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Líquen escleroso hemorrágico extragenital Juliana Garcia Kako Rodriguez I , José Roberto Paes de Almeida II , Ney Romiti III , Sandra Lopes Mattos e Dinato IV Hospital Guilherme Álvaro (HGA), Boqueirão, Santos, São Paulo INTRODUÇÃO O líquen escleroso foi descrito em 1887 por Hallopeau com o nome de lichen plan atrophique. Em 1892 Darier des- creveu a histopatologia. Hallopeau e Darier consideraram o líquen escleroso como uma forma atípica de líquen plano. 1 A publicação de Unna em 1894, as de Westerberg (1901) e von Zumbusch (1906) permitiram definir o líquen escleroso como dermatose autônoma. 2 Desde então vasta sinonímia foi adotada, craurose vulvar, distrofia vulvar, balanite xeróti- ca obliterante, líquen escleroso e atrófico, white spot disease e esclerodermia em gotas. 3 Todos estes termos foram abando- nados e substituídos por líquen escleroso, usado tanto para as lesões genitais quanto as extragenitais. 4 RELATO DE CASO Paciente do sexo masculino, 60 anos, com queixa de lesão pru- riginosa no dorso há quatro meses, indurada e hemorrágica, com I Médica residente/especializanda em Dermatologia no Centro Universitário Lusíada (Unilus), Hospital Guilherme Álvaro. II Mestre em Dermatologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Professor assistente de Dermatologia no Departamento de Clínica Médica/ Dermatologia do Centro Universitário Lusíada (Unilus), Hospital Guilherme Álvaro. III Doutor em Dermatologia. Livre-docente em Dermatologia no Departamento de Clínica Médica/Dermatologia do Centro Universitário Lusíada (Unilus), Hospital Guilherme Álvaro. IV Doutora em Dermatologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora de Dermatologia no departamento de Clínica Médica/Dermatologia do Centro Universitário Lusíada (Unilus), Hospital Guilherme Álvaro. Editor responsável por esta seção: Hamilton Ometto Stolf. Professor assistente doutor da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp). Endereço para correspondência: Juliana Garcia Kako Rodriguez Rua Dr. Osvaldo Cruz, 179 — Boqueirão — Santos (SP) — CEP 11045-101 Tel. (13) 3202-1363 E-mail: [email protected] Fonte de fomento: nenhuma declarada — Conflito de interesse: nenhum declarado Entrada: 27 de maio de 2014 — Última modificação: 15 de outubro de 2014 — Aceite: 16 de outubro de 2014 RESUMO Contexto: Líquen escleroso é uma doença crônica que se apresenta clinicamente na forma genital e, mais raramente, extragenital. Acome- te preferencialmente as mulheres, e, em menor frequência, os homens. Sua etiologia permanece desconhecida; postula-se a associação com doenças autoimunes, predisposição genética, além de envolvimento de fatores hormonais e a importância do estresse oxidativo na gênese da doença. O tratamento de eleição é a corticoterapia tópica de alta potência com excelentes resultados, sendo utilizados ainda imunomoduladores, retinoides, progesterona e estrógeno, além de laser de CO 2 e fototerapia. Relato de caso: Descrevemos um caso raro e excêntrico de líquen escleroso hemorrágico de apresentação incomum. Conclusão: Acentuamos a importância do diagnóstico clínico e histológico de forma exuberante desta dermatose, resolvida com sucesso. PALAVRAS-CHAVE: Doença crônica, prurido, diagnóstico, líquen plano, líquen escleroso e atrófico DERMATOLOGIA Diagn Tratamento. 2015;20(1):14-6. 14

Líquen escleroso hemorrágico extragenital

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Líquen escleroso hemorrágico extragenital

Juliana Garcia Kako RodriguezI, José Roberto Paes de AlmeidaII, Ney RomitiIII, Sandra Lopes Mattos e DinatoIV

Hospital Guilherme Álvaro (HGA), Boqueirão, Santos, São Paulo

INTRODUÇÃO

O líquen escleroso foi descrito em 1887 por Hallopeau com o nome de lichen plan atrophique. Em 1892 Darier des-creveu a histopatologia. Hallopeau e Darier consideraram o líquen escleroso como uma forma atípica de líquen plano.1 A publicação de Unna em 1894, as de Westerberg (1901) e von Zumbusch (1906) permitiram definir o líquen escleroso como dermatose autônoma.2 Desde então vasta sinonímia

foi adotada, craurose vulvar, distrofia vulvar, balanite xeróti-ca obliterante, líquen escleroso e atrófico, white spot disease e esclerodermia em gotas.3 Todos estes termos foram abando-nados e substituídos por líquen escleroso, usado tanto para as lesões genitais quanto as extragenitais.4

RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 60 anos, com queixa de lesão pru-riginosa no dorso há quatro meses, indurada e hemorrágica, com

IMédica residente/especializanda em Dermatologia no Centro Universitário Lusíada (Unilus), Hospital Guilherme Álvaro.IIMestre em Dermatologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Professor assistente de Dermatologia no Departamento de Clínica Médica/Dermatologia do Centro Universitário Lusíada (Unilus), Hospital Guilherme Álvaro.IIIDoutor em Dermatologia. Livre-docente em Dermatologia no Departamento de Clínica Médica/Dermatologia do Centro Universitário Lusíada (Unilus), Hospital Guilherme Álvaro.IVDoutora em Dermatologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora de Dermatologia no departamento de Clínica Médica/Dermatologia do Centro Universitário Lusíada (Unilus), Hospital Guilherme Álvaro.

Editor responsável por esta seção: Hamilton Ometto Stolf. Professor assistente doutor da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp).

Endereço para correspondência:Juliana Garcia Kako Rodriguez Rua Dr. Osvaldo Cruz, 179 — Boqueirão — Santos (SP) — CEP 11045-101Tel. (13) 3202-1363E-mail: [email protected]

Fonte de fomento: nenhuma declarada — Conflito de interesse: nenhum declarado Entrada: 27 de maio de 2014 — Última modificação: 15 de outubro de 2014 — Aceite: 16 de outubro de 2014

RESUMO Contexto: Líquen escleroso é uma doença crônica que se apresenta clinicamente na forma genital e, mais raramente, extragenital. Acome-te preferencialmente as mulheres, e, em menor frequência, os homens. Sua etiologia permanece desconhecida; postula-se a associação com doenças autoimunes, predisposição genética, além de envolvimento de fatores hormonais e a importância do estresse oxidativo na gênese da doença. O tratamento de eleição é a corticoterapia tópica de alta potência com excelentes resultados, sendo utilizados ainda imunomoduladores, retinoides, progesterona e estrógeno, além de laser de CO2 e fototerapia. Relato de caso: Descrevemos um caso raro e excêntrico de líquen escleroso hemorrágico de apresentação incomum. Conclusão: Acentuamos a importância do diagnóstico clínico e histológico de forma exuberante desta dermatose, resolvida com sucesso.

PALAVRAS-CHAVE: Doença crônica, prurido, diagnóstico, líquen plano, líquen escleroso e atrófico

DERMATOLOGIA

Diagn Tratamento. 2015;20(1):14-6.14

aproximadamente 10 cm de diâmetro, no dimídeo esquerdo pa-ravertebral (Figura 1), relatou que a lesão se iniciou como placa esbranquiçada, endurecida, evoluindo com equimose. A biópsia evidenciou epiderme atrófica e retificada, derme com edema que se estendia da derme papilar a profunda e presença de hemácias (Figura 2). Em um maior aumento, pôde-se observar a grande quantidade de hemácias na derme ao redor do folículo piloso (Figura 3). Os exames complementares, hemograma completo, glicemia de jejum, hepatograma, lipidograma, hormônio esti-mulante da tireoide (TSH) e tetraiodotironina (T4) livre estavam inalterados. Confirmado o diagnóstico de líquen escleroso, foi instituída corticoterapia tópica com pomada de propionato de clobetasol (0,5 mg/g) em curativo oclusivo, a cada 24 horas. Após 30 dias, o paciente retornou com diminuição da equimose e tam-bém melhora acentuada do prurido (Figura 4).

Figura 4. Lesão atrófica pós-tratamento.

Figura 1. Lesão endurada e hemorrágica.

Figura 2. Fotomicrografia da lesão. Aumento 40 x, coloração por hematoxilina-eosina. Atrofia de epiderme com retificação, derme com edema e hemácias.

Figura 3. Fotomicrografia da lesão. Aumento 100 x, coloração por hematoxilina-eosina. Grande quantidade de hemácias ao redor do anexo piloso.

DISCUSSÃO

O líquen escleroso é uma dermatose inflamatória au-toimune, de evolução crônica, com predileção pela pele e mucosa da região genital em ambos os sexos.4 Existem duas formas de apresentação clínica: genital (83% a 98%) e extragenital (6%), com predomínio da forma genital, entre-tanto cerca 15% a 20% dos pacientes apresentam as duas manifestações. A doença preelege as mulheres, na propor-ção de 6 a 10 para cada homem.5 A etiologia permanece desconhecida, porém há evidências de predisposição gené-tica e associação com doenças autoimunes, como tireoide-opatias (12%), alopecia areata (9%), vitiligo (6%) e anemia perniciosa (2%). Sander e colaboradores atribuem ao es-tresse oxidativo importância na gênese do líquen escleroso.

