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Lógica, ontologia e filosofia da linguagem Desidério Murcho Universidade Federal de Ouro Preto 1. Lógica no ensino médio 1.1. Três objetivos do ensino da lógica É razoável ensinar lógica, em filosofia, no ensino médio, com três objetivos em mente. Em primeiro lugar, contrariar a ideia falsa de muitos alunos de que em filosofia não há rigor, ou que esta disciplina não é comparável em seriedade escolar (entendida como sofisticação cognitiva) às outras disciplinas que ele já conhece. Pelo contrário, a filosofia, adequadamente entendida, é na verdade mais sofisticada cognitivamente do que disciplinas como a sociologia, a história ou a psicologia; até a biologia, se excluirmos a biologia molecu lar, é cognitivamente menos sofisticada do que a filosofia. 1 Um ensino da lógica, ainda que elementar, sobretudo no início do contato do estudante com a filosofia, poderá ajudar a con trariar as suas ideias erradas sobre a filosofia, que a identificam em grande parte com cultu ra geral, na melhor das hipóteses ou, na pior, com discursos de autoajuda ou de proselitismo político. Um segundo objetivo importante é ajudar o aluno a compreender aspetos cogniti vamente centrais da língua portuguesa. Os alunos que foram vítimas de mau ensino e que não têm em casa um ambiente cultural adequado, nem hábitos de leitura, enfrentam muitas vezes uma dificuldade estrutural que afeta o seu desempenho em todas, ou quase todas, as disciplinas escolares: a sua falta de familiaridade com a língua cognitivamente sofisticada. Ao contrário do que por vezes se pensa, a dificuldade fundamental não é o desconhecimento lexical, que na verdade facilmente se supera usando um simples dicionário. A dificuldade fundamental são os termos de ligação da língua portuguesa (como “e”, “mas”, “porém”, “con tudo”, “se”): o desconhecimento do significado e papel destes termos faz o aluno encarar um texto não como uma série estruturada e organizada de ideias, mas antes como uma mera lista de ideias quase sem articulação entre si. Ora, a organização estrutural é crucial para a nossa compreensão: vejase a diferença que faz, mesmo apenas na leitura e memorização superficial, escrever um número de telefone como 91204037 ou como 91204037. A mera divisão do número em dois grupos tornao não apenas mais fácil de memorizar, mas até de ler. Este exemplo é suficiente para se ver como um aluno culturalmente carenciado lê um 1 Nenhuma teoria das áreas mencionadas se compara em sofisticação cognitiva à teoria do conhecimento de Kant, por exemplo, à teoria das linguagens da arte de Nelson Goodman ou até ape nas à objeção de Plantinga ao argumento lógico do mal contra a existência de Deus.

Logica Ontologia e Linguagem - Texto Complementat

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Logica Ontologia e Linguagem - Texto Complementat

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  • Lgica, ontologia e filosofia da linguagem

    Desidrio Murcho Universidade Federal de Ouro Preto

    1. Lgica no ensino mdio

    1.1. Trs objetivos do ensino da lgica razovel ensinar lgica, em filosofia, no ensino mdio, com trs objetivos em mente. Em primeiro lugar, contrariar a ideia falsa de muitos alunos de que em filosofia no h rigor, ou que esta disciplina no comparvel em seriedade escolar (entendida como sofisticao cognitiva) s outras disciplinas que ele j conhece. Pelo contrrio, a filosofia, adequadamente entendida, na verdade mais sofisticada cognitivamente do que disciplinas como a sociologia, a histria ou a psicologia; at a biologia, se excluirmos a biologia molecu-lar, cognitivamente menos sofisticada do que a filosofia.1 Um ensino da lgica, ainda que elementar, sobretudo no incio do contato do estudante com a filosofia, poder ajudar a con-trariar as suas ideias erradas sobre a filosofia, que a identificam em grande parte com cultu-ra geral, na melhor das hipteses ou, na pior, com discursos de autoajuda ou de proselitismo poltico. Um segundo objetivo importante ajudar o aluno a compreender aspetos cogniti-vamente centrais da lngua portuguesa. Os alunos que foram vtimas de mau ensino e que no tm em casa um ambiente cultural adequado, nem hbitos de leitura, enfrentam muitas vezes uma dificuldade estrutural que afeta o seu desempenho em todas, ou quase todas, as disciplinas escolares: a sua falta de familiaridade com a lngua cognitivamente sofisticada. Ao contrrio do que por vezes se pensa, a dificuldade fundamental no o desconhecimento lexical, que na verdade facilmente se supera usando um simples dicionrio. A dificuldade fundamental so os termos de ligao da lngua portuguesa (como e, mas, porm, con-tudo, se): o desconhecimento do significado e papel destes termos faz o aluno encarar um texto no como uma srie estruturada e organizada de ideias, mas antes como uma mera lista de ideias quase sem articulao entre si. Ora, a organizao estrutural crucial para a nossa compreenso: veja-se a diferena que faz, mesmo apenas na leitura e memorizao superficial, escrever um nmero de telefone como 91204037 ou como 9120-4037. A mera diviso do nmero em dois grupos torna-o no apenas mais fcil de memorizar, mas at de ler. Este exemplo suficiente para se ver como um aluno culturalmente carenciado l um 1 Nenhuma teoria das reas mencionadas se compara em sofisticao cognitiva teoria do conhecimento de Kant, por exemplo, teoria das linguagens da arte de Nelson Goodman ou at ape-nas objeo de Plantinga ao argumento lgico do mal contra a existncia de Deus.

