaria de ver abordados nos filmes de fico para a Amrica Latina.

    Ademais, o Bir patrocinou tournes de astros e estrelas de Hollywood Amrica Latina e de artistas latino-americanos aos Es-tados Unidos. Tyrone Power, Bing Crosby e Csar Romero, entre ou-tros, visitaram o Rio de Janeiro. Os diretores John Ford e Orson Welles tiveram misses especiais de filmar o Brasil, sendo que o ltimo atuou tambm como jornalista a servio da boa vizinhana. Mas o Bir no dormia no ponto: mandava os artistas "em carne e osso" para serem admirados pelos fs e aumentarem a popularidade de Tio Sam, mas, ao mesmo tempo, fazia estatsticas das caixas re-gistradoras dos cinemas para ver de que maneira a presena do as-tro ou estrela tinha afetado a rentabilidade dos filmes, pro-gramados para coincidirem com aquela presena entre ns.

    Artistas brasileiros tambm iam aos Estados Unidos: alguns a-cabaram ficando, como Carmen Miranda; outros iam e voltavam. Ary Barroso foi contratado, na ocasio, para escrever um filme para a "Pequena Notvel". Na mesma linha de colaborao, o Bir procurou descobrir talentos latino-americanos para filmar nos Estados Uni-dos e estimulou o aumento de empresas cinematogrficas americanas na Amrica Latina. Fiel ao ideal de que uma boa poltica cultural no exclui bons lucros, esse programa ambicioso de uma cinemato-grafia para a Amrica Latina objetivava explicitamente o desen-volvimento de um mercado latino-americano de filmes e o desenvol-vimento de uma indstria cinematogrfica latino-americana, em coo-perao com o capital e o gerenciamento norte-americano. Em 1941,

  • realizou-se no Rio de Janeiro a 3 Conveno Sul-americana de Ven-das, patrocinada pela RKO e contando com a presena do j ento famoso Walt Disney. Na ocasio, foi exibido o curta-metragem do mesmo Disney, Fantasia, que extasiava as platias latino-america-nas. Pouco mais tarde, o desenho Al, amigos! trilharia o mesmo caminho do sucesso na solidariedade hemisfrica.

  • Foi nesse contexto e dentro dessa linha geral de ao que o

    Bir negociou com os estdios de Disney a criao de tipos que a-judassem a realar a solidariedade panamericana. Desse esforo, nasceu o nosso popular "Z Carioca", papagaio verde-amarelo, num desenho que se tornou famoso pelo apuro tcnico e pela escolha perfeita do personagem em relao sociedade que, atravs dele, se pretendia expressar. O americano que vem ao Brasil e encontra o "Z" nada mais era do que o Pato Donald o smbolo por excelncia do "americano comum". Donald um pato e guarda, portanto, muita afinidade com o nosso papagaio ambos aves domsticas e que podem se entender muito bem. Z Carioca falador, esperto e f de Do-nald; sente um imenso prazer em conhecer o representante de Tio Sam e logo o convida para conhecer as belezas e os encantos do Brasil. Brasileiramente, faz-se ntimo de Donald quando este lhe estende a mo, Z Carioca lhe d um grande abrao que aceita o oferecimento e sai para conhecer o Brasil. Nem preciso dizer que Donald fica deslumbrado com as paisagens e os ritmos brasileiros e inteiramente "vidrado" na primeira baiana que encontra. (Para no ferir as suscetibilidades de nossas "elites", eternamente ressen-tidas pelo apelido de "macaquitos" que argentinos nos aplicavam ento, ou para no desagradar as platias americanas, o fato que os estdios de Disney s puseram em cena baianas e baianos bran-cos; a mulata no teve vez.) Esse encontro histrico feliz se d num pano de fundo musical escolhido a dedo (Aquarela do Brasil, Tico-Tico no Fub e O que que a Baiana Tem?) e conta com um re-quintado apuro tcnico da indstria de filmes de Hollywood. Tambm aqui se d o encontro perfeito: a stima arte americana e o talen-to musical e coreogrfico brasileiro se juntam para produzir um hino indestrutvel amizade entre Donald e Z Carioca, perdo, entre Estados Unidos e Brasil.

    O Bir orientava tambm as companhias que produziam filmes de notcias, os "jornais da tela", ento muito apreciados. Havia um cuidado especial em balancear as "notcias ruins" (como o devasta-dor ataque japons a Pearl Harbor, por exemplo) com "notcias bo-as", de modo que a franqueza de falar das "coisas ruins" fosse va-lorizada como uma virtude a mais do estilo americano de vida.

    * * * Outra rea desenvolvida pela seo de filmes do Bir Interame-

    ricano eram os documentrios, que deveriam cobrir aspectos natu-rais, sociais, cientficos e tcnicos dos Estados Unidos e da Am-rica Latina. Maior importncia foi dada evidentemente aos filmes sobre Estados Unidos a serem exibidos ao sul do continente. Vrios tipos de filmes foram contemplados nessa linha: os relativos de-fesa, que procuravam mostrar a capacidade blica americana e sua produo de armas modernas; outros filmes acentuavam a superiori-dade da civilizao norte-americana comparada alemo (os filmes mais diretamente "ideolgicos" falavam dos planos hitleristas de domnio das Amricas e especulavam com a hiptese de domnio na-zista na Amrica do Sul, em termos de destruio de suas inds-trias, estmulo produo agrcola com trabalho escravo etc).

  • Os filmes sobre a Amrica Latina para exibio nos Estados U-nidos centravam-se em assuntos histricos, viagens e vida corren-te. O contraste era marcante: enquanto se mostravam as paisagens, flores tropicais, festas, folclore, stios arqueolgicos, arte-sanato e produo de bens primrios (estratgicos) da Amrica La-tina, procurava-se mostrar dos Estados Unidos as indstrias bli-ca, aeronutica, cinematogrfica, siderrgica, tica, assim como os avanos tcnico-cientficos (microscpio eletrnico, tecidos sintticos, produtos qumicos), alm de suas belezas naturais, o sistema educacional e a cultura em geral.

