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PÓS-GRADUAÇÃO METODOLOGIA PARA O ENFRENTAMENTO A VI OLÊNCIA
CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES - EAD
LUANA DE SOUZA CARNIETTO
O CASTIGO CORPORAL NO CONTEXTO INTRAFAMILIAR: CONSI DERAÇÕES
HISTÓRICAS E SUA REPERCUSSÃO
CURITIBA
2010
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
LUANA DE SOUZA CARNIETTO
O CASTIGO CORPORAL NO CONTEXTO INFAMILIAR: CONSIDER AÇÕES
HISTÓRICAS E SUA REPERCUSSÃO
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Pós-Graduação em Metodologia para o Enfrentamento a Violência Contra Crianças e o Adolescentes, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito à obtenção do título de Especialista. Orientadora: Prof.ª Vera Lúcia Rodrigues
CURITIBA
2010
LUANA DE SOUZA CARNIETTO
O CASTIGO CORPORAL NO CONTEXTO INTRAFAMILIAR: CONSI DERAÇÕES
HISTÓRICAS E SUA REPERCUSSÃO
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Pós-Graduação em Metodologia para o Enfrentamento a Violência Contra Crianças Adolescentes, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito à obtenção do título de Especialista.
COMISSÃO EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof.ª Vera Lúcia Rodrigues Pontifícia Universidade Católica
_______________________________________________
Prof.º Pontifícia Universidade Católica
________________________________________________
Prof.º Pontifícia Universidade Católica
Curitiba,______de__________________de 2010.
O CASTIGO CORPORAL NO CONTEXTO INTRAFAMILIAR: CONIS DERAÇÕES
HISTÓRICAS E SUA REPERCUSSÃO
CORPORAL PUNISHMENT IN THE CONTEXT OF INTRAFAMILY: HISTORICAL
CONSIDERATIONS AND THEIR IMPACT
Luana de Souza Carnietto 1
RESUMO Trata-se de um estudo que aborda o castigo corporal praticado no ambiente intrafamiliar utilizado como recurso para a educação de crianças e adolescentes. Tal estudo tem o objetivo de apontar fatores históricos que contribuem para a aceitação do castigo corporal e sua pratica no ambiente familiar, enquanto recurso e sob a forma de álibi no processo de autodeterminação das famílias, tendo em contraposição o projeto de lei nº 7672/2010 que estabelece o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso dos castigos corporais ou de tratamento cruel e degradante. Palavras chave: castigo corporal, criança, adolescente, ambiente familiar, álibi. ABSTRACT This is a study that addresses the corporal punishment practiced in the family environment or used as a resource for the education of children and adolescents. This study aims to point out historical factors that contribute to the acceptance of corporal punishment and its practice in the family, and as a resource in the form of an alibi in the process of self-determination of families, having opposed the bill that No. 7672/2010 establishes the right of children and adolescents to be educated and care without the use of corporal punishment or cruel and degrading treatment.
Keywords: corporal punishment, child, adolescent,family, alibi.
1 Acadêmica do Curso de Pós Graduação de Metodologia para o Enfrentamento a Violência Contra Crianças e Adolescentes, da Pontifícia Universidade Católica.
3
1 INTRODUÇÃO
Reconhecendo a utilização do castigo corporal no âmbito familiar e a grande
polêmica levantada pelo projeto de lei destinado a coibir a prática de qualquer
castigo físico/corporal em crianças e adolescentes se optou por discorrer sobre essa
temática. Traçando considerações históricas acerca da relação família, educação e
filhos, culminando na utilização do castigo físico como recurso no ambiente
intrafamiliar.
O interesse pelo tema surgiu a partir de leituras e reflexões sobre a família e
suas relações internas, despertado também pela atuação profissional como
assistente social acompanhando e intervindo na realidade das famílias atendidas
pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de Londrina/PR e pelo
aporte teórico proporcionado pela especialização em curso.
Há o reconhecimento da utilização do castigo corporal dentro da dinâmica de
grande parte das famílias acompanhadas, utilizada como prática legítima e usual na
relação de poder exercida principalmente por pais e responsáveis. Tal
reconhecimento não se restringe a realidade local, visto movimentações em âmbito
mundial pela reforma legal2, que visa assegurar leis efetivas para a proteção de
crianças e adolescentes, incluindo a proibição dos castigos físicos e humilhantes.