  • livro didtico, um romance de Machado de Assis ou um texto de filosofia: como uma mera lista de ideias ou acontecimentos, com escassa organizao estrutural. Quando lemos uma simples frase como Quando Ega viu o olhar de soslaio do Eusebiozinho, deu-se conta de que apesar de se tratar de um caso evidente de falta de lxico, tratava-se sobretudo de falta de articulao, a organizao dos seus diferentes elementos semnticos que nos permite compreend-la facilmente. Sem essa organizao temos apenas uma lista: Ega viu o olhar de soslaio do Eusebiozinho; Ega deu-se conta de se tratar de falta de lxico; Trata-se de falta de articulao. No s o aluno no compreende que o terceiro elemento tem uma relao de oposio par-cial com o segundo, como no v na frase completa qualquer unidade. Se agora multiplicar-mos as frases, que evidentemente tero tambm relaes entre si, compreendemos como se torna uma tarefa impossvel tentar compreender adequadamente um texto complexo. A lgica informal pode ajudar o aluno a dar-se conta da importncia da estruturao da lngua, ainda que no se estude neste caso todos os gneros de expresses de ligao da lngua portuguesa: mas estudamos algumas das mais relevantes cognitivamente porque es-to diretamente relacionadas com o raciocnio. O terceiro e ltimo objetivo do ensino da lgica est diretamente relacionado com o modo como se concebe o ensino da prpria filosofia. Se o objetivo do ensino da filosofia in-cluir a compreenso do pensamento dos filsofos e a competncia para pensar filosofica-mente, e no apenas a descrio superficial, jornalstica, das ideias dos filsofos, a lgica de-sempenha um papel crucial precisamente porque d aos alunos instrumentos crticos que lhe permitem discutir filosofia com rigor.2

    1.2. Lgica informal A lgica informal inclui dois tipos de contedos, o primeiro dos quais crucial sobretudo para o primeiro e o terceiro objetivo acima expostos. Por um lado, estuda-se nesta rea da lgica alguns dos conceitos centrais da lgica, nomeadamente os seguintes: argumento (raciocnio ou inferncia podemos entender es-tes termos como sinnimos, ainda que no o sejam, estritamente falando), premissa, conclu-so, validade dedutiva e no-dedutiva, forma lgica, argumento slido e cogente, falcia, en-timema, frase e proposio. Por outro, estuda-se nesta rea da lgica a cogncia de argumentos no-dedutivos, e aqueles aspectos da cogncia dos argumentos dedutivos que ultrapassam a validade formal. Entre os assuntos estudados nesta rea, os seguintes so importantes no ensino mdio: ar- 2 Sobre a concepo do ensino da filosofia aqui brevemente aludida, veja-se o Anexo I, Ensi-nar a Filosofar.

  • gumentos de autoridade, por analogia e indutivos; argumentos dedutivos informais; falcias formais e informais. 1.3. Lgica formal No que respeita lgica formal, h muitas por onde escolher,3 mas razovel ensinar ape-nas a lgica clssica elementar no ensino mdio: lgica proposicional e de predicados clssi-ca. Em termos das capacidades dos alunos, nenhum obstculo h ao ensino destas duas componentes da lgica clssica: afinal, aos 15-16 anos eles ou j estudaram ou esto estu-dando matrias cognitivamente mais exigentes em fsica e matemtica. Contudo, muitos professores desconhecem a lgica formal ou tm srias dificuldades com esta disciplina; nesse caso, razovel restringir o ensino da lgica clssica lgica proposicional. A lgica clssica, mesmo que lecionemos apenas o fragmento proposicional, tem uma conexo esclarecedora e importante com a lngua portuguesa, ao contrrio do que acontece com a silogstica de Aristteles. Neste ltimo caso, trata-se de uma lgica que, alm de muitssimo limitada porque lida apenas com quatro formas proposicionais e com quinze formas silogsticas vlidas, tem uma rigidez que a torna quase completamente intil como instrumento de discusso de argumentos (filosficos ou no-filosficos), uma vez que prati-camente ningum argumenta usando silogismos. Em contraste, os argumentos formalizados na lgica proposicional clssica so comuns. Alm disso, a lgica proposicional contribui para um melhor domnio da lngua portuguesa, ao ensinar os alunos a lidar com conjunes, disjunes, negaes, condicionais e bicondicionais. No que respeita aos sistemas de prova da lgica clssica, os alunos podem certamen-te com proveito aprender derivaes (nomeadamente, deduo natural), uma vez que a so-fisticao cognitiva que aqui se exige no superior ao que j lhes exigido em matemtica ou fsica. Contudo, uma vez mais, muitos professores no dominam as derivaes. Nestes casos, razovel ensinar a lgica proposicional ou de predicados apenas com recurso a r-vores lgicas. Caso mesmo as rvores lgicas sejam eliminadas do ensino, resta ento ensi-nar a usar sequncias de tabelas de verdade para determinar a validade ou invalidade das formas argumentativas; todavia, este mtodo aplica-se exclusivamente lgica proposicio-nal. A determinao da validade formal recorrendo a sequncias de tabelas de verdade (a que por vezes se chama inspetores de circunstncias) tem uma forte desvantagem, ape- 3 Alm da lgica clssica, a mais conhecida e aquela que quase exclusivamente estudada a nvel elementar, no apenas nas universidades mas tambm no ensino mdio, temos a lgica intuici-onista, as lgicas livres, a lgica difusa, as lgicas polivalentes e as lgicas paraconsistentes, entre outras. A lgica modal altica faz cada vez mais parte do ensino elementar da lgica clssica. As lgi-cas denticas e temporais primam tambm pela sua ausncia do ensino elementar. Para ter pelo me-nos alguma noo do que trata cada uma destas lgicas, aconselha-se a consulta do Dicionrio de Filo-sofia, de Thomas Mautner (Lisboa: Edies 70, 2010), ou de Enciclopdia de Termos Lgico-Filosficos, org. Joo Branquinho, Desidrio Murcho e Nelson Gonalves Gomes (So Paulo: Martins Fontes, 2006).