    Alm da produo de filmes, sua distribuio e exibio inte-grava as preocupaes do Bir. Somente no ano de 1943, ele patro-cinou 8698 sesses de cinema no Brasil, que alcanaram cinco mi-lhes de pessoas. E no af de levar a mensagem da colaborao he-misfrica aos mais afastados rinces do pas, esboou um plano pa-ra exibir filmes at mesmo onde no houvesse energia eltrica. Pa-trocinou tambm a realizao de 122 filmes em portugus, muitos dos quais sobre o esforo de guerra do Brasil. Um deles, muito a-preciado segundo o Bir, mostrava cenas da migrao de milhares de trabalhadores do Cear para a Amaznia e o processo da produo da borracha. Era a famosa "batalha da borracha", cujos resultados fi-caram muito aqum da expectativa, mas cuja tragdia social ainda no foi devidamente contada. Para entender essa "batalha", vamos lembrar que desde 1940 os Estados Unidos se preocupavam em cortar o fornecimento de matrias-primas brasileiras ao Eixo. Pelos acor-dos econmicos assinados em maio de 1941, o Brasil se comprometia a vender exclusivamente aos Estados Unidos toda a produo de cer-tas matrias-primas estratgias (deduzido o volume necessrio ao consumo brasileiro) pelo perodo de dois anos; esses acordos in-cluam a borracha, que se tornou absolutamente escassa depois que o Japo avanou pelo Sudeste asitico. O Brasil tornou-se ento o fornecedor privilegiado da borracha aos Aliados. Com a ajuda dos recursos americanos desencadeou-se a "batalha da borracha", tenta-tiva de estimular sua produo na Amaznia e tornar mais gil sua distribuio. A complicada rede de produo/distribuio permitia aos intermedirios abocanharem os melhores lucros, ficando o se-ringueiro reduzido condio miservel em que sempre vivera. As levas de migrantes nordestinos que chegavam para essa "batalha" no tiveram melhor sorte.

    * * * Voltemos aos filmes. A ao envolvente do Bir Interamericano

    na produo e distribuio de filmes no Brasil contou com a ajuda do famoso DIP Departamento de Imprensa e Propaganda criado junto com o Estado Novo, com a finalidade de instrumentalizar a consolidao do regime ditatorial junto opinio pblica. O DIP tinha como tarefas no apenas a formao de imagens favorveis ao regime junto populao brasileira, mas tambm o exerccio de frrea censura, de modo a impedir qualquer crtica ao Estado Novo.

    Por volta de 1941, refletindo os ventos da mudana que comea-vam a operar na poltica exterior do Brasil no sentido de maior aproximao com os Estados Unidos, o DIP passou a colaborar mais

  • intensamente com o Bir Interamericano. Em mais de uma ocasio, funcionrios do DIP trabalharam em projetos comuns com o Bir: por exemplo, o cinegrafista Jean Manzon participou das filmagens de A Batalha da Borracha. Tambm o DIP mostrava-se mais brando na ques-to da censura aos filmes americanos: O Grande Ditador, de Charles Chaplin, por exemplo, foi liberado com pequenos cortes apenas, a-pesar do discurso radicalmente democrtico da cena final. De 1942 em diante, quando o Brasil j tinha rompido relaes com a Alema-nha, Itlia e Japo, o DIP foi particularmente ativo na apreenso de filmes do Eixo, tanto os de propaganda como os de fico nos cinemas de todo o Brasil.

    Rdio Os programas de rdio do Bir eram produzidos na pers-pectiva do programa de guerra psicolgica do governo americano e era dirigido por especialistas em propaganda. Quando o Bir ini-ciou sua atividade, Tio Sam tinha apenas 12 estaes transmissoras de ondas curtas para a Amrica Latina, controladas por 6 empresas radiofnicas. Alm disso, eram estaes de pequena potncia, se comparadas s rdios europias (inglesas, alems ou italianas) que transmitiam para a Amrica Latina. Em virtude disso, a poltica do Bir consistiu em colocar os programas norte-americanos em esta-es locais latino-americanas, como a melhor forma de alcanar au-dincias maiores. Paralelamente, promoveu o aumento do nmero de estaes transmissoras nos Estados Unidos, assim como sua potn-cia.

    Planejadores meticulosos, os especialistas do Bir promoveram dois levantamentos de opinio pblica na Amrica Latina para mon-tar seu projeto de transmisses radiofnicas. De duas maneiras o Bir procurou atingir o pblico ouvinte latino-americano: a partir de transmisses diretas dos Estados Unidos e por intermdio de es-taes locais.

    Quanto primeira forma, o Bir aprovou em 1941 um programa de propaganda em jornais latino-americanos, com a lista das estaes de rdio e dos horrios de programas de notcias dos Estados Uni-dos para o sul do continente. Para evitar que se suspeitasse da influncia do governo americano nessa propaganda, o anncio aos jornais deveria ser feito pelas empresas de rdio diretamente... Conseguiu tambm que as empresas criassem um escritrio central de edio e traduo de notcias para o resto do continente e que procurassem fazer contratos com estaes latino-americanas para retransmitir seus programas. Desse modo, cerca de 200 estaes de rdio em toda a Amrica Latina entraram nessa rede informativa.

    O Brasil constitua um problema particular para o Bir, visto que no havia bons programadores e locutores nos Estados Unidos familiarizados com essa lngua algo desconhecida, que era o portu-gus. A maior nfase, do ponto de vista de influncia sobre a opi-nio pblica brasileira, recaa nos noticirios e para isso o Bir contratou jornalistas brasileiros que adaptassem as notcias s necessidades e peculiaridades do pas. Desse modo, a seo de r-dio do Bir no Rio de Janeiro podia orgulhar-se em 1943 de distri-buir programas de notcias para 92 estaes de rdio brasileiras.

    Um sem-nmero de programas ouvidos pelos brasileiros em seus rdios provinha do Bir. Era o caso de "A Marcha do Tempo", "Rdio Teatro", "Canes da Amrica", "Esprito da Vitria" e "Sim ou

  • no". O programa "A marcha da Guerra" entremeava comentrios in-formais s principais notcias do dia, alm de entrevistar altas autoridades sobre a "perspectiva brasileira" a propsito da marcha da guerra. Novidades naquele mesmo ano de 1943 foram: "Famlia Borges" (que colocava uma famlia brasileira nos Estados Unidos observando o estilo de vida americano); "Baro Eixo" (que procura-va responder propaganda de rdio de Berlim, transmitida para o Brasil); e "O Brasil na guerra" (acentuando a contribuio brasi-leira aos Aliados). Aqui, o Bir teve que enfrentar os mais rea-listas que o rei: o DIP proibia referncias participao da Uni-o Sovitica na guerra, mas em nome da liberdade de informao, o Bir pde incluir desde ento notcias sobre a frente russa e so-bre os acertos poltico-diplomticos com os soviticos.

