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Luiz Carlos Coelho de Oliveira O selvagem coração da crítica Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras pela PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Orientadora: Profa. Helena Franco Martins Rio de Janeiro Julho de 2016

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Luiz Carlos Coelho de Oliveira

O selvagem coração da crítica

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras pela PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Orientadora: Profa. Helena Franco Martins

Rio de Janeiro

Julho de 2016

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Luiz Carlos Coelho de Oliveira

O selvagem coração da crítica

Defesa de tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade do Departamento de Letras do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profa. Helena Franco Martins Orientadora

Departamento de Letras – PUC-Rio

Profa. Marilia Rothier Cardoso Departamento de Letras - PUC-Rio

Profa. Danusa Depes Portas Departamento de Letras - PUC-Rio

Profa. Diana Irene Klinger UFF

Profa. Laura Rabelo Erber UNIRIO

Profa. Monah Winograd Coordenadora Setorial do Centro de Teologia

e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 15 de Julho de 2016.

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Todos os direitos autorais reservados. É proibida a reprodução

total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do

autor e do orientador.

Luiz Carlos Coelho de Oliveira

Licenciou-se em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro em 2008. Mestre em Letras também pela PUC-

Rio (2011). É doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em

Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PUC-Rio) com

período sanduíche de três meses na Universidad Nacional de

Rosario (UNR) – Argentina. Publicou em 2012 o volume de

poemas intitulado Agulhas descartáveis.

Ficha Catalográfica

CDD: 800

Oliveira, Luiz Carlos Coelho de O selvagem coração da crítica / Luiz Carlos Coelho

de Oliveira ; orientadora: Helena Franco Martins. – 2016. 189 f. : il. color. ; 30 cm Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro, Departamento de Letras, 2016. Inclui bibliografia 1. Letras – Teses. 2. Crítica. 3. Perspectivismo

ameríndio. 4. Antropologia especulativa. 5. Eduardo Viveiros de Castro. 6. Juan José Saer. I. Martins, Helena Franco. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.

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Para Vanessa e Helena,

porque sem elas estes vínculos teriam se partido.

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Agradecimentos

Aos meus pais, irmãs e sobrinhos.

À Vanessa.

À Helena.

Aos meus amados Snoopy, em memória, Zoé, Mingus, Alba, Mel, Pandora e

Rosa.

Aos professores Sandra Contreras e Álvaro Fernandez-Bravo, pelo apoio e pela

interlocução durante o período em que vivi na Argentina.

Aos meus amigos e interlocutores indispensáveis Alexandre Nicomedes, Raïssa

de Góes, André Capilé, Thiago Florêncio, Beatriz Bastos, Leandro Salgueirinho,

Carlos Moreno, Rebeca Liecchoki, Bruno Gomes, Rosana Guardalá, Valéria

Read, Maíra Fernandes de Melo, Debora Santos, João Polessa, Maria de Andrade,

Daniel Guimarães Bueno, Natalie Araújo Lima e Ana Salek. E aos outros amigos

que, por puro lapso, não são citados nominalmente.

À Marília Rothier Cardoso, por incontáveis vezes me conduzir pela mão. Ao

estimado Paulo Henriques Britto, por sua generosidade inesgotável. À Danusa

Depes Portas, pela amizade inestimável e por aceitar o meu convite para compôr

esta banca. À Laura Erber, pela generosidade na qualificação e por aceitar, mais

uma vez, ao meu convite. A todos os meus professores na PUC-Rio, pela

confiança depositada durante estes mais de dez anos.

Aos meus alunos.

Aos funcionários da PUC-Rio, em especial aos profissionais do nosso

Departamento de Letras.

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Aos funcionários da Facultad de Humanidades y Artes de Rosario.

Ao CNPq, à CAPES e à FAPERJ pelos auxílios concedidos, sem os quais este

trabalho não seria realizado.

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Resumo

Oliveira, Luiz Carlos Coelho de; Martins, Helena Franco. O selvagem

coração da crítica. Rio de Janeiro, 2016, 189 p. Tese de Doutorado,

Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Esta tese realiza uma aproximação interessada de trânsitos bilaterais entre

literatura e antropologia. O interesse se dirige aos efeitos desses trânsitos sobre a

práxis-poiesis da crítica literária: importa pensar como certas manifestações

contemporâneas de contágio entre literatura e antropologia incorporam e deslocam

o debate crítico atual. Tanto em círculos literários quanto antropológicos, é

recorrente a percepção de que a operação crítica se encontra hoje ameaçada e

encurralada pelo avanço de forças de entropização aparentemente inexoráveis, que

rarefazem as promessas de qualquer encontro mais arriscado com algo que se

presuma o outro – na arte, no mundo, na vida. Por outro lado, multiplicam-se

nesses dois campos, sobretudo nas vertentes mais impactadas pelo pensamento de

Deleuze e Guattari, agenciamentos voltados para a liberação e experimentação

arriscada de forças de alteridade. O pensamento aqui proposto se desdobra em três

escritos, ou variações no sentido musical: sem perfazerem uma linha ou cadeia,

pretendem formar uma série de leituras intensivas capazes de configurar regiões

perceptivas que, tomadas em si mesmas ou em reciprocidade, reenviem à questão

geral trabalhada — os estados críticos da crítica, —, tanto para compreendê-los

quanto para remobilizá-los. São três as variações principais que compõem o

estudo: na primeira, explora-se a noção de ficção como antropologia especulativa

de Juan José Saer, Na segunda, reflete-se sobre as repercussões da antropologia

filosófica de Eduardo Viveiros de Castro em âmbitos do debate teórico-crítico

atual. Na terceira e última variação, o empreendimento consiste em uma reação

crítica e experimental ao “Canto da Castanheira”, entoado em 1982 pelo xamã

Kãñïpaye-ro Araweté.

Palavras-chave

Crítica; perspectivismo ameríndio; antropologia especulativa; Eduardo

Viveiros de Castro; Juan José Saer.

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Abstract

Oliveira, Luiz Carlos Coelho de; Martins, Helena Franco (Advisor). The

wild heart of the criticism. Rio de Janeiro, 2016, 189 p. PhD Thesis -

Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This thesis conducts an approximation interested in bilateral transits

between literature and anthropology. The interest is to the effects of these

influences on the praxis-poiesis of literary criticism: it is important to think how

certain contemporary manifestations of contagion between literature and

anthropology incorporate and move the current critical debate. Both literary as

anthropological circles, the perception that the critical operation is now threatened

and trapped by the inexorable advance of entropization forces that seemingly

rarefy the promises of any meeting more risky with something that presuming the

other is recorrent – in the art, in the world, in life. On the other hand, in these two

fields multiply, especially in the areas most impacted by the thought of Deleuze

and Guattari, assemblages facing the release and risky experimentation otherness

forces. The thought here proposed unfolds in three writings, or variations in the

musical sense: no sum to a line or chain, intended to form a series of intensive

readings capable of configurate perceptual regions which taken in themselves or

reciprocity, reship the general question worked – the critical states of criticism –,

both to understand and to remobilizes them. There are three main variations that

compose the study: in the first, it explores the notion of fiction as speculative

anthropology. In the second, reflected on the impact of Eduardo Viveiros de

Castro’s philosophical anthropology in areas of current theoretical and critical

debate. In the third and last variation, the project is a critical and experimental

reaction at the “Song of Chestnut Tree” of Kãñïpaye-ro Araweté shaman intonated

in 1982.

Keywords

Criticism; amerindian perspectivism; speculative anthropology; Eduardo

Viveiros de Castro; Juan José Saer.

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Sumário

1. Variações preliminares 11

1.1 As perguntas 11

1.2. Iniciações 17

1.3. O selvagem coração da crítica 28

2. Da ficção como antropologia 35

Apresentação 35

2.1 A fórmula e a ensaística 44

2.2 A fórmula e O Enteado 57

2.3 A fórmula e a obliquação 79

3. Da antropologia como ficção 88

Apresentação 88

3.1 Como ler um antropólogo não sendo um 90

3.2 Se os índios têm razão 96

3.3 A arte como reserva ecológica da vida selvagem 109

4. O canto do Kãñïpaye-ro 121

Apresentação 121

Reagindo ao canto 133

5. Referências bibliográficas 157

Anexo 179

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Every need got an ego to feed.

Bob Marley. “Pimpers paradise”.

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Variações preliminares

1.1

As perguntas

Que consequências podem ser extraídas da condicional que segue: e se

aquilo que nós ocidentais chamamos de crítica literária (e, por contaminação, de

arte) fosse habitado por selvagerias que, além de habitantes, fossem interferentes?

Com que forças esse selvagem interferiria nas operações críticas expostas ao seu

devir, quando se tenta potencializar essa habitação interferente na experimentação

com os vínculos que hoje a literatura (a arte) e a antropologia estabelecem entre

si? São estas as perguntas que movem a pesquisa que apresento aqui.

Sobre a primeira pergunta, digo primeiro que desejei formulá-la de modo a

indiciar a heterogeneidade do campo a que remete: nós ocidentais chamamos de

crítica literária muitas práticas e saberes diferentes. Gostaria, além disso, de

reconhecer e tornar audível uma espécie de sobre-pergunta silenciosa que se

insinua no uso aparentemente tranquilo da primeira pessoa do plural: quando se

disser aqui “nós ocidentais”, será importante escutar sempre também, como parte

imprescindível do pensamento que se quer desenvolver: “nós quem?”. Em outras

palavras, é desejável não perder de vista que o Ocidente é ele mesmo em algum

sentido uma interrogação; não é, como observa Jean-Luc Nancy, “simplesmente

algo que começa na Grécia no século VII antes de Cristo" (Nancy, 2003, p. 8-9).1

De maneira análoga, é preciso, finalmente, reconhecer e sublinhar ainda nessa

primeira pergunta o estatuto incerto da palavra “selvageria” — o fato de que ela se

diz hoje num mundo que parece ameaçar de extinção qualquer selva possível.

Sobre a segunda pergunta, cabe justificar o meu interesse pelas

manifestações contemporâneas de trânsito bilateral entre antropologia e literatura.

Nestes tempos em que forças entrópicas de aparência inexorável ameaçam a

sobrevivência de qualquer selvageria — o que se pode compreender, é claro,

1 São minhas todas as traduções sem outra indicação.

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como efeito do avanço imperial e devastador de uma forma particular de

selvageria que atende pelo nome de “civilização moderna” —, observa-se tanto na

esfera antropológica quanto na literária uma atenção sem precedentes à relação

entre arte e pensamento selvagem.

Em tempos marcados também por uma atmosfera de falência generalizada

e catástrofe iminente, o interesse pelo pensamento selvagem não se dissocia de

uma demanda urgente de alteridade, da necessidade, para muitos premente, de

outras formas de vida. Nos agenciamentos que configuram e marcas que traçam

hoje, antropologia e literatura vão uma em direção à outra atravessadas em parte

por essa demanda, por esse senso de urgência. O que desejo é fazer proliferar os

efeitos desses trânsitos em alguns nichos do debate teórico-crítico vinculados ao

exercício estético, sobretudo aqueles que se dedicam a exercícios críticos

dedicados ao literário e à reflexão sobre esses exercícios.

Ao afirmar que a demanda da alteridade atravessa esses dois “territórios”

de reflexão e experimentação sensível, refiro-me a uma zona tangencial

frequentada nos trânsitos bilaterais e debates críticos de interesse. Mas que não se

reduza essa zona de tangência (propensa a contínuas desterritorializações e

reterritorializações) a uma mera “zona proximal” ou “espaço de convergências”,

pois, nas dobras que ela delineia e sobressalta, os interlocutores, como a lebre e a

tartaruga do paradoxo, se relacionam segundo infinitas distâncias.

Um dos pontos nevrálgicos do modo como a temática da alteridade tem

sido enfrentada e colocada nesses dois campos, com efeitos sobre o debate

estético-crítico, é a recorrência com que a arte — já concebida por Lévi-Strauss

(2011, p. 257) como uma espécie de “parque nacional” do pensamento selvagem

no mundo dito civilizado — é pensada como espaço de experimentação e

reinvidicação da alteridade. Essa demanda a que a arte dá carne responde a uma

situação, também sem precedentes, de ameaça às vias de experimentação e

reivindicação da alteridade, um clima de opinião que parece nos devolver sempre

à percepção de que não há outros.

Não é um traço distintivo do contemporâneo a compreensão da arte, da

antropologia e das reflexões teórico-críticas avizinhadas desses dois ambientes de

experimentação como espaços propícios à experimentação e a busca pela

manifestação da alteridade. A questão da alteridade é, claro, um motivo clássico

da arte, da antropologia, da crítica de arte e dos muitos comércios que essas

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modalidades de experimentação sensível e teórica estabeleceram e continuam a

estabelecer entre si. A arte e a antropologia são espaços de experimentação

sensível e de pensamento cujos candidatos a “representantes” (inclusive suas

prefigurações) remetem a casos tão longínquos ao ponto de nos fazer desistir da

delimitação de suas origens. Esse motivo, no seguimento e nas mutações do qual a

arte, a antropologia e as operações críticas (sensíveis aos trânsitos entre arte e

antropologia) constituem tradições no Ocidente, é o da associação dessas

“modalidades” experienciais a um campo de experimentação da alteridade: como

laboratórios para que a arte, a antropologia e as operações críticas se tornem

outras, reflexivamente; para que esses regimes de experiência sejam também

mediadores e propiciadores do estabelecimento de relações com a alteridade (da

própria arte, da vida e do mundo). Também quero ressaltar que a arte e a

antropologia, mesmo em casos de manifesto compromisso com a empresa

entropizante, constituem focos de resistência ao avanço irrestrito da “igualação do

não-igual” (Nietzsche, 2008, p. 35). Em síntese, se, como disse Patrice Maniglier

(2005, p. 773-74), a antropologia deve nos devolver uma “imagem de nós mesmos

na qual não nos [reconheçamos]”, sob certa inflexão de leitura, pode-se dizer que

tal imperativo não é estranho a manifestações da arte e da antropologia não tão

conscientes, por assim dizer, dos malefícios de seus pendores à redução do outro.

Aproprio-me destes dois termos, arte e antropologia, com extrema liberdade: por

‘arte’, entendo, inclusive, casos que, até ontem, não eram reconhecidos nessa

chave; e, quando falo em “antropologia”, mais correto talvez fosse falar em

antropologias, na medida em que remeto a uma conjugação vasta de aparatos

perceptivos e práticas sociais cuja evocação depende de uma infradefinição de

antropologia, nos termos propostos por Eduardo Viveiros de Castro (cf. 2015a).

Voltando aos trânsitos contemporâneos entre antropologia e literatura,

penso que um traço de sua singularização seja a maneira problemática como a

demanda de alteridade que encarnam estabelece suas vinculações com o que

circunstancia suas percepções do presente como as de um tempo sem precedentes.

Ao mesmo tempo, em que são desejosos de manifestação da alteridade, querem

ressaltar que tal manifestação e as vias dessa manifestação se vêem, nos nossos

dias e por ocasiões que se intensificam no presente, severamente ameaçadas pela

escalada e o acirramento de forças entropizadoras. Esse aspecto, que me parece

problemático nos trânsitos aqui reunidos — na medida em que se insinua como

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um traço fatalista que acaba por justificar um certo sectarismo —, delineia-se nos

modos como esses trânsitos absorvem o tema da alteridade e nas modalidades de

resposta que dirigem ao tema.

Por “alteridade”, nos limites dessas transversalizações aqui convocadas,

entende-se menos entidades e entificações claramente situáveis e mais, em face do

espectro que constitui uma imagem homogênea do humano e as “partilhas do

sensível” (Rancière, 2005), uma posição relacional e vicária. A própria definição

de ‘alteridade’ com que se quer trabalhar é, assim, outra em relação ao próprio

exercício da definição ostensiva que procederia, grosso modo, a partir de um

princípio de identidade (ou, em casos que querem contrariar o princípio de

identidade, mas não se desapegam da trágica constatação de que sua lacunaridade

é compulsória). A alteridade — conceito controverso que, nos termos como dele

me aproprio aqui, concerne menos a um identificador redutível a entidades

localizadas e mais a um operador relacional —, nos modos como esses trânsitos

incorporam-na como um motivo propulsor e um termo atrator de seus

movimentos, ganha os contornos de uma demanda ao mesmo tempo insistente e

intrusiva (cf. Stengers, 2015).