  • sar de ter uma vantagem importante tambm. A desvantagem fazer o aluno pensar erra-damente que a lgica formal consiste em fazer sequncias de tabelas de verdade, o que est longe de ser verdade: o mago da lgica formal so as derivaes, e quem no as domina no tem seno uma ideia algo vaga do que efetivamente a lgica (um pouco como uma pessoa que leu muito sobre natao, mas nunca nadou, no sabe realmente o que nadar). A vantagem pedaggica dos inspetores de circunstncias tornar visvel o conceito de vali-dade formal; mas como o ensino das derivaes no incompatvel com o ensino dos inspe-tores, mata-se dois coelhos com duas cajadadas caso se ensine inspetores e derivaes. 1.4. Roteiro de contedos Tendo as consideraes anteriores em mente, eis um roteiro de contedos adequados para o ensino mdio, sem esquecer que se tratar apenas de um mdulo com a durao de trs meses, inseridos num ensino da filosofia que decorre ao longo de trs anos, mas que muitas vezes, infelizmente, no inclui mais de uma hora semanal. Pelas razes indicadas acima, no incluiremos a lgica de predicados, nem rvores lgicas ou derivaes. 1. O conceito de argumento, premissas e concluso. Indicadores de premissa e concluso na lngua portuguesa. O conceito de entimema. 2. O conceito de frase e proposio. Ambiguidade e sinonmia. 3. O conceito de validade dedutiva. A diferena entre validade e verdade. 4. O conceito de forma lgica e de lgica formal. 5. Lgica proposicional clssica: os cinco operadores (negao, conjuno, disjuno, condicio-nal e bicondicional). Diferentes maneiras de exprimir os cinco operadores, na lngua portu-guesa. A definio verofuncional dos operadores. 6. Negao correta e incorreta de condicionais, disjunes e conjunes. 7. Formalizao de argumentos: a explicitao da forma lgica de argumentos expressos em lngua portuguesa. 8. Como usar inspetores de circunstncias (sequncias de tabelas de verdade) para determinar a validade ou invalidade formal de argumentos. 9. Formas dedutivas comuns: modus ponens, modus tollens, silogismo disjuntivo, silogismo hi-pottico. Falcias formais comuns: afirmao da consequente, negao da antecedente. 10. Falcias informais comuns: falso dilema, petio de princpio. Os conceitos de argumento s-lido e de argumento cogente. 11. Argumentos no-dedutivos: indues (generalizao e previso), argumentos por analogia e argumentos de autoridade. Alguns critrios informais de avaliao de argumentos no-dedutivos. Validade dedutiva em contraste com a validade no-dedutiva. O ensino destes contedos inclui duas componentes integradas. Por um lado, o aluno deve mostrar compreender os conceitos estudados. Por outro, deve saber usar os conhecimentos adquiridos para determinar a validade de argumentos e formas argumentativas. Assim, e ao contrrio do que acontece noutras disciplinas, o ensino da lgica (como o ensino da mate-mtica) inclui uma forte componente prtica, de saber-fazer, o que exige exerccios constan-

  • tes. No se aprende lgica estudando apenas os conceitos relevantes e falando sobre eles. preciso saber usar esses conceitos para fazer coisas com eles. 1.5. Recursos didticos Qualquer bom livro de introduo lgica formal ir incluir os contedos elementares de lgica proposicional clssica, nomeadamente os seguintes:

    Imaguire, G. & Barroso, C. A. C. 2006. Lgica: Os Jogos da Razo. Cear: Editora da UFC. Mortari, C. A. 2001. Introduo Lgica. So Paulo: UNESP. Newton-Smith, W. H. 1985. Lgica: Um Curso Introdutrio. Trad. Desidrio. Murcho. Lisboa: Gradiva, 1998. Pinto, P. R. M. 2001. Introduo Lgica Simblica. Belo Horizonte: Editora da UFMG. Nenhum destes livros foi concebido especificamente para ensinar lgica no ensino mdio, mas o professor diligente poder us-los para dominar os contedos, adaptando-os ento aos seus alunos. O livro seguinte foi especificamente concebido para professores do ensino mdio, e contm vrios esclarecimentos sobre a lgica, relevantes para este nvel de ensino: Murcho, D. 2003. O Lugar da Lgica na Filosofia. Lisboa: Pltano. Um livro muitssimo esclarecedor e estimulante sobre a lgica, mas que no ensina lgica formal, o seguinte: Priest, G. 2000. Lgica: Para Comear. Trad. Clia Teixeira. Lisboa: Temas e Debates, 2002. Finalmente, no que respeita lgica informal, os livros seguintes so muitssimo esclarece-dores, ainda que no tenham tambm sido concebidos para o ensino mdio: Epstein, R. L. e Carnielli, W. A. 2009. Pensamento Crtico: O Poder da Lgica e da Argumenta-

    o. So Paulo: Rideel. Weston, A. 1992. A Arte de Argumentar. Trad. D. Murcho. Lisboa: Gradiva, 1996. Uma proposta completa de contedos concebidos especificamente para estudantes do ensi-no mdio encontra-se nos livros didticos A Arte de Pensar (Lisboa: Didctica Editora, 2007, 2008) e 50 Lies de Filosofia (Lisboa: Didctica Editora, 2013, 2014). O primeiro est intei-ramente disponvel em PDF em http://dmurcho.com/publicacoes.html. Uma proposta de contedos da lgica a lecionar no ensino mdio encontra-se tam-bm no Anexos II, Introduo Lgica, e no Anexo III, Introduo Lgica Formal. H um vdeo da srie No Jardim da Filosofia, de Aires Almeida, no qual Ricardo San-tos fala da importncia da lgica no ensino mdio (http://youtu.be/EyhCt7AJ3Ds).