    O Bir tambm preparava programas musicais (eruditos e popula-res) e de assuntos esportivos para os ouvidos brasileiros. Dentro de suas atividades normais, o Bir tambm promoveu a ida de dire-tores, tcnicos e artistas do rdio brasileiro para estudar as tcnicas e a arte dramtica dos Estados Unidos. Artistas da Rdio Nacional do Rio foram particularmente beneficiados com esse pro-grama. Paulo Gracindo, j ento um artista de popularidade acentu-ada, esteve nos Estados Unidos e voltou impressionado com a rique-za e a pujana do rdio americano.

    O Bir tambm controlava sua prpria produo e fazia "enque-tes" por todo o pas para verificar a aceitao de seus programas, assim como as preferncias dos ouvintes, de modo a aperfeioar su-as atividades. As autoridades policiais e militares brasileiras menos simpticas causa americana preocupavam-se com essa ao persuasiva, mas pouco podiam fazer face s circunstncias. A pers-pectiva americana, tal como fora definida na "filosofia" do Bir, espalhava-se pelo pas afora.

    Cincia e educao O Bir dividia com outras agncias do go-verno americano as responsabilidades nessa importante rea de atu-ao. Na hierarquia das prioridades de Tio Sam, cincia e educao no eram consideradas essenciais em matria de defesa, mas recaam na rubrica de "atividades que podem influenciar de modo imediato no aumento de simpatia da Amrica Latina para com os Estados Uni-dos"; e recaam tambm nas preocupaes de "influncia a longo prazo na promoo da compreenso hemisfrica" para usar frases do prprio Bir.

    As principais formas de atuao consistiam em assistncia (ma-terial e tcnica), assim como intercmbio. Desse modo, no plano da assistncia, os americanos proporcionaram treinamento a estudantes e tcnicos brasileiros levados aos Estados Unidos, assim como as-sessoria para criao de escolas e implantao de cursos na Amri-ca Latina em reas variadas, tais como agronomia, sade pblica, medicina, servio social, enfermagem, engenharia etc. No Brasil, essa contribuio foi marcante na rea de administrao pblica e de empresas, agronomia, ensino vocacional (industrial e agrcola), engenharia, secretariado, lngua inglesa entre outros. Alm dos seus especialistas para assessorar ou mesmo organizar cursos e es-colas, forneciam os americanos tambm os materiais (livros, tradu-es, artigos cientficos) necessrios a esse tipo de atividade.

  • O padro geral dessa poltica de assistncia fundava-se na convico das carncias latino-americanas e na perfeio de mode-los institucionais americanos, que seriam padres ideais a serem implantados no restante das Amricas. Seu diagnstico da agricul-tura da Amrica Latina, por exemplo, estabelecia que, exceo dos cultivos para exportao, "tratava-se de "uma atividade primi-tiva, devastadora do solo e desprovida de saber e informao". Da a necessidade de ensinar "tcnicas modernas" para modificar a si-tuao reinante. Atravs de escolas agronmicas existentes ou en-to criadas e por intermdio de programas de treinamento mais -geis, procurava-se iniciar os latino-americanos nos mistrios do solo, das sementes e do uso de implementos agrcolas (incidental-mente fabricados nos Estados Unidos). Do mesmo modo, ramos tambm notavelmente carentes de tcnicas de administrao, comrcio, ser-vio social, medicina etc. e o modo norte-americano de adminis-trar, gerir, trocar, assistir, curar etc. comeou a impregnar o sistema educacional do restante do continente.

    O Brasil estava plenamente inserido nesse processo e foi obje-to de extensa atuao nesse setor. Nessa poca, fortaleceram-se tambm as escolas americanas, assim como se ampliou a atuao dos institutos culturais americanos em territrio brasileiro. Embora tivesse aparecido pouco antes da guerra, o IBEU (Instituto Brasil-Estados Unidos) ganharia um formidvel impulso nesse momento, constituindo no apenas um centro difusor da lngua inglesa, mas tambm um centro de atividades culturais variadas (palestras, con-certos etc.) de importncia crescente. O governo americano deu in-centivos tambm difuso do ensino de ingls, por meio de livros, filmes, discos e exposies itinerantes. Os funcionrios do Bir no Brasil notavam com satisfao, em 1943, que as escolas america-nas precisavam ser urgentemente ampliadas, devido demanda cres-cente de matrculas por parte das famlias brasileiras de classe mdia. Comearia a partir da o declnio do francs como lngua por excelncia das chamadas elites culturais do pas.

    No plano do intercmbio, a atividade do Bir e outras agncias pblicas e privadas dos Estados Unidos foi avassaladora. Embora o intercmbio sugerisse troca de experincia e de especialistas em bases igualitrias, o movimento assumiu duas caractersticas preo-cupantes: primeiro, o nmero de americanos que vieram ao Brasil durante a guerra era infinitamente superior aos brasileiros que iam aos Estados Unidos. Em 1942, j estvamos inundados de jorna-listas, radialistas, editores, professores, cientistas, escrito-res, msicos, diplomatas, empresrios, tcnicos, estudantes, pes-quisadores de mercado oriundos do norte o que levou o ministro Osvaldo Aranha tirada bem-humorada de que "mais uma misso de boa vontade e declaramos guerra aos Estados Unidos!" A prpria Em-baixada americana preocupava-se com o nmero de seus compatriotas ensinando, indagando, investigando e tambm gastando de uma manei-ra pouco comum entre os brasileiros.

    claro que havia excees louvveis entre os que vieram ao Brasil e no usavam os culos do preconceito e do utilitarismo em-presarial ou poltico. Cientistas sociais como Herskowitz e Wagley produziram nessa poca textos relevantes sobre o Brasil, discre-pando freqentemente da viso primria e utilitria que flua dos

  • escritos oficiais do governo americano. As excees, exatamente por serem excees, permitem-nos per-

    ceber como era capenga o intercmbio proposto pelo Bir Interame-ricano. Os especialistas americanos vinham Amrica Latina ensi-nar suas tcnicas e exibir suas realizaes, enquanto os brasilei-ros (e os latino-americanos em geral) eram levados aos Estados U-nidos para "ter uma impresso favorvel dos Estados Unidos e re-tornarem aos seus pases com um sentimento de amizade, de boa von-tade para com os Estados Unidos". Em poucas palavras, os brasilei-ros iam aos Estados Unidos para aprender; os americanos vinham ao Brasil para ensinar.

