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O presente artigo descreve as dificuldades de participação popular em democracias representativas, em países socialmente desiguais. Neste contexto, aponta a necessidade de se pensar em veículos populares de comunicação, em especial as rádios comunitárias, para o fortalecimento do debate político na esfera pública, a promoção da educação política e da transparência democrática, como condições fundamentais para a consolidação de um regime verdadeiramente democrático, noqual o povo é soberano.
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Grupo de Trabalho: Políticas de comunicação
RÁDIOS COMUNITÁRIAS, PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA E SOBERANIA POPULAR
André Luís Lourenço1
Resumo: O presente artigo descreve as dificuldades de participação popular em democracias
representativas, em países socialmente desiguais. Neste contexto, aponta a necessidade de se pensar em
veículos populares de comunicação, em especial as rádios comunitárias, para o fortalecimento do
debate político na esfera pública, a promoção da educação política e da transparência democrática,
como condições fundamentais para a consolidação de um regime verdadeiramente democrático, no
qual o povo é soberano.
Palavras-chave: rádios comunitárias; transparência democrática; soberania popular.
A noção moderna de uma sociedade democrática, segundo Chauí (2000, p. 559), engloba, além
de eleições periódicas, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da
maioria e das minorias, algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, a instituição de
direitos para os cidadãos.
Tal como é praticada e entendida atualmente, a democracia moderna difere daquela democracia
ateniense – modelo que, por muitas vezes, serve de exemplo em discursos idealistas. A principal
diferenciação vem da forma como as decisões são tomadas pelo governante.
Para a autora (Ibid, p. 485-486),
Evidentemente, não devemos cair em anacronismos, supondo que gregos e romanos instituíram
uma sociedade e uma política cujos valores e princípios fossem idênticos aos nossos. Em primeiro
1 É jornalista. Mestrando em Comunicação Midiática, pertencente à linha de pesquisa “Gestão e Política da Comunicação, informação e Construção de Conhecimento”, pela Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação Unesp-Bauru. Cursou “Tópicos especiais de Filosofia Política”, como aluno especial, no IFCH-Unicamp.
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lugar, a economia era agrária e escravista, de sorte que uma parte da sociedade – os escravos –
estava excluída dos direitos políticos e da vida política. Em segundo lugar, a sociedade era
patriarcal e, conseqüentemente, as mulheres também estavam excluídas da cidadania e da vida
pública. A exclusão atingia também os estrangeiros e os miseráveis.
Neste contexto, a cidadania era exercida apenas por homens adultos livres nascidos no território
da polis, pertencentes a diferentes classes sociais. Porém, mesmo que os pobres tivessem direitos
políticos, alguns cargos públicos tinham como critério de escolha o poder econômico do cidadão.
Contudo, a decisão sobre a ‘coisa pública’ ficava a cargo dos próprios cidadãos – os que eram
reconhecidos como tal – em grandes assembléias e contendas populares. O regime político nesse molde
era possível devido ao fato de ser aplicado em pequenas cidades, e por não existir um Estado
centralizador do poder.
A participação popular na vida política da polis, então, era direta e ativa. Daí a definição de
‘democracia direta’. Para Sartori (1994b, p.37), “a democracia direta permite a participação contínua
do povo no exercício direto do poder, ao passo que a democracia indireta consiste, em grande parte,
num sistema de limitação e controle do poder”. Ou seja, a participação popular tornou-se indireta
através da transferência do poder de decisão.
Numa democracia indireta, embora sejam os representantes eleitos que tomam as decisões no
Executivo e no Legislativo nacionais, é por meio das eleições que o conceito de democracia chega mais
próximo de seu significado: governo do povo. Porém, o fato de serem democracias governadas não as
diminui enquanto democracias, pois o poder eleitoral ainda é efetivo.
