Luciana Alvarenga

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  • 8/18/2019 Luciana Alvarenga

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    Imagem, memória e identidade: uma etnografia visual da Vila deItaúnas/ES

    Luciana Alvarenga 

    PPGAV – EBA – UFRJ

    Rogério Medeiros

    (Orientador da pesquisa) PPGAV – EBA – UFRJ

    O registro imagético e de narrativas nos espaços de sociabilidade da vila de Itaúnas,

    localizada no norte do estado do Espírito Santo, numa abordagem contextualizada através

    da prática da antropologia visual, do uso da fotograa e do video, aponta sob nova

    perspectiva a riqueza do processo etnográco de interação e construção com o outro

    através da imagem.

    Etnograa visual; Processo Metodológico; Vila de Itaúnas/ES.

    Registration imagery and narrative in social areas of the town of Itaúnas, located in the northern

    state of Espírito Santo, a contextualized approach through the practice of visual anthropology,

     photography and lm, points out new perspective on the richness of the ethnographic process of

    interaction and construction with the other through the image.

    Visual Ethnography, Methodology; village Itaúnas / ES.

    1. Introdução

    Saindo de Vitória, capital do estado do Espírito Santo, leva-se três horas e

    meia em direção ao extremo norte do estado. Praticamente na divisa com a Bahia,

    chegamos à região conhecida como Sapê do Norte.

    III semana de pesquisa em artes

    10 a 13 de novembro de 2009 art uerj

    arte, religião e tradições

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    Um dos lugarejos do Sapê do Norte é a vila de Itaúnas - distrito de Conceição

    da Barra -, que possui cerca de 2.400 habitantes (IBGE, 2009).

    Este artigo apresenta uma reexão sobre a etnograa (visual e descritiva)

    desenvolvida na vila de Itaúnas no período de um ano de pesquisa de campo de

    doutorado, tendo como foco a descrição e a análise do seu conjunto de cultura

    material e imaterial classicados pela própria comunidade como tradicionais:

    festas de cunho religioso, Ticumbi, Jongo, Alardo, Reis de Bois, além de processos

    produtivos artesanais - a pesca e o extrativismo, a produção de cestos, de barcos, as

    farinheiras, entre outros.

     A narrativa fotográca e descritiva do lugar, das pessoas, dos processos

    produtivos, bem como das festas, apresentou-se como norteadora para o

    entendimento da “construção social da tradição”, com o intuito de entender essas

    formas de construção como meios de diferenciação de um grupo de pessoas em

    relação a outros grupos.

    2. A fotograa na pesquisa de campo

    Muitos trabalhos antropológicos utilizam as imagens como fonte secundária,

    apenas como ilustração do texto verbal. Malinowski (1975) relatou que a deciência

    essencial de seu trabalho de campo foi o fato dele ter tratado a fotograa como se

    fosse uma atividade secundária, de agrupar ‘testemunhos’, ‘provas’, ‘evidências’, erro

    que ele cita ter cometido na redação de seus dados materiais sobre os jardins em

    Coral Gardens And Their Magic, publicado em 1966.

     A publicação de Balinese Character: A Photographic Analysis (1942), pela New

    York Academy of Sciences é considerada o marco inicial da antropologia visual, pois

    pela primeira vez, a fotograa é utilizada como instrumento de pesquisa e não apenas

    como apêndice demonstrativo.

    Balinese character explorou verbalmente e visualmente o modo como

    uma criança nascida em Bali se torna uma criança balinesa. O ethos de que fala

    Bateson e Mead, representa um sistema codicado presente nas condutas e nos

    comportamentos de pessoas que vivem numa determinada sociedade.

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    3. A etnograa visual e descritiva

    Na construção da etnograa visual e descritiva, utilizei o processo metodológico

    de Bateson e Mead (1942).

    Os equipamentos utilizados em campo foram: uma máquina fotográca Nikon

    FM 10 com uma objetiva 35-55mm, uma outra digital, Canon EOS, com objetivas

    50, 70-200 e 20mm. Os lmes utilizados são o TMAX e HP5. Além disso, já foram

    tomadas em campo certa de 10 horas de gravação em DVCAM.

     As imagens foram organizadas em pranchas fotográcas relacionadas a cada

    tema, sendo estas acompanhadas por comentários dispostos ao lado das fotograas

    em um único plano visual.

     As pranchas foram organizadas de três maneiras: uma consiste na exposição

    de sequências fotográcas, ou seja, fotos que tomadas em intervalos de tempo muito

    pequenos, segundos ou minutos; outra, que consiste no agrupamento de fotos de

    um mesmo propósito temático, independentemente dos momentos em que foram

    tomados; e, uma terceira diferenciada da proposta temática desses autores, onde

    a apresentação das pranchas se deu através da busca de um conceito estético da

    fotograa e do design da foto na página.