    * * * Embora os funcionrios do Bir gostassem de afirmar que "a

    cultura latino-americana est se mesclando nossa" e que o inter-cmbio se dava de parte a parte "para o mtuo benefcio de ambos", a anlise dos programas da Diviso de Informao do Bir no Brasil evidencia que o seu objetivo bsico era imprimir sobre o Estado e a sociedade brasileira o ponto de vista, a informao, os valores, o saber e os mtodos do Estado e do establishment norte-americano. A informao, divulgada e controlada pelo Bir, visava no s ga-nhar a batalha ideolgica contra o fascismo (o alemo, em particu-lar), como tambm afirmar um liberalismo especfico, modelar, por ele mesmo chamado de "American way of life". Na especificidade desse liberalismo est embutido o objetivo poltico dos programas do Bir: produzir o alinhamento brasileiro no causa liberal-democrtica ou aos Estados liberais em geral, mas aos Estados Uni-dos. Fazer a guerra no front poltico e "psicolgico" era exata-mente isso: ganhar os coraes e mentes dos vizinhos do sul, para o projeto hegemnico de Tio Sam. A Diviso de Sade

    O Bir criado por Tio Sam comeou tambm a se preocupar, a

    partir de seus prprios "padres" de sade, com a situao sanit-ria do Brasil e com a sade dos brasileiros. Desde 1941, ele come-ou a planejar atividades que pudessem "aliviar os problemas de sade do hemisfrio" e dois anos depois j se "empenhava no Brasil em projetos de controle da malria, assistncia mdica para traba-lhadores, treinamento de mdicos e enfermeiras, distribuio de literatura mdica e bolsas de treinamento nos Estados Unidos. No final de 1943, trs mil pessoas estavam trabalhando nesse progra-ma, sendo 65 deles americanos e os demais brasileiros. O programa de sade do Bir se fazia em conjunto com o Ministrio brasileiro de Educao e Sade: o Bir implantava os projetos, que seriam de-pois continuados pelo Ministrio. Previa-se um investimento total de 8 milhes de dlares pelo Bir, em quotas decrescentes; de ou-tro lado, o governo brasileiro contribuiria com quotas crescentes.

  • Foram dois os grandes projetos implementados: o Amazonas e o

    Rio Doce. Em ambos os casos, preocupava-se o Bir com o controle da malria, assistncia mdica aos trabalhadores e melhoramento das "condies sanitrias" em geral. O projeto Amazonas instalou um laboratrio de anlises em Belm, treinou "guardas" para comba-ter a malria, criou um pequeno hospital de doenas tropicais, es-tabeleceu 30 centros de sade na regio, promoveu a drenagem de solos propcios reproduo da doena e distribuiu milhes de cpsulas de remdios. Programa semelhante, em menor escala, foi igualmente aplicado ao Vale do Rio Doce.

    Outros projetos menores estavam de algum modo ligados aos dois primeiros: era o caso da assistncia para migrantes (Norte/Nordes-te), treinamento de enfermeiras e educao mdica (esta inclua bolsas para o treinamento de tcnicos nos Estados Unidos, distri-buio de literatura mdica e educao em sade pblica).

    Podemos entender melhor essa preocupao sbita do Bir em "melhorar as condies de sade dos brasileiros", quando descobri-mos que os olhos de Tio Sam estavam postos tambm em outras "rea-lidades": os planejadores americanos sabiam que seu governo iria provavelmente enviar foras militares para certos lugares da Am-rica Latina e alguns desses lugares no teriam boas "condies sa-nitrias", segundo sua prpria definio do que seriam tais condi-es. Era preciso assegurar a sade de seus soldados. Alm disso, certas regies latino-americanas seriam decisivas do ponto de vis-ta do fornecimento de materiais estratgicos, como borracha, fer-ro, mangans, cristais de quartzo etc; era vital assegurar as me-lhores condies de trabalho nessas regies que, na concepo do Bir, tambm no eram "saudveis". Por isso a Amaznia e o Vale do Rio Doce foram as regies beneficiadas por seu programa de sade. Havia tambm uma considerao adicional, de natureza poltica, ao se implantar um programa de sade como este: Tio Sam provaria com atos concretos o benefcio de sua presena no Brasil e poderia, com isso, ganhar a confiana da populao civil.

    Se o programa de sade do Bir no chegava "aliviar os proble-mas de sade" do pas, pelo menos assegurava na cabea dos chefes do Bir as melhores condies para a "batalha da borracha" e a ex-trao do minrio, alm de dar maior segurana s tropas america-nas desembarcadas nos trpicos. Os objetivos imediatistas do Bir e sua ligao direta aos programas estratgicos de Tio Sam ficavam assim perfeitamente claros no seu programa de sade para o hemis-frio. A Diviso de Alimentao

    Nessa rea, o Bir anunciou que se preocuparia com os proble-

    mas relativos nutrio e abastecimento de alimentos no continen-te. De modo semelhante ao programa de sade, estabeleceu-se uma comisso mista, com representantes do Bir e do Ministrio da A-gricultura, chamada Comisso Brasileiro-Americana de Produo de Gneros Alimentcios. Eram bem ambiciosos os objetivos dessa su-per-comisso, que pretendia: (a) prestar assistncia ao Brasil nos problemas de suprimento de alimentos decorrentes da guerra; (b)

  • dar ao Brasil os benefcios das tcnicas norte-americanas na abor-dagem, a longo prazo, dos problemas agrcolas e nutricionas do pa-s; (c) fortalecer o esprito de boa vontade entre Brasil e Esta-dos Unidos por meio de um programa agrcola operativo.

    Apesar das dimenses ambiciosas do programa, as atividades concretas da Comisso cingiram-se distribuio de sementes e produo direta de alimentos (verduras, legumes, ovos e carnes) em reas selecionadas do pas. Foram beneficiadas regies do Nordeste brasileiro e Amaznia. Iniciou-se tambm, em funo dessas ativi-dades de curto prazo, um projeto de assistncia tcnica que levou agrnomos, nutricionistas e professores aos Estados Unidos para programas de treinamento. Ao mesmo tempo, vinham ao Brasil profes-sores e tcnicos americanos.