No Brasil é grande a polêmica acerca do projeto de lei nº 7672 de 14 de julho
de 2010 que propõe a alteração do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) lei nº
8.069/90, estabelecendo o direito da criança e do adolescente de serem educados e
cuidados sem o uso do castigo corporal ou de tratamento cruel ou degradante. O
projeto define o que é o castigo corporal e tratamento cruel ou degradante,
determina sanções para quem utilizar essa prática e também aponta ações a serem
desenvolvidas pelos entes federados para publicização da lei e coibição dos
castigos dessa natureza.
A mídia falada e escrita tem divulgado com frequência matérias acerca do
projeto de lei titulado popularmente como a “Lei da Palmada”, dividindo opiniões e
abrindo o debate de qual a melhor forma de educar os filhos. Em pesquisa de 2A reforma legal é amplamente defendida e divulgada pela Rede Não Bata Eduque, que atua na erradicação dos castigos físicos e humilhantes juntamente com outros movimentos e organizações mundiais. Veja mais no site da instituição www.nãobataeduque.org.br.
4
opinião pública divulgada pelo Instituto Data Folha de 22 de julho de 20103, 54% dos
brasileiros se posicionaram contrários ao projeto de lei que proíbe os castigos
corporais.
Contudo, optou-se por abordar especificamente o castigo corporal no contexto
familiar, frente à diversidade de métodos e instrumentos utilizados pelos pais no
processo de educação e formação dos filhos. Considerando que a prática do castigo
corporal vem sendo relativizada em seu efeito, pois grande parcela da sociedade
entende esse recurso como necessário e eficaz no processo de educação, diferindo
da violência contra criança e adolescente limitando ao aspecto normativo. Cabe
ressaltar que nesse estudo não se pretende abordar a violência física doméstica,
mais a sanção física usada como instrumento de coerção, de imposição de valores,
justificada pela necessidade de regras para a vida familiar e social, que pode se
tornar uma face da violência doméstica.
O desenvolvimento de tal estudo culminará em um artigo científico que
pretende colaborar na construção de uma visão critica reflexiva acerca do tema,
contextualizando o recurso do castigo corporal no ambiente familiar apontando sua
aceitação social e seus desdobramentos.
2 CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS: A EDUCAÇÃO NA INFÂNCIA E SUA
TRAJETÓRIA
Historicamente há obstáculos concretos para se levantar a trajetória da
infância, devido à ausência de documentação, entretanto os autores Philippe Ariés e
Viviane Guerra apresentam em suas produções teóricas um panorama sobre a
situação.
Na Idade Média segundo ARIÉS (1981, p. 11), há um sentimento superficial
pela criança em seus primeiros anos de vida, a infância era reduzida ao período
mais frágil em que não era capaz de bastar-se sozinha. Após adquirir algum
3 Veja a pesquisa de opinião pública completa em www.datafolha.folha.uol.com.br.
5
desenvolvimento físico transformava-se em jovem, misturando-se com os adultos e
ingressando na comunidade dos homens participando dos trabalhos e jogos.
Nesse período a família não tinha função afetiva, tendo por missão a
conservação dos bens e a prática de um ofício. A socialização da criança não era
desempenhada pela família, ocorria através do processo coletivo no contato e na
vivência com a comunidade. “A criança aprendia as coisas que devia saber
ajudando os adultos a fazê-las” (Ibid., p. 10).
No final do século XVII, com o advento do capitalismo a burguesia emergente
desejava que seus filhos fossem educados e preparados para exercer as atividades
quando adultos e para enfrentar o poder da aristocracia. Esses fatores conduziram a
criação do sistema escolar e a visualização da infância como fase merecedora de
cuidado e atenção.
A criança deixa de aprender a vida por meio da comunidade, sendo
desempenhado o aprendizado pela escola. ARIÈS (1981, p. 277) mostra que a
família e a escola retiram a criança do convívio dos adultos. A escola confina a
infância num regime disciplinar rigoroso, que nos séculos XVIII e XIX resultou no
enclausuramento total do internato.
A atenção da família, da igreja, dos moralistas e dos administradores do
Estado arrebata a liberdade que a criança desfrutava entre os adultos, infligindo lhe
o chicote, a prisão, a palmatória, enfim correções que eram reservadas geralmente a
criminosos e anteriormente aos negros desobedientes.