Segundo Sartori (1994a, p.124), “as eleições verificam o consenso e descartam o consenso
presumido ou fraudulento”. Entretanto, o autor lembra que esse processo é descontínuo, isso porque
durante o mandato dos representantes, o poder de decisão do povo é suprimido. Assim, pode-se dizer
que os políticos eleitos são as vozes daqueles que neles confiaram seu poder de decisão.
Para que os agentes políticos cheguem aos cargos parlamentares, primeiro, é preciso ultrapassar a
disputa entre seus concorrentes no evento eleitoral, no qual apresentarão seus ideais e propostas, ou
seja, suas plataformas eleitorais.
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Essa disputa, em princípio, é uma corrida à formação de opinião em massa. Isso quer dizer que,
chegará ao poder, ou se manterá, aquele que mais cidadãos conseguir alinhar às suas premissas
políticas.
A opinião pública é livre, assim como o voto. Entretanto, é necessário que se entenda o conceito
de opinião pública sob dois aspectos: ‘opinião do público’ e ‘opinião pública’.
Para Sartori (1994a, p. 125), “na expressão opinião pública o termo ‘pública’ não indica apenas o
sujeito [da opinião], mas também a natureza e o domínio das opiniões em questão”. Já no segundo
sentido, a palavra ‘pública’ remete à defesa de que o cidadão está a par dos acontecimentos públicos –
no caso deste estudo os ocorridos no âmbito administrativo e legislativo federais – e, sendo assim,
possui uma opinião definida ou concreta – ou então, minimamente embasada.
O autor salienta que “em seu sentido primário, uma opinião é considerada pública não apenas por
ser difundida entre os públicos, como também por dizer respeito a ‘coisa pública’, à res publica. Em
síntese, a opinião pública é antes de tudo um conceito político”.
Segundo Sartori (1994a), a opinião pode ser definida, também, pelas interações entre a
população, de modo a promover o debate e o fluxo de informações. Isso, como já é lugar comum,
facilita e fortalece os argumentos e avaliações por parte da sociedade acerca de um determinado tema.
A opinião pública sofre influência de diversos fatores sociais e pessoais, como as necessidades e
aspirações, crenças, além do mais importante mecanismo de divulgação e debate político atual: a
imprensa. E esta última, como defende o autor, determinou a consolidação da opinião pública numa
democracia representativa, considerando que a tecnologia aproximou os acontecimentos políticos dos
eleitores.
De acordo com Sartori (1994a, p.126), “grupos especiais como a mídia, grupos de interesses
econômicos e grupos aglutinados em torno de idéias, expressam opiniões o tempo todo e, com certeza,
de maneira mais persuasiva que o eleitorado”.
Isso significa, considerando a credibilidade depositada na mídia, que os meios de comunicação de
massa exercem tal influência quanto os núcleos sociais em que o indivíduo está inserido.
Contudo, a opinião pública não é consolidada de cima para baixo, embora sofra grande influência
de agentes de interesses. Em sociedades democráticas, nas quais existe certo grau de liberdade de
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opinião e expressão, os indivíduos inseridos tendem a compor uma estrutura dialógica em torno dos
assuntos de interesse comum. Isso, segundo Habermas (1984), configura um espaço de discussão social
chamado de Esfera Pública. Espaço esse que pode combater a ingenuidade da sociedade em relação às
informações oriundas do Estado e dos grupos hegemônicos de comunicação através da troca de
informações interpessoais.
Habermas (1984, p. 42) define a Esfera Pública “(...) como a esfera de pessoas privadas reunidas
em um público (...) [que] reivindicam esta Esfera Pública regulamentada pela autoridade, mas
diretamente contra a própria autoridade”. Esse espaço se formou no contexto mercantilista (pré-
capitalista), como instrumento da burguesia – classe social caracterizada por ser a primeira que não
possui seu poder alicerçado no Estado – em contraposição aos mecanismos coercitivos estatais, em
governos absolutistas.