    Seguindo a metodologia de Bateson e Mead (1942), a descrição das imagens

    foi realizada no primeiro parágrafo e a citação dos nomes e as relações entre as

    principais pessoas fotografadas foram apresentadas no penúltimo parágrafo. No

    último parágrafo, encontra-se a citação da localidade e da data de realização da

    fotograa, bem como o número de registro da foto. Como mencionado acima, estas

    informações estão apresentadas no mesmo plano visual das pranchas fotográcas

    como leituras complementares.

    Na tomada inicial das fotograas, o “Guia Prático de Antropologia publicado

    pelo Royal Anthropological Institute” se apresentou como uma importante abordagem

    para a construção das narrativas, pelo fato desse guia apresentar uma série de

    mecanismos para o “estudo dos diferentes aspectos da cultura material de um povo”

    (ROYAL, 1971, p. 279).

    Os autores apontam que tal estudo:

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    [...] não é só pelo interesse intrínseco dos próprios artefatos, mas

    também como fonte de informações sobre os problemas de invenção

    e difusão. Ajuntando-se a isto a importância que têm as técnicas e os

    artefatos em relação com a totalidade da organização social e com aspráticas religiosas e cerimoniais. (ibid., p. 269).

     A proposta deste guia é uma descrição minuciosa que vai dos cuidados

    pessoais aos adornos, da arquitetura local ao cultivo de plantas, entre outros.

    Este guia se apresentou como um importante instrumento para a tomada inicial de

    imagens, onde alguns elementos foram acentuados, do olhar que segue relações

    processuais ao objeto em si:

    Por exemplo, um tecido acabado não consiste simplesmente no produto

    saído do tear; o processo completo começa com a apanha do algodão,

    a tosquia das ovelhas, ou qualquer outro processo destinado a obter a

    bra; continua com as várias fases de lavagem, da cardação, da ação,

    da tecedura e da tingidura. (ibid., p. 280-281).

    Esses apontamentos deram suporte ao trabalho de campo nas relações

    processuais presentes desde a obtenção de matéria prima até a produção nal do

    produto, como por exemplo: da peneira de uruba produzida, em que o processo se

    inicia com a coleta do cipó na mata, continua com as fases de manipulação deste

    recurso natural e se completa com o momento do uso - no cotidiano ou em momentos

    festivos.

    Neste momento inicial da pesquisa, deparei-me com o primeiro problema

    do uso da imagem na pesquisa: o próprio suporte imagético pode interferir nas

    representações daquilo que se pensa das ‘identidades’. Se apresentando como

    possibilidades de reformulação de identidades, de representações da autonomia,

    integração, ou da própria (des)integração, e sobretudo, de valorização, ora dos

    elementos de permanência, ora daqueles que representam mudanças.

     Assim, é importante chamar atenção para a questão que ao elegermos (o

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    pesquisador e sua interação com a comunidade) determinados aspectos dessa

    cultura, também estamos selecionando o discurso desta comunidade. São formas

    de expressão que podem e contam a história de um povo em determinado tempo e

    espaço.Baudrillard (2002) em seu livro “O Sistema dos Objetos”, faz observações

    importantes referentes à relação com a cultura do outro: a fascinação pelo objeto

    artesanal vem do fato deste ter passado pela mão de alguém cujo trabalho ainda

    se acha nele inscrito: é a fascinação por aquilo que foi criado (e que por isto é único,

     já que o momento da criação é irreversível). Dito isto, o fetichismo é o mesmo: todo

    objeto ou manifestação tradicional é belo simplesmente porque sobreviveu e devido a

    isso se torna o signo de uma via anterior.Werner (2002) em “Photographie et dynamiques identitaires dans lês sociétés

    africaines contemporaines, e, Jean Keim, em “La photographie et l’homme”, ressaltam

    a signicação atribuída pela produção imagética em relação às tradições, visto que

    essas re-leituras e apresentações podem e interferem no processo de identicação.

    Neste contexto, interagi junto aos sujeitos envolvidos na pesquisa, na

    construção das pranchas fotográcas no que Gervaiseau (1995) chama de

    antropologia compartilhada: “O acesso dos protagonistas à visão de sua imagem

    registrada, bem como o direito dos mesmos de opinarem sobre a realização

    das sequências”; e, a busca de um projeto aliado a um processo de inserção,

    sensibilização, interação e intervenção dentro das comunidades, através da produção

    documental “com os outros” e não “sobre os outros”. Para este m utilizando a

    metodologia trabalhada por documentaristas como Eduardo Coutinho, de tornar o

    entrevistado não “objeto” de um documentário e sim sujeito de um lme, aqui no meu

    caso especíco, sujeito de construções de narrativas (LINS, 2004).