No Brasil a ideia da aplicação de ameaças e castigos corporais nas crianças é
introduzida no período Colonial pelos padres da Companhia de Jesus. “O muito
mimo devia ser repudiado. Fazia mal ao filho (...). O amor do pai ou do educador
espelha-se naquele divino, no qual Deus ensinava que amar é castigar e dar
trabalhos nesta vida” (PRIORE apud GUERRA, 1998, p.77).
Apesar das famílias brasileiras se diferenciarem nos cuidados com os filhos,
visto que a burguesia os encaminhava para internatos e as famílias pobres os
envolviam com o trabalho, a convergência se dá na defesa do castigo corporal por
grande parte da sociedade. É o que aponta o trecho de uma comunicação
6
apresentada no 1º Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, escrita por Taciano
Basílio em 1922:
(...) Com essa orientação racional só havia vantagens em reprimir com firmeza as más inclinações, infligindo gradativamente os castigos em geral (...). Ligará então a ideia de bem ao que lhe é permitido e de mal ao que lhe é vedado ou na linguagem familiar será bonita se não desagradar os pais e feia caso contrário. A repressão das tendências naturais da criança deverá ser (...) tanto física, através dos castigos corporais, safanões, palmadas e bofetadas, quanto passar de modo sutil pelo gesto, pelo jogo de olhar, pelo tom da voz ou pelo silêncio pesado (RAGO apud GUERRA, 1998 p. 79).
A história retrata que desde o Brasil colonial até o período contemporâneo as
crianças vêm sendo disciplinadas por práticas que incluem castigos corporais, e este
disciplinamento tem se tornado sinônimo de educação, visando obediência as
imposições do adulto.
Para GUERRA (1998, p. 80) até mesmo do ponto de vista jurídico, o
disciplinamento através de castigos corporais tem sido “aceito” em nossa sociedade,
como retrata o Código Penal de 1830 que não previa sanções para os castigos ditos
excessivos, se houvesse morte da criança justificava-se como uso imoderado dos
pais aos filhos.
Segundo o nosso “atual” Código Penal de 1940 é passível de punição
somente os castigos imoderados, sendo, portanto, juridicamente lícito o uso da força
física praticada contra crianças e adolescentes com a intenção de discipliná-las,
passando a constituir crime somente se houver abusos de tais meios. O Código
Civil de 2003 em seu artigo 1.638 também dispõe acerca dos castigos imoderados,
sinalizando para possível perda do poder familiar caso castiguem
excessivamente/imoderadamente seus filhos, e permitindo a utilização do castigo
corporal no exercício direito/dever de educar.
SILVA (2002, p. 160) conceitua como castigo imoderado o castigo físico ou
corporal, que é infligido à pessoa, de maneira cruel ou incontida, tomando, assim,
não o caráter de um corretivo, que é da índole da punição, mas, de uma tortura (...)
do excesso ou do desmedido da ação punitiva.
Nem mesmo a tênue medida entre moderação e imoderação, nem a intensidade, as circunstâncias, os instrumentos, as idades, a frequência, entre outros referenciais necessários para a compreensão do conceito. Estes parâmetros são “indefinidos”, ficando apoiados nos princípios do Livre Convencimento da Discricionariedade, no juízo de valor do julgador para aplicar a sanção no caso concreto (MOTA, s.d, p. 2).
7
O ECA, embora não delimite o castigo corporal, propõe notificação obrigatória
desse tipo de violência, adotando medidas de intervenção junto a família agressora,
protegendo a vitima e estabelecendo a necessidade de prevenção do fenômeno.
Mas diante da legitima possibilidade de castigar corporalmente e da lacuna
existente nas leis brasileiras, surge o projeto de lei 7672/2010 com o objetivo de
acrescentar artigos ao ECA que garantam o direito da criança e do adolescente
serem educados e cuidados sem o uso de castigos corporais ou de tratamento cruel
e degradante.
3 A CRIANÇA E O ADOLESCENTE NO ÂMBITO FAMILIAR
A formação e a organização das famílias traz em seu bojo diversos aspectos
históricos, culturais, sociais e econômicos dos quais emergem modelos distintos de
instituição familiar. Nessa perspectiva, “não se pode falar de família, mas de
modelos de famílias estruturalmente distintos” (AZEVEDO, 1997, p.39).