O autor (Ibid, pp. 152-153) aponta que a esfera pública surgiu historicamente no contexto de uma
sociedade separada do Estado:
(...) o ‘social’ podia constituir-se numa esfera própria à medida que a reprodução da vida assumia,
por um lado, formas privadas, mas por outro, como setor privado em seu conjunto, passou a ter
relevância pública. As leis do intercâmbio das pessoas privadas entre si tornaram-se agora uma
questão pública.
Com isso, ainda segundo o autor (Ibidem), “as pessoas privadas reunidas num público
transformaram publicamente em tema a sanção da sociedade como uma esfera privada”.
Vale lembrar, neste momento, que, segundo Chauí (2000, p.556), “no centro do discurso político
capitalista encontra-se a defesa da democracia”. Isso porque, no Estado democrático-capitalista, o
poder torna-se menos centralizado, separando definitivamente o público do privado – o que transfere
parte do poder de decisão à população, principalmente àquela parcela detentora de um maior poder
econômico e de influência social.
Dessa forma, pode-se concluir que os grupos mais vulneráveis socialmente teriam dificuldade em
participar da vida política nos âmbitos administrativo e legislativo federais por não possuírem
representação social e participação ativa no processo político e na esfera pública.
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A prática dialógica em torno da res publica, em tese, manteria o governo vigente sob constantes
pressões vindas das camadas mais abaixo socialmente.
A esfera pública democraticamente revolucionada, ‘que quer substituir a sociedade real pela
sociedade civil burguesa fictícia, aquela do poder legislativo’, torna-se daí fundamentalmente uma
esfera de deliberação e de decisão pública sobre a condução e administração de todos os
processos necessários à reprodução da sociedade. (HABERMAS, 1984, p. 153)
Mas é preciso levar em consideração que a consolidação da esfera pública latino-americana
possui particularidades. Como apontam Avritzer & Costa (2004, p. 718), diferentemente do contexto
europeu, as sociedades da América Latina seriam caracterizadas pela inexistência histórica do espaço
público de discussão. Para os autores, “são os meios de comunicação que ocupariam, desde os
primórdios da constituição de uma sociedade urbana na América Latina, o lugar das mediações sociais,
estabelecendo ‘uma nova diagramação de espaços e intercâmbios culturais’”. Assim, é preciso que se
reflita com mais cuidado a importância da educação para a leitura da mídia e sua relação com a
formação de um regime democrático.
Neste contexto, Habermas (1992) aponta que para estabelecer uma esfera pública autônoma os
seus participantes precisam dispor de algum grau de capacitação educacional e de estabilidade
financeira. A educação formal, por essa razão, também aparece como condição para o funcionamento
de um regime verdadeiramente democrático.
Para Sartori (1994a), uma participação política mais engajada e embasada quanto aos seus ideais
depende da quantidade de informação que o indivíduo possui, somado ao seu nível de instrução. O
autor aponta (Ibid, p. 150) que “a instrução em geral provavelmente não cria um aumento significativo
do público politicamente instruído (...) [podendo-se definir] ‘politicamente educado’ não apenas como
bem-informado, mas também como um estado de competência cognitiva”.
Neste contexto, Serra (1999, p. 07) pondera que “num mundo caracterizado pelo ‘excesso de
informação’, mais importante do que procurar e coleccionar informação é a tarefa de a reduzir, a tarefa
de seleccionar e interpretar a informação relevante – e, assim, transformá-la em conhecimento”.
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Esse processo de entendimento de mensagens deve ser feito por cada indivíduo no ato do
recebimento da informação. Contudo, é necessário levar em consideração que em países com
deficiências gravíssimas no sistema educacional público – como é o caso brasileiro –, aqueles que não
possuem certo grau de letramento podem estar sujeitos, mais que outros, a mensagens inflamadas de
ideologias e apropriarem-se de assertivas descontextualizadas de suas realidades. O que destaca a
relevância da sociedade civil organizada como mediadora no processo de divulgação de informação
política.
Assim, Hallin (1985, p. 143) salienta que a participação política nas sociedades capitalistas deve
ser estimulada por iniciativas independentes às instituições que dominam a esfera pública – como visto
acima, a mídia e o Estado. As organizações da sociedade civil podem constituir representatividade
social a despeito do controle centralizado dos canais de comunicação política.