  • 2. Ontologia no ensino mdio

    2.1. Metafsica, ontologia e lgica A ontologia uma disciplina da metafsica, e mantm relaes importantes com a lgica. So estes dois aspectos que comearemos por esclarecer. A ontologia uma disciplina da metafsica no sentido em que se ocupa de uma rea particular de problemas metafsicos. Assim, para compreender a ontologia importante compreender primeiro o que a metafsica. Esta uma das disciplinas centrais da filosofia, e tem por objeto de estudo os problemas filosficos mais gerais sobre a natureza da reali-dade. As outras disciplinas filosficas tambm incluem problemas metafsicos (na filosofia da arte, por exemplo, pergunta-se o que uma pea musical), mas de menor generalidade: metafsica aplicada, poder-se-ia dizer. E claro que cincias como a fsica se ocupam de problemas muitssimo gerais sobre a natureza da realidade; contudo, no se ocupam de problemas filosficos sobre a natureza da realidade, pelo menos principalmente. Um pro-blema filosfico quando s pode ser adequadamente abordado usando metodologias filo-sficas, o que inclui a teorizao e argumentao a priori, a anlise conceitual e a especula-o logicamente disciplinada. Compreende-se melhor o que a metafsica se a contrastarmos com a teoria do co-nhecimento (a que se chama tambm epistemologia). Neste ltimo caso, trata-se de estu-dar vrios problemas filosficos gerais sobre o nosso conhecimento, ou as nossas ideias, acerca da realidade. Por exemplo, queremos saber exatamente o que o conhecimento (ser apenas crena4 verdadeira justificada, como se discute no Teeteto de Plato?), queremos saber que tipos de conhecimento h (alm do proposicional h tambm o saber-fazer, por exemplo, assim como o conhecimento por contato) e queremos saber, crucialmente, quando temos justificaes adequadas para ter uma crena. Todos estes problemas, e muitos outros, dizem respeito ao nosso conhecimento da realidade, ou s nossas crenas acerca dela. A me-tafsica, em contraste, no diz respeito ao que pensamos sobre a realidade, s nossas cren-as acerca dela, mas antes realidade. Assim, dado que a ontologia um ramo da metafsica, diz respeito realidade, e no ao nosso conhecimento dela. O que distingue a ontologia da metafsica a centralidade que o conceito de existncia tem na primeira. Efetivamente, em ontologia estudamos sobretudo dois problemas metafsicos inter-relacionados: O que existir? Quais so as categorias mais gerais do ser?

    4 O termo crena usado em filosofia no no sentido restrito de crena religiosa, mas no sentido amplo de qualquer representao verdadeira ou falsa que um agente cognitivo tem da reali-dade. Assim, uma pessoa tanto pode ter a crena de que Deus existe, ou de que no existe, como pode ter a crena de que Paris uma cidade bonita, ou de que a gua H2O.

  • O esclarecimento de alguns aspectos centrais do primeiro problema torna visvel a conexo da ontologia com a lgica, e desta com a filosofia da linguagem. Tome-se as afirmaes S-crates no alemo e Pgaso no existe. Uma maneira razovel de entender a primeira afirmao considerar que se trata de afirmar que Scrates no tem a propriedade de ser alemo. Contudo, se entendermos a segunda afirmao da mesma maneira, somos conduzi-dos a uma perplexidade: ao dizer que no segundo caso se trata de afirmar que Pgaso no tem a propriedade de existir, parece que nos contradizemos porque parece que temos de afirmar que Pgaso existe para podermos dizer que no tem a propriedade de existir. Evi-dentemente, algo est errado nesta maneira de pensar. O que queremos fazer excluir P-gaso da existncia sem afirmar uma contradio. Na lgica clssica, a diferena entre as duas afirmaes captada por dois dos seus elementos centrais: a teoria do nomes prprios e a teoria da quantificao. Comeando pelo ltimo caso, na lgica clssica a existncia no entendida como uma propriedade comum, como a brancura ou a nacionalidade; pelo contrrio, a existncia entendida como conta-gem categorial (ou conceitual). O que isto significa que dizer que algo existe, do ponto de vista da lgica clssica, muito diferente de dizer que algo branco ou alemo. Dizer que algo existe afirmar que uma dada categoria ou conceito tem instncias ou aplicao. As-sim, dizer que existem filsofos dizer que existe pelo menos uma coisa x qual o conceito, categoria ou propriedade ser filsofo se aplica: x Fx. Ou seja, a existncia apenas quantifi-cao ou contagem de coisas que tm uma dada propriedade ou s quais se aplica um dado conceito ou categoria. Esta maneira de ver a existncia, na lgica clssica, est intimamente relacionada com a ideia de Aristteles de que a unidade mnima de ser, digamos, um particular com uma propriedade. Ou seja, sempre que algo existe, um particular com uma propriedade, no havendo particulares isolados (subsistentes s por si e sem propriedades), nem propri-edades sem particulares. Na lgica clssica, dizer que algo existe sempre dizer que algo tem uma dada propriedade.5 Consequentemente, em lgica clssica entende-se a negao da existncia como a rejeio de que exista algo que tenha uma dada propriedade (x Fx), e no como a rejeio de que algo existe (Ea). O segundo elemento da lgica clssica que permite responder perplexidade levan-tada pela afirmao Pgaso no existe a teoria dos nomes prprios, segundo a qual te-mos de distinguir entre os nomes logicamente prprios e os nomes que s na gramtica de superfcie so nomes prprios. Os nomes logicamente prprios so nomes de existentes, pelo que se Pgaso no existe, Pgaso no ser um nome logicamente prprio. Neste caso, tratar-se- antes da abreviao de algo como o cavalo alado; deste modo, negar a existn-cia de Pgaso dizer apenas que no existe coisa alguma que tenha a propriedade de ser um 5 Isto acontece mesmo que afirmemos meramente x x = x, pois a identidade, apesar de ser uma propriedade relacional com caractersticas lgicas especiais, que justificam que se use um sm-bolo diferente, mesmo assim apenas uma propriedade relacional, como ser irmo (Fxy). Note-se, todavia, que alguns filsofos reservam o termo propriedade exclusivamente para propriedades no-relacionais, usando o termo relao para as propriedades relacionais.