Em ensaio recente, a filósofa belga Isabelle Stengers reflete sobre a

iminência da catástrofe geológico-climática, instada pelo diagnóstico do

“antropoceno” (Crutzen et. al., 20032) e reforçada pela sucessão de catástrofes

com as quais já se têm de lidar: as ecológicas, políticas, geopolíticas,

cosmopolíticas (“política cósmica” [Viveiros de Castro, 2015a, p. 71]) etc. Para a

filósofa, tal iminência, marcada por sinais e diagnósticos aterradores, é figurada

nos termos de uma súbita “intrusão de Gaia” (Stengers, 2015, p. 41) nos assuntos

humanos — isto é, diz respeito ao modo incontornável como a alteração das

condições de sobrevivência (e existência) no planeta Terra se intromete de forma

decisiva nos assuntos humanos, ao ponto de tornar contingencial o seu solo

pressuposicional de certezas. A iminência da catástrofe, em uma época em que já

se vive sob sua recorrência, torna contingencial (quando não denuncia a

obsolescência) o solo de certezas sobre o qual se fundam as ciências (naturais,

humanas e transversais) — o que não esvazia de seriedade as sobrevivências deste

solo e as certezas sobre o qual se assentam.

2 A esse respeito, ver também Chakrabarty, 2013.

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Esse abalo decisivo é, por sua vez, promotor de uma reorientação

incontornável das expectativas, processos, relações etc. com que se engajam essas

práticas sociais e culturais. A demanda de alteridade a que me refiro, sua

insistência, é componente determinante desse escopo e se mostra de muitas

maneiras. Enumerá-las exaustivamente não é cabível. Elas não são inventariáveis.

No entanto, aponto para três de suas manifestações:

(a) nas experimentações que objetivam a alterização da arte e da

antropologia, isto é, redefinições performativas que permitam que a arte e

a antropologia se mostrem e sejam experimentadas como outras — menos

como “documentos de cultura” ou espécimes que confirmam modelos de

identificação e de determinação axiológica, e, por conseguinte, de exclusão

do que se insubmete e se insurge contra esses modelos, e mais como

conjugações da experiência em que incide sub-repeticiamente tanto a força

constituinte do que os singulariza quanto o devir destituinte do que os

impessoaliza, para que não se convertam em latifúndio de um modo de

subjetivação ou territorialização qualquer;

(b) na compreensão e no usufruto da arte e da antropologia como vias de

acesso e experimentação da alteridade cultural, étnica, sexual, política,

geopolítica, cosmopolítica etc. — a arte e a antropologia, ambas

entendidas no sentido lato acima proposto, como encarnações e

dispositivos da experiência cujas manifestações não são sempre

reconhecidas como confirmadoras das “normatividades” a partir das quais

se justifica toda sorte de exclusão e assujeitamento do heterogêneo ou,

ainda, das normalidades irreconhecíveis como tais, normalidades e

normatividades estas que são definidas, majoritariamente, à semelhança do

homem branco (europeu e neoeuropeu) do sexo masculino, cidadão,

trabalhador, dotado de linguagem, de polegar opositor, da neotecnia etc.;

(c) e nas ocupações da arte e da antropologia por agendas e agências que

lhes são, grosso modo, estrangeiras: quando os exercícios e as ambições da

arte e a antropologia ocidentais são declinadas e apossadas por devires

não-ocidentais — ou, remontando à enumeração acima de “casos” de

alteridade, quando a arte e a antropologia são apropriadas como espaços de

reivindicação e afirmação de devires alternativos a uma imagem

dominante e pretensamente unívoca do homem e suas corruptelas.

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A arte e a antropologia, nesses três vieses que vetorizam sua

desidentificação, são espaços propícios à borradura dos caracteres que marcam

com traços distintivos e privativos da arte, do mundo e da vida, que justificam

hierarquizações, assujeitamentos, práticas de segregação, privações de direitos

adquiridos etc. Traços e imagens que são subsumidos pelo signo de definições

privativas do “humano”. Isto é, tais imagens, em última instância, reportam a uma

imagem atômica do humano (que se afirma no arremedo de definições privativas e

excepcionalizantes) como em se tratando de uma matriz recursiva. “A entropia

crescente se transfigura dialeticamente em antropia triunfante.” (Viveiros de

Castro, 2015b, p. 21) (Talvez uma nota explicativa, ou um comentário em Coda.)

Ao passo que tais demandas de alterização e alteridades vêm

acompanhadas de um diagnóstico segundo o qual a manifestação da alteridade

demandada e as vias ao seu acesso se mostram decisivamente ameaçadas,

configuram-se como uma empresa problemática, uma zona de tensão. A ameaça

que se coloca aqui é a de um acirramento das “ofertas” de entropização (ou

antropização). Por entropização, entenda-se a rarefação das possibilidades de

experiência da alteridade. O que chamo de seu acirramento reporta à expansão

irrestrita de geontologias (Povinelli, 2014) demasiadamente identificadas a uma

imagem unívoca e privativa do homem e do humano e, por conseguinte, da arte e

da crítica.

Curiosamente, este mesmo ideal de experiência tem papel de protagonismo

tanto no acirramento de sua expansão, que parece implacável, quanto no que

levou a uma situação diagnosticada como grávida de catástrofes. O

contemporâneo, entendido como o tempo das catástrofes seria, também, o tempo

dos fins das ilusões de progresso, dos ideais civilizatórios, das grandes narrativas

emancipatórias e demais retroalimentadores da expansão irrestrita de uma

variação antropológica (uma imagem do homem) que efetiva uma ameaça cujos

níveis de consistência põem em risco decisivo a sobrevivência de tudo, inclusive a

de si mesma — um “tudo” cujos “excetos” incluem os incontáveis já extintos por

“obra” da expansão implacável desta imagem.

Como nosso foco de interesse são as operações críticas dedicadas à

literatura e os modos como elas são tocadas pelos trânsitos bilaterais aqui

referidos, volto-me agora para alguns dos contornos que essa problemática ganha

em nichos de debates teórico-críticos preocupados em pensar os estados críticos

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em que se encontra a crítica, dadas as circunstâncias que distinguem a situação

presente como particular.

Tem-se visto, nos nossos dias, uma multiplicação de discursos sobre os

estados da produção artística contemporânea e das respostas críticas que se lhe

dirigem, inclusive, no “interior” dos próprios gestos artísticos. É uma das

particularidades da produção artística e literária contemporâneas – o que não deixa

de ser uma intensificação do que já se experimentava nos termos das chamadas

literaturas e artes modernas — que os limites entre o estético e o crítico sejam

cada vez mais discutíveis, quando não se tornam dispensáveis.

Desdobrando as reflexões desenvolvidas por Artur Danto e, aqui no Brasil,

por Lorenzo Mammi, o crítico literário João Camilo Penna dedicou-se,

recentemente (2014, s.p.), a pensar a ideia de “fim de arte”, ou de uma certa ideia

de arte ainda resguardada por rubricas garantidoras de sua especificidade, como

uma das consequências deduzidas dessa indistinção patente entre arte e crítica —

fenômeno associado à experiência estética moderna e que se acirra nos limites do

contemporâneo (que Penna entende, ao mesmo tempo, como o ocaso e o

paroxismo do moderno). Se a arte, assim como o homem, não quer se distinguir

segundo linhas de corte exclusivas, como a operação crítica se posicionaria em

face dessa inespecificidade (cf. Garramuño, 2014) dos acontecimentos artísticos?

Inespecificidade, primeiro, em relação à intervenção crítica, no que os gestos

desta última também se mostram pretensiosa e colateralmente artísticos; e,

segundo, em face de outras manifestações de vetores e mediadores experienciais e

perceptivos que “tradicionalmente”, ao menos desde o paroxismo do moderno que

recebe o nome de contemporâneo, não são identificados como da ordem do

estético ou, de modo ainda mais radical, da alçada humana.

1.2

Iniciações

Um inseto cava

cava sem alarme

perfurando a terra

sem achar escape.

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Que fazer, exausto,

em país bloqueado,

enlace de noite

raiz e minério?

Eis que o labirinto

(oh razão, mistério)

presto se desata:

em verde, sozinha,

antieuclidiana,

uma orquídea forma-se.

Carlos Drummond de Andrade. “Áporo”.

É lugar-comum constatar, no momento de conclusão parcial de um

percurso de pesquisa, que as ambições que vetorizaram os eforços de investigação

e reflexão tenham passado por muitas reformulações. As perguntas formuladas

acima, que orientam as reflexões aqui desdobradas, sofreram a interferência de um

sem número de circunstâncias e acidentes de percurso — hesitações,

esgotamentos, mudanças súbitas de ritmo e respiração, reavaliação de ambições e

estratégias etc. — para que chegassem a esta configuração. “Há transformações

que são atentados” (Malabou, 2014, p. 12). Não caberia aqui historiar e

inventariar os muitos atentados ocorridos ao longo desses anos de pesquisa, mas,

pela importância que teve e tem neste trabalho a antropologia de Eduardo

Viveiros de Castro, julgo importante incluir neste capítulo introdutório um

registro breve de minha iniciação em seu pensamento.

O primeiro contato que travei com a obra de Eduardo Viveiros de Castro,

há dez anos, promoveu em mim sentimentos de encantamento e perplexidade. O

encontro foi mediado pelo ensaio “Perspectivismo e Multinaturalismo na América

Indígena” (Viveiros de Castro, 2002a). Tive, logradamente, a oportunidade de ler

e discutir o texto em grupo. Essa iniciação se deu em algumas reuniões de um

grupo de estudos chamado Áporo, do qual eu participava ainda como aluno de

graduação em Letras. Contrariando, assim, o que diz o antropólogo em coro com

vaticínios da sabedoria es/xotérica – visagens3 são vistas por quem e quando se

está sozinho –, pude fazer a experiência da estranheza que produzia aquela

3 Expressão utilizada em algumas variantes dialetais do português brasileiro para indicar “aparição

sobrenatural, assombração, fantasma.” (Houaiss, 2009)

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manifestação de pensamento de forma compartilhada. Esses sentimentos de

perplexidade e comoção não se dissolveram na ocasião em que recebemos uma

visita do antropólogo para discutir algumas das inquietações que seu texto

produzia em nós. Ao contrário, a performance do antropólogo — a força vibrátil

de suas sentenças proferidas, paradoxalmente, em um tom monocórdio —, ao

fazer série com seu texto, acrescentava estranheza à estranheza.

O causo contado por Gabriel García Marquez como narrativa de sua

origem como escritor é um bom termo ficcional de comparação para o impacto

que o pensamento do antropólogo produzia em mim. Em entrevista, o escritor

colombiano afirma que decidiu se tornar escritor ao ler as famosas primeiras

linhas de A metamorfose de Kafka — “Quando certa manhã Gregor Samsa

acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num

inseto monstruoso” (Kafka, 1997, p. 7). Na ocasião, diz ele que pensou: então eu

posso fazer isso com as personagens? Criar situações impossíveis? (cf. Marquez,

2005 s.p.).4 Pois então, quando li (e reli, tantas vezes) esse ensaio de Viveiros de

Castro, uma pergunta se colocava com insistência: então alguém pode fazer isso

com o pensamento dos outros (indígenas) sem que as situações o impossibilitem,

situações em que se deflagram seus pertencimentos ao “mesmo”?

O pensamento de Eduardo Viveiros de Castro reivindica “espaços não-

euclidianos” (Viveiros de Castro, 1992, p. 4) para uma experimentação

cosmoestética5 – busca zonas sob as quais incidam os moduladores-catalisadores

de uma operação tradutiva interessada na mostração, em nossos próprios termos e

sob equivocação, da imaginação conceitual dos povos ameríndios. Esses

dispositivos se aplicam sobre os conceitos e repertórios que compõem o

imaginário conceitual-científico moderno, para que possam servir como superfície

de emergência para o pensamento indígena. Tal operação tradutória supõe, nos

termos do antropólogo, uma dimensão estética, dentro de cujos limites as escolhas

se fazem em atenção a uma agenda ético-política — ou, para ser mais rigoroso,

uma agenda cosmopolítica. Veja-se:

4 A fala aparece em Gabriel Garcia Marquez. La escritura embrujada,[DVD], entrevista

concedida a Conchita Penilla, filmada por Yves Billon y Mauricio Martínez-Cavard. 2005. 5 Aproprio-me aqui livremente de um termo que aparece no cuidadoso trabalho de Pedro Niemeyer

Cesarino sobre as manifestações xamânico-poéticas dos Marubo. A expressão experimentação

cosmoestética é usada pelo etnógrafo para tratar da eficácia dos cantos xamânicos empregados

com fins terapêuticos, cantos esses que, em contraposição “remédios dos brancos”, seriam mais

eficazes (Cesarino, 2008, p. 243).

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O que fiz em meu artigo sobre o perspectivismo foi uma experiência de

pensamento e um exercício de ficção antropológica. A expressão ‘experiência de

pensamento’ não tem aqui o sentido usual de entrada imaginária na experiência

pelo (próprio) pensamento, mas o de entrada no (outro) pensamento pela

experiência real: não se trata de imaginar uma experiência, mas de experimentar

uma imaginação. A experiência, no caso, é a minha própria, como etnógrafo e

como leitor da bibliografia etnológica sobre a Amazônia indígena, e o

experimento, uma ficção controlada por essa experiência. Ou seja, a ficção é

antropológica, mas sua antropologia não é fictícia. (Viveiros de Castro, 2002b, p.

123)

A experiência real a que o antropólogo se refere (e que seu pensamento

ambiciona) é lastreada pela experiência de campo do antropólogo como

“etnógrafo e como leitor da bibliografia etnológica sobre a Amazônia” (Viveiros

de Castro, 2002b, p. 123). O “experimento de pensamento” empenhado naquele

primeiro ensaio de Viveiros de Castro que li parte da presunção de que os pontos

de vista do nativo e do antropólogo são incompossíveis; e, que, portanto, o ponto

de vista do nativo tal como traduzido pelo antropólogo não se confunde ao ponto

de vista do nativo. O antropólogo diz isso em um texto em que se dedica a refletir

sobre alguns dos problemas que o ensaio de 1996 (“Os pronomes cosmológicos e

o perspectivismo ameríndio”) suscita — ensaio que, reformulado, constitui o

grosso do ensaio de 2002 (“Perspectivismo e Multinaturalismo na América

Indígena” [Viveiros de Castro, 2002a, p. 347]). Seguindo, em “O Nativo

Relativo”, o etnólogo se dedica à problematização e às fundações teóricas de seu

experimento de tradução para o conceito ameríndio de ponto de vista. Nesse

ensaio, Viveiros de Castro se coloca uma pergunta que condensa uma interpelação

que faz com certa recorrência, em especial quando se dedica ao conceito de

perspectivismo transespecífico, qual seja:

Isso tudo não quereria apenas dizer que o ponto de vista aqui defendido, e

exemplificado em meu trabalho sobre o perspectivismo ameríndio (Viveiros de

Castro, 1996), é o ‘ponto de vista do nativo’, como os antropólogos professam de

longa data? (Viveiros de Castro, 2002b, p. 122)

A esta incompossibildade, Viveiros de Castro responde dedicando-se a

uma operação tradutória em que se ressalte a “ressonância interna (...) [de] pontos

de vista completamente heterogêneos” (op. cit., p. 123). Tal experimentação

cosmoestética atende a uma espécie de agenda mutante da qual eu assinalo a

hipótese e a performance da inflexão aperceptiva — em outras palavras, orienta-

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se na direção da vida vivível “se os índios têm razão” (Viveiros de Castro, 2002a,

p. 398). No que diz respeito à eficácia e exercício desse movimento, Viveiros de

Castro propõe um procedimento contínuo de barragem e desvio do que torna

compulsória a cooptação ao solo pressuposicional majorado pelo sintagma

“cosmologias ‘multiculturalistas’ modernas” (Viveiros de Castro, op. cit., p. 349),

também com o auxílio de ficções controladas que ajudem a catalisar o

desiderativo de assunção do próprio ponto de vista pelo que seria a intromissão

interferente de outro solo pressuposicional, aqueles que seriam ocupados por

outras imaginações que não as ocidentais. A eficácia é, nesse sentido, sempre uma

quase-eficácia, sendo a quasidade um valor por si, a própria experiência buscada e

não um índice de malogro. Entre os dispositivos que auxiliam na proposição e no

exercício dessa ideia de quase-eficácia, está o desejo de não fazer concessão a

qualquer monarquismo ontológico, o pendor [clinamen] para orientações políticas,

culturais, artísticas, comunitárias etc. que de alguma maneira levem a termo o que

o antropólogo chama, com Hakim Bey, de “anarquia ontológica” (Viveiros de

Castro. in:Viveiros de Castro e Sztutman, 2008, p. 242). Na esteira dessas

inclinações de uma quase-eficácia metafísica, está o exercício de uma quase-

eficácia cosmoepistemológica, pelo exercício afirmativo de resistência e de

reversão dos efeitos deletérios e atávicos das epistemologias exclusivistas e

excludentes no gozo das quais nós “homens brancos” nos sentimos tão

confortáveis.6

Nesse sentido, a ideia de “antropologia como descolonização permanente

de pensamento” e, em série, a ideia de “contra-antropologia”, reivindicam para si

um nível de intervenção cosmoepistemológico que reporta a uma “proposta

cosmopolítica” (Stengers, 2005) e tenta reatualizá-la. Proposta essa cujas

condições de legibilidade e adesão são dadas pela reivinidicação da quase-eficácia

de um projeto inevitavelmente colaborativo com esses outros interesses que se

6 O genocídio e a privação de direitos das comunidades tradicionais indígenas, aborígenes, tribais,

ribeirinhas etc.; o monoteísmo das cruzadas — cuja sobrevivência tem sido levada a termo,

sobretudo pela ciência e a religião —; a excepcionalidade do homem em relação aos outros

viventes; a bio e a necropolítica; o racismo inter e transespecífico; o machismo; as manipulações

biocientíficas, cujo sucesso graceja com o privilégio de se fazer às escuras e como política de

estado; muitas outras sobrevivências de “nossas cosmologias modernas” pela malha de nossas

“instituições”; a institucionalização do fascismo como política de estado; os microfascismos a que

todos estão sujeitos a sucumbir, sob o diagrama das sociedades de pós-controle; a bárbara recusa

de discussão em foro civil dos direitos civis; o negacionismo climático etc.