Numa democracia representativa, então, é necessário que se legitime a definição ‘governo do
povo’ através do incentivo à conscientização da população para uma participação contínua nos debates.
Ou seja, por deixar uma lacuna entre eleições sem a participação direta da sociedade, para o bom
funcionamento do regime, é possível apontar que a compreensão da sociedade em relação ao tema
‘política’ tem de ser aguçada suficientemente para que seja entendido como assunto de relevância
pública contínua, sem ser reduzido a um evento sazonal de escolha de agentes políticos.
Dessa forma, chega-se, até este momento, à conclusão de que a educação formal, a educação para
a leitura da mídia e a educação para a política, através das instituições escolares e as interações
interpessoais na esfera pública, são condições fundamentais para o bom funcionamento da democracia
representativa.
Entretanto, isso não basta para que o regime salvaguarde o direito de decisão e opinião do
público. É necessário, então, que se pense na questão da transparência dos agentes políticos eleitos.
Como definido acima, a democracia moderna se caracteriza pela instituição de direitos aos
cidadãos. Neste contexto, citando Robespierre, Roberto Romano (2001, p. 74) destaca que toda a nação
tem o direito de conhecer a conduta de seus mandatários. Segundo ele, o ideal seria que a Assembléia
Legislativa fosse um grande espaço que abrigasse um bom número de membros da sociedade civil, de
modo a monitorar e prevenir a corrupção e intriga, afastando a vontade particular para a prevalência do
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interesse público. Contudo, no contexto de um país continental como o Brasil – com grande
diversidade étnica –, a impossibilidade de estarem representados em uma mesma Assembléia decisória
setores dos diferentes grupos culturais e classes da sociedade determina a criação de espaços
organizados de discussão. Espaços estes que, necessariamente, têm de ser independentes das forças
econômicas hegemônicas e do poder do Estado para serem legítimos.
De acordo com Serra (1999, p. 02), “desde o Iluminismo que elegemos a transparência como a
condição necessária (ainda que não suficiente) da democracia”. O autor aponta que a transparência, por
essa ótica, tem um sentido muito preciso:
(...) ela refere-se à “publicidade das decisões e actuações políticas” feita através dos media. A
transparência não envolve apenas um direito (passivo) – o “direito à informação” – mas também
um dever (activo): o dever de cada um dos Cidadãos exigir, a quem governa a coisa pública (seja
qual for o nível e o domínio em que esse governo se exerce), que explique as suas acções e
omissões. (SERRA, 1999, p. 02)
Para Romano (2001, p. 47), a transparência é uma noção dificílima no campo axiológico.
Em nosso tempo não podemos esquecer de um paradoxo: os países onde mais se luta em prol da
livre informação e ao livre acesso aos textos e documentos oficiais são terras onde se percebe um
acentuado segredo no trato das coisas públicas, seguido de intensa manipulação dos particulares,
por meio da mídia.
O autor (Ibid, p. 52) destaca que o Brasil sempre sofreu com a falta absoluta de transparência.
No Brasil, o poder nunca foi desvelado ao olhar público. Mas tivemos na prática política a máxima
penetração visual da sociedade pelos governantes. Da forma imposta por Vargas ao país, por meio
da polícia de F. Müller, até as ações do Cenimar, do SNI e de outros mecanismos de espionagem
e repressão social, como a existente Abin, que se ocupa hoje em seguir os passos de
procuradores da república e de governantes adversários do poder central, aprendemos a ser
observados pelos instrumentos ópticos dos governos. Na frágil democracia que vivenciamos, a
mentira ideológica, a propaganda dos líderes, expõe a pátria à falta de liberdade efetiva.
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É possível, assim, destacar que o segredo e a dissimulação são elementos presentes não apenas
em governos despóticos, como nas sociedades democráticas.