    Como os demais programas de assistncia, este tambm era de mo nica; os brasileiros iam aos Estados Unidos aprender sobre a modernizao da vida rural americana, enquanto os tcnicos e cien-tistas mobilizados por Washington vinham ensinar como tais concep-es inovadoras podiam e deviam trazer mudanas sociais agricul-tura brasileira. Note-se, de passagem, que Tio Sam via a agricul-tura brasileira com os culos de um dualismo pobre: a maior parte da vida rural brasileira era vista como primitiva, arcaica, tradi-cional. Em meio pujana da natureza tropical, habitava a igno-rncia de seus habitantes, gente de ndole adversa ao esprito competitivo, adepta de tcnicas simples e atrasadas. Esse primiti-vismo poderia, no entanto, ser mudado pela adoo das novas con-cepes e atitudes que Tio Sam estava trazendo ao Brasil.

    Por isso, a experincia do Bir, embora tivesse sido curta (1940-46) foi importante para o estabelecimento de influncias a longo prazo, o que foi feito por intermdio da educao rural a intensificao da influncia sobre as escolas de agronomia de modo a compatibilizar tcnicas brasileiras viso das agncias estatais americanas e dos produtos da indstria americana. A par-tir do final da guerra, firmaram-se programas de educao rural mais tarde, de "extenso rural" que consolidaram a perspectiva americana sobre o rural brasileiro.

    Voltando porm aos objetivos mais imediatos do programa de a-limentao durante a guerra, constatamos que a maior realizao da Comisso foi o suprimento de frutas, vegetais e carnes frescas s unidades militares americanas e brasileiras estacionadas no Nor-deste e na Amaznia, as regies estrategicamente mais importantes do pas. verdade que o Bir cogitou de ampliar suas atividades naquele comeo da dcada de 40, mas outras agncias do governo a-mericano exigiram que as atividades do Bir se limitassem a "ope-raes ligadas ao esforo de guerra". Desse modo, Tio Sam tratou de colocar o Bir no seu devido lugar: ele fora criado para agir no plano imediato da guerra e dos planos americanos para ela e no podia extrapolar para outras atividades do tipo alimentao da po-pulao brasileira em geral...

    * * * De que maneira o governo Vargas reagiu a essa presena ameri-

    cana macia? Lembremo-nos de que, por volta de 1940, havia uma di-

  • viso profunda dentro do governo brasileiro, que se expressava, por um lado, pela defesa de uma neutralidade estrita e, de outro, pela defesa de uma maior aproximao com os Estados Unidos. Havia portanto setores que favoreciam a presena americana, em nome da luta anti-nazista, enquanto outros tentavam evit-la em nome da neutralidade brasileira (ou de sentimentos pr-germnicos). Resultante dessas duas foras contraditrias foi a aproximao gradual poltica dos Estados Unidos, num processo de barganha permanente, em busca de certos benefcios econmicos, polticos e militares. Ao mesmo tempo em que concordava com os programas cul-turais e assistenciais americanos, o governo Vargas literalmente arrancou dos Estados Unidos os acordos que permitiram a construo da siderrgica de Volta Redonda, base fundamental da industriali-zao brasileira. Concordou em fornecer materiais estratgicos com exclusividade para os Estados Unidos, mas insistiu em receber ar-mas e munies para reequipar as Foras Armadas brasileiras. Entre 1942-1944, esse processo de colaborao/barganhas atingiu seu pi-ce. O Brasil concordou em romper relaes diplomticas com o Eixo quando o fornecimento militar ficou definitivamente estabelecido. Aceitou tropas americanas no Norte/Nordeste brasileiro quando a-cordos militares e econmicos de colaborao foram efetivamente assinados em Washington. Apoiou politicamente o governo Roosevelt, mas formulou um projeto de participao direta na guerra mediante o envio de uma fora expedicionria Europa.

    Essa colaborao no esteve isenta de atritos e o programa do Bir Interamericano no foi aceito em sua totalidade pelo governo brasileiro. Houve resistncias isoladas ou gerais a certos itens do seu programa, especialmente no plano econmico. Numa avaliao geral, pode-se dizer que o governo Vargas julgou inevitvel a co-laborao brasileiro-americana a partir do envolvimento dos Esta-dos Unidos na guerra (1941) e tratou de extrair dessa circunstn-cia incontornvel os melhores benefcios possveis. Alinhou-se, mas cobrou um preo pelo alinhamento.

  • A RECUPERAO DO PACIENTE.... E DE TIO SAM

    Os anos crticos da Segunda Guerra Mundial foram importantes

    no apenas do ponto de vista da " eliminao das influncias cul-turais do Eixo no Brasil (e conseqentemente de sua substituio pelas influncias americanas), mas tambm do posto de vista de um reordenamento das relaes econmicas do pas no plano interno e internacional. Aos problemas da depresso dos anos 30, somavam-se agora os deslocamentos provocados pela guerra tanto na organizao do seu aparelho produtivo, e nas pautas de importao e exporta-o, como tambm no seu equilbrio oramentrio. Era um problema brasileiro, mas no exclusivamente brasileiro e por isso Tio Sam tratou de formular seus prprios remdios para a situao. O tipo de recuperao que se desse no Brasil (e na Amrica Latina) seria um importante fator para a sade poltica e econmica dos Estados Unidos. O interesse de Tio Sam na recuperao do paciente

    Como j vimos, Tio Sam estava preocupado, entre outras coisas,

    com o fato de que a guerra afetaria seriamente a economia dos pa-ses latino-americanos, na medida em que limitava sua capacidade exportadora (e o setor exportador era geralmente o sustentculo dessas economias). Tornava-se necessrio, portanto, encontrar re-mdios tambm para essa fraqueza do organismo latino-americano, com vistas sua recuperao e desenvolvimento. Tio Sam tinha re-mdios bilaterais e multilaterais a oferecer ao continente. Os primeiros vinham atravs do nosso conhecido Bir, comandado pelo jovem Rockefeller. Os ltimos vinham atravs de um organismo con-tinental chamado Inter-American Development Commission (IADC) que nascera de um outro organismo criado na Conferncia do Panam em 1939 e este era tambm comandado pelo jovem Rockefeller.

    Comecemos com os remdios multilaterais. A IADC deveria reali-zar estudos, compilar informao e realizar contatos com vistas implementao do desenvolvimento econmico das 21 repblicas ame-ricanas. De que maneira entendia a IADC o "desenvolvimento intera-mericano"? Ela props trs linhas de trabalho para implementar o desenvolvimento: 1) estimular o aumento das exportaes das demais repblicas americanas para os Estados Unidos; 2) estimular o co-mrcio entre as repblicas americanas; 3) encorajar a indstria nas diferentes repblicas.