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veem ameaçados quando na expansão irrestrita de nossa forma de vida (a

antropia).

A requisição de uma politização da natureza e de um exercício de

disponibilidade radical de escuta em face das demandas de outros interesses que

não aqueles previstos pela “Constituição Moderna” (Latour, 1994, p. 19-52), creio

eu, ainda não repercutiu o suficiente nos ambientes de discussão estética e crítica

– para o prejuízo desses ambientes. Assim, isso que chamo de cosmoestética no

pensamento de Viveiros de Castro se configura por um arrevezamento contínuo e

cíclico entre esses espaços do desejo e da quase-eficácia. Quando reconhece

pertencimento ao ocidente, o antropólogo se vincula a uma tradição minoritária,

em um sentido rigoroso do termo (Viveiros de Castro e Danowski, 2014), e às

outras manifestações de pensamento que traduzem a intromissão da alteridade dos

interesses e das agendas políticas e cósmicas de outras cosmologias e políticas

não-modernas e/ou não-ocidentais; isto é, não orientadas ou ao menos não

exclusivamente orientadas pelo repertório de ideário e práticas que constituem as

formas de vida (Lebensformen) antrópicas. Em outras palavras, os “quem” que

resistem e sobrevivem ao Ocidente e o fazem nos nossos ocidentes menores são a

concessão ao pertencimento à ocidentalidade por parte do etnólogo.

[Vejo] o perspectivismo como um conceito da mesma família política e poética

que a antropofagia de Oswald de Andrade, isto é, como uma arma de combate

contra a sujeição cultural da América Latina, índios e não-índios confundidos, aos

paradigmas europeus e cristãos. O perspectivismo é a retomada da antropofagia

oswaldiana em novos termos.” (Viveiros de Castro. In: Viveiros de Castro e

Sztutman, 2008, p. 129)

Tudo isso, diga-se, segundo uma orientação de pensamento que parece

reivindicar semelhança com a epistemologia xamânica dos povos que estuda. O

antropólogo xamaniza: o que significa transpõe os limitadores aperceptivos, o

pensamento do mesmo e do outro.

Retomando a narrativa da minha iniciação ao texto de Eduardo Viveiros de

Castro, lembro que me via animado, na ocasião, pela procura por modos de

mitigação do solipsismo e da ferida narcísica no âmbito da reflexão teórica e

crítica. O caso é que acredito que ainda exista hoje um lugar vigoroso de

pensamento para o chamado pensamento teórico-crítico. Lugar cuja regionalidade

se confunde com uma tarefa: a insubmissão ao fatalismo dos diagnósticos

irreversíveis, em especial aqueles que declaram que todo gesto em direção ao

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outro não ressoa (ou reflete) senão um “si mesmo”. A tese de que o narcisismo do

ocidental é irreversível e incurável sempre me pareceu muito despropositada —

além de denotar, de forma flagrante, falta de criatividade e excesso de

conformismo com a atávica incapacidade perceptiva dessa majoração do humano

(antropizado). Tal pendor me parecia excessivamente negligente com todos os

tantos ocidentes menores e outras alteridades que nos povoam, nos tomam e

permeiam e com as quais “esbarramos” até com certa vulgaridade. (“Não pense,

mas veja!”, disse o filósofo [Wittgenstein, [1958] 2000, §66.]) Foi esse incômodo

que me fez deixar o curso de filosofia, pois eu acreditava que a poesia e a

linguagem eram vias mais pródigas no enfrentamento dessa tendência de

pensamento. A filosofia que me interessava era aquela que se fazia sob a forma de

poesia (cf. Wittgenstein, [1980] 2000, p. 43-4).

Pois então, retornando à narrativa do meu contato com a noção de

“perspectivismo”, nos termos propostos por Eduardo Viveiro de Castro, desde os

primeiros contatos que tive com essa região do pensamento do antropólogo,

percebi que se tratava de um investimento de pensamento cuja materialização

parecia indissociável de uma alta carga de poeticidade. Vi-me, na ocasião, diante

de um modo de pensar-viver, isto é, performar o exercício da filosofia cujas

manufatura se compromete e modalidades de recepção reivindicam um traço

incontornável e irredutível de investimento estético.

Por perspectivismo, entenda-se a noção (parcialmente inspirada em

Nietzsche, Whitehead e Deleuze, entre outros; e formulada em colaboração com

Tânia Stolze Lima, sobretudo a partir de seu trabalho etnográfico com os Yudjá)

que diz respeito à percepção/concepção comum a muitos povos ameríndios

“segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou

pessoas, humanas e não humanas, que o apreendem segundo pontos de vista

distintos.” (Viveiros de Castro, 2002a, p. 347). O perspectivismo é “a filosofia

indígena por excelência” (Viveiros de Castro In: Viveiros de Castro e Sztutmann,

2008, p. 127), é uma “antropologia baseada na ideia de que, antes de buscar uma

reflexão sobre o outro, é preciso buscar a reflexão do outro e, então,

experimentarmo-nos outros, sabendo que tais posições — eu e outro, sujeito e

objeto, humano e não-humano — são instáveis, precárias e podem ser

intercambiadas.” (Sztutman in: Viveiros de Castro e Sztutman, 2008, p. 14)

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Além disso, a noção oferece uma realização material (nos termos de nossa

cultura), ao mesmo tempo, dessa operação crítica e de um ideal de conhecimento

cujos

(...) pressupostos e consequências (...) são irredutíveis ao nosso conceito corrente

de relativismo, que à primeira vista parecem evocar. Eles se dispõem, a bem

dizer, de modo exatamente ortogonal à oposição entre relativismo e

universalismo. Tal resistência do perspectivismo ameríndio aos termos de nossos

debates epistemológicos põe sob suspeita a robustez e a transportabilidade das

partições ontológicas que os alimentam. (Viveiros de Castro, 2002a, p. 348).

O conceito de perspectivismo se pronuncia como realização material do

projeto já aludido – mostrar a imaginação conceitual indígena por meio de uma

equivocação dos termos de que dispõe um antropólogo ocidental. A proposição do

conceito resulta, então, de um investimento tradutório – tradução que envolve,

considerando a particularidade da obra de Viveiros de Castro, a linguagem verbal

e investe (e deposita esperanças) no potencial de acontecimentalização da

linguagem.

O que me interessa aqui é o tipo de afinidade que se estabelece entre a

antropologia de Viveiros de Castro e a literatura a partir do viés de que ambas,

constitutivas de domínios heterogêneos cujas tangências não são inventariáveis (e

isso se dá de forma muito curiosa também por se tratar de “objetos” de

linguagem), sejam intentos tradutórios.

Se não está claro aonde quero chegar (e por onde começo), refaço o

movimento: as circunstâncias que envolveram minha iniciação ao texto de

Eduardo Viveiros de Castro — o próprio ensaio, as inquietações que ele

fomentou, o ambiente em que pude fazer a experiência comum (e do incomum) de

seus modos de existência, as ambições com as quais fui contagiado naqueles

encontros —, tudo isso exerceu influência determinante para a minha formação.

Contudo, ressalto um traço entre todos os que me marcaram nessas reuniões, traço

também marcante no pensamento de Viveiros de Castro: o que fica do difícil trato

com as exigências e os perigos que envolvem o exercício de uma atitude

responsiva – isto é, crítica.

Para retornar a esse traço, contudo, importa voltar às circunstâncias em

que a recepção do texto foi feita por mim. Algo marcante nas reuniões do Áporo

era o exercício de leitura por imersão em materiais (textos literários, poemas,

ensaios filosóficos etc.) que despontavam como alternativas (ou refrações) a

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abordagens reducionistas. Muito em função do grupo ser composto por estudantes

e pesquisadoras da área de Letras, o acento das discussões e a curadoria dos

materiais pendia para fenômenos e problemáticas tangentes à linguagem. Assim,

tentava-se pensar a linguagem por vieses que não aqueles que eram, como são

para esta tese, um foco de insatisfação. Entre essas “[reduções abusivas]” (Saer,

2009, p. 1) estavam, e estão, aquelas orientações de pensamento que insistem em

compreender e dispor da linguagem, e aqui recorro ao jargão do antropólogo,

segundo o crivo das “alternativas infernais” com as quais são armadas muitas de

“nossas gaiolas metafísicas” (Viveiros de Castro, 2009, p. 2).

Aqui as percepções que se dirigem à linguagem representam uma espécie

de ameaça à singularidade de seu acontecimento. Na busca pela linguagem,

espreita o perigo de perdê-la pelo caminho. Embora o ensaio de Viveiros de

Castro fosse um ensaio de antropologia filosófica, as associações com reflexões

sobre linguagem e literatura das quais começava a tomar pé naqueles tempos me

pareciam não só variadas, mas inevitáveis.

O acontecimento que representava para mim o pensamento de Viveiros de

Castro parecia dizer muito respeito à linguagem e, como tema mais afeito ao meu

interesse, às experiências poéticas e literárias em linguagem. Antecipando-me ao

que ouviria mais tarde de José Miguel Wisnik7, Eduardo Viveiros de Castro

sempre me pareceu um caso particular e heterodoxo de escritor. Esse caráter

literário-poético da escrita de Viveiros de Castro sempre me pareceu evidente,

uma evidência que se deve dizer problemática.

Muito embora o texto de Viveiros de Castro possa ser pensado, e suscite

esse tipo de reflexão, como em se tratando da manifestação de um texto literário,

algo da experiência literária, a partir da manifestação de suas ambições e do modo

como as efetiva, sugere que os modos de enunciação em que o antropólogo está

envolvido parecem empenhados em um estranhamento de si em relação ao jogo

literário, no que toca sua adesão parcial à dimensão de ficção, mas também em

outras ocasiões em que não se priva de marcar a sua diferença, quando lê

literatura, em relação à crítica especializada, por exemplo. A dimensão de ficção

7 Colóquio dedicado a pensar o legado da obra e do pensamento de Viveiros de Castro, em

especial do conceito de perspectivismo ameríndio, por ocasião de uma exposição de suas

fotografias retiradas em alguns de seus trabalhos de campo. Exposição curada por Eduardo Sterzi e

Verônica Stigger que agrupa mais de 400 imagens e que se deu no Sesc Ipiranga (São Paulo, SP)

entre agosto de 2015 e janeiro de 2016.

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que Viveiros de Castro afirma como essencial para o conceito de perspectivismo

ameríndio não é a da ficção literária stricto senso, se é que se possa dispor de tal

sentido estrito quando o assunto é ficção literária. Veja-se o trecho em que o

antropólogo expõe a ideia de que o conceito de perspectivismo, o experimento

que ele efetiva e de cujos esforços de afirmação sua obra dá testemunho, é

marcado por uma “dimensão essencial de ficção”.

O caráter de ficcionalidade do experimento está posto, para Viveiros de

Castro, no que ele se dispõe a “por em ressonância interna dois pontos de vista

completamente heterogêneos”. Eu me pergunto se essa descrição não caberia às

ocasiões de escritura e leitura de um texto literário, ou ainda do que está em jogo

na experiência artística em qualquer um de seus estágios.

Eduardo Viveiros de Castro, a força cosmoestética de seu pensamento,

quando faz incursões pelo campo da literatura ou quando nos exercícios críticos

com a literatura, sua reflexão (e o curioso é que isso não se dá por sua vinculação

aperceptiva à razão dos índios) é pontilhada por posições e apropriações do

acontecimento artístico, em chave antropológica, que fazem com que seu

pensamento perca parte de seu vigor. Se a tradução equivocadora não é capaz de

extinguir todos os perigos de ralentação e instrumentalização a que é exposta a

alteridade indígena, na medida em que o inimigo permanece habitando o conceito

“para o bem e para o mal”, não é forçoso dizer que essas sedimentações do

anverso ocidental de seu pensamento, quando quem fala é o homem branco,

também coloque em perigo a alteridade artística das manifestações artísticas a que

se dirige.

A intuição desse enfraquecimento me colocou uma questão: como um

pensamento tão fortemente suscitador de reflexão estética perde tanto de sua força

em certas ocasiões em que se dedica ao trabalho de pensar crítica e teoricamente

as obras literárias e artísticas? Enquanto andava à procura de sensibilidades

alternativas que me ajudassem a ler na diagonal esse paradoxo no pensamento do

antropólogo fui – em um curso curiosamente administrado pelo próprio Viveiros

de Castro em colaboração com Alexandre Nodari – apresentado à obra de Juan

José Saer, e em especial a uma proposta que ele faz no ensaio “O conceito de

ficção” (2009): redefinir a ficção como uma antropologia especulativa. Tomei

conhecimento desse ensaio após a leitura, também por ocasião do curso, do

romance El entenado (Saer, 1983), do mesmo escritor argentino.

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A fórmula saeriana da literatura como antropologia especulativa me

parecia, nos termos de uma sensibilidade literária, uma espécie de tradução

equivocadora da premissa ficcional do perspectivismo, e dos perigos dessa

premissa quando assumida de forma irrestrita na leitura de obras ficcionais. No

ensaio em questão, um dos temas de que Saer trata é justamente o potencial de

intervenção das obras artísticas, do ponto de vista do perigo que esse potencial

corre quando as percepções críticas que se lhes dirigem submetem-nas às suas

próprias “pretensões de absoluto” (Saer, 2009, p. 4). A fórmula saeriana me

parecia servir como termo de interlocução e de moderação, uma “ficção

controlada”, para a apropriação do perspectivismo como lente, modulador

perceptivo, para o trabalho crítico. A fórmula me ajudava enfim a dar localidade à

minha experiência real da ficção, e das agências ficcionais e fictocríticas que são

os sujeitos a que me dirijo aqui.

Não seria o caso aqui de procurar o êxito de Saer aonde se vê o fracasso do

antropólogo: o que seria um modo de contrariar, logo de início, o ideal de quase-

eficácia, um ideal cuja sobrevivência é um dos focos das apostas feitas aqui. Na

medida em que o caso-Saer se ofereceria como uma possibilidade de vir ao

socorro e redimir o que permanece nos limites do pensamento de Eduardo

Viveiros de Castro como questões aparentemente insolúveis, aderir a tal solução

facilitadora seria, ao contrário, um modo de fracassar retumbantemente em uma

tarefa em que não se quer ter sucesso — a oposição entre sucesso e fracasso é um

dos casos de “dicotomia infernal” (Viveiros de Castro, 2009, p. 2) do qual, com o

exercício desta reflexão, deseja-se fugir. Como se verá adiante, a ensaística de

Saer é marcadamente inclinada por um viés doutrinário, conservador e datado —

o que sugere que essa ‘parcela’ do corpus escritural saeriano se conforme mais a

um espaço entropizador da experiência. Ao contrário, o que defendo é que tal

espaço escritural, curiosamente, ocasiona, apesar dessas inclinações malogradas se

verificarem em suas tramas de forma acentuada, um acontecimento de rara

felicidade: a manifestação de uma fórmula segundo a qual se processa uma

decisiva redefinição performativa da ficção e, por conseguinte, das percepções

que se lhe dirigem, sendo capaz, inclusive, de dar ensejo a uma inflexão de leitura

capaz de reverter os mais intensos efeitos de entropização em sua escrita. Sendo

assim, meu interesse nessa parcela do corpus escritural de Saer, responde a essa

pergunta curiosa: como um espaço de pensamento tão marcado por atavismos e

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concessões a valores que sua obra narrativa não faz e contra os quais se insurge,

pode se converter em local de emergência de uma sensibilidade tão alternativa?