    Tal metodologia contribuiu para um melhor esclarecimento do foco da pesquisa

    às pessoas envolvidas e permitiu direcionamentos, com sugestões e comentários

    sobre as fotos e sua organização na pesquisa, buscando neste sentido a

    compreensão do olhar da comunidade sobre si mesma através da construção dessas

    narrativas.

    No contexto de interações, levei em consideração as representações que as

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    pessoas tem de si e dos outros na produção e organização da visualidade do que é

    considerado como ‘tradição local’. Uma representação que está, obviamente, ligada

    à representação que se faz do outro e, como pretendo mostrar, dos vários outros

    que surgem em cena num determinado contexto. Há, na verdade, uma relação deinterdependência entre a imagem que se faz de si e a imagem que se faz destes

    vários outros (NOVAES, 1993).

    4. A interpretação

     A escolha da imagética, tanto icônica quanto textual, para situar e construir

    a hermenêutica partiu do princípio de que sempre haverá alguém interpretando

    a realidade. Uma coisa é um signo, porque é interpretado como um signo porum intérprete, ou seja, o signo só existe quando existem seres capazes de dar

    signicação às coisas.

     Assim, o que se interpreta é o uxo do discurso social e a interpretação

    envolvida consiste em tentar salvar o “dito” num tal discurso da sua possibilidade de

    extinguir-se e xá-lo em formas pesquisáveis. A vocação essencial hermenêutica não

    é responder às nossas questões mais profundas, mas colocar à nossa disposição as

    repostas que os outros deram – e assim incluí-las no registro de consultas sobre o

    que o homem falou. (GEERTZ, 1989).

    E, interpretar é um ato criativo, é uma ação ativa, não é, portanto, uma mera

    reprodução de signicado transmitido pelo outro. O pesquisador constrói o signicado

    a partir do que o outro diz. Signicados estes que o informante atribui.

    Neste sentido, temos acesso apenas à representação das experiências dos

    outros através da observação e das narrativas dos próprios sujeitos em determinados

    contextos e situações. Isto não signica que estas observações e relatos devam ser

    inviabilizados, mas sim relativizados através do contexto de observação e de quem

    está narrando - o conhecimento implícito do informante é, por exemplo, relativo à sua

    trajetória.

     Além disso, posso armar que ao produzir a etnograa visual e descritiva

    da vila de Itaúnas, estou tratando no que Sébastien Darbon (2005) denominou de

    fabricação de signicados: o uso de imagens se assenta sobre convenções relativas

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    às representações - representam somente algo que se assemelha às cenas no

    momento em que são fotografadas.

    Este é um ponto de análise estritamente interpretativo constituído na

    experiência da construção dos signicados no encontro com o outro. O que seprocura estabelecer, portanto, é uma base comum de compreensão e o que se

    cria nesse encontro, assim como coloca Clifford (1998), é uma espécie de lugar

    intermediário entre duas culturas (a do pesquisador e da cultura pesquisada).

    Referências Bibliogracas

    BARTHES, R. O óbvio e o obtuso – ensaios críticos III. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1990.

    BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a fotograa. 11ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1984.

    BATESON, G; MEAD, M. Balinese Character: A Photographic Analysis. New York: New York Academy

    of Sciences, 1942.

    BAUDRILLARD, J. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Ed. Perspectiva S.A, 2002.

    CLIFFORD, J. A experiência etnográca -Antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Ed.

    UFRJ,1998.

    DARBON, S. O etnólogo e suas imagens. In: Samain, E. (org). O Fotográco. São Paulo: Ed. Hucitec,

    2005.

    GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis, RJ: Vozes,

    1997.GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989.

    GERVAISEAU, H. Nanook, de R.Flaherty. In: Cadernos de Antropologia e Imagem. N.1 p. 91

    IBGE. Contagem da População de 2007. http://www.ibge.gov.br/home

    LINS, C. O Documentário de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 2004.

    MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacíco Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976.

    NOVAES, S. Jogo dos Espelhos: Imagens e Representações de Si através dos outros. São Paulo:

    EDUSP, 1993.

    ROYAL ANTHROPOLOGICAL INSTITUTE OF GREAT BRITAIN AND IRELAND. Guia prático de

    antropologia. São Paulo: Cultrix, 1971.

    SAMAIN, E. (org.). O fotógrafo. 2ªed. São Paulo: Editora Hucitec/Editora Senac São Paulo, 2005.

    WERNER, J-F. Photographie et dynamiques identitaires dans lês sociétés africaines

    contemporaines. In: Dossier – Archives et anthropologie. Paris, 2002.

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