  • cavalo alado, ou seja, a categoria ou conceito cavalo alado no tem aplicao: x Fx, no existe algo que tenha a propriedade F (ser um cavalo alado). Como se v, na lgica clssica h uma concepo subjacente de existncia, segundo a qual esta mera quantificao e no uma propriedade no sentido em que a brancura, por exemplo, uma propriedade. Alm disso, tambm visvel que a lgica tem uma conexo importante com a filosofia da linguagem, pois na teoria clssica entende-se que os nomes logicamente prprios nem sempre coincidem com os nomes prprios da linguagem corren-te. Evidentemente, do fato de na lgica clssica se entender a existncia como quantifi-cao no se segue que essa a melhor maneira de entender a existncia. Se usmos este exemplo foi apenas para tornar claro um dos aspectos do enigma ontolgico da existncia: a pergunta o que exatamente existir? torna-se mais facilmente compreensvel quando ve-mos a dificuldade levantada pelas afirmaes verdadeiras de inexistncia, o que por sua vez se torna mais facilmente compreensvel vendo a maneira como na lgica clssica se respon-de a essa dificuldade. Outra maneira de compreender o problema ontolgico da existncia ver que se por um lado parece evidente que nenhuma coisa poderia ser branca a menos que a proprie-dade da brancura tenha algum tipo de existncia, por outro parece igualmente evidente que a brancura no existe no mesmo sentido em que Scrates existiu. Scrates um particular, uma entidade localizada no espao e no tempo, e que tem propriedades mas no pode ser propriedade de coisa alguma. Mas a brancura, alm de ter propriedades (tem a propriedade de ser uma cor), ela mesma uma propriedade de vrios particulares; alm disso, a brancu-ra parece estar inteiramente presente em vrios lugares ao mesmo tempo, o que no acon-tece com os particulares. Da que alguns filsofos considerem que a brancura um univer-sal. Neste caso, contudo, parece que temos duas categorias centrais do ser: os particulares e os universais. Estabelecer uma categorizao exaustiva dos tipos mais gerais de seres uma das tarefas da ontologia: essa categorizao que se chama teoria das categorias. Uma teoria das categorias sistematiza as categorias mais gerais dos seres; seme-lhante categorizao cientfica que encontramos na tabela peridica dos elementos, dife-rindo apenas por ser muitssimo mais geral. No caso da tabela peridica, trata-se de diferen-tes de elementos qumicos que pertencem todos mesma categoria ontolgica: so particu-lares. Isto difere de uma teoria das categorias, na qual se distingue entre particulares e uni-versais, entidades concretas e entidades abstratas, substncias e acontecimentos, por exemplo. Assim, um filsofo pode defender que todas as entidades so particulares ou uni-versais. Por sua vez, os particulares so concretos (com localizao no espao e no tempo) ou abstratos (sem localizao no espao ou no tempo, como os nmeros ou Deus, se existe). Os universais, por sua vez, distinguem-se entre as propriedades e as relaes (propriedades relacionais). E os particulares concretos so ou substncias, como Scrates, ou aconteci-mentos, como a segunda guerra mundial.

  • Em suma, a ontologia ocupa-se de problemas filosficos relacionados com a existn-cia: queremos saber o que existir exatamente, e quais so os tipos mais gerais de entida-des. 2.2. Roteiro de contedos Apesar da grande exigncia cognitiva de grande parte dos problemas centrais da ontologia, que por isso no adequado lecionar no ensino mdio, h alguns temas que podem ser abordados de um modo criativo e estimulante. Neste roteiro sugere-se o estudo de trs pro-blemas da ontologia, que podem ser proveitosamente apresentados de maneira elementar: 1. Por que h algo em vez de nada? 2. O problema dos universais. 3. O problema da constituio. Apesar do problema da existncia de Deus ser ontolgico, no costuma ser estudado em on-tologia mas antes em filosofia da religio. Contudo, caso no se inclua um mdulo de filoso-fia da religio no ensino mdio, pelo menos os argumentos cosmolgico e ontolgico pode-ro ser estudados no mbito da ontologia, em conexo com o problema 1 acima. Isto porque o argumento cosmolgico pretende dar uma resposta satisfatria pergunta por que h algo em vez de nada?, mostrando que s Deus pode dar uma razo suficiente da existncia da srie de entidades contingentes que constitui a realidade. Por outro lado, o argumento ontolgico muitas vezes usado como um exemplo da resposta necessitarista pergunta de Leibniz: existe algo, nomeadamente Deus, porque a sua inexistncia contraditria. Quanto ao problema dos universais, o tema pode ser estudado nas suas verses mais simples, sem entrar nos detalhes mais sofisticados da filosofia contempornea. As trs teorias centrais que respondem ao problema dos universais so o platonismo, o aristotelis-mo e o nominalismo. razovel estudar no ensino mdio pelo menos estas trs posies. O problema da constituio formula-se de um modo bastante intuitivo: razovel pensar que quando estamos perante uma esttua de barro, estamos perante um objeto e no dois. Todavia, quando quebramos a esttua, esta deixa de existir, mas o barro de que era feita continua a existir. Se o barro j existia antes, como mais natural dizer, ento pare-ce que antes tnhamos dois objetos e no um; se quisermos persistir na ideia de que s t-nhamos um objeto, seremos obrigados a dizer que destruir a esttua ao mesmo tempo cri-ar o pedao de barro. Assim, parece mais razovel dizer que tnhamos dois objetos. Mas isto significa que temos sempre mais de um objeto perante ns, porque tudo o que temos peran-te ns constitudo por outros objetos: um cubo de gelo constitudo por molculas de gua, um automvel por vrias peas, etc.