1.3

O selvagem coração da crítica

Os trânsitos bilaterais entre literatura e antropologia e o modo como

interferem nos termos da experiência crítica vinculada ao estético (e não só ao

literário) constituem um tema clássico na tradição ocidental. A antropologia, que

nasceu como “uma ciência de reformadores” segundo a genealogia proposta por

Eduardo Viveiros de Castro, tem sua institucionalização como disciplina

avizinhada, em termos históricos, ao que se pode chamar institucionalização da

literatura, da arte e de suas críticas. A arte e a antropologia, nos problemas em que

se enredam e nos gestos vitais que transmitem, gestualizam afetos e

comportamentos que precedem até mesmo o homem: “[a] arte não espera o

homem para começar, podendo-se até mesmo perguntar se ela aparece ao homem

só em condições tardias e artificiais” (Deleuze e Guattari, 2012a, p. 136). Não é o

meu interesse aqui realizar uma pesquisa exaustiva sobre os modos a partir dos

quais esses trânsitos e as problemáticas que os mobilizam se inscrevem na

tradição ocidental.

Ressalve-se, de antemão, o alcance geral da observação que se fez logo no

início deste capítulo com relação à diversidade das práticas que chamamos de

crítica literária. A aventura que envolve o tratamento de termos como este vale

também, claro, para antropologia, literatura, arte, entre muitos outros tão

espinhosos quanto delicados: os usos desses termos não são inventariáveis.

Mesmo no horizonte da tradição ocidental, se considerássemos somente os casos

que chamamos de convencionais, estaríamos diante de uma heterogeneidade

irredutível. Para as ambições deste escrito, entre todas essas noções de que trato,

uma ganha maior importância, que é a noção de crítica.

Quando falo em crítica, a princípio, aponto para variedades de jogos de

linguagem e agenciamentos de enunciação cuja disposição envolve uma inflexão

específica, qual seja: constituir-se como um gesto relacional de resposta, o que

significa, trocando em miúdos, um gesto cuja configuração e ambição de

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intervenção se constituem em termos de relação e resposta. Importa

especialmente lidar com a crítica nos limites dessa margem de variação. Assim,

enfatizo que quando falo em crítica literária tenho em mente, muito embora os

casos tratados sejam em sua maiora textos, a adoção de uma atitude que não se

identifica a um regime de materialidade específica: nos silêncios de John Cage,

nas carnalidades de Adriana Varejão, nas ondulações do Nambikwara de Lévi-

Strauss ou ainda nas enxurradas de imagens e notícias da catástrofe que nos

soterram todos os dias se afirmam furiosas leituras críticas e interpelações à

resposta.

Assim como o termo crítica, as noções de literatura e antropologia com

que quero trabalhar aqui são também âmbitos propícios à emergência desses

gestos insubmissos a vinculações materiais específicas. O que se passa com a

crítica literária não é sua exclusividade nem constitui uma sorte de evento

excepcional. Assim, somando esforços a outras vozes de hoje e de ontem, as

noções de arte e antropologia a partir das quais se procede aqui também não se

restringem a “definições excludentes” (Foster, 2014, p. 161).

Em uma conferência intitulada “A antropologia e a imaginação da

indisciplinaridade” (Viveiros de Castro, 2005, s.p.), Eduardo Viveiros de Castro

se reporta ao pensamento selvagem como aquele que é por excelência “o irredento

e o insubmisso” (Viveiros de Castro, op. cit.) às nossas reduções ocidentais. O

antropólogo tem em mente aqui a imaginação conceitual dos povos indígenas que

estuda. Imaginação essa que o antropólogo reinvidica como constitutiva do

exercício de resposta que a antropologia exercita quando intenta a tradução dessa

imaginação. A resposta da antropologia, tal como advoga o antropólogo na

conferência, deve ser pretensiosa de uma radicalidade, no tocante ao tratamento da

“alteridade” do/no pensamento indígena, que consiste em não fazer concessões à

instrumentalização ou ao empobrecimento dessa alteridade em perspectiva do

saber e da cultura do antropólogo. Embora a conferência tenha um claro viés

disciplinar, creio que essa caracterização relacional do selvagem ofereça um

precedente para a noção de selvagem com que quero trabalhar aqui.

As relações segundo as quais se define o selvagem são relações que se

estabelecem em relação ao ocidental, em uma direção, no sentido do potencial de

refração do pensamento desse outro indígena em relação às ameaças de sua

instrumentalização pelo ocidente e a submissão aos seus termos impõem —

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quando o índio é convidado a se acomodar às imagens que dele são feitas —; e, na

outra, na afirmação dessas outras manifestações de pensamento protagonizadas

pelos povos indígenas como não-deficitárias em relação ao pensamento ocidental.

O selvagem, nos termos propostos por Viveiros de Castro, se distingue

relativamente do ocidental e não o faz por limitadores históricos, culturais,

comportamentais, epistemológicos, psicológicos etc. As manifestações que me

interessam desses trânsitos aqui são aquelas que despontaram no fim do século

XX e ainda despontam nesses começos de século XXI, trânsitos que chamo,

arbitrariamente, de contemporâneos. O que os define é menos a localização

histórica, embora essa localização importe, e mais a adoção de certa atitude de

insubmissão a esse ideário moderno.

A atitude a que me refiro é tanto aquela que redunda do diagnóstico do

esgotamento do ideário moderno, ou ainda “um dos mais antigos e mais bem

conservados arcanos do poder” (Romandini, 2012, p. 18), que se consolidam e se

refinam a partir do moderno, quanto as outras que se podem notar por aqueles,

como assinala Latour, que “jamais fomos modernos” (Latour, 1994). O

diagnóstico de esgotamento a que me refiro, em um primeiro momento, é aquele

que é proferido, inclusive, pelos próprios modernos, de que esse ideário, parcial

ou integralmente, está sob crise. Uma crise que imersa, no “tempo das catástrofes”

e em face da iminência da barbárie (cf. Stengers, 2015, p. 7-25), começa a se

descolar da retórica da crise grávida da crença, sem base em qualquer garantia, em

que a situação periclitante em que nos encontramos seja o estádio predecente de

uma solução possível posterior. A crise é um modo de existência permanente,

como se pode ouvir tantas vezes nos discursos que de forma contumaz valem-se

da constatação da crise para promover uma variadade verdadeiramente ampla de

violências insuportáveis, como se pode ver nas seguintes recorrências: as crises

econômicas e de legitimidade que justificam golpes de estado que tornam

insuportável o que já era inadmissível; a terceirização dos prejuízos econômicos

do sistema financeiro em forma de intensificação da miséria de quem nunca

investiu um vintém em tais gargalos; a intensificação na concentração dos

recursos que, em tese, seriam indispensáveis à existência de “muitos” na mão de

“tão poucos”, ao som de “tolices” como: nossa avareza é preocupada ou nós

somos os responsáveis por “uma melhor gestão” desses víveres (cf. Stengers,

2015, p. 121-29); o avanço dos colonialismos internos que, justificados pela

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iminência de uma crise energética, apressam-se por impossibilitar a sobrevivência

de uma vasta multiplicidade de formas de vida alheias e que bem poderiam viver,

porque já vivem, sem os “favores” da energia elétrica ou dos combustíveis fósseis

etc.

Para a filósofa, “a época mudou” (Stengers, 2015, p. 7) e mudou no

sentido em que “[essa] verdade inconveniente” (a iminência e a recorrência das

catástrofes) dá um sentido de urgência à prática colaborativa, “uma vez que afeta

os que lutam por “outro” mundo, é que é agora que devemos aprender a fazê-lo

existir” (idem. p. 18). Em face desse sentido de urgência, afirmo que a hora para

fazer proliferar os efeitos dessa alteração fundamental de perspectiva no âmbito

das artes— ou, ainda, de acentuar, na arte, os casos em que sua emergência nunca

tenha sido realmente desprezada — é agora. Podemos, enfim, tomar posse da

ideia de que a manutenção e a invenção de “outros mundos” em que “os mundos

dos outros” possam continuar existindo é uma tarefa que não exclui a arte, pelo

contrário. No que toca às tarefas da ficção narrativa (ou ainda no que tange às

nossas práticas de contar histórias uns aos outros), a mesma filósofa que traz a

amarga constatação da iminência das catástrofes é aquela que redobra suas

esperanças em nossa capacidade de contar outras histórias, imaginar outras

imaginações. Cito:

Precisamos desesperadamente de outras histórias, não dos contos de fadas, em

que tudo é possível para os corações puros, para as almas corajosas ou para as

pessoas de boa vintade reundias, mas das histórias que contam como situações

podem ser transformadas quando aqueles que as sofrem conseguem pensá-las

juntos. Não histórias morais, mas histórias “técnicas” a propósito desse tipo de

êxito, das ciladas de que cada uma precisou escapar, das impsoições cuja

importância elas reconheceram. Em suma, histórias que recaem sobre o pensar

juntos como “obra a ser feita”. E precisamos que essas histórias afirmem sua

pluralidade, pois não se trata de construir um modelo, e sim uma experiência

prática. Pois não se trata de nos convertermos, mas de repovoar o deserto

devastado de nossa imaginação. (Stengers, 2015, p.126-27)

Imbuída desse afeto e munida dessa confiança na imaginação, sem se

deixar orientar pelo viés dirigista da operação artística ligeiramente adotado pela

filosófa, quando ela o adota, esta pesquisa busca refletir sobre a práxis-poiesis da

crítica de literatura — busca pensar sobre as relações entre o crítico literário e, por

assim dizer, os “estranhos nativos” que encontra (inventa) pelo caminho. Quando

opta por aproximar, dessa forma, desenvolvimentos da antropologia ao campo dos

estudos literários, este trabalho dá testemunho de uma atmosfera que parece

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especialmente favorável a esse tipo de aproximação: são hoje de fato muitos,

bilaterais e ainda carentes de reflexão os gestos de acercamento entre a

antropologia e a literatura; encontramos um entre muitos outros inventários desse

inquieto trânsito em um artigo de Clifford Geertz sugestivamente intitulado A

Strange Romance: Anthropology and Literature (2003).

Vou aqui privilegiar dois momentos desse estranho romance: de um lado,

entre os movimentos de aproximação da ficção em direção à antropologia, exploro

as consequências de uma aposta do escritor argentino Juan José Saer, que é

também um convite: conceber a ficção “de um modo global como antropologia

especulativa” (Saer, 2009, p. 4). De outro, entre os movimentos da antropologia

em direção à ficção, dou atenção aos modos como o multinaturalismo

perspectivista de Viveiros de Castro, tomado como realização material e operador

diacrítico da aludida antropologia simétrica8, convida a pensar o fazer

antropológico como um exercício de transcriação etnofilosófica no qual uma

“dimensão de ficção” é explorada e tida como preponderante (Viveiros de Castro,

2002b, p. 122-23).

Em ambos os casos, investe-se em alterações fundamentais de perspectiva

que vetorizem linhas de fuga. Viveiros de Castro busca liberá-las em relação à

dominância de nossas cosmologias modernas, a partir de uma “descolonização

permanente do pensamento” solidária a um imperativo de “autodeterminação

ontológica dos povos” (Viveiros de Castro 2009, p. 1). Saer, por seu turno, reage

aos “tantos reducionismos” a que a teoria e a crítica tentam submeter a ficção,

que, no entanto, “desde suas origens, soube emancipar-se dessas cadeias” (Saer,

2009, p. 2) – reducionismos cuja neutralização pode, segundo o escritor, ser

levada a termo por uma atitude de atenção para certa comunhão (inclusive no

contingenciamento) entre antropologia e ficção.

8 A noção latouriana de simetrização é prenunciada, retomada e transformada por uma série de

outros antropólogos-filósofos tais como Roy Wagner, Marilyn Strathern — e principalmente

Eduardo Viveiros de Castro, cuja dicção singular será aqui privilegiada. Interessa-me em particular

a forma apta com que Viveiros de Castro incorpora criticamente as proposições de Latour e

interlocutores circunvizinhos em seu próprio projeto de redefinição performativa da antropologia

— e isso com destaque para os modos como incita a que se tome o estranho (por exemplo, o

“nativo”) não como outro sujeito, mas antes como a figura de um Outrem, que, nem sujeito nem

objeto, é antes a expressão de um mundo possível, cujos valores, se mantidos implícitos, isto é, se

percebidos “como expressos que não existem fora de sua expressão”, prometem multiplicar o

(nosso?) mundo (Viveiros de Castro, 2009, p. 9-10).

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A razão pela qual me parece fértil considerar conjuntamente esses dois

gestos – o de Viveiros de Castro na direção da ficção e o de Saer na direção da

antropologia – é, além do fato de que se deixam atravessar por sensibilidades e

perplexidades comuns, a constatação de seu potencial para compensar debilidades

mútuas: são relativamente frágeis, de um lado, o pensamento da ficção que

subsidia a antropologia de Viveiros de Castro e, de outro, o pensamento da

antropologia com que Saer parece operar.

A hipótese principal que esta pesquisa investiga é a de que, mutuamente

contagiados e envigorados, os pensamentos de que dão notícia Saer e Viveiros de

Castro podem servir como bússolas na tarefa de recolocação das perguntas que

encabeçam estas variações preliminares.

Penso aqui na bússola de Jack Sparrow, que não possui princípio ou ponto

norteador, que nunca aponta o mero norte magnético. Pirata que frequenta o

universo fictício da franquia Pirates of the Caribbean, o capitão Sparrow9 possui

uma bússola com poderes sobrenaturais, uma engenhoca para todos os efeitos

escangalhada com que logra encontrar o navio invisível, a ilha fora de qualquer

mapa – uma bússola que só aponta, enfim, para o que deseja o coração.

Entre os diálogos em torno da tal bússola, transcreve, sucintamente, três

trechos de diálogos em que os personagens deliberam e manifestam sua

perplexidade em face desse caráter caprichoso da bússola (que, no inglês,

curiosamente, se chama compass, assim como o compasso) bem como dessa sua

capacidade actancial em relação aos desejos dos que a manuseiam:

(1) J. Sparrow: True enough, this compass does not point North. Elizabeth

Swann: Where does it point? Sparrow: It points to the thing you want most in this

world. (2) Laura Smith: So now, how do you find an invisible ship? Sparrow:

With this. (3) Will Turner: How can we sail to an island that nobody can find,

with a compass that doesn't work? Joshamee Gibbs: Aye, the compass doesn't

point north, but we're not trying to find north, are we?10

E se o “selvagem coração da vida” (James Joyce) — da vida da crítica de

literatura — pudesse se orientar por essas provocações que são como as bússolas

de Sparrow, orientadoras e desorientadoras do desejo (não é preciso invocar

Shakespeare para saber que o coração desconfia), erráticas e disparativas? Se, com

9 Trata-se de um personagem inspirado em um dos brinquedos que compõem os parques temáticos

da Walt Disney Parks and Resorts, uma subsidiária da Walt Disney Company. 10

Cf. http://pirates.wikia.com/wiki/Jack_Sparrow's_compass, acesso em 15/09/2014.

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o auxílio dessas bússolas, busco experimentar relações com o que há de

(produtivamente) periclitante no heterogêneo espectro dos exercícios

contemporâneos da literatura e da crítica literária, começo por atentar para o

seguinte: com as mais variadas ênfases, tais exercícios parecem pretender difundir

entre outros suas experiências de leitura, que são elas mesmas pretensas

experiências da alteridade e da literatura como via de experiência da alteridade.

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Da ficção como antropologia

A magia e a vida. Tínhamos a relação e a

distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos

bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a

morte com o auxílio de algumas fórmulas

gramaticais.

Oswald de Andrade. “Manifesto Antropófago”.11

Apresentação

“[P]odemos definir a ficção, de um modo global, como uma antropologia

especulativa” (Saer, 2009, p. 4).