    O 1 e 2 itens visavam criar divisas adicionais em dlares para os pases exportadores, de modo a equilibrar seus oramentos nacionais. Evidentemente, o primeiro item era o mais importante, j que os Estados Unidos eram o pas que se interessava pela com-pra de materiais estratgicos, leos vegetais, alimentos e drogas. Agora que o estancamento de fontes no-americanas levava os Esta-dos Unidos a procurar esses materiais nos vizinhos mais prximos e apresentar essa iniciativa como gesto de generosidade e boa vizi-

  • nhana, podemos entender cabalmente o que significa fazer da ne-cessidade uma virtude. O 3 item (industrializao) particular-mente ilustrativo das preocupaes da IADC: ela no se propunha criao da indstria de bens de capital na Amrica Latina, porque estas "se provariam no econmicas" em sua operao". Em seu lu-gar, propunha a criao de indstria de bens de consumo, "de modo que certas repblicas americanas possam libertar-se da dependncia de artigos da Europa e sia, que elas consomem no dia-a-dia". (grifo meu)

    Essa concepo de industrializao da Amrica Latina represen-tava um pequeno avano nas concepes de Tio Sam, que at o incio da guerra pensara as economias do sul do continente como primrio-exportadoras. bem verdade que ele no aceitava a instalao de indstria pesada em solo latino-americano, mas aceitava o estabe-lecimento de bens de consumo que substitussem produtos europeus e asiticos (mas no os americanos!) por produtos localmente fabri-cados. Tratava-se de um padro de industrializao estritamente subordinada aos interesses econmicos americanos, reproduzindo em outro nvel a velha complementaridade assimtrica.

    * * * Os remdios bilaterais aplicados pelo Bir ao Brasil seguiam

    de perto essa definio continental de Tio Sam. Tratava-se de im-plementar o suprimento de matrias-primas, expandir os sistemas de transporte (martimos, fluviais, areos, ferrovirios, rodo-virios) e ampliar a assistncia financeira. Ganhava com isso o Brasil, mas os projetos implementados deveriam responder rigida-mente aos interesses estratgicos dos Estados Unidos. Os materiais estratgicos eram essenciais ao esforo de guerra americano; a ex-panso do sistema de transportes visava facilitar o envio desses materiais para o pas consumidor; e a ampliao da assistncia fi-nanceira deveria manter a economia interna dos pases americanos "em um nvel mnimo essencial para evitar uma depresso econmica generalizada, assim como circunstncias favorveis penetrao nazista e atividade subversiva". Quando Tio Sam abriu, em 1942, um crdito de 100 milhes de dlares ao Brasil, ficou claro que os projetos a serem financiados por esse crdito "estariam condicio-nados a uma investigao cuidadosa e determinao de que tais projetos (brasileiros) contribuiriam de um modo importante ao pro-gresso do nosso (EUA) esforo de guerra e segurana do hemisf-rio", nas palavras de um alto dirigente americano. O preo pago pela expanso das atividades exportadoras do Brasil que incluam borracha, minrio de ferro, cobalto, tungstnio, nquel, tantali-ta, columbita, leo de mamona, cristais de quartzo etc. era o seu total controle pelo governo dos Estados Unidos.

    No havia, nesses planos de Tio Sam, lugar para o avano da indstria pesada brasileira. Por isso mesmo, a concordncia ameri-cana para financiar Volta Redonda resultou de fatores eminentemen-te polticos e constituiu uma completa exceo regra. Isso acon-teceu em 1940, quando Washington j tinha definido os tipos de co-laborao que esperava receber do Brasil e que incluam a utiliza-o de bases areas e navais brasileiras, assim como o estaciona-

  • mento de tropas americanas em nosso territrio. No comeo daquele ano, o governo Roosevelt se convenceu de que s conseguiria alguma coisa do governo Vargas se houvesse algum progresso real a respei-to da siderrgica que os brasileiros planejavam construir.

    Assim mesmo, o progresso das conversaes foi lento. A solici-tao de financiamento foi atendida parcialmente em maio pelo E-ximbank, mas o montante oferecido era insuficiente. Nesse pntano de indefinies, Vargas proferiu um famoso discurso, no qual rea-firmava a inteno de promover a industrializao do pas, de ree-quipar as Foras Armadas e de mirar-se na organizao dos povos fortes (leia-se Alemanha). O discurso produziu um grande alarme nos Estados Unidos, mas o governo americano entendeu perfeitamente a mensagem. Em agosto, o assunto voltou para a agenda de discusso dos homens de governo americanos e em setembro assinou-se um acor-do pelo qual a compra de equipamento necessrio siderrgica bra-sileira seria financiada pelo Eximbank, enquanto a assistncia tcnica necessria implantao do projeto seria fornecida por empresas privadas americanas. Os acordos especficos com o Exim-bank foram assinados em maio de 1941.

    Foram a insistncia brasileira e as circunstncias polticas que permitiram a existncia de Volta Redonda. Fora esse empreendi-mento, o melhor que se produziu foi uma misso econmica americana enviada ao Brasil em 1942 e chefiada pelo sr. Morris Cooke. A mis-so veio com o objetivo proclamado de estudar as condies exis-tentes na indstria brasileira, assim como as possibilidades de increment-las. A motivao mais imediata da misso era, no entan-to, a necessidade de aliviar a presso sobre o transporte martimo norte-americano, mediante a substituio de importaes; alm dis-so, percebia-se nos EUA a possibilidade de transferir para o Bra-sil equipamento industrial em processo de obsolescncia nos EUA, mas com boa perspectiva de vida til para um pas menos desenvol-vido.

    A Misso Cooke saiu melhor que a encomenda. Ela produziu um relatrio extenso sobre as condies industriais do Brasil, suas necessidades e potencialidades; produziu tambm um quadro bastante preciso das condies de trabalho no Brasil dos anos 40. O relat-rio final sugeria uma srie de medidas de curto e longo prazo des-tinadas a incrementar a indstria brasileira e a produo de guer-ra. Infelizmente, as medidas de longo prazo sugeridas pela Misso Cooke iam muito alm daquilo que Tio Sam j tinha definido como possvel, de modo que elas foram sumariamente rotuladas de "um passo atrs" pelo Departamento de Estado. Apesar da insistncia posterior de Mister Cooke, os resultados de sua Misso acabaram "descansando em paz" em alguma gaveta do Departamento de Estado. Mister Cooke definitivamente no tinha entendido muito bem "o es-prito da coisa".