  • 2.3. Recursos didticos O texto do prprio Leibniz6 , no que respeita ao problema por que h algo em vez de na-da, perfeitamente adequado no ensino mdio, pois bastante simples. E a resposta clssica de David Hume7 tambm adequada, pela mesma razo. Uma discusso didtica e estimulante do problema encontra-se em Enigmas da Exis-tncia, de Earl Conee e Ted Sider (Lisboa: Bizncio, 2010), captulo 5. Neste livro, uma das poucas obras de introduo metafsica em lngua portuguesa, encontramos tambm um captulo, adequado ao ensino mdio, sobre o problema dos universais (captulo 8) e outro sobre o problema da constituio (captulo 7). No livro Introduo Filosofia da Religio, de William L. Rowe (Lisboa: Verbo, 2011), o captulo 2 aborda o argumento cosmolgico, discutindo com pormenor, mas de maneira acessvel, o princpio da razo suficiente de Leibniz, e no captulo 3 encontramos uma introduo muito acessvel ao argumento ontolgico. Introdues a estes dois argu-mentos, assim como ao argumento do desgnio, especificamente concebidas para alunos do ensino mdio, encontramos tambm no Anexo IV deste curso. Para quem l ingls, o livro An Introduction to Ontology, de Nikk Effingham (Cam-bridge: Cambridge University Press, 2013), ainda que no esteja concebido para o ensino mdio, um recurso acessvel que permite ao professor preparar os seus prprios materiais para trabalhar com os estudantes. 3. Filosofia da linguagem no ensino mdio

    3.1. Nomes prprios Na tragdia Romeu e Julieta (1599), William Shakespeare (c. 1564-1616) escreveu: Que tem um nome? O que chamamos rosa Seria igualmente doce com qualquer outro nome; Assim, caso Romeu no se chamasse Romeu, Continuaria a ter a querida perfeio... A ideia aqui presente que os nomes das coisas so meramente convencionais, no tendo qualquer relao com a natureza das coisas designadas. Mas a pura convencionalidade dos nomes (incluindo aqui nomes prprios como Romeu e substantivos comuns como rosa) nem sempre foi pacfica em filosofia. 6 Trata-se do texto Sobre a Origem ltima das Coisas, de 1697, um excerto do qual se en-contra em Textos e Problemas de Filosofia, org. Desidrio Murcho e Aires Almeida (Lisboa: Pltano, 2006). 7 Resposta includa nos Dilogos sobre a Religio Natural. A resposta de Hume apresentada em termos modernos no breve artigo O Erro de Leibniz, de Desidrio Murcho (Crtica, 26 de Maio de 2009, http://criticanarede.com/errodeleibniz.html).

  • Na antiguidade grega discutia-se se os nomes eram puramente convencionais ou se, pelo contrrio, revelavam a natureza do que referem. No dilogo Crtilo, de Plato, o prota-gonista homnimo defende esta ltima posio, a que hoje chamamos naturalismo. Herm-genes, em contraste, defende a posio contrria, a que chamamos hoje convencionalismo. A discusso no era particularmente profcua, por duas razes. Primeiro, porque evidente que os nomes so convencionais se com isso queremos dizer que se chama gua gua mas poderia chamar-se outra coisa dado que noutras lnguas se chama realmente outra coisa, como water, em ingls, ou eau, em francs. O problema genuno no pode ser este, mas antes a questo de os nomes referirem descritivamente ou no. Mas que problema esse? Um nome refere descritivamente quando refere por meio de descries de atributos da coisa referida, referindo-a precisamente por ela ter esses atributos. Por exemplo, satli-te natural da Terra refere a Lua descritivamente, porque a refere em virtude de ela ter os atributos mencionados: um satlite natural da Terra. Mas o nome Lua no parece referir a Lua por meio de quaisquer atributos, pelo menos explicitamente presentes no nome. As-sim, o problema saber se os nomes referem descritivamente, ainda que de modo disfara-do, ou se referem de qualquer outro modo. Em segundo lugar, na antiguidade no se distinguia entre substantivos comuns, no-mes prprios e adjetivos, nem entre termos singulares e termos gerais. Considere-se o ter-mo singular Lua e o termo geral satlite natural da Terra. Ambos referem a mesma coisa, mas fazem-no de modo aparentemente diferente. No segundo caso, a referncia resulta de a coisa referida ter os atributos descritos: ser um satlite natural da Terra. Os termos gerais referem o que referem deste modo descritivo, abrangendo seja o que for que tenha os atri-butos descritos. Em contraste, termos singulares como os nomes prprios no parecem referir des-critivamente, nomeadamente porque em muitos casos no parecem descrever quaisquer atributos: que atributos so descritos por Herclito ou Lua? Sem dvida que usamos o termo geral lua com minscula para falar de qualquer satlite natural de qualquer planeta, mas, mesmo considerando que esse contedo descritivo est presente no termo singular Lua, isso no seria suficiente para referir apenas o satlite natural da Terra: refe-riria qualquer lua, incluindo as luas de Jpiter. Alm disso, um dia poderamos descobrir que a Lua era afinal uma nave extraterrestre muito sofisticada, e no uma lua; mesmo nesse caso, o termo singular Lua continuaria a referir essa nave, o que no aconteceria com o termo geral lua. Assim, no muito avisado discutir se os termos referem descritivamente ou no sem distinguir primeiro diferentes tipos de termos. Isto porque pode ocorrer que alguns termos refiram descritivamente (os termos gerais) e outros no (os termos singulares). Shakespeare fala indiferentemente do termo geral rosa e do termo singular Ro-meu, sem se dar conta das diferenas. No que respeita ao termo geral rosa, o aspecto convencional diz apenas respeito ao fato de qualquer outra palavra nomeadamente, de