Este capítulo faz uma aposta nessa formulação — ou fórmula, como a

chamarei aqui —, passagem que se encontra no ensaio “El concepto de ficción”,

escrito por Juan José Saer em 1990 e publicado pela primeira vez em 1991, na

revista Punto de vista, então capitaneada por Beatriz Sarlo.12

Com essa fórmula, como se disse, Saer propõe e exercita uma redefinição

da ficção — da percepção que se dirige à ficção. Mas por que chamar de fórmula

essa sentença?

Desejo com isso sublinhar, a despeito de sua aparência literal-declarativa,

o caráter performativo da frase, nos termos conhecidos de Austin (1990), para

quem dizer é sempre fazer. Poderíamos pensá-la como uma fórmula análoga

àquela que proferem os padres ao celebrar casamentos, ou àquela empregada

pelos escriturários quando lavram contratos, ou ainda às juras de fidelidade dos

mafiosos de nossos filmes policialescos. Aqui, porém, gostaria de entendê-la

11

Andrade, 2011, p. 70. 12

Por conta do lugar expressivo que ocupa na obra ensaística do autor argentino, esse ensaio

reaparece na abertura de uma coletânea de título homônimo, El Concepto de Ficción, que reúne

ensaios escritos em um período de trinta e um anos (1965-1996). Utilizo-me aqui da tradução de

Joca Wolff, publicada em 2009 pela Editora Cultura e Barbárie, no site da revista Sopro – panfleto

poítico cultural n. 15. Doravante refiro-me ao ensaio com a abreviação CF seguida do número de

página.

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sobretudo como análoga aos dizeres rituais dos feiticeiros, aqueles que, pelo

emprego de algumas palavras sob certa disposição combinatória, obtêm a magia

(ou não a obtêm, posto que pesam, como condição da eficácia do feitiço, não só

um certo respeito à disposição combinatória das palavras, mas também, em

muitos casos, a ênfase que se coloca em um outro ponto do que é dito, a confiança

nas palavras que se empregam, um certo tom de voz — quase sempre dificilímo

de reproduzir —, um tipo de vestimenta, a adoção de uma dieta específica etc.).

Que, comumente, duvidemos do potencial das palavras empregadas na magia não

nos exime de viver entregues à sorte dos acontecimentos que as palavras

produzem, seu feitiço. A dúvida, aliás, fala muito sobre nós os incrédulos, mas

muito pouco sobre o que é posto em dúvida. A fórmula saeriana, com a qual o

escritor, na exploração de brechas, propõe que se perceba a ficção como uma

antropologia especulativa não seria um caso de magia?

Ainda um outro ângulo interessante se oferece talvez no universo

matemático. Em termos matemáticos, uma fórmula pode tanto figurar relações

quanto se oferecer como operador relacional. A fórmula proposta por Saer, nessa

linha, indicia um movimento de projeção (imersão e submersão) da ficção posta

em trânsito com a antropologia. Além disso, se coloca à disposição como

modulador de leitura. Trata-se de um gesto e, ao mesmo tempo, um operador

crítico. A gestualidade crítica, no caso, se mostra na disposição da fórmula,

conforme sua aparição se arranja no ensaio, em se apor como resposta. O ensaio

empreende uma consideração da ficção cujo objetivo é a defesa do que seria

singularidade das ficções, contra atitudes de percepção que colocam em risco a

experiência do que há de único no ficcional. Assim, o gesto crítico saeriano tal

como se exerce na fórmula é mantenedor de uma atitude responsiva à

singularidade da ficção, em sua defesa.

Os termos constituintes da fórmula — termos como “podemos definir”,

“de maneira global”, “a ficção”, “como”, “uma”, “antropologia” e “especulativa”

— não indicam ostensivamente o campo a que fazem referência, nem a partir do

ensaio nem em perspectiva da obra de Saer. No percurso escritural de Saer, a ideia

de ficção varia e é grande a experimentação de suas variáveis. Nas narrativas

escritas por Saer há tratamentos em que a indeterminação também se mostra, no

que não se conforma à ação de “contar uma história”.

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O gesto que, aproximando ficção e antropologia, subverte a simplicidade

dessa ação convive, por exemplo, com gestos que buscam aproximá-la do cinema

e, surpreendentemente, afastá-la do teatro. Em bate-papo sobre as relações entre

cinema e literatura realizado na França no ano de 1978, com Cortázar, Roa Bastos

e Nicolás Sarquís13

, Saer trava um diálogo curioso com Cortázar, após expor uma

de suas visões sobre as afinidades entre cinema e literatura. Reconstituo,

brevemente, a sequência. Saer afirma que cinema e literatura (referindo-se à

ficção narrativa) guardam mais afinidades entre si que teatro e literatura. De seu

ponto de vista, cinema e literatura são “duas formas muito contíguas de narração”,

no que ambas têm de tratar de questões relativas ao tempo-espaço. Nesse

momento, ouve-se a intromissão de Cortázar, propondo que essa afinidade diz

respeito ao fato de que ambas são modalidades dramáticas. O que faz Saer

emendar: “Eu digo menos nesse sentido e mais no sentido da elaboração rítmica

da narração. (...) O tempo narrativo (da ficção) e o tempo narrativo (do cinema)”.

Curiosamente, na mesma conversa, Saer expõe sua reserva com a dramaturgia

teatral: “Eu não acredito na interpretação, eu não acredito no ofício do ator.” (cf.

Saer et al. 1978, s.p.)

Sejam quais forem as fronteiras que Saer frequenta para pensar o conceito

de ficção, a pergunta mais relevante aqui é, claro: que tem em mente o escritor

quando fala, no ensaio, em “antropologia”? Nunca saberemos?14

Ou podemos

voltar ao que intuímos como o potencial mágico da fórmula e a partir de sua

repetição ver o que acontece? O caso é que o ensaio só promove a aparição

explícita do termo antropologia uma única vez, e na proposição da fórmula. Os

movimentos do ensaio em que esta aparece se dedicam, quase exclusivamente, a

uma apreciação rigorosa de problemas relativos à especulação em torno da

ontologia do ficcional — investigação desejosa de operar e mobilizar pressupostos

atuantes em percepções correntes da ficção. Contudo, quando propõe a fórmula,

os movimentos do ensaio desembocam numa apropriação da ficção em que ela

passa a ser concebida como outra que ela mesma: a ficção como antropologia. Em

síntese, se a fórmula não figura uma tautologia, a operação a que se dedica o

ensaio, sob o impacto da proposição da fórmula, parece tornar visível, como em

13

Cineasta que adaptou a novela Palo y Hueso de Saer. 14

Faço alusão aqui à sentença declarativa negativa com que Saer abre o ensaio: “[nunca]

saberemos como foi James Joyce.” (CF1)

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uma fábula, uma tese interessante sobre as consequências de se levar seriamente a

ficção.

A fórmula confabula sua própria metamorfose quando convida a um

deslocamento na percepção da ficção e enseja provocar uma alteração

fundamental na perspectiva da crítica dirigida à ficção. Alteração que incide,

inclusive, sobre a leitura da própria fórmula se entendida, como eu a entendo,

como uma ficção teórica.

Que a fórmula queira ser lida como ficção teórica ou, em outras palavras,

que a fórmula deseje exercer agência sobre a sua própria leitura e que, por isso, eu

a leio como latente de uma teoria da teoria da ficção, alguém poderia objetar que

atribuo à fórmula a capacidade de constituir um sistema conceitual. Minha réplica

seria no sentido de dizer que seria muito precipitada tal afirmação diante do

caráter elusivo que também é uma particularidade da manifestação da fórmula.

Diferente do caso de Benjamin que se vale da imagem do “autômato (...) jogador

de xadrez” (Benjamin, 2008, p. 222) para tornar problemático o caráter de sistema

do materialismo dialético — seus movimentos se antecipam e são reversivos, de

antemão, das objeções à ambição de sua amplitude, como se cada golpe que

sofresse retroalimentasse a estrutura conceitual —, vejo nesse potencial de

agência latente na fórmula somente um índice, em parte elusivo, de uma

multiplicidade de tonalidades existenciais sobre as quais sabemos muito pouco.

Imagine-se a variedade de idiomas e populações desconhecidos que o nosso

descaso não nos deixa ouvir e ver quando reificamos as vivências e as vitalidades

de que estão carregadas nossas ficções (em que se inclua nossas ficções teóricas) e

as teorias que elas inventam (inclusive sobre si mesmas). “Roteiros. Roteiros.

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.” (Andrade, 2011, p. 70)

Se me recuso a concordar com a sugestão de que a fórmula redunde em

sistema, afirmo que as alterações vetorizadas pela fórmula se capilarizam em

muitos sentidos e um dos quais é o modo como sua manifestação desloca os

regimes de temporalidade em que ela mesma é lida e, sob sua possessão, das

temporalidades sintonizadas e dessintonizadas pelas percepções leitoras de ficções

sobre as quais ela quer interferir. A alteração se pretende fundamental, pois quer

incidir no modo como a ficção é percebida no âmbito de deslocamentos temporais

multidirecionais — desejo similar àquele formulado pelas “vanguardas” do

pensamento histórico, qual seja: “escovar a história a contrapêlo” (Benjamin,

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2008, p.225). “Vanguardas” para as quais, sem jogos retóricos, implica ler a

contrapelo a própria noção de história, contrariando sua precoce naturalização

pelo “Ocidente moderno”. No exercício de tal remanejamento das temporalidades,

escovar a história a contrapelo, a fórmula convida a uma contraleitura da escrita

saeriana que desestabiliza um repertório de leituras nos termos da qual a fórmula,

penso eu, é despressurizada.

Há documentos históricos ilegíveis em sua própria época (cf. Benjamin,

2007, p. 504-5): nesse sentido, a escritura-discurso saeriano, sua manifestação

pela fórmula bem como pelos vínculos que ela contrai enquanto “forma de

vida”15

, são tanto vetorizadoras e catalisadoras dos gestos alterativos de suas

próprias leituras — inclusive aquelas que se fazem no sentido de limitar o

potencial de intervenção da fórmula e da escritua-discurso saeriano a uma

repartição temporal que, sob essa releitura que faço da fórmula, asfixia o potencial

inventivo das rexistências cosmopolíticas com as quais este trabalho quer

estabelecer contato (cf. Viveiros de Castro, 2016) desde e a partir da fórmula.

Isso se mostra no movimento oscilatório (para não dizer, ainda, tentacular)

da fórmula: em uma direção, o reconhecimento de si pela visão deslocada — a

ficção se olhando de outra maneira; na outra, no exercício desse olhar de través, a

projeção da ficção na antropologia, ou seja, a ficção em antropologia: o

reconhecimento de si, no olhar de viés, supõe um sair de si.

A leitura se orienta segundo uma inflexão particular: quando Saer se dirige

à percepção da ficção está se dirigindo ao trabalho crítico com a ficção. Isto é, a

fórmula se volta para manifestações sensíveis da percepção16

para que, nesse seu

dirigir-se e vincular-se à ficção, aqueles que dela se utilizam como modalizadores

de sua percepção da ficção assumam uma atitude responsiva em relação às ficções

em que tomam parte. A fórmula assim procede sem abrir mão ela mesma de se

15

“Imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida.” (Wittgenstein, 1958, §7 apud Glock,

1998, p.174) “O termo “jogo de linguagem” deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma

parte de uma atividade ou de uma forma de vida.” (Wittgenstein, 2000, §23) 16

Isso se mostra nos termos, convencionais, da atividade teórico-crítica vinculada à literatura, mas

também nas próprias obras ficcionais e no de outras manifestações discursivas cuja configuração

material se faz nos trânsitos e câmbios com a agência ficcional — como é o caso da etnografia de

Lévi-Strauss, a etnografia e a antropologia filosófica de Eduardo Viveiros de Castro, a

antropologia da ciência de Bruno Latour, a sociologia da imagem de Silvia Rivera Cusicanqui, o

pensamento de filósofas como Donna Haraway, Elizabeth Povinelli e Isabelle Stengers, são muitos

os casos — não seja pensada como privativa do relato ficcional stricto senso. Curiosamente, essa

última inclinação do olhar, que atenta, em outras manifestações discursivas, para o pendor

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arriscar nessa assunção. Isso significa, a rigor, que ela se lança por linhas de fuga,

segundo as equidistâncias da ficção, nas ficções que interessam por sua eficácia,

as boas ficções (cf. Saer e Merbilhaá, 2000) — um nervo do problema —, no

trabalho de resistência e desarme do que debilita a ficção e sua força no mundo.

Do ponto de vista saeriano, manifesto pela fórmula, a ficção é nocivamente

fragilizada quando seus agentes vinculados (usuários e praticantes [cf. Stengers,

2015, p. 81-9]) sucumbem à “pretensão de absoluto”. Tal pretensão,

paradoxalmente, reduz a ficção.

Essa fórmula se dispõe como um caso singular de trânsito bilateral entre

literatura e antropologia e, além disso, desponta como um índice que vetoriza

aproximações com outros desses trânsitos bilaterais, no que os seus traçados

tangenciam e sulcam um palimpsesto de problemas afins. A ênfase dada à fórmula

aqui é feita porque se vê nela um índice capaz de construir pontes (cf. Coetzee,

2004, p. 717

) com outros trânsitos bilaterais entre literatura e antropologia. Tal

acento aposta em um precedente aberto: os modos de manifestação da fórmula

materializam e atravessam problemas afins a outros desses trânsitos bilaterais. De

antemão, recuso-me a ceder à tentação de que os tratamentos que proponho sejam

exaustivos, pois trabalho com o suposto de que esses modos não são

inventariáveis em sua totalidade. Ao contrário, são ávidos do errático e do

disparativo — se precipitam em muitas direções — e, nesse sentido, são lidos

como “perspectivistas” (Gordon, s/d). Feita essa ressalva, diga-se que o delinear

desse contrarrealce se faz segundo variações (no sentido de variações musicais) a

partir da fórmula.

De início, penso a fórmula a partir das relações de estranheza e as

vinculações problemáticas que ela estabelece com o seu entorno: a ensaística

saeriana. Essas repercussões cruzadas entre a fórmula e o registro ensaístico de

Saer são pensadas, também, nas reações críticas que tais ensaios recebem pela

crítica especializada. Este movimento de leitura em direção à fórmula não é nem

ficcional dessas experimentações sensíveis em pensamento e o modo como esse pendor é

interferente na dimensão crítica de seus gestos bem como nas condições críticas que as entorna. 17

“Em primeiro lugar, temos o problema da abertura, ou seja, como nos levar de onde estamos,

que é, por enquanto, lugar nenhum, para a margem de lá. É um simples problema de ponte, uma

problema de construir uma ponte. Problemas que as pessoas resolvem todo dia. Resolvem e, uma

vez resolvidos, seguem em frente.

Vamos supor que, seja como for, a coisa esteja feita. Vamos dizer que a ponte está construída e

atravessada, que podemos tirá-la da cabeça. Deixamos para trás o território onde estávamos.

Estamos do lado de lá, onde queremos estar.” (Coetzee, idem.)

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linear nem íntegro. Ele é cíclico e intempestivo — mobilizado pela fórmula e as

relações que ela agencia —, e os índices que o manifestam são equívocos e

convulsivos. Esses modos inquietos de agência, nesse ínterim, são pensados como

constitutivos da fórmula.

Nesse viés, o ensaio em que ela aparece foi lido como um exercício dessa

afecção-convite, um exercício oscilante e difusor, que põe em jogo a alteração

perceptiva e nela se põe em jogo. Essa afecção-convite se mostra ambiciosa, como

já se disse, da catálise de linhas de fuga. Pois bem, sustento que essas linhas se

sugerem num comportamento de corpo estranho, trânsfuga, que a fórmula

performa no corpo da ensaística saeriana.

Meu esforço se deteve em mostrar de que modo a fórmula e a ensaística de

Saer, quando postas em série, ensejam uma inflexão de leitura a partir da qual se

pode reler (quase) toda ensaística de Saer a partir de um acento que não tem

comparecido entre seus leitores e comentadores: suas dimensões antropológica e

fictocrítica.

Não é só a ensaística de Saer, porém, que se lê em perspectiva alterada a

partir da emergência da fórmula. Esse é um suposto de sua configuração material:

pretende servir como filtro de base: quer incidir na percepção da ficção de um

modo global — desde sua formulação e na medida em que entende que a

percepção se formula. Global e singular, haja vista que as disposições

antropológicas são indissociáveis de suas vinculações contingenciais, mesmo que

borradas e pulverizadas, como se sugerissem em termos tirânicos de

universalidade — outro nervo.