PRADO (1981, p.7) no seu estudo sobre família, a identifica como tecido
fundamental de relações e que comporta um conjunto de papéis socialmente
definidos, que se organiza através dos usos e costumes da sociedade, procurando
assumir o papel que se espera de um pai, de uma mãe, dos filhos, enfim, de todos
os seus membros.
É nesse espaço familiar que se desenvolve a função socializadora, a
sociologia clássica atribui à família o papel de agente socializador, tendo como
função básica a formação dos seus membros e a socialização primária das crianças
para se tornarem parte da sociedade, normatizando regras sociais.
A integração da criança ao mundo adulto ocorre através da família, sendo
nesse contexto que se desenvolve hábitos, costumes e valores que reproduzirá na
idade adulta e transmitirá às novas gerações (ibid., 1981, p.13).
8
Com a modificação das relações que se estabelecem no interior da família
através da história, um dos aspectos questionados está ligado à posição das
crianças como propriedade dos pais.
SÊDA (1993, p. 30) retrata tal relação afirmando que a norma mais relevante
a respeito do relacionamento de pais e filhos encontra-se na Constituição Federal de
1988, art. 229: “Os pais tem o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e
os filhos maiores tem o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou
enfermidade”.
Este artigo dispõe sobre o exercício do pátrio poder e significa que é exigido
de todo pai e de toda mãe que cumpram com seu dever em relação aos filhos,
sendo dever social garantir que a criança sob sua responsabilidade seja assistida,
criada e educada.
Entretanto, o autor afirma que esse dever é um poder. Trata-se de um poder,
porque a lei faculta ao pai e a mãe escolher como conduzir esse processo, segundo
critérios, os valores e as condições econômicas dos mesmos.
O princípio básico é o que cabe aos pais se autodeterminarem4 quanto a esse
dever, sendo que:
a) assistir: é promover as condições materiais para a proteção dos filhos, dar segurança, alimentação, vestuário, higiene, convivência; b) criar: é promover as adequadas condições biológicas, psicológicas e sociais que garantem peculiar desenvolvimento que caracteriza a criança e o adolescente; c) educar: é desenvolver hábitos, usos, costumes, tais que integrem os filhos na cultura de sua comunidade, através de padrões éticos aptos para o exercício da cidadania (SÊDA, 1993, p. 30).
Os pais devem se autodeterminar no processo de assistência, criação e
educação dos filhos de acordo com as normas estatuárias. Se os direitos legais dos
pais se chocam com os direitos legais dos filhos, prevalece o que realiza a
cidadania, sendo este o limite da autodeterminação (ibid., p. 33).
Assim as funções atribuídas à família envolvem diferentes formas e grau de
importância e muitas vezes até não são cumpridas satisfatoriamente, pois os pais ou
4 Autodeterminação: é exercer escolhas e ser responsável pelos atos que pratica. É autonomia que significa escolher normas para si mesmo (SÊDA, 1993).
9
responsáveis às assumem de acordo com suas possibilidades, histórica pregressas,
experiências vividas, interferência do cotidiano e os modelos novos instituídos.
4 O RECURSO DO CASTIGO CORPORAL
Dentro do espaço de autodeterminação da família, ainda nos confrontamos
com a abertura legal que legitima certos posicionamentos na relação de pais e filhos,
como a prática do castigo corporal no âmbito familiar, sendo utilizados como álibi.
Sobre os álibis, GAY (1995, p. 43) afirma que em toda cultura, toda classe e
todo século, constroem seus próprios álibis para a prática da agressão, mas alerta
que cada um desses álibis tem sua própria história e que na maior parte são simples
réplicas e apenas uma pequena parte é verdadeiramente inovadora.
O autor afirma que o meio transmissor destes álibis e consequentemente
destas práticas, varia de acordo com a época, oportunidade e interesses particulares
podendo ser caracterizado como domínio religioso, regional, econômico, social ou
cultural (Ibid., 1995, p. 44). Qual deles irá prevalecer, depende da sua identificação e
aceitação pela sociedade.
Na atualidade podemos analisar os álibis no contexto intrafamiliar sendo
utilizado como justificativa para a prática violenta dos pais contra seus filhos
geralmente associados ao forte álibi do “bater” como prática pedagógica.