  • outra lngua poder referir o mesmo que rosa. Mas o termo em si s refere as rosas por-que descreve o atributo relevante que todas as rosas tm: so rosas. Contudo, no que respei-ta ao termo singular Romeu, o aspecto convencional no diz apenas respeito ao fato de Romeu poder ter outros nomes. Alm disso, o seu nome no parece referi-lo por meio de qualquer descrio de atributos. Mas ento, como o refere? 3.2. John Stuart Mill No sc. XIX, John Stuart Mill defendeu que os nomes prprios so meras etiquetas, no refe-rindo por meio de descries: Os nomes prprios [...] denotam os indivduos que se chamam desse modo; mas no indicam ou implicam quaisquer atributos que pertenam a tais indivduos. Quando damos o nome Paulo a uma criana, ou a um co o nome Csar, estes nomes so apenas marcas que usamos para permitir que tais indivduos possam ser objeto do nosso discurso. (Sistema de Lgica, Livro I, Cap. ii, 5) Porm, h casos em que os nomes prprios parecem descrever atributos. Usando o exemplo de Mill, Dartmouth parece descrever algo que fica na foz (mouth, em ingls) do rio Dart. Talvez fosse devido a casos deste gnero que Crtilo argumentava que os nomes captavam a natureza das coisas, no sendo puramente convencionais. Mas Mill tem um argumento con-tra esta ideia: Pode-se dizer, efetivamente, que tivemos de ter uma razo para lhes dar aqueles nomes em vez de outros; e isto verdadeiro; mas o nome, uma vez atribudo, in-dependente da razo. [...] Uma cidade pode chamar-se Dartmouth por estar situa-da na foz do Dart. Mas no faz parte do significado do nome Dartmouth [...] que es-teja situada na foz do Dart. Caso a foz do rio fique assoreada, ou um terramoto mude o seu percurso, afastando-o da cidade, o nome da cidade no mudaria necessaria-mente. (Sistema de Lgica, Livro I, Cap. ii, 5) Mill defende que podemos dissociar as duas coisas: a razo que nos fez dar um certo nome a algo, e o que faz esse nome referir o que refere. O que faz o nome referir o que refere in-dependente das razes que eventualmente presidiram escolha desse nome. Essas razes podem, efetivamente, estar associadas ao que descrito pelas palavras que constituem o nome. Acontece apenas que no essa descrio a responsvel por esse nome referir o que refere. Afinal, o nome Organizao das Naes Unidas, por exemplo, refere perfeitamente bem uma instituio na qual as naes no esto de modo algum unidas. 3.3. Um planeta com dois nomes O planeta Vnus o primeiro corpo celeste brilhante, visvel a olho nu, a aparecer pela tar-de, ao pr-do-sol, e o ltimo a desaparecer de manh, pouco antes do Sol nascer. Hoje sa-bemos que o mesmo corpo celeste, mas no passado as pessoas no o sabiam. Ento, deram o nome Vspero ao corpo celeste que aparece tarde, e Fsforo ao que aparece de ma-nh dando, sem saber, dois nomes mesma coisa.

  • Se Mill tivesse razo e os nomes prprios fossem meras etiquetas, refletiu Frege, afirmar que Vspero Vspero e afirmar que Vspero Fsforo deveria ser igualmente in-formativo. Mas no igualmente informativo: a segunda afirmao uma importante des-coberta astronmica, mas a primeira no. Logo, Mill no tem razo. O problema, a que por vezes se chama quebra-cabeas de Frege, explicar como pode uma das afirmaes ser informativa e a outra no. Para o fazer, Frege deitou mo dos sentidos (Sinn, em alemo). A ideia que os nomes prprios afinal no so meras etiquetas: diferentes nomes tm diferentes significados, chamados sentidos, que so responsveis pela sua referncia mesmo que refiram a mesma coisa. Da que seja informativo afirmar que Vspero Fsforo, mas no que Vspero Vspero: apesar de estarmos nos dois casos a falar da mesma coisa, Vnus, estamos a falar dela de modos diferentes. Para desempenhar adequadamente o seu papel, contudo, os sentidos associados aos nomes no podem ser meras idiossincrasias pessoais caso fossem, o leitor no entende-ria o que estou dizendo ao falar de Vnus, pois eu poderia associar a este nome um sentido pessoal diferente do seu. E como, nesta teoria, o sentido determina a referncia, o leitor no saberia o que estou referindo se desconhecesse o meu sentido pessoal de Vnus. Assim, Frege volta a introduzir a ideia de que os termos singulares so como os ter-mos gerais: referem por meio de descries de atributos. Os sentidos dos termos singulares do-lhes os mesmos mecanismos de referncia dos termos gerais. O sentido de Vspero, por exemplo, seria algo como primeiro corpo celeste brilhante a surgir tarde, ao pr-do-sol. O sentido de Lua seria, talvez, satlite natural da Terra. E assim podemos explicar como consegue o leitor referir Herclito: porque o sentido do nome deste filsofo descreve atributos que s ele tinha. 3.4. Sentidos vagos Imagine-se que algum lhe diz casualmente que a Mimi j me. Como o leitor no sabe de quem se trata, pergunta Quem a Mimi? bvio que o leitor est a fazer uma pergunta acerca da Mimi apesar de no fazer a mais plida ideia de quem est falando. Alis, no sabe sequer se um nome de pessoa, cadela ou gata, entre outras possibilidades. difcil sustentar que quando o leitor usa o nome Mimi a referncia ocorre por meio de qualquer sentido. Que sentido esse, pblico ou no? Vejamos outro caso. Qual o sentido pblico que as pessoas comuns associam a Herclito? Um filsofo da antiguidade grega, talvez. Mas isto no suficiente para referir inequivocamente Herclito. Alis, mesmo pessoas com formao em filosofia tm dificulda-de em dizer quais so os atributos de Herclito que o distinguem de outros filsofos. O que est em causa que, na teoria de Frege, os nomes referem por meio dos seus sentidos. Mas estes sentidos, para poderem desempenhar esse papel, no podem ser ideias vagas. Quando o leitor ouve falar da Mimi tem a ideia vaga de que ser uma pessoa; mas isso no basta para referir a Mimi, segundo Frege. Quando falamos de Herclito temos ideias va-gas sobre quem era esse filsofo; mas isso no basta para referir Herclito, segundo Frege. A