Em minha leitura, vejo aí a insinuação de um viés problemático, no nível

cosmoestético, da fórmula, bem como — daí a nervura — da sua corruptela: as

ficções, sendo “inseparáveis” daquilo que tratam e do modo como tratam18

,

18

Essa é a concessão feita, em todo ensaio, a um princípio de identidade que se exercita pela

ficção, embora haja quem leia esta isomorfia como inevitavelmente equívoca e equivocadora (em

termos de contraefetuação tradutória, em consideração à antropologia filosófica de Eduardo

Viveiros de Castro) e, portanto, paradoxalmente, mantenedora e propiciadora de uma experiência

de obliquação: um obliquar-se em outro. De uma forma ou de outra, me preocupo, ao lidar com

essa leitura, que é de Alexandre Nodari, para o conceito de ficção de Saer, na medida em que ela

redunda em uma pressuposição da literatura (e da arte) como um terreno de anomicidade, ao

mesmo tempo em que deduzem a validade, quase em termos de universalidade (no quadro da

eficácia da contraefetuação tradutória), sem ressalvar, tanto dessa isomorfia (considerando uma

larga margem de manifestações artísticas que parecem investir na direção oposta e, logradamente,

nos proporcionar outras obliquações) quando da anomicidade (na medida em que ela vulnerabiliza

a arte para o risco da excepcionalidade [uma que ameaça de ser afim da excepcionalidade do

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podem ser postas a serviço do princípio de identidade, da correlação, da não-

contradição, entre outras instituições diante das quais as ficções recuam em

refração. As ficções, como também é o caso da fórmula, são elusivas, na medida

em que, como a matéria vivida, não se mostram por inteiro. A partir da

performance mesma da fórmula, pode-se flagrar esse caráter elusivo e, ao mesmo

tempo, exercitador da elusividade.

Nessa linha, penso na fictocriticidade do ensaio e outras manifestações

discursivas em que ganha relevo uma dimensão de ficção, assim como a matéria

vivida do que existe e inexiste sob espécie de ficção — como o anverso não da

realidade, mas de uma polícia do sensível (cf. Rancière, 1996, p. 4119

), cuja

emergência é potencialmente inscritora da força diruptiva do diferinte [otherwise

(cf. Rancière, 2004; Povinelli, 2012)].

Quero dizer, com isso, mais coisas: a primeira, os termos do deslocamento

(o ponto de partida e o destino) não são situáveis; a segunda, a fórmula se

comporta como um corpo estranho na ensaística saeriana, evidentemente

debilitada pelo despropósito (por vezes, perverso) de muitas de suas posições.

Essa exceção não é redentora nem eximidora, é um índice que ativa a estranheza

sem a dissolver. A fórmula assim é inscritora de focos de rexistência

cosmopolítica que impedem que os ensaios de Saer subscrevam tout court

definições privativas de arte e ficção e sejam enclausurados por toda a

negatividade que o povoa; e a aproximação empreendida pela fórmula supõe e

humano, quando a arte é malogradamente demasiada rigorosa — quando urge ser, no mínimo e no

miúdo, selvagem e extravagante]). 19

“Chamamos geralmente pelo nome de política o conjunto dos processos pelos quais se operam a

agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos

lugares e funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição. Proponho dar outro nome a essa

distribuição e ao sistema dessas legitimações. Proponho chamá-la de polícia. Sem dúvida, essa

designação coloca alguns problemas. A palavra polícia evoca comumente o que chamamos baixa

polícia, os golpes de cassetete das forças da ordem e as inquisições das polícias secretas. Mas essa

identificação restritiva pode ser considerada contingente. Michel Foucault mostrou que, como

técnica de governo, a polícia definida pelos autores do século XVII e XVIII estendia-se a tudo o

que diz respeito ao "homem" e à sua "felicidade". A baixa polícia é apenas uma forma particular

de uma ordem mais geral que dispõe o sensível, na qual os corpos são distribuídos em

comunidade. E a fraqueza e não a força dessa ordem que incha em certos estados a baixa polícia,

até encarregá-la do conjunto das funções de polícia. Prova disso, a contrario, é a evolução das

sociedades ocidentais que faz do policial um elemento de um dispositivo social, em que se

entrelaçam o médico, o assistencial e o cultural. O policial está fadado nesse contexto a tornar-se

conselheiro e animador tanto quanto agente da ordem pública e sem dúvida até o seu nome será

trocado um dia, nesse processo de eufemização pelo qual nossas sociedades revalorizam, ao menos

em imagem, todas as funções tradicionalmente desprezadas. Utilizarei portanto a partir de agora a

palavra polícia e o adjetivo policial num sentido amplo, que é também um sentido "neutro", não

pejorativo.” (Rancière, idem)

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perpetua a execução de movimentos multidirecionais — multidirecionalidade para

a qual o jogo de aion se oferece como metáfora.

Nesses percursos, me esforço para pensar os problemas como afins, e não

como “comuns”. Essas problemáticas se mostram como superfícies curvilíneas no

traçado das quais se travam relações relatadas à fórmula. A fórmula, nos modes

como se oferece como catalisadora desses três vetores relacionais, ajuda a

circunscrever a discussão sem que se proceda por cortes definitivos que façam

desses mesmos problemas o terreno de uma definição privativa arte (cf. Foster,

2014, p. 161). A fórmula, em que se considere sua singularidade, parece compelir

a uma modalidade de experimentação das problemáticas desejosa da insurgência

do diferinte (otherwise [cf. Povinelli, 2012 e 2014]).

Para prosseguir com o tratamento e o reconhecimento dessas

problemáticas, para que não se pulverizam indiscriminadamente, busco o auxílio

das singularizações, das quais me sirvo como linhas de corte provisórias cujos

contornos são dados pela fórmula. Linhas que ajudam a rodear, pelos percursos da

fórmula, algumas das inquietações de que se ocupam o debate crítico

contemporâneo.

As problemáticas a que me refiro são algumas das tensões que ocupam a

operação crítica contemporânea. Em muitos de seus exercícios, o trabalho crítico

com literatura tem de se haver com os trânsitos que a experiência estética têm

arriscado em direção a problemas e no contato com inquietações que acometem a

antropologia, em especial a antropologia filosófica de Eduardo Viveiros de Castro

e alguns de seus colaboradores diretos. Entre essas problemáticas, a principal a

que me dedico é aquela que se mostra como uma sorte de impasse (impasse em

que a fórmula saeriana está imersa e entre as oscilações do qual emerge): a

demanda de alteridade.

A escolha pelo termo fórmula indica o viés pelo qual pretendo interferir na

discussão: a acontecimentalização e a rubrica mágica. A fórmula, quando

entendida como dispositivo xamânico-mágico-litúrgico, é um dispositivo cuja

aplicação — exitosa ou não, não importa — supõe uma aposta em um modo de

deliberação cuja gestualidade não se restringe à elaboração que quer se sustentar

em outras bases e reportar a outros solos pressuposicionais que não aqueles

respeitosos do credo crítico da modernidade ilustrada.

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A defesa que Saer faz da singularidade da ficção precisa ser considerada

não só no nível de suas realizações mas também no plano dos desejos que ela

torna manifestos. A fórmula reivindica uma mudança de atitude no tratamento da

ficção e entende que esse deslocamento da percepção é uma tarefa colaborativa. A

fórmula se oferece, em atenção a essa demanda, como uma experimentação

prospectiva, a ocasião de sua proposição se confunde com sua abertura como uma

tarefa vindoura, que no aqui e agora ainda não se efetivou, por assim dizer. A

defesa da singularidade da ficção por Saer passa por uma percepção daqueles que

nela tomam parte pelo exercício da percepção. Reforçando esse empenho, a

fórmula quer amplificar, pela alteração das percepções que se dirigem à ficção, o

potencial de refração desta última em relação aos assédios das instrumentalizações

ou como antídoto ante ameaças entropizantes. Saer diz no ensaio em que propõe a

fórmula que “a ficção, desde suas origens, soube emancipar-se dessas cadeias”

(CF2) — um dos movimentos do ensaio que prepara o terreno para sua aparição

derradeira no último parágrafo do texto. Ou seja, para que se amplifique, na

percepção da ficção, o potencial de refração que as ficções fazem em face da

pretensão de sua redução em termos absolutos.

2.1

A fórmula e a ensaística

O conjunto de volumes de ensaios de Saer pode ser dividido entre os que

foram publicados em vida pelo escritor argentino (as compilações El concepto de

ficción e La narración-objeto e o longo ensaio El río sin orillas) e as obras

póstumas (Trabajos e Ensayos: borradores inéditos). Essa distinção importa

porque, como se pode notar desde a abertura do volume homônimo ao ensaio que

enfoco: El concepto de ficción (Saer, [1997] 2012), as impressões que seus

ensaios recebem por parte de sua recepção é um assunto que interessa ao escritor e

interfere na visão crítica que ele mesmo tem dessa parcela de sua produção.

No que toca à recepção crítica dos seus ensaios, uma tendência me parece

digna de nota: os textos breves não recebem atenção detida. O fenômeno é

indicado tanto pela raridade de reações “limitadas” a essa “parcela” do corpus

saeriano quanto pelo contraste com a variedade de respostas dirigidas ao seu

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ensaio longo, El río sin orillas. Quando há recorrência a esses ensaios breves, isso

se dá em geral como material reflexivo de apoio em leituras focadas na produção

poético-narrativa de Saer ou de percursos escriturais circunvizinhos.

Neste primeiro movimento do capítulo, quero contrariar esta tendência e

assinalar um acontecimento cuja emergência se dá justamente no limite destes

textos. O acontecimento, diga-se, de rara felicidade a que me refiro é a aparição da

fórmula com a qual o escritor santafesino se arrisca em uma empresa ao mesmo

tempo familiar e estranha nos limites de seu percurso escritural. Com esta

fórmula, Saer propõe e exercita uma redefinição performativa do conceito de

ficção. Essa proposta e esse exercício se dão, expressamente, no último parágrafo

do ensaio “O conceito de ficção”, sem que deixem de ser configurados (e,

paradoxalmente, pressentidos) pelos movimentos que este texto concerta. A

fórmula é aquela com a qual Saer convida que se conceba “a ficção de um modo

global como uma antropologia especulativa.” (CF 4).

A felicidade da aparição da fórmula está em primeiro lugar no modo como

ela, primeiro, altera, lograda e perigosamente, os movimentos do ensaio que a

comporta, bem como os dos escritos ensaísticos que a rodeiam, fazendo com que

estes possam ser lidos em outra chave. Em segundo lugar está o fato de que a

fórmula se insinua como uma agência alternativa no corpus escritural saeriano,

uma estranheza que se mostra também quando a fórmula é cotejada com a

produção poético-narrativa saeriana. Por fim, a força da fórmula está igualmente

na sua capacidade de remobilizar os termos do debate crítico por cujos focos ela

passa. Tal remobilização do debate crítico parece expansiva, como os círculos

ondulatórios redundantes de uma pedra arremessada em um lago — e a cena

importa por suas repercussões mitológicas: uma pedrinha é arremessada e

promove contínuas perturbações na calmaria do reflexo narcísico. A fórmula

incide dessa maneira sobre a recepção crítica especializada alcançando paragens,

em tese, estrangeiras à escritura saeriana.

Em suma, a felicidade dessa manifestação da fórmula, e nisso está a minha

aposta, está no que ela faz diferir a ensaística saeriana, a produção poético-

narrativa do escritor e, finalmente, as paragens pelas quais repercute no debate

crítico. Trata-se de um diferir que tem o potencial de promover, a princípio, uma

experiência da alteridade: a alteridade dos ensaios, da poesia e ficção saerianas e,

enfim, da operação crítica avizinhada do gesto literário.

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A fórmula quer promover uma inflexão no reconhecimento do dissonante

— ou, para ser menos exato, uma percepção disruptiva do que se mostra

outramente (o diferinte [otherwise]).

A fórmula investe contra focos de refração ao potencial aberto e

vetorizado por essa inflexão aperceptiva da ficção cujos efeitos sobre a ficção são,

por suposto, indiretos: se há um desejo de reforma não é o das ficções

propriamente ditas, mas das percepções actantes, seja no âmbito de sua produção

quanto de sua percepção, sem as quais a ficção se substancializa e se desapega de

seu lastro de relacionalidade. Em seu investimento, Saer não tem a pretensão de

constituir método. Ele é ainda mais ambicioso, pois, com a fórmula, quer fazer

divergir a percepção desde os seus regimes de percepção, alterando-os

fundamentalmente — a rigor, é contra um solo pressuposicional, as percepções

sobre as quais se sustentam as existências da ficção, que a fórmula se insurge para

fazer vicejar o que antes se apresentava, muito por culpa de abordagens

esterelizadoras, como um toco calcinado. Ele aposta e se empenha nos

movimentos inflexivos e vinculativos da ficção a partir de uma remobilização das

percepções que se lhe dirigem, para que essas reconheçam mais uma vez e

inventivamente as fertilidades da ficção.

A fórmula também é discrepante, nos termos da gestualidade, percepções e

afetos que ela inscreve (e, relativamente, inaugura), de traços recorrentes na

produção poético-narrativa saeriana bem como nos modos como o corpus

escritural saeriano, no geral, tem sido lido por sua recepção crítica especializada.

Um desses casos de discrepância diz respeito ao crivo crítico de Saer a respeito de

que se trabalha nos seus ensaios, em relação à rigorosa (para não dizer cruel) ética

escritural — o que não se reduz a um rigor formal, diga-se — que informa sua

produção poético-narrativa. Como uma reação antecipada, como se prefigurasse

tal desconforto de sua recepção crítica em face da benevolência crítica do escritor

quando se dá o direito de publicar esses ensaios: como uma atitude concessiva em

face da “imaturidade” desses textos, está um cuidado de editor por parte de Saer

na seleção dos textos que compõem O conceito de ficção (Saer, 2012, p.7-8). Na

“Explicação” (op. cit., p. 7-8) — nota de abertura explicativa ao volume —,

percebe-se uma ambivalência por parte do escritor face às controvérsias que

alguns desses textos poderiam suscitar entre seus leitores. Controvérsias, em sua

maioria, suscitadas pelas posições e comportamentos do próprio ensaísta que, a

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despeito de suas ambiguidades, não as rejeita: “as coisas que pensava faz trinta

anos sigo pensando-as agora” (op. cit., p. 8). Ao contrário, as preocupações

expressas nesse texto de abertura indicam que, embora o autor chame a atenção de

seus leitores para as fragilidades desses textos, se responsabiliza afirmativamente

por sua publicação.

Entre os casos relativamente raros de reação crítica aos ensaios breves de

Saer, de início, sublinho o percurso do contato já duradouro de Alberto Giordano

com esses ensaios — desde o fim da década de 80, o crítico lê os ensaios de Saer

(1989). O crítico me interessou justamente porque documentava o traçado de uma

mutação e a configuração de um espectro de variação nos modos como esses

textos podem ser apropriados e lidos. A leitura de Alberto Giordano interessa

sobretudo na medida em que dá visibilidade a algumas das singularidades e

aspectos problemáticos que os ensaios suscitam, ainda que nem tanto pelas

posições que afirma em relação a esses aspectos. No que tange às ambivalências

na posição do Saer ensaísta em relação à publicação de seus ensaios e às

circunstâncias que a envolvem, Giordano (2010) lê um sinal de constrangimento

em relação aos focos de fragilidade, irrelevância e entropização aos quais estes

textos dão corpo.

Apesar de fazer uma leitura em alguns momentos truculenta, como quando

deduz dessas autojustificativas um desejo de manutenção de respeitabilidade

(Giordano, 2010, p. 1-2), Giordano contribui com um mapeamento de

particularidades e problemáticas tangenciais a estes textos. Nas ocasiões em que o

crítico se dedica a exercícios de leitura detida destes ensaios (Giordano, 2010 e

2011), eles os apresenta como um espaço de experimentação discursivo-escritural

cujos gestos e comportamentos tornam problemática sua própria inserção no

corpus escritural saeriano (sobre isso, ver também Premat, 2011). Entre os leitores

de Saer acostumados à sua produção narrativo-poética, não é de fato raro que a

leitura de sua ensaística suscite um sentimento de estranheza (Gerbaudo, 2011 e

Catelli, 2011).

Em Giordano (2010), tal sentimento é pensado a partir dos descompassos

da ensaística saeriana. Entre os descompassos flagrados por Giordano, sublinho a

ocorrência de três.