Francis Bacon descreve em seu texto “Da simulação e da dissimulação” que o governo precisa
usar das práticas do segredo, da dissimulação e da simulação como instrumentos para manter o controle
do aparato Estatal de modo a afastar os perigos de golpe por parte da sociedade. Essa visão, é claro, se
refere às práticas políticas do exercício do poder em governos centralizadores ou despóticos, pela ótica
do governante. Neste contexto, Bacon (1972, p. 52) aponta que a dissimulação “não é senão uma pálida
espécie de delicadeza e de sabedoria”.
Dessa forma, é definido o segredo como necessidade do Estado para manter a soberania, a
dissimulação como instrumento para detalhamento das características da sociedade e a simulação como
subterfúgio para o abrandamento de crises.
Bacon (1972, p. 56) completa sua exposição apontando que para o governo manter a soberania o
ideal, para o exercício prudente do poder, é o de “temperar para ter fama e reputação de franqueza; ter
por hábito a discrição [através da prática do segredo]; dissimular moderadamente; usar do talento de
simular quando não houver outro remédio”.
Esses três elementos constituintes de uma determinada práxis de governar servem à Razão de
Estado, enfatizam o interesse do governante e compõem um quadro detalhado do outro (governado)
como instrumento de coerção; ou seja, estabelecem condições para o governante arrecadar um máximo
de informações sobre seus governados, instituindo a dominação. Ou seja, neste modelo de governança
a participação popular é totalmente descartada, ou então mascarada, não efetiva.
Assim, Romano (2001, p. 48) afirma que “exigir que o espaço social seja visível, sem a recíproca,
a mais ampla visibilidade dos governantes, laicos ou religiosos, significa desarmar a cidadania, sem
que esta possa defender a sua força somática ou anímica”.
De acordo com Habermas (1984, p. 123), “o exercício do poder público, por estar ‘sujeito a uma
série de tentações’, necessita do controle permanente da opinião pública; a publicidade das negociações
parlamentares assegura uma ‘supervisão do público’”.
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O autor (Ibid, p. 124) aponta que “numa Assembléia escolhida pelo povo de tempos em tempos, a
publicidade dos fatos é absolutamente necessária para dar aos eleitores a possibilidade de procederem
com conhecimentos de causa”.
Essa é a razão de a sociedade precisar manter-se em constante vigilância acerca da rotina de
trabalho dos representantes políticos. Ou seja, para que a população institua uma real democracia, é
necessário que existam mecanismos eficazes e eficientes de informação que dificultem o exercício do
poder isolado do conhecimento profundo da sociedade governada.
Historicamente, os governos democráticos e tirânicos utilizam o mecanismo da publicidade
oficial como forma de doutrinação social e para abrandamento de crises. Isso significa que a mídia,
desde sua popularização, em especial com o rádio e anteriormente com os panfletos e jornais, é
encarada tanto como mecanismo de divulgação de informação e ideais políticos quanto instrumento
coercitivo de massa.
Neste contexto, é necessário que existam meios independentes de debate e divulgação de
informação – nos quais os próprios interessados sejam produtores de conhecimento –, voltados às
necessidades locais, a fim de que sejam discutidas as especificidades dos diferentes grupos envolvidos
no contexto brasileiro e que, de outra forma, não estariam representados ou ativos no debate político.
É verdade que a grande mídia, especialmente nos dias atuais, tem aproximado o eleitor da rotina
de seus representantes eleitos e dos acontecimentos políticos na esfera administrativa e legislativa
federais. Contudo, num sistema econômico bastante definido na busca pelo lucro, os meios de
comunicação podem servir a interesses privados – de instituições de caráter econômico e/ou político –
e distorcer a realidade, de modo a promover o serviço contrário.
Neste contexto, Strieder (2004, p. 09) destaca que “nos últimos tempos, diversos casos ocultos,
invisíveis e acobertados por autoridades foram trazidos à luz pela imprensa investigativa”. Porém, o
autor também salienta que “por outro lado, é necessário estar consciente de que grande parte de nossa
mídia trabalha como concessão oficial, sobrevive com a publicidade pública [propaganda do Estado],
tem como donos políticos ou empresários, que se pautam apenas por seus interesses corporativistas”.