A violência, neste caso apresenta-se como um instrumento pelo qual os
“superiores” configurados na figura mãe, pai ou responsáveis, exerce seu direito de
correção e punição contra os “inferiores” criança e ou adolescente.
A compreensão da violência, que entende o bater como instrumento
educativo, segundo GUERRA & AZEVEDO (2001, p. 19) pode ser separado em
duas justificativas mais frequentes para a prática, como meio de:
a) discipliná-los: para controla-los, submetendo-os a uma ordem que
convenha com o funcionamento do grupo familiar ou da sociedade;
10
b) castigá-los: para puni-los por faltas reais ou supostamente cometidas;
O emprego da violência com este intuito configura-se no que se chama
“Pedagogia da Palmada”, justifica o bater como instrumentos de correção,
dificultando a identificação do que é excessivo, lembrando que “atrás de uma
palmada vêm 365 dias de palmada”, como afirma Azevedo.
Ainda sobre o castigo e a correção, podemos extrair algumas das reflexões
propostas por Nietzsche (1987), para ele o castigo não apresenta um único sentido,
mas afirma que foi atribuído a ele uma série de sentidos utilizados para
determinados fins criados pelos homens. “(...) a história do castigo até então, a
história de sua utilização para os mais diversos fins, cristaliza-se afinal em uma
espécie de unidade que dificilmente se pode dissociar” (Ibid., p. 84).
Para o autor os sentidos associados ao castigo são mutáveis a ponto de em
cada caso, mudar a sua valência, configurando-se em diferentes formas utilizadas
para: neutralizar novos danos, pagamento de danos, impedir uma perturbação etc.
Esta lista é certamente incompleta, evidentemente o castigo está carregado de toda
espécie de utilidades (Ibid., p. 86).
Nietzsche alerta que o castigo, que teria o valor de despertar no receptor o
sentido de culpa, não apenas torna-o frio, como também aguça o sentimento de
distância e alimenta a força de resistência. Além disso, o castigo faz deter o próprio
sentimento de culpa, acresce o medo, intensifica a prudência, faz controlar os
desejos. O castigo, alerta o autor, domina o homem, mas não o torna melhor (Ibid.,
p. 89).
Há de se deixar claro que, a violência não é legitimável, as justificativas dadas
para o seu emprego ao serem consideradas pela sociedade como justa e
apropriadas, tornam-se legítimas e transmitida de geração a geração, sociedade a
sociedade etc.
Desta forma, os álibis são aceitos pela sociedade e ocorre a sua legitimação.
Os álibis representam o meio pelo qual se reproduz a violência, pois a violência
representa o resultado de uma prática, sendo essa pratica embasada nos álibis que
podem ser falsos ou verdadeiros. Porém a violência gera mais violência, pois, assim
11
conforme GAY (1995, p. 46), a violência exercida com a justificativa de resolver
conflitos, gerava conflitos maiores e acabava por perpetuar conflitos.
A violência com isso pode se tornar um desdobramento da pratica do castigo
corporal. Na obra de GUERRA (1998) é apontada a dificuldade de se conceituar a
violência física contra crianças e adolescentes, pois o conceito passou por
transformações na última década, e a esse fenômeno já foi dado o nome de:
Síndrome da Criança Espancada, Síndrome do Maltrato, abuso físico, violência
física e maltrato físico.
É importante ressaltar que toda a ação que cause dor ou constrangimento a
uma criança ou adolescente é um ato de violência, desde as chamadas punições
leves como os tapas e beliscões, a punições disciplinares mais graves. Conforme
aborda o projeto de lei nº 7672/2010.
Existem grupos que defendem que a violência só existe no momento em que
se apresenta dano à vitima, outros alegam que quando o ato causa dor física e não
apenas dano, demonstrando dessa forma, como é importante abolir a punição
corporal enquanto forma de disciplinamento aplicado às crianças e aos adolescentes
tanto no lar quanto na escola. Essa forma de conscientização transforma-se numa
luta em muitos países, pois as crianças são consideradas como cidadãos de
segunda classe, nos quais o provérbio “não poupes o menino a correção: se tu o
castigares com a vara, ele não morrerá” (Provérbios, 23:13) é observado
atentamente.