Em primeiro lugar, trata-se de um descompasso de ordem temporal: as

questões de que tratam os ensaios assim como os modos como essas questões são

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tratadas tornaram-se datadas. Sua relevância é circunscrita por uma ordem de

importâncias que não encontram o mesmo eco no momento atual. Para Giordano,

na ocasião em que foram escritos, ainda tinham alguma vitalidade, porém, no

contraponto com o estado presente dos mesmos debates, se vêem “alijados da

agressividade e soberba que os fortalecia quando ninguém reclamava sua

publicação” (Giordano, 2010, p. 1.). Registro que, conforme a nota de abertura de

Saer documenta, alguns dos textos que compõem O conceito de ficção já tinham

sido publicados — três, para ser mais exato, entre os quais “O conceito de ficção”

— e outros tantos, rejeitados. O que sustenta a argumentação de Giordano são os

casos em que o trabalho crítico de Saer está engajado demais em discussões que

parecem já ter sido superadas pelo debate crítico contemporâneo. Entre essas

linhas já defasadas de abordagem, por parte de Saer, em relação ao debate crítico,

ressalto, a seguir, alguns desses vetores, como são: (a) o caso de suas críticas ao

nacionalismo e, em sua esteira, à categoria de “literatura latino-americana”,

desenvolvidas em “A selva espessa do real” (Saer, 2012); (b) de sua defesa de um

princípio de autonomia em literatura que acaba por sugerir uma defesa da

soberania do exercício escritural-artístico (segundo a reivindicação e a invenção

de uma mitologia do escritor, em que o traço singularizante do gesto escritural

acaba por se confundir com uma idealização do ofício que outorga à prática

escritural o privilégio de um traço excepcionalizante e distintivo da experiência

humana nos termos de um marco civilizatório), como se pode ver em “Uma

literatura sem atributos” (Saer, 2012); (c) de sua demonização da indústria cultural

e do mercado literário, como em “A literatura e as novas linguagens” (Saer,

2012); (d) de seu desejo de saída à terceira margem da dicotomia entre crítica (e

leitura) engajada (com o marxismo [“A novela e a crítica sociológica” (Saer,

2012]), a psicanálise [“A invenção de Morel” [Saer, 2012] etc.) e formalista; (e)

da crítica ao biografismo ingênuo (identificado ao gênero non-fiction, lido,

redutoramente, na adesão a um princípio inegociável e hierarquizante de

identificação da verdade à verificabilidade (o verificável sobre o inverficável, (f) a

verdade sobre a ilusão etc.), tal como se pode ver em “O conceito de ficção” [CF];

e, por fim, (g) das defesas de uma precedência do lugar do escritor e de um lugar

de relevância da crítica etc. — a esse respeito, ver, respectivamente “A

perspectiva exterior: Gombrowicz na Argentina” (Saer, 2012) e “A narração-

objeto” (Saer, 1999).

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O descompasso, em segundo lugar, se mostra no tom adotado por Saer,

quando soa sentencioso, dogmático, doutrinário, no exercício de suas leituras e

juízos críticos. O furor axiológico e os vieses polemistas e doutrinários são

comportamentos constantes (e não, dominantes — ressalve-se) nos ensaios de

Saer, de fato. Como denuncia Giordano, esses escritos são repletos de flancos para

os seus próprios gumes. Quando lidos segundo os mesmos critérios rigorosos que

são aplicados às recensões críticas que esses mesmos ensaios comportam, Saer se

revela um crítico inconsistente. Alguns dos casos acima elencados para mostrar a

defasagem temporal denunciada por Giordano também servem aqui para indicar

essa maleabilidade das posições críticas de Saer, inclusive no ensaio que mais me

interessa aqui, aquele que traz a fórmula.

Por fim, o descompasso se deflagraria na distância entre os ensaios e a

produção narrativo-poética do escritor santafesino. Na leitura de Giordano, ganha

força a ideia de que os ensaios depõem contra o trabalho escritural de Saer. Em

face de sua produção com valor literário (valor que não se mostra na

argumentação desenvolvida por Giordano neste texto), ficaria ressaltada a

mediocridade dos ensaios de Saer. Os ensaios exporiam sua debilidade, tanto em

face do que performam por si, quanto postos em perspectiva de sua obra literária.

Giordano denuncia a existência dessa precariedade a partir de um argumento

opaco: os ensaios de Saer manifestam, para ele, uma confiança quase irrestrita no

registro convencional da operação crítica pelo exercício de uma fala

pretensamente íntegra e orientada segundo o rigor de um exercício implacável de

valoração, que se orienta, conforme o descompasso do tom de Saer anteriormente

sublinhado, a partir a presunção de um lugar de relevância da enunciação crítica

judicativa e vociferante. Por esse motivo, pela confiança nessas “instituições”, por

não se aventurar em experimentações que instabilizem sua enunciação e por sua

agressividade, os ensaios são acusados, por Giordano, de serem conservadores.

Cito:

Não tem muito sentido perguntar-se, no caso de Saer, se a crítica poderia ser

também uma forma da literatura. As reflexões e os juízos de seus ensaios são

mais em conformidade com a de um conservador, eloquente, perspicaz, que

aposta na persuasão sem aventurar-se em ambiguidades que o desviem de suas

certezas (como bom vanguardista, Saer sustenta um discurso axiológico que

discute tudo menos seus fundamentos). Mais que um estilo, há uma retórica que

tem duas vertentes principais: a polêmica e a doutrinária. (Giordano, 2010, p. 2)

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Conforme o fragmento indica, os ensaios de Saer não teriam relevância

crítica como “uma forma de literatura” porque os exercícios críticos levados a

termo subscrevem uma atitude, deduzo, que é avessa ao que Giordano requisita

em seu ideal de literatura e, em outros momentos, quando o compromisso de Saer

com as próprias teses, os supostos em que sustenta seu crivo crítico, é concessivo

e maleável. Esse traço de inconsistência de critérios não se mostra, sempre, nos

termos do mesmo comportamento denunciado por Giordano. Há casos, porém,

que destoam desses em que o viés moralizante e pontificial adotado por Saer é

predominante e indica quão confortável pode ficar o escritor santafesino nas

posições de legitimador autorizado do valor da literatura ou de destruidor de

reputações.

Esses casos destoantes são aqueles em que a inconsistência de critérios do

crítico Saer não indica falsos moralismos (as hipocrisias de linguagem, de

literatura, de arte, de antropologia, de crtítica etc.). São aqueles casos em que a

fragilidade dos critérios indica uma alternativa à moralização da e na linguagem

(ou literatura); ou seja, casos em que se pode flagrar uma operação crítica de

abdicação da enunciação moral-judicativa no exercício da leitura. Ocasiões em

que a operação crítica promove a insurreição de uma força de liberação e

potencialização do discurso que se trava no exercício das relações (alternativas e,

ao mesmo tempo, conservativas do potencial vital da ficção e do exercício

escritural, no geral — quando a linguagem verbal, ficcional e não ficcional, se vê

acossada por uma ameaça patente: o acirramento da entropização, figurada pela

imagem verbal da “pretensão de absoluto” [CF, 4]). A operação crítica, nesses

casos, parece reivindicar para si o exercício de uma enunciação (ou de uma

performance) que dá de ombros às disputas intestinas da crítica institucional.

Um desses casos — em que a fragilidade da argumentação de Saer, sua

precariedade, catalisa uma atitude alternativa — se flagra no fato de que os

ensaios, quando postos em série, formam um espectro de mutação aparentemente

irrefreável. Um dos focos dessa variação, por assim dizer, contínua, se manifesta

na reformulação processual (a partir de vieses, inclusive, conflitantes) de suas

definições de arte e literatura. Em atenção à denúncia de Saer como um crítico

inconsistente, para reunir motivos que me ajudem a evitá-la, caberia retomar a

omissão do texto de Giordano sobre quais são os traços identificatórios do

literário a partir dos quais procede, em perspectiva das reformulações constantes

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por Saer dessas definições, para mostrar que o descompasso está, e é mais

descompassado ainda nesse intervalo, entre as pretensões de Saer (em ininterrupta

“desobra” ou “inoperância” [cf Nancy, 2010]) e as de Giordano.

Se alguém tem curiosidade a seu respeito e quer se manter nos limites

deste texto de Giordano (leia-se “Saer e seu conceito de ficção” [Giordano, 2010])

deve fazer o trabalho de retorcer suas críticas a Saer a fim de, em negativo, ver

quais critérios norteiam a classificação de Giordano. Seguindo,

especulativamente, essa operação, pode-se dizer que as apostas formais e os juízos

críticos de Saer nos ensaios, segundo Giordano, estão protegidos da “aventura

[pelas] ambiguidades que os [desviam] de suas certezas”. (Giordano, 2010, p. 2)

Recorrendo a outro escrito de Giordano dedicado a Saer, um ensaio sobre

a escrita saeriana que ele publica no fim da década de 80, flagra-se uma

formulação mais crua desse suposto da identidade do literário pelo qual o crítico

parece ainda se orientar. Curiosamente, na definição de literatura que propõe e a

partir da qual trabalha nesse escrito, recorre à ensaística de Saer para sustentar sua

leitura, mais atenta à ficção do escritor argentino. Nesse escrito, Giordano arrisca

uma definição discricionária do literário: um “escrever no sentido literário do

termo” (Giordano, 1989, p. 28), e, para tanto, se apropria, com alterações, de uma

oposição operativa barthesiana desenvolvida em um texto célebre entre uma

escritura transitiva e outra, intransitiva.

A escritura “intransitiva” se recusa a se submeter a qualquer

instrumentalidade: trata-se de uma práxis pretensa e constitutivamente insubmissa

a qualquer determinação prévia. Para que o exercício escritural se constitua como

literário, nessa linha, o gesto escritural não pode assumir qualquer compromisso

prévio de transitividade o que significa afirmar a literatura como modalidade

escritural não-representacionista — no contexto do fim da década de 80, diga-se,

quando a problematização frequente da ideia de linguagem (e, sobretudo da

linguagem literária) como instrumento de representação já era clima de opinião

para a reflexão literária. Grosso modo, a escritura transitiva, em oposição, seria

aquela que se faz como instrumento ideológico ou em observância a um objetivo

pré-determinado, práticas escriturais pejorativamente chamadas de

“comprometidas”. Em suma, a arte que atende a compromissos prévios ao próprio

gesto artístico.

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A escritura intransitiva, por sua indeterminação prévia, assumiria com

radicalidade um princípio de autodeterminação; o seu potencial de intervenção

residiria justamente nessa ausência prévia de limitadores ideológicos,

psicologizantes ou de finalidades representacionais. Segundo Barthes, o que a

escritura que se consegue intransitiva ganha é justamente “o poder de abalar o

mundo, dando-lhe o espetáculo vertiginoso de uma praxis sem sanção” (Barthes

2007, p. 33).

Em outras palavras, no gesto de afirmação de uma autonomia ilimitada, o

gesto escritural (e esse impulso não reserva garantias) teria o seu êxito, no que

toca a sua capacidade de intervenção, se se constituísse, em sua imanência, como

uma força suscitadora de abalos neste mundo ao qual pertence. Há uma aposta na

deliberação capaz de mobilizar o espaço primal em que se inscreve o gesto

escritural, um espaço ou um intervalo de ilimitação no limitado deste mundo. Por

mais “automática” que seja a escrita, desse ponto de vista, ela se particularizaria

na medida em que seria insubmissa, mesmo que no ápice da impessoalidade, do

que é compulsório no uso da linguagem — uma possessão por linguagem — e

nisso está um suposto de sua relevância e um traço muito problemático da

imagem do escritor do ponto de vista de Saer — tal espaço ou intervalo, a um só

tempo anterior e imanente ao gesto escritural, Barthes chamará famosamente,

depois, de “o grau zero” da escritura e, ainda mais tarde, de “o neutro”. Nessa

região, a escrita literária se constituiria como tal na medida em que se constitui

como um gesto intensivo (em que a deliberação, embora residual, lá está) de sua

própria singularização.

Nestes termos, se há alguma fresta a partir da qual a literatura exerce o seu

potencial de intervenção — e, não necessariamente, de transcendência —, tal

fenda está no que a escrita quer desdobrar-se sobre as vinculações que contrai no

seu vir-a-existir. A esse respeito, diz o próprio Saer: “[o] trabalho de um escritor

não pode definir-se de antemão” (Saer, 2012, p. 264). A enunciação utilizada aqui

é paratática: defende uma prévia liberdade ilimitada do gesto escritural ao mesmo

tempo em que deduz dessa pretensão a existência de uma lei (um imperativo do

escritor), segundo a qual define uma coercitiva ética escritural. [Tal constatação,

de um gesto escritural autoconstitutivo, não destitui de gravidade os seus efeitos e

tampouco, para usar uma imagem saeriana, se exime de suas responsabilidades —

segundo a deflagração das vocações das ficções, segundo a reflexão que

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desenvolve, por exemplo, em “O conceito de ficção”, Saer defende que as ficções,

aquelas nas quais deposita suas esperanças, são manifestações ciosas de suas

responsabilidades: no tocante aos “rigores que o tratamento da “verdade” exige”.

(CF2)]

Embora resista a fazer concessões à instrumentalização da arte, pela

adoção de um construtitivismo radical (uma adesão sem concessões a uma suposta

liberdade irrestrita do estético), não passa aqui sem que seja sublinhado o fato de

que Saer e Giordano subscrevam em momentos distintos definições privativas de

literatura, mesmo que de vieses distintos ou mesmo contraditórios (no decurso de

seus próprios percursos, ligeiramente cartografados aqui. A definição privativa —

da arte, da literatura e da crítica de arte e literária ou de quais critérios a partir dos

quais se possa carregá-las ou expropriá-las de relevância e da capacidade atribuir

e destituir de relevância — é uma das “instituições” que se sedimentam na

ensaística de Saer. Curiosa e problematicamente — e esse é um dos motivos que

me levou a ver nessa parcela do corpus escritural de Saer auspícios de liberação

de suas próprias adesões a tendências nocivas da prática teórico-crítica —, nesses

mesmos ensaios, algo de muito promissor, e não exclusivamente desiderativo, se

promete e se arrisca. Tenho em mente a irrupção, em “O conceito de ficção”, da

fórmula que, na projeção em que se lança e nas relações em que se engaja, investe

justamente contra essas (as definições privativas) e outras “pretensões de

absoluto” (CF4)

A fórmula com a qual propõe e exercita uma redefinição performativa da

ficção — da percepção que se dirige à ficção — é um dos motivos mais

instigantes e problemáticos entre os que se sobressaltam no corpus escritural de

Juan José Saer. A fórmula se candidata ao mesmo tempo a operador crítico no

trato com a ficção e a intervenção crítica dirigida aos modos de perceber a ficção.

A fórmula se oferece como um dispositivo na posse do qual se pode ver a ficção

de outra maneira sem deixar de, pela intervenção que dirige, se arriscar a um

exercício singularizador dessa visada alternativa, ficcional, cujo modos de

existência são indissociáveis dos vínculos que contrai no trato com as percepções

que se lhe dirigem e por esses vínculos são remanobradas. Abordar essa

manifestação requer uma delicadeza suscitada pela singularidade do escrito em

que habita.

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Nas vinculações contraídas com o texto que a abriga e entretém relações

mutuamente constitutivas, nota-se que a aparição da fórmula é preparada por um

tratamento prévio da ficção que pretende defendê-la do que entende ser o

embrutecimento da ficção pelo embrutecimento das percepções que se lhe dirigem

e que a desviam das singularidades que as ficções performam a despeito dos

olhares de captura. O potencial da fórmula, porém, não se resume à denúncia e ao

desmonte dessas abordagens, que têm em comum a pretensão de dispor

instrumentalmente da ficção. Ele se traça, na tangente, como gesto afirmativo de

realce da vitalidade e do potencial de agência das ficções.

Tal potencial vital e singular de agência das ficções é o que Saer chama de

“paradoxo próprio” (CF 2) e, no pleonasmo do paradoxo, de “aspecto

principalíssimo” (CF 4). Esse pleonasmo, ou, para ser mais exato, o paroxismo do

paradoxo da ficção se positiva no percurso adotado pelo ensaio, um percurso que

erra entre o procedimento dialético, marcado por um vetor de negatividade, e a

enunciação paratática e elusiva, disruptiva de um modo de pensar que é estranho a

qualquer dialética. Os movimentos do texto, até o último parágrafo, adotam uma

mesma atitude, a um só tempo, alheia e atenciosa à tarefa de uma redefinição

intensiva da ficção. Postura que pende entre a defesa do que é essencial da ficção,

contra as atitudes que pretendem deduzir um princípio universal a partir do qual

se possa ler a ficção — o essencial é a relação e a singularidade incontornável de

sua instauração —, e a proposição intermitente de formulações verbaisnão são

nem essenciais nem inessenciais, uma vez que seus modos de agência são

refratários à pretensão essencialista.