Assim, Nunes (2004, p. 66) salienta que, “se a informação é poder, então a tarefa dos meios de
comunicação democráticos é respeitar o direito à informação do povo em que reside a soberania”.
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De acordo com Romano (2001, pp. 69-70), Denis Diderot desenvolveu a tese da soberania
popular, afirmando que não existe “verdadeiro soberano a não ser a nação; [e] não pode existir
legislador verdadeiro a não ser o povo”. “Diderot pensa que a soberania real, com transparência, só
pode ser conseguida se o povo for educado em massa para a vigília cívica, o controle dos governantes”.
Esse controle dos governantes tem de ser promovido de baixo para cima, ou seja, por grupos civis
organizados que mantenham a parcela da população, excluída do conhecimento dos acontecimentos
políticos ocorridos na esfera administrativa e legislativa nacionais, informada e participativa no debate
das questões públicas.
Hoje há iniciativas como a organização ‘Transparência Brasil’, que acompanha a rotina dos
representantes eleitos tanto em relação aos seus desempenhos na função política quanto aos seus
entraves judiciais. Organizações desse tipo, independentes e autônomas, são determinantes para a
vigilância da classe política no âmbito nacional.
Também o próprio governo federal tem colaborado, ainda que discretamente. Em 2004 foi
lançado um site na rede mundial de computadores que divulga as contas públicas, o ‘Portal
Transparência’; nele são publicados os balanços financeiros mensais e o destino de cargas
orçamentárias – tanto as utilizadas pela União quantos os repasses para as Unidades Federativas e
Municípios. Em tese, esse serviço diminuiria o segredo público e combateria a corrupção.
Porém essas iniciativas não são garantias de que as diferentes camadas sociais tenham acesso às
informações – ainda que prestem um serviço valioso – e nem que elas as compreendam em sua
importância e possam se mobilizar e cobrar mudanças significativas na gestão da carga orçamentária,
por exemplo.
Falta, neste sentido, um sistema efetivo de divulgação dessas informações que possa
constantemente levar ao conhecimento da população e as contextualizarem de acordo com as
especificidades de cada região ou grupo social.
É verdade que as associações de caráter civil e religioso, por exemplo, podem ser os agentes
divulgadores nesse processo de comunicação. Entretanto é preciso que essa exposição seja maximizada
e, por conseqüência, o debate seja amplificado. É aí que aumenta-se a importância das mídias
comunitárias, em especial as rádios comunitárias, como elo entre as informações disponíveis na grande
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mídia e nos canais de informação governamentais e a população, por um lado, e a aproximação entre as
reivindicações não presentes nos meios de comunicação convencionais e o poder público.
De acordo com Nunes (2004, p. 65-66),
Na sociedade atual, em que a tecnologia e a velocidade colocam-se em evidência nas dinâmicas
sociais, faz-se necessário pensar a comunicação que se pode realizar nos meios populares. Mais
do que as deficiências, até mesmo estruturais, em áreas como educação, saúde, moradia, trabalho
e lazer, com que as camadas populares são obrigadas a conviver cotidianamente, a exclusão na
produção social de informação e, logo, de comunicação destitui esses grupos do direito de
decisão, participação e exercício da cidadania.
Segundo a autora (Ibid, p. 61), as rádios comunitárias são “herdeiras das experiências das rádios
livres na Europa e das experiências do Movimento de Educação de Base (MEB) e das radiadoras
populares no Brasil, as rádios comunitárias mesclam-se aos movimentos sociais e comunitários”.
Para Nunes (2004, p. 61), “são comunitárias as rádios que asseguram a participação plural de
amplos segmentos sociais de todos os matizes que compõem uma comunidade, entendida como grupo
social, agregado por interesses”. Esses grupos participariam de maneira organizada e decidiriam
coletivamente em todos os processos administrativos e com relação ao conteúdo veiculado por tais
mecanismos de informação.