    O Bir continuou estimulando a substituio "possvel" de im-portaes e a criao de indstrias artesanais no interior do Bra-sil. Ao mesmo tempo procurava interessar as autoridades brasilei-ras no estabelecimento de "um programa positivo de ao para uma colaborao industrial no ps-guerra com a Comisso dos Estados Unidos (filiada IADC) e com os grupos industriais privados dos Estados Unidos". Na receita de Tio Sam, a recuperao do paciente

  • passava pelo processo de uma colaborao "positiva" com os EUA; caso contrrio, nada feito.

  • O paciente, na recuperao dos interesses de Tio Sam Enquanto enviava um sem-nmero de misses de boa-vontade e mi-

    lhares de pessoas que difundiam no Brasil a lngua, os costumes, os valores, a produo literria, a arte e a cincia dos Estados Unidos, o Bir no se descuidava das dimenses polticas que inte-ressavam ao seu governo e das dimenses econmicas que interessa-vam "comunidade de negcios" americana. Atuando em conjunto com a Embaixada americana no Rio, o Bir ajudou a preparar a "lista negra" de colaboradores brasileiros do Eixo e a boicotar suas ati-vidades: ajudou a eliminar as linhas areas do Eixo (Condor e La-ti); ajudou a controlar comunicaes radiofnicas de agentes ale-mes e a imobilizar seus navios nos portos brasileiros enfim, a impedir qualquer atividade dos governos eixistas no Brasil.

    A criao da "lista negra" de empresas e personalidades bra-sileiras consideradas a servio do Eixo ou mantendo relaes com entidades comprometidas foi uma novela parte. A lista negra americana era to minuciosa (cerca de 500 nomes) e as medidas que propunha eram to drsticas que os prprios representantes do go-verno britnico no Brasil ficaram preocupados com ela. Os diploma-tas de Sua Majestade contrastavam a poltica britnica (que con-sistia em limitar os recursos lquidos disposio dos adeptos do Eixo) com a poltica americana (que consistia em "erradicar todas as conexes e interesses do Eixo, mesmo onde so genuinamente lo-cais". Diante dessa tentativa de "interveno cirrgica", os re-presentantes de Londres no Rio concluam que os americanos queriam fazer uma "limpeza da rea" com a finalidade de estabelecer para si mesmos um domnio comercial tranqilo aps a guerra. De fato, a palavra de ordem do Bir era "eliminar, na mais completa extenso possvel, os interesses do Eixo no Hemisfrio".

    Mas tambm o governo brasileiro reagiu lista negra america-na, elaborando sua prpria lista e fixando uma poltica mais mode-rada. O Bir foi obrigado a conciliar suas concepes com as do governo brasileiro. No conseguiu, porm, eliminar a desconfiana de certos crculos de que pretendia estabelecer mercados cativos no Brasil para o ps-guerra. Contriburam para isso as intensas pesquisas de mercado patrocinadas pelo Bir durante os anos da guerra. J no final de 1942 era to grande o nmero de americanos "pesquisando, fazendo relatrios ou tomando "providncias" sobre os mais variados assuntos, e gastando dinheiro numa proporo pou-co conhecida pela populao, que at a Embaixada americana ficou preocupada. Comeou a circular nos meios americanos a idia de que eles tinham afinal uma ""posio especial" no Brasil e que os bri-tnicos deviam "manter suas mos fora" do pas.

    Ao manter no Brasil um batalho de perguntadores (americanos e brasileiros), o Bir estava perfeitamente consciente de que o pas estava mal ou bem acumulando poder de compra e que a indstria a-mericana poderia depois da guerra satisfazer a essa demanda acumu-lada. Os chefes do Bir comentavam francamente esse fato e imagi-navam planos para conhecer e desenvolver um mercado que poderia ter papel importante na manuteno dos nveis de emprego e renda da economia dos Estados Unidos.

    Havia mais de uma maneira de atuar nessa linha. O Bir estimu-

  • lou, por exemplo, centenas de empresas privadas americanas a colo-car anncios de seus produtos nos jornais e revistas de toda a A-mrica Latina. A receptividade a essa campanha foi grande e s para tomar um exemplo em 1943, um total de 210 firmas comprome-teu-se gastar um total de 11 milhes e oitocentos mil dlares em anncios no Brasil. (Os mais dispostos a gastar eram a Sterling Products, a Standard Oil, a Coca-Cola e a RCA Victor). Ora di-reis por que anunciar mercadorias se a produo de bens de con-sumo em 1943 era reduzida e havia uma acentuada escassez de trans-porte martimo? O Bir teria respondido sem pestanejar: o projeto de anncios em jornais e revistas "parte de um esforo amplo de bom vizinho para promover ajuda entre as Amricas". Mas h outra explicao.

    A ajuda, no caso, tinha foros de verdade, visto que a campanha iria favorecer financeiramente os jornais e revistas do Brasil (e da Amrica Latina) que estavam (esto) sempre precisando de subs-dios. Alm disso, o projeto se casava bem com as noes de "esfor-o de guerra" de todo o continente: os anncios explicavam as ra-zes da escassez naquele momento e a necessidade de sacrifcios imediatos (no consumo), de modo a garantir a abundncia do futuro (ps-guerra). A campanha compunha-se magnificamente com o "projeto de desenvolvimento" que Tio Sam elaborara para a Amrica Latina, j visto no captulo anterior. O "sacrifcio" daqueles anos de guerra significa, em ltima anlise, que os pases latino-americanos deveriam evitar a instalao de indstrias (at mesmo de bens de consumo) que substitussem importaes feitas nos Esta-dos Unidos, de modo a poderem comprar de Tio Sam esses produtos quando se normalizassem depois da guerra a produo industrial a-mericana e as relaes comerciais entre o pas do norte e os pa-ses do sul. A revista Selees (Reader's Digest), que estava en-trando a todo vapor no continente, absorveu e difundiu magnifica-mente essa viso entre os empresrios americanos; ela costumava argumentar nessa poca que ambos (empresrios e revista) deveriam trabalhar juntos: os empresrios no "front econmico" e Selees no "front ideolgico"... Outra maneira de o Bir atuar na linha dos interesses econmicos americanos no continente consistia em compatibilizar sua viso com a de outras agncias do governo dos Estados Unidos e colaborar com elas na medida do possvel. Um bom exemplo era a poltica de for-necimentos militares que a Lei de Emprstimo e Arrendamento (Lend & Lease Bill) tornara acessvel Amrica Latina. Os militares brasileiros candidataram-se a receber grandes quantidades de arma-mentos e munies desde 1941, quando perceberam o interesse de Tio Sam no Brasil como lugar estratgico para seus planos mundiais. medida que o governo brasileiro, por um lado, vendia matrias-primas vitais indstria de guerra dos Estados Unidos, fornecia bases no Norte/Nordeste para sustentar o esforo de guerra aliado no Norte da frica e concedia apoio poltico a Washington em sua poltica continental, por outro lado, podia reivindicar benefcios crescentes no plano militar (no econmico, era mais difcil, como vimos). O Brasil abocanhou a maior parte dos financiamentos ameri-canos para compra de armas modernas a baixo preo nos Estados Uni-dos em 1942 (recebendo cerca de 200 milhes de dlares); teve a-