As vitimas de violência doméstica são, geralmente, crianças e adolescentes.
Observa-se nas literaturas que pode existir um predomínio nas vítimas do sexo
feminino na adolescência, principalmente em virtude do receio dos pais quanto à
sexualidade feminina e também porque os meninos, às vezes, são mais fortes
fisicamente que o agressor podendo assim enfrentá-lo.
Estatísticas indicam que os agressores podem ser o pai ou a mãe, mas
entenda-se padrasto, madrasta, pais adotivos, ou responsáveis. Pesquisas
internacionais estão de acordo quanto ao fato de que a maioria dos agressores são
os pais biológicos (GUERRA, 1998, p. 45).
12
Na realidade vivemos numa sociedade na qual a prática punitiva ainda vigora
como maneira de educar o cinto e o chinelo são emblemas da pedagogia
(AZEVEDO 1997).
Os pais acreditam que dessa forma podem educar seus filhos,
desconhecendo muitas vezes, que a punição não evita que as crianças e
adolescentes repita os comportamentos considerados inadequados. Os mesmos
batem não só porque não conseguem impor limites, mas acreditando ser um método
legitimo. O senso comum sugere que toda vez que se pune uma pessoa por ter feito
algo errado ela aprenderá a não irá fazê-lo, por fim o bater torna-se algo comum no
processo de disciplinamento da criança.
Em seus estudos MULLER apud GUERRA (1998, p. 43) indica que a
disciplina por meio de castigos corporais é sempre enfatizada:
[...] os jornais estão constantemente nos dizendo que tem sido provado estatisticamente que a maioria das pessoas que perpetra a violência física contra seus filhos, foram elas mesmas vitimas desta violência em sua própria infância. Esta informação não é totalmente correta: não deveria ser a maioria, mas todas. Qualquer pessoa que perpetra a violência contra seu filho, foi ela mesma severamente traumatizada em sua infância de alguma forma. Esta afirmativa se aplica, sem exceção, uma vez que é absolutamente impossível que uma pessoa educada num ambiente de honestidade, de respeito e de afeto venha a atormentar um ser mais fraco de tal forma que lhe inflija um dano severamente. Ela aprende bem cedo que é correto e adequado dar às crianças proteção e orientação porque são pequenas e indefesas, sendo que este conhecimento armazenado em estágio precoce em sua mente e em seu corpo permanecerá efetivo para o resto da vida.
O hábito de bater leva a aceitação da violência como um dado natural e a
vitima de violência pode se tornar violenta na própria infância e quando adultas
estarão mais aptas à assimilação de condutas também violentas, criando assim um
ciclo vicioso.
Segundo renomados psicólogos infantis as ações e palavras dos pais têm
uma forte influência sobre os filhos. Aos pais cabe o papel de estabelecer a
moralidade e o comportamento dos filhos, ou seja, estabelecer limites. Estudos
comprovam que a maioria dos atos e atitudes das crianças surgem através da
imitação.
Nos anos da infância, que compreendem do nascimento aos 12 anos, a
criança é extremamente imatura e esse período é relevante para a formação do seu
13
caráter. Nesta fase é que são fortalecidas as faculdades físicas e mentais dos filhos,
nas quais se adquire todo aprendizado e se formam características necessárias para
enfrentar a vida.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir deste estudo sobre o castigo corporal, constata-se que ele está
intimamente interligado e representa justificativas para as práticas violentas.
A cultura aparece como um meio desencadeador da violência e através dela
são expressos os diferentes tipos de violência, aparecendo isolados ou
conjuntamente.
Destaca-se dentre os álibis transmitidos por meio da cultura, a produção da
violência é a aceitação do álibi do “bater” como pratica pedagógica, podendo até
interromper momentaneamente o comportamento impróprio, mas nunca superar o
conflito. Esta concepção de “bater”, como prática pedagógica, parece estar
arraigada na nossa cultura.
Os autores consultados concordam que as práticas “corretivas” utilizando o
castigo corporal, entre outras formas de violência, não resolvem os conflitos.
Segundo Nietzsche chega a intensificar a resistência, onde o castigo que seria
utilizado com o intuito de gerar sentimento de culpa acaba por interromper este
processo, gerando o ressentimento, raiva, sentimento de distância, entre outras
consequências, que levam a reprodução da violência.