Diagn Tratamento. 2015;20(1):14-6. 15

Juliana Garcia Kako Rodriguez | José Roberto Paes de Almeida | Ney Romiti | Sandra Lopes Mattos e Dinato

REFERÊNCIAS

1. Darier J. Compêndio de dermatologia. 5a ed. Barcelona-Buenos Aires: Salvat; 1946.

2. Rőcken M, Ghoreschi K. Morphea and lichen sclerosus. In: Bolognia JL, Jorizzo JL, Rapini RP, editors. Dermatology. 2nd ed. Spain: Mosby Elsevier; 2008. p. 1469-83.

3. Fistarol SK, Itin PH. Diagnosis and treatment of lichen sclerosus: an update. Am J Clin Dermatol. 2013;14(1):27-47.

4. Neill SM, Lewis FM, Tatnall FM, Cox NH; British Association of Dermatologists. British Association of Dermatologists’ guidelines for the management of lichen sclerosus 2010. Br J Dermatol. 2010;163(4):672-82.

5. Coelho WS, Diniz LM, Souza Filho JB. Líquen escleroso e atrófico: relato de dois casos de apresentação atípica [Lichen sclerosus et atrophicus: report of two cases with atypical presentations]. An Bras Dermatol. 2006;81(supl 3):S297-S300.

6. Sander CS, Ali I, Dean D, Thiele JJ, Wojnarowska F. Oxidative

stress is implicated in the pathogenesis of lichen sclerosus. Br J

Dermatol. 2004;151(3):627-35.

7. Powell J, Wojnarowska, F. Childhood vulval lichen sclerosus

and sexual abuse are not mutually exclusive diagnoses. BMJ.

2000;320(7230):311.

8. Viana FO, Cavaleiro LHS, Unger DAA, Miranda MFR, Brito

AC. Líquen escleroso e atrófico acral: relato de caso [Acral

lichen sclerosus et atrophicus: case report]. An Bras Dermatol.

2011;86(4 supl. 1):82-4.

9. López Bertrán JM, Renis FM, Stefanazzi MH, et al. Liquen

escleroso extragenital ampollar y hemorrágico: a propósito

de un caso [Extra-genital bullous and haemorrhagic lichen

sclerosus: a case report]. Rev Argent Dermatol. 2010;91(2).

Tabela 1. Estratégia de busca sistemática nas bases de dados até 2014, realizada em 31 de agosto de 2014

Base Critérios de busca ResultadoRelatos

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Definem estresse oxidativo como o desequilíbrio entre os fatores pró-oxidantes e antioxidantes. O início seria uma inflamação de qualquer etiologia a qual levaria ao estres-se oxidativo que seria responsável pelo início do processo autoimune com consequente esclerose e finalizando com eventual carcinogênese.6

Há relatos na literatura de casos de líquen escleroso com presença de Borrelia burgdoferi, no entanto, ainda sem evi-dências definitivas dessa associação. E o mesmo se aplica para influência hormonal.3

As lesões genitais e hemorrágicas e a presença na infância podem induzir ao diagnóstico errôneo de abuso sexual, en-tretanto o diagnóstico de líquen escleroso não exclui a possi-bilidade de abuso sexual.7

O relato exposto é uma forma rara da doença, extragenital e hemorrágica (Tabela 1). As formas extragenitais são ubiqui-tárias.8 As lesões acompanhadas de hemorragia decorrem da

interação entre a fragilidade tissular dermoepidérmica que constitui o substrato do líquen escleroso9 e o trauma conse-quente ao ato de coçar.

O tratamento de eleição é feito com corticoides de alta potência, sendo utilizados ainda imunomoduladores, retinoi-des, progesterona e estrógeno topicamente. Na literatura, há também o tratamento excisional da lesão, laser de CO2 e foto-terapia, incluindo narrowband UVB (UVB de banda estreita), psoraleno-UVA (PUVA) e UVA.4 A terapêutica instituída no caso relatado foi corticoide de alta potência, com melhora da lesão subjetiva e objetiva.

CONCLUSÕES

Realça-se a exuberância do quadro clínico e a importância da correlação com exame histológico para o sucesso terapêu-tico e diagnóstico nesta forma de dermatose rara e atípica.

Diagn Tratamento. 2015;20(1):14-6.16

Líquen escleroso hemorrágico extragenital