De acordo com Leal (2005, p. 06), “nesse sentido a história do movimento das rádios livres francesas nos mostra tentativas importantes de constituição de um lugar para uma interação social pelo viés da comunicação diferenciada daquela exposta pela mídia oficial”.
A experiência das rádios comunitárias, chamadas de associativas na França por possuírem um
caráter diferenciado com relação à legislação vigente, mostra que a democratização da informação, a
partir de veículos elaborados em todo o processo de produção pela própria população local, tem
contribuído para a autonomia da opinião pública em relação à propaganda oficial e às informações
difundidas pelos grupos hegemônicos de comunicação, além do fortalecimento da identidade do grupo.
Leal (2006, p. 14) coloca que “é importante também não perder de vista que o amplo movimento
de expansão das rádios comunitárias que assistimos hoje no Brasil é um fenômeno social significativo
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por apontar para um certo processo de descentralização dos meios de comunicação no país”. Segundo a
autora, “essas rádios se constituem, potencialmente, em porta-vozes das informações, opiniões,
necessidades e debates de cidadãos que podem contar com um veículo de atuação local para
interagirem com a sua realidade objetiva. Embora saibamos que tem havido um desvirtuamento da
finalidade original”.
Neste contexto, como aponta Nunes (2004) o exercício da cidadania é prejudicado pela utilização
comercial e política da maioria dos veículos de radiodifusão comunitários.
Peruzzo (1998, p. 13) reforça essa distorção de função da rádio comunitária.
No contexto da radiodifusão comunitária existem muitos limites e problemas. Em períodos pré-
eleitorais, por exemplo, é comum a tentativa de manipulação dos canais em função de interesses
de alguns candidatos a cargos eletivos no Poder Legislativo ou Executivo. Afinal é um bom meio
do candidato falar diretamente para seus eleitores. Contudo, quanto mais organizada a
comunidade, mais ela conseguirá assegurar sua autonomia. Por outro lado, muito se tem a crescer
em qualidade participativa na programação e na gestão de veículos de radiodifusão comunitária.
Mesmo porque somos um povo sem tradições participativas e culturalmente impregnado de viéses
de conformismo e tendência a transferir aos governantes a responsabilidade pela solução dos
problemas sociais.
Considerações finais
As rádios comunitárias, quando bem geridas podem ser caracterizadas como uma espécie de
propaganda oficial da população. Em tese, esses veículos populares de comunicação possibilitam o
rompimento com as práticas discursivas que impõem hegemonia de opiniões – resultado do monopólio
sobre os mecanismos de informação de massa exercido pelo governo e pelos grandes grupos
empresariais de comunicação. Seria, então, a possibilidade de indicar novas formas de construção da
agenda pública.
O fato de o cidadão ser o ator da comunicação pode ser determinante na conscientização tanto da
relevância do tema ‘política’ quanto da necessidade de participação ativa nos moldes da democracia
representativa.
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Vale lembrar que a educação política também é conseqüência do engajamento do público nas
questões políticas. Assim, um canal direto de comunicação popular pode fortalecer a interação social,
pivô das organizações populares de cobrança e vigília dos representantes eleitos.
Ou seja, com a expansão do número de rádios comunitárias – e mídias populares em geral –
contribuindo para a informação e educação da população, aumenta-se a possibilidade de os ‘segredos’
do Estado serem desvelados à sociedade.
Porém, o simples aumento no número de rádios comunitárias não garante que uma informação de
qualidade chegue à população e nem que a integração de grupos menos favorecidos no processo de
comunicação seja consolidada. Tampouco determina a criação de uma esfera pública autônoma.
É aí que a intervenção do Estado se torna fundamental, proporcionando uma estrutura de
funcionamento que garanta às comunidades a possibilidade de interagirem-se através de mídias
maximizadoras do debate acerca da ‘coisa pública’.