A violência vivida pelas crianças e adolescentes não se encerra nas marcas
deixadas no corpo, no desprezo, nos conflitos entre pais, na falta de afeto, mas se
prolonga por gerações quando a violência é aprendida e praticada. Aqui há a
transformação dos violentados em violentadores.
14
Condições sociais também aparecem como um meio de expressão da
violência atingindo não apenas crianças e adolescentes, mas também suas famílias
através do desemprego, da fome, das doenças, e outras, tendo como seu principal
violentador o Poder Público, aparentemente mascarado sob a face da negligência
familiar.
A sociedade se constitui em um “juiz” que ao reprovar as justificativas para a
violência, transforma-se em um aliado na defesa dos direitos da criança e do
adolescente. Em contrapartida, ao aceitar como licita as justificativas para o
emprego do castigo corporal, legitima os álibis e, como consequência, permite que
cada vez mais crianças sofram a violência.
Ao aceitar como justa a aplicação do castigo corporal, estamos
proporcionando respaldo para que violentadores exerçam cada vez mais práticas
que colocam a criança e o adolescente em um estado de vulnerabilidade, marcada
pela negação, o “não acesso” ao afeto, à felicidade, à proteção, ao desenvolvimento
social e pessoal.
Ao darmos aos violentadores e à sociedade o poder para estes estarem
avaliando segundo o senso comum as práticas de castigos corporais, estamos na
realidade disseminando a ideia da autoafirmação “eu posso” e “eu faço” sobre
aqueles considerados “inferiores” crianças e adolescentes, dá a possibilidade da
correção por meio da violência e consequentemente da reprodução de tais práticas.
Em contraposição, se propõe a Lei nº 7672/2010 que estabelece o direito da criança
e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso do castigo corporal ou
de tratamento cruel ou degradante, visto que a não proibição deixa legitima essa
possibilidade e a mercê da autodeterminação da família a sua utilização.
Talvez este fosse o ponto central, reposta plausível sobre questionamentos a
respeito dos fatores desencadeadores da violência, a “aceitação”. Esta aceitação da
violência nos remete à ideia de que o homem não conhece ou não exercita outros
meios que não seja a violência para resolver seus conflitos.
Na atuação na área da criança/adolescente com enfoque em situações de
violência, é preciso abordar aspectos éticos, sobre formas de resolver conflitos e
principalmente mostrar outros caminhos que possam contribuir para o
15
desenvolvimento de sujeitos (criança e adolescentes, pais responsáveis, etc.) o
diálogo.
É preciso lembrar que há também formas de se prevenir à violência por meio
do afeto, respeito, cuidado, entre outras. São tipos de relacionamentos que
favorecem a defesa dos direitos da criança e do adolescente.
A preservação dos direitos, assim como a promoção de melhores condições
de vida, é de fundamental importância, considerando a população criança e
adolescente como preconiza o ECA, necessita de prevenção, como um dever de
todos, pois segundo artigo 70 “é dever de todos prevenir a concorrência de ameaça
ou a violação dos direitos da criança e do adolescente.
Nessa perspectiva entende-se que o processo de educação que busca uma
cidadania ativa não deve constituir de atitude violentas, castigos corporais e formas
de coerção, em consonância ao que propõe a Lei contra os castigos corporais.
Atitudes violentas, não proporcionam o desenvolvimento da cidadania, mas ao
contrário procuram embutir uma postura submissa diante das diversas situações da
vida em sociedade ou desenvolve no indivíduo a aceitação da violência como forma
“natural” e rápida de se obter o que se deseja.
O Estatuto passará a ser um instrumento efetivo de defesa e garantia dos
direitos a partir do momento em que o Estado proporcionar condições satisfatórias
para todas as famílias exercerem a proteção que lhe é incumbida e coibir práticas
que expõe crianças e adolescentes a autodeterminação de seus responsáveis,
entendendo que o dialogo é o melhor instrumento para educar os filhos e assim
alcançar o verdadeiro significado da cidadania.