  • tendida sua pretenso de organizar, treinar, equipar e transportar uma fora expedicionria para lutar na Europa e adquiriu, por con-seqncia, uma tcnica militar moderna, emergindo da guerra como o pas militarmente mais forte da Amrica Latina. Os mltiplos laos estabelecidos entre os dois estabelecimentos militares iriam pros-seguir no ps-guerra, assegurando um fluxo contnuo de armas, dou-trinas e know-how entre os dois pases.

    Os altos funcionrios do Bir Interamericano comentavam com satisfao que essa poltica de fornecimentos militares em base contnua tinha entre outros o objetivo de "excluir os fornecedores no americanos" e tambm de fazer com que se criasse necessidade de manuteno e substituio desses equipamentos a partir de for-necedores norte-americanos. Depois da guerra, essa poltica de fornecimento militar aperfeioou-se ainda mais, quando os milita-res dos Estados Unidos puseram nfase na necessidade de padronizar o equipamento militar do continente, tendo em vista a "segurana do hemisfrio". A padronizao da produo e de procedimentos in-dustriais e comerciais foi amplamente debatida pelo Bir nos cr-culos econmicos e polticos de toda a Amrica Latina. Desse modo, os programas militares, assim como os de assistncia tcnica, edu-cao, sade, treinamento profissional e outros acabavam desaguan-do na aquisio de equipamentos americanos.

    Assim, a "colaborao e a defesa hemisfrica" proclamadas por Tio Sam atravs do Bir mantinham uma perfeita identidade com os interesses econmicos privados americanos e os de sua defesa na-cional. De outro lado, os interesses econmicos privados assimila-ram rapidamente o esforo do Bir e passaram a usar sua linguagem: mediante esse passe de mgica, suas atividades econmicas no con-tinente passavam a constituir a prpria corporificao dos ideais panamericanos. Foi assim que, em 1942, um Ministro de Estado bra-sileiro recebeu de presente uma caixa de Coca-Cola, juntamente com uma carta que dizia o seguinte: "Em comemorao ao lanamento do famoso produto Pan Americano 'Coca-Cola', Coca-Cola Refrescos S.A. tem a subida honra de oferecer a V. Excia. uma caixa do seu refri-gerante. (...) esperamos que o mesmo constitua um elo de fraterni-dade entre as Amricas". Para a empresa Coca-Cola, panamericanismo era isso a...

  • A RECEITA DE TIO SAM TEM AMPLA ACEITAO

    O tratamento intensivo aplicado pelo Bir Interamericano ao

    Brasil durou de 1940 a 1946. Finda a guerra, os motivos imediatos de sua criao cessaram; as questes importantes agora eram ou-tras, assim como eram diferentes as condies gerais da poltica internacional. A Amrica Latina era uma rea politicamente pacfi-ca (apesar de arroubos nacionalistas aqui e acol), os problemas maiores de Tio Sam passaram a concentrar-se na Europa e na sia e a conjugao de foras no tabuleiro internacional era totalmente nova.

    Antes de desaparecer, o Bir ainda dedicou alguns de seus re-cursos para pensar a continuidade da influncia que tinha logrado estabelecer e para formular programas para o ps-guerra. Esses programas deveriam continuar a existir por meio de canais tradi-cionais de comunicao oficial, como os servios da Embaixada ame-ricana e das novas conexes que se tinham estabelecido entre os meios de comunicao, as universidades, os institutos culturais e as empresas americanas e seus congneres brasileiros. No campo da informao, por exemplo, o Bir formulou planos minuciosos: era necessrio assegurar o noticirio jornalstico e radiofnico do que se passava no mundo segundo a tica americana (agncias de no-tcia e, no rdio, O Reprter Esso) e continuar a transmitir as excelncias do "american way of life" (por meio de filmes educati-vos que focalizassem o "americano mdio": "algum que gosta do lar, vai igreja, ouve rdio, vai ao cinema e faz seguro de vida para a famlia", segundo a definio do Bir).

    Nos dez anos que se seguiram ao fim da guerra, a receita de Tio Sam teve ampla aceitao, apesar das resistncias que j come-avam a brotar no continente aos remdios prescritos. Seus modos de vestir, comer, plantar, educar, conhecer e entender o mundo am-pliaram gradativamente seu raio de ao. Agora, porm, no se tra-tava exclusivamente de ao planejada; embora alguns programas o-ficiais fossem mantidos, as identidades ideolgicas, convergncias de interesses econmicos e conexes estamentais estabelecidas en-tre segmentos importantes das duas sociedades reproduziam as in-fluncias "modernas" que Tio Sam comeava a exportar para o mundo todo. Foi em nome da "modernidade" que a presena de Tio Sam se afirmou no Brasil do ps-guerra. Tio Sam e o governo Dutra

    A nova constelao poltica resultante da queda de Vargas em

    1945 e da subida ao poder do General Eurico Gaspar Dutra em 1946 iria permitir uma identidade ideolgica sem precedentes entre os governos dos Estados Unidos e do Brasil. O novo pacto oligrquico que assumiu o controle das agncias governamentais negou legitimi-dade aos conflitos sociais e muito cedo classificou as reivindica-es sindicais e os programas nacionalistas como biombos de uma

  • ao subversiva, de carter comunista. Muito cedo tambm identifi-cou suas posies internas ao anti comunismo militante do governo americano, que ento se polarizava ao poder sovitico, na luta das potncias. O governo Dutra muito ce