É preciso que se tenham mecanismos atuantes de fiscalização que mantenham os veículos
populares independentes de forças econômicas e políticas que possam deturpar seu caráter comunitário.
Ou seja, faz-se necessário repensar desde a manutenção financeira do veículo, que hoje não conta com
publicidade externa e nem verbas públicas, mas apenas apoios culturais, até compromissos mais
definidos em relação ao conteúdo veiculado – programação plural, educação, cultura regional, leitura
da mídia, política etc.
Assim, não se pode deixar de lado, também, o fato de a educação formal ser de grande
importância para a consolidação de uma opinião pública autêntica e independente. Esta seria, inclusive,
a condição sine qua non da constituição de uma participação consciente da população na vida política
nacional.
Entretanto, como salienta Romano (2001, p. 77), se “persistir inalterada a doutrina rousseuniana
de que o mais importante é a educação para os valores (como a virtude, a luta contra a corrupção
isolada da luta pela ciência)”, seria impossível estabelecer, no Brasil, um regime verdadeiramente
democrático.
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Além do crescimento de iniciativas populares de comunicação – independentes dos poderes
políticos e econômicos –, é necessário, segundo o autor (Ibidem) que se pense em um projeto de mídias
comunitárias que contemple a “educação científica e tecnológica à altura dos nossos dias”.
É imprescindível, também, que o governo, a grande mídia e as organizações civis aumentem as
iniciativas de controle da corrupção e combate ao segredo público – tais como o ‘Portal Transparência’
do governo federal, a prática do jornalismo investigativo na grande mídia e a organização
‘Transparência Brasil’, respectivamente.
Nessa perspectiva, as rádios comunitárias serviriam de divulgadores e debatedores dessas
informações para aqueles que não as têm acesso, como os iletrados, os que não dispõem de acesso à
rede mundial de computadores etc. Ou seja, o acesso às informações disponibilizadas seria dinamizado
e democratizado, uma vez que agentes sociais trariam tais informações para o debate na esfera pública
de modo contextualizado. Tal rede de comunicação independente das forças que dominam a esfera
pública potencializaria a transparência dos agentes políticos eleitos e suas realizações no âmbito
nacional. Dessa forma, uma reflexão importante é a da necessidade, ou não, de programas de
qualificação do comunicador popular.
Como afiança Romano, (2001, p. 77) “com a transparência da res publica, aponta-se para um
caminho a mais que pode trazer de volta o regime em que o povo é soberano”. Ou seja, com a
instrução da população de modo inversamente proporcional aos saberes integrados pelos governos,
parte-se para a possibilidade de armar a cidadania contra a ingenuidade e ignorância – é claro, desde
que o Estado proporcione uma estrutura básica de educação e comunicação popular..
Para concluir, à luz dos argumentos acima expostos, as mídias comunitárias seriam um
mecanismo de combate ao segredo governamental – base da Razão de Estado –, na medida em que
poderiam exercer contínua vigilância sobre os representantes e progressiva educação política para a
cidadania. Uma iniciativa popular contra a Razão de Estado em governos centralizadores.
Também seriam, esses veículos, incentivadores e catalisadores dos debates na esfera pública que,
por conseqüência, levaria à consolidação de uma opinião pública mais embasada. Com a compreensão
da população em relação à necessidade de participação no debate político sobre a ‘coisa pública’, os
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veículos populares se tornariam suportes de movimentos sociais de cobrança acerca da atuação dos
agentes políticos e a distribuição de cargas orçamentárias.
Uma rede comunicativa popular poderia combater a afasia política da sociedade e fazer com que
as comunidades menos favorecidas ganhassem corpo e representatividade na esfera pública e
participação efetiva na vida política, mesmo no contexto de uma democracia representativa.
Por essas razões, as rádios comunitárias (e mídias comunitárias em geral) se tornam elemento
fundamental no fortalecimento do Estado democrático brasileiro, como esperança de consolidação e
retorno à soberania popular.
Referências Bibliográficas
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