16
REFERÊNCIAS
ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da Família . 2 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981. AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo (Org.). Infância e Violência Doméstica: fronteiras do conhecimento. São Paulo: Cortez 1997. __________, Mania de Bater: a punição corporal doméstica de criança e adolescentes no Brasil, São Paulo: Iglu, 2001. BRASIL, Constituição1988. Constituição da República Federativa do Brasil . Brasília: Câmara de Deputados, 2005. BRASIL. Estatuto da Criança e doa Adolescente . Brasília: Senado Federal, 2009. GAY, Peter. A experiência burguesa da Rainha Vitória e Freud: O cultivo do ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, v.3. GUERRA, Viviane Nogueira de A. Violência de Pais Contra Filhos: a tragédia revisitada. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1998. MOTA, Vera Lúcia Simões L. O castigo físico moderado e imoderado: considerações numa perspectiva multidisciplinar. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/coloquioenriquez/tcompletos/47/artigo.coloquio.Enriez.O%20castigo%20f%EDsico%20moderado%20e%20imoderado.pdf>. Acesso em 31 de julho de 2010. NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral: um escrito polêmico, São Paulo: Brasiliense,1987, p. 71-105. PRADO, Danda. O que é família . São Paulo: Brasiliense, 1981 (Coleção Primeiros Passos). SÊDA, Edson. Como construir o passado: ou como mudar hábitos, usos e costumes tendo como instrumento o Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros, 1993.
17
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico . 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
18
ANEXO - PROJETO DE LEI – Nº 7672/2010
Em 14 de julho de 2010 o Presidente Lula encaminhou um Projeto de Lei ao
Congresso Nacional
PROJETO DE LEI – Nº 7672/2010
Altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente, para estabelecer o direito da criança e do adolescente de
serem educados e cuidados sem o uso de castigos corporais ou de tratamento cruel
ou degradante.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1o A Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, passa a vigorar acrescida dos
seguintes artigos:
“Art. 17-A. A criança e o adolescente têm o direito de serem educados e cuidados
pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis ou por
qualquer pessoa encarregada de cuidar, tratar, educar ou vigiar, sem o uso de
castigo corporal ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção,
disciplina, educação, ou qualquer outro pretexto.
Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, considera-se:
I - castigo corporal: ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física
que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente.
II - tratamento cruel ou degradante: conduta que humilhe, ameace gravemente ou
ridicularize a criança ou o adolescente.
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Art. 17-B. Os pais, integrantes da família ampliada, responsáveis ou qualquer outra
pessoa encarregada de cuidar, tratar, educar ou vigiar crianças e adolescentes que
utilizarem castigo corporal ou tratamento cruel ou degradante como formas de
correção, disciplina, educação, ou a qualquer outro pretexto estarão sujeitos às
medidas previstas no art. 129, incisos I, III, IV, VI e VII, desta Lei, sem prejuízo de
outras sanções cabíveis.” (NR)
“Art. 70-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios atuarão de forma
articulada na elaboração de políticas públicas e execução de ações destinadas a
coibir o uso de castigos corporais e de tratamento cruel, tendo como principais
ações:
I - a promoção e a realização de campanhas educativas e a divulgação desta Lei e
dos instrumentos de proteção aos direitos humanos;
II - a inclusão nos currículos escolares, em todos os níveis de ensino, de conteúdos
relativos aos direitos humanos e prevenção de todas as formas de violência contra a
criança e o adolescente;
III - a integração com os órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, da
Defensoria Pública, do Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente nos Estados,
Distrito Federal e nos Municípios, Conselhos de Direitos da Criança e do
Adolescente, e entidades não governamentais;
IV - a formação continuada dos profissionais que atuem na promoção dos direitos de
crianças e adolescentes; e
V - o apoio e incentivo às práticas de resolução pacífica de conflitos que envolvam
violência contra criança e adolescente.” (NR)
Art. 2o O art. 130 da Lei no 8.069, de 1990, passa a vigorar acrescido do seguinte
parágrafo:
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“Parágrafo único. A medida cautelar prevista no caput poderá ser aplicada ainda no
caso de descumprimento reiterado das medidas impostas nos termos do art. 17-B.”
(NR)
Art. 3o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília,
PL-ALT L-8.069 ESTATUTO CRIANÇA ADOLESCENTE(L4)
Esta proposta é fruto de uma discussão da sociedade civil brasileira em parceria
com a Secretaria de Direitos Humanos, Ministério da Justiça e de Desenvolvimento
Social e Combate a Fome e deverá ser votado no Congresso Nacional.