  • teoria de Frege exige que cada nome tenha sentidos muitssimo precisos. Mas parece falso que os nomes tenham sentidos com tal preciso. Por isso, a teoria de Frege parece falsa. 3.5. Significado e referncia importante distinguir uma teoria do significado dos nomes prprios de uma teoria da sua referncia o que tanto mais delicado porque no se via a diferena entre as duas coisas, at muito recentemente. Uma teoria da referncia visa explicar como se d a referncia dos nomes prprios; procura explicar como se estabelece a ligao entre o nome prprio e a coisa que o nome refere. Uma teoria do significado, em contraste, visa esclarecer o significado dos nomes prprios. Assim, podemos defender, por exemplo, que o significado de Fsforo o ltimo corpo celeste visvel ao amanhecer. Para que isto seja um resultado correto de uma teoria do significado, a frase Fsforo o ltimo corpo celeste visvel ao amanhecer ter de ser uma verdade analtica, como Nenhum solteiro casado. Historicamente, no se distinguia muito bem as duas coisas porque Frege, como Russell, tinha uma s teoria para o significado e para a referncia dos nomes prprios. Frege defendia que os nomes referem por meio dos seus sentidos, constituindo estes o significado dos nomes. Temos assim uma teoria elegante que explica as duas coisas. Perguntamos o que significa Lua e a resposta satlite natural da Terra, por exemplo; perguntamos como o nome refere, e a resposta que refere por meio do seu sentido, que por sua vez descreve os atributos que s a Lua tem, e por isso se aplica apenas Lua. Em contraste, se rejeitarmos que os nomes tenham sentidos, porque superficialmen-te parecem meras etiquetas, precisamos de explicar adequadamente como podemos referir Herclito, mais de dois mil anos depois da sua morte. Da que, apesar das dificuldades b-vias da teoria de Frege, esta permanecesse indisputada at muito recentemente. Poderemos ns explicar a referncia dos nomes prprios, contudo, sem recorrer a algo como os senti-dos de Frege? 3.6. Intencionalidade coordenada Imagine que um dia de manh o leitor vai cozinha e encontra escrito no cho a palavra Mimi. Fica surpreendido e tenta descobrir quem escreveu tal coisa. Acaba por descobrir que a geladeira tem uma avaria e o fluido escuro que dela sai formou por puro acaso essa palavra no cho. Pergunta obtusa: quem a Mimi? A pergunta obtusa porque bvio que a palavra no refere coisa alguma. Rigoro-samente falando, no sequer uma palavra. apenas um conjunto de traos no cho, que o leitor interpretou como uma palavra. Mas no refere coisa alguma, porque a geladeira no tinha qualquer inteno comunicativa. O que isto significa que no h fenmenos lingusticos no h nomes, palavras, frases, perguntas, afirmaes sem inteno. Afinal, a parte fsica da linguagem sons,

  • inscries so em si objetos to alingusticos quanto as rvores e as pedras. O que confe-re significado a certos objetos fsicos so as nossas intenes. Contudo, h razes para pensar que a intencionalidade no basta. Na obra pstuma Investigaes Filosficas (1953), Ludwig Wittgenstein parece argumentar contra uma con-cepo da linguagem que a veja como um fenmeno privado. A sua ideia, aparentemente, que seria impossvel constituir as regras de funcionamento de uma linguagem privada por-que no haveria garantia de estarmos a seguir as regras adequadamente, sem nos enganar-mos. Por exemplo, uma pessoa sozinha decide chamar vercinal a um certo tipo de dor de cabea que tem por vezes. Mas, porque nunca o diz seja a quem for e porque ningum pode ver se ela se engana ou no, ela mesma no sabe se ao usar de novo o mesmo termo est a aplic-lo ao mesmo gnero de dor de cabea ou no. Isto significa que no conseguiu constituir uma linguagem, pois para haver linguagem tem de haver regularidade: se verci-nal refere um certo gnero de dor de cabea, no pode referir seja o que for, arbitrariamen-te, noutras circunstncias. Se aceitarmos a primeira ideia, segundo a qual necessrio haver intencionalidade para haver linguagem, e tambm a segunda ideia, segundo a qual no h linguagens logica-mente privadas, concluiremos talvez que uma linguagem um sistema de intenes coor-denadas. No basta que uma pessoa, privadamente, tenha a inteno de usar um certo som, ou uma certa inscrio, para falar da Mimi; preciso que outras pessoas tenham, coordena-damente, a inteno de usar um som ou inscrio do mesmo tipo para falar tambm da Mi-mi. S temos uma linguagem quando vrias pessoas com intenes comunicativas coorde-nam entre si os usos de certos sons ou inscries. 3.7. Cadeias causais Se este entendimento da linguagem estiver correto, o problema de como um dado nome re-fere o problema de como originalmente um certo som ou inscrio foi coordenadamente usado com a inteno de referir e como esse uso coordenado com essa inteno chegou at ns. No caso do nome Herclito, posso us-lo para falar de uma pessoa h muito desa-parecida, e que eu no reconheceria mesmo que a visse, porque aprendi este nome, com es-te uso, de outras pessoas e livros. E se formos ver onde essas pessoas e livros aprenderam este nome com esse uso, vemos que de outras pessoas e livros: uma sucesso que vai dar ao prprio Herclito, na altura em que na Grcia Antiga algum, presumivelmente os pais, lhe comeou a chamar o equivalente grego de Herclito. Quem sugeriu esta explicao da referncia dos nomes prprios foi o filsofo Saul Kripke, na srie de palestras de Princeton intituladas Nomear e Necessidade, que s em 1980 foram publicadas em livro. Quando explicamos a referncia deste modo, voltamos a no precisar de sentidos para explicar como poder o leitor referir Herclito, sem estar na sua presena. E podemos

  • aceitar que alguns nomes prprios so introduzidos ou estipulados descritivamente: por exemplo, podemos decidir chamar Otvio ao primeiro ser humano que descobrir extrater-restres inteligentes. Mas no s muitos nomes no so introduzidos desta maneira como, mesmo que o sejam, como neste exemplo, as pessoas que posteriormente usarem o nome Otvio podem desconhecer a descrio usada para estipular a referncia do nome e, ape-sar disso, referir corretamente o Otvio. 3.8. Recursos didticos Em lngua portuguesa, escasseiam os materiais didticos, adequados para o ensino mdio, que abordem a filosofia da linguagem. O caminho mais promissor consiste em produzir ma-teriais para o ensino mdio a partir de materiais didticos concebidos para alunos universi-trios. o caso do livro de William G. Lycan, Philosophy of Language: A Contemporary Intro-duction (Londres: Routledge, 2. ed., 2008), do qual disponibilizamos uma traduo portu-guesa parcial no Anexo V.