Essas formulações indicam um comprometimento de Saer, mesmo que

pusilânime, com suas próprias teses e ambições antirreducionistas — com uma

redefinição da ficção que se ofereça como um antídoto a essas leituras que lêem a

experiência literária e artística segundo uma definição privativa e unívoca. Pois

bem, essa aposta reafirmada no caráter paradoxal da ficção comparece no último

parágrafo, aquele em que o escritor argentino propõe a fórmula a que já repetidas

vezes me referi. Veja-se:

Por causa deste aspecto principalíssimo do relato fictício, e por causa também de

suas intenções, de sua resolução prática, da posição singular de seu autor entre os

imperativos de um saber objetivo e as turbulências da subjetividade, podemos

definir de um modo global a ficção como uma antropologia especulativa. Talvez

– não me atrevo a afirmá-lo – esta maneira de concebê-la poderia neutralizar

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tantos reducionismos que, a partir do século passado, se obstinam em assediá-la.

Entendida assim, a ficção seria capaz não de ignorá-los, mas de assimilá-los,

incorporando-os a sua própria essência e despojando-os de suas pretensões de

absoluto. Mas o tema é árduo, e convém deixá-lo para outra vez. (CF 4)20

Parafraseando: no trecho, Saer enuncia sucintamente em anáfora os

movimentos que o trouxeram até ali (a oração adverbial que começa em “por

causa” e se desenrola até a locução verbal que circunstancia); propõe a fórmula

(introduzida pela locução verbal) segundo a qual “podemos definir de um modo

global a ficção como uma antropologia especulativa”; e, por fim, extrai algumas

consequências dessa aparição derradeira e elusiva. Entre essas consequências, está

um impulso especulativo em torno de quais seriam os benefícios da adesão à

fórmula. Esse impulso se faz no enleio de uma nova retomada dos movimentos

que o ensaio performa, abrindo um precedente de leitura que sigo. Esse impulso

também é projetivo, e aqui se realça com mais ênfase o seu vetor especulativo. Ele

pode servir de “antídoto”, no tratamento dos impasses que acometem as

percepções que se dirigem às ficções. Antídoto esse cuja prescrição objetiva a

reversão e conversão dos assédios das “pretensões de absoluto” que espreitam o

ato de ler as ficções e nelas tomar parte. Por fim, após a extração em chave

especulativa dessa consequência, Saer deixa à posteridade da aparição da fórmula,

em função do “termo árduo” que circunstancia, uma tarefa a ser desenvolvida a

seguir. Assim, a aparição da fórmula se torna, por mais de um motivo, inquietante,

na medida em que se mostra capaz de deslocar tanto o percurso do ensaio quanto

o clima de leitura que a envolve. Em chave indicial, a ensaística saeriana pode ser

lida de forma ampla pelas prerrogativas abertas pela fórmula, sua aparição no

contexto do ensaio e da ensaística, como um corpo estranho; bem como pelo ela

deixa em aberto, irresolvido.

O próprio Saer se dedicou a refletir — para não que dizer tentou

esclarecer, pedagogicamente (o que não quer dizer que obteve êxito ou que tenha,

com os movimentos que foram conjugadas nessa tentativa, facilitado o contato

com a fórmula) — os sentidos da fórmula. Um dos canais em que faz isso de

20

[A causa de este aspecto principialísimo del relato fictício, y a causa también de sus intenciones,

de su resolución práctica, de la posición singular de su autor entre los imperativos de un saber

objetivo y las turbulencias de la subjetividad, podemos definir de un modo global la ficción como

una antropologia especulativa. Quizás – no me atrevo a afirmarlo – esta manera de concibirla

podría neutralizar tantos reduccionismos que, a partir del siglo pasado, se obstinan en asediarla.

Entendida así, la ficción sería capaz no de ignorarlos, sino de asimilarlos, incorporándolos a su

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forma expressa são em suas entrevistas, espaço de interlocução em que se

desenrolam algumas incursões ensaísticas de Saer (o ensaio como discurso em

que o pensamento é posto em ateliê, deflagrado em seu ponto de esboço,

rascunho, erro, borrón). Em algumas dessas conversas, quando reflete sobre o

conceito de ficção que a fórmula performa, define a literatura, de modo elíptico-

sintético, como “uma proposta antropológica” (Saer, 1988, pp. 1-6 et 52); em

outras ocasiões, de modo mais detido, desdobra alguns dos sentidos incrustados

na fórmula.

Tangenciando alguns desses sentidos, gostaria de sublinhar dois casos de

duas incursões reflexivas de Saer sobre a fórmula, ambas desenvolvidas no

sentido de “esclarecer” aspectos que parecem encobertos na formulação canônica.

Deixo estes dois fragmentos com o intuito de que eles ecoem durante as leituras

das seções seguintes. O primeiro caso é um trecho curto. Veja-se:

A ficção é uma antropologia especulativa no sentido de que, evidentemente, é

uma teoria do homem; mas não uma teoria empírica, nem probatória, nem

taxativa, nem afirmativa. É somente especulativa. E, ao dizer isso, há que ter em

conta que no especulativo cabe também a palavra “espelho”. (Saer, 1997, p. 15)

O segundo é um trecho mais longo de outra entrevista em que os vetores

acima abrangidos pelo conceito são desenvolvidos de forma um pouco mais

detida, por isso, eu o transcrevo integralmente. Veja-se:

MARGARITA MERBILHAÁ (Universidad Nacional de La Plata) E também

creio que logra chegar a definir com uma imagem que me parece muito boa: “a

exploração do homem não cultural”, esse lado especulativo de sua escritura e isso

um pouco nos instala em seu programa poético, que é buscar a presença ou

digamos, trabalhar a zona de experiência que tem que ver com o sonho (sono), a

loucura, que você menciobava em As nuvens, a “ensonhação” diurna e a

percepção primária, também, como um mais “aquí” do cultural que há no homem,

como um lento despojamento que só é possível na escritura. E, nesse sentido, me

ocorria pensar que, ultimamente talvez, se esteja agudecendo mais em você esse

gesto antropológico, ou de busca em torno de como fazer uma antropologia com a

experiência literária.

SAER - Bem, implícita, naturalmente. Essa antropologia está presente em toda

literatura, implícita ou explicitamente, consciente ou inconscientemente, em toda

boa literatura. Podemos, por exemplo, distinguir entre Beckett e Faulkner e

Beckett e Arlt que cada qual tem uma concepção do homem, a isso chamo

antropologia, que é própria de cada um, é pessoal. Também a chamo especulativa

em meu ensaio “O conceito de ficção”, e é especulativa porque não é nem

empírica nem elaborada intelectualmente. E também no especulativo está a noção

própria esencia y despojándolos de sus pretensiones de absoluto. Pero el tema es arduo, y conviene

dejarlo para otra vez. (Saer, 2012, p. 16.)]

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de texto segundo a qual digamos desde faz bastante tempo se atribui essa função

de espelho à literatura, à narrativa e à poesia, inclusive. (Saer e Merbilhaá, 2000)

2.2

A fórmula e a novela O enteado

Até agora se pensou a fórmula no âmbito da ensaística saeriana e das

reações que sua recepção crítica lhe dirige; agora, dedico-me a um exercício de

leitura que serializa a fórmula, a narrativa saeriana e algumas reações críticas que

exploram as relações entre essas duas. O exercício consiste em tomar a fórmula, a

narrativa e suas reações críticas como séries que se configuram entre e ao largo de

si como rizomas e palimpsestos de percepções, sem que se queira deduzir dessas

relações uma chave de leitura que resolva suas tensões ou forneça uma

perspectiva englobante no domínio da qual elas se organizem. Parto do suposto de

que nos âmbitos dessas relações sugestivas entre a fórmula, a narrativa e as

respostas que ambas recebem quando postam em comunicação horizontal e

transversal, traçam-se como zonas de contato-contágio mútuo.

A produção narrativo-poética de Saer é vasta. Ao dizer narrativo-poética,

refiro-me tanto à produção poético-narrativa “convencional” quanto aos

investimentos cuja filiação de gênero ou de domínio expressivo é deveras

problemática. Manifestações discursivas e escriturais que vão dos textos que

povoam seus volumes de contos e dos quais não se pode dizer que são narrativos,

passam por intervenções como entrevistas, artigos, participações em colóquios,

até aquelas ficções teóricas que o escritor leva a termo em seus ensaios e sobre as

quais já me debrucei no subcapítulo anterior. Dirijo-me, mais uma vez, a esse

amplo escopo discursivo-escritural de Saer erraticamente, mas, agora, com outras

lentes. Sua evocação se faz em resposta a outro interesse particular: experimentar

repercussões da fórmula no trato com a ficção narrativa saeriana dedicando

atenção a uma novela em específico: El entenado (1982)21

. Essa opção se justifica

em virtude das relações sugestivas com a fórmula que este relato torna materiais e

do modo como essas relações sugestivas são também exploradas por algumas

vozes que compõem a recepção crítica de Saer. Se a ensaística de Saer, seus

21

Doravante, O Enteado. As citações da novela que se seguem são extraídas da edição brasileira,

segundo a tradução de José Feres Sabino (Saer, 2002). As entradas bibliográficas de citação da

novela serão assinaldas, daqui em diante, com a abreviação OE.

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ensaios breves, não recebe muita atenção por parte da crítica especializada, o

mesmo não ocorre com sua obra poético-narrativa, cuja variedade de recepções é

capilarizada e heterogênea.

Dito isso, exploro algumas dessas tangências multilaterais entre a fórmula,

a novela e a recepção crítica que se dirige às relações entre a fórmula e esta

novela, para, nessa exploração, ver quais bichos vão se dar22

e, se eles se

insurgirem, arriscar relações com sua emergência. Essa empresa objetiva a

desestabilização das relações a que são submetidos, no interior dessas mesmas

recepções, os elos entre a narrativa saeriana em questão e a fórmula saeriana,

quando esses elos são imaginados como indicativos de correlações.

A presunção de que a novela seja um caso exemplar de “antropologia

especulativa” não enfraquece a fórmula somente, na medida em que a reduz a

mero contraponto teórico que troca em miúdos as vastas, complexas e singulares

operações conjugadas e experimentadas nessa narrativa. Ela também debilita a

leitura da novela, cujos experimentos conjugados, como já se sugeriu, extrapolam

o exercício de investigações de ordem etnográfico-antropológica. Como Saer diz

no ensaio em que propõe a fórmula, as ficções querem ser creditadas como ficções

(CF). A proposta reivindicada pela fórmula, conceber as ficções como

antropologias especulativas, empenha-se justamente na liberação e na proliferação

da virtual heterogeneidade das experiências vinculadas e performadas pelas

ficções (que não são somente as narrativas).

22

Na famosa entrevista dada Derek Attrigde (Derrida, 2014), Jacques Derrida reflete sobre as

relações entre filosofia e literatura tendo em vista seu percurso intelectual, passando, em

específico, por sua adesão envergonhada à narrativa. Vergonha que é uma tópica importantíssima

das ficções filosóficas que Derrida elabora na vizinhança do olhar do animal. Essa vizinhança de

algo à espreita, na entrevista, ganha a consistência de um impeditivo ao desejo de escrever ficções.

Não obstante, esse impeditivo passa a ser apropriado, como é o caso do Saer, como um impulso

em direção e uma abertura à disposição de uma força de alteridade bem como de seu potencial de

agência no fluxo do discurso e da escritura, força e potencial que são pensados a partir da

alteridade animal e o que se acontecimentaliza quando esse devir-animal se prolifera. É curiosa a

visão de Derrida, pois ela parte do suposto de que essa agência animal é reconhecida, a relação à

alteridade que, em termos levinasianos, é um estar em face do outro e, no contraponto deleuziano,

um sofrer na própria face a irrupção do outro (pela respiração ou, no caso de Deleuze e Guattari,

pelos “orifícios” e “poros”). Finalmente, aqui e lá e na dissolução das distâncias entre esses

dobradiças, cabe ao animal a decisão de sua insurgência. Nessa linha, Derrida parece expor uma de

suas posições acerca de como pensava o relato ficcional e seu potencial de interpelação. Além

disso, dá um indício acerca de suas ambições quando empreende a fabulação filosófica. Veja-se:

“Estou bastante consciente de que isso envolve um imenso desejo proibido, uma necessidade

irreprimível — mas proibida, inibida, reprimida — de contar e de ouvir histórias, de inventar (a

língua e na língua), mas tal desejo recusaria se mostrar enquanto não abrir um espaço ou arranjar

uma morada adequada ao animal que está ainda encolhido em sua toca, parcialmente adormecido.”

(idem, p. 56)

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O problema não está, penso eu, no deficitário quadro etnoantropológico a

partir dos quais são pintados os colastiné em O enteado: os colastiné da novela

não redundam de uma pesquisa etnográfica sobre os Colastiné, muito embora esse

quadro tenha grande importância para a leitura que desenvolvo aqui. A desleitura

— que aqui tem a forma do descrédito — está na presunção de uma relação de

correlação entre o que a fórmula advoga e a novela efetua (o que já sugere certa

assimetria no que toca aos graus de consistência de cada um dos dois gestos

escriturais). Se a fórmula convida a que se conceba a ficção de um modo global

como uma antropologia especulativa, a novela, cujos modos de enunciação são

evocativos do registro etnográfico, fornece o pano para a manga de uma leitura

que procede por transposição, para que se deduza, entre a fórmula e a narrativa,

uma relação de identidade.

E se subvertêssemos os termos dessa relação? O que se passa quando

fazemos se comunicarem as séries problemáticas que os ensaios inscrevem, a

partir da fórmula segundo a qual Saer define a ficção como antropologia

especulativa, com os focos de variação suscitados pela novela O enteado, também

de autoria do escritor santafesino?

Do mais alto até mais o ínfimo entre os movimentos infinitos de cada

série, inscrevem-se outras séries de problemas e problematizações mútuas. Séries

cujos modos de existir oscilam entre a permanência e a mutação. Cada um dos

lances que configuram a novela e o ensaio, pensados nos termos desse jogo, “é ele

próprio uma série (...) e emite pontos singulares.” (Deleuze, 2009, p. 62) No que é

possível ler o subcapítulo anterior em chave retroativa, a partir desse mesmo

suposto, não é incorreto dizer que as percepções da ficção que a fórmula agencia

— no nível das operações críticas convocadas e exercitadas pelos ensaios —

também promovem sensibilidades mútliplas e multiplicadoras dessas séries

infinitas. Esse modo de reconhecimento da fórmula, da narrativa e de suas

reverberações críticas reporta mais à noção deleuziana de problema, interna ao

volume filosófico Lógica do Sentido, que, propriamente, ao sentido que o termo

recebe no serialismo em música.23

23

Por série, nos termos do dodecafonismo schoenberguiano, entenda-se, grosso modo, uma

bricolage da “escala cromática” (Wisnik, 2006, p. 276) — escala dos doze tons (entremeados por

semitons). O dodecafonismo procura, na reflexão teórico-crítica proposta por Wisnik em O som e

o sentido (op. cit.), “ultrapassar o caso atonal pela definição da série — utiliza-se como matriz

composicional uma sequência de doze sons cromáticos sem repetição. O dodecafonismo é a mais

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A definição de série a partir da qual procedo, embora também se alimente

da matriz musical, tem relação estreita com os modos de composição sob

constante variação das fabulações filosóficas de Lógica do Sentido e do que nelas

se pensa como “problema” (Ferraz, 2005, p.33). Na “Décima série” desse livro,

Deleuze se dedica a pensar o “jogo ideal” (o jogo de Aion), algo cuja habitação é o

estado de “pensamento” e que só se carnaliza como “obra de arte” (Deleuze, 2009,

p.63). Esse estado “puro” do jogo, Deleuze o descreve por um curto manual de

instruções. São quatro as suas rubricas: 1) não se orienta por “regras preexistentes,

cada lance inventa suas regras, carrega consigo sua própria regra.” (idem, p. 62);

2) o jogo não secciona, ele afirma o acaso e o dissemina por cada movimento do

jogo; 3) as jogadas são, por isso, “qualitativamente distintas (...). Cada lance é ele

próprio uma série” (idem); e, por fim, 4) o jogo é sem vencedores e vencidos,

“sem responsabilidade, (...) em que a destreza e o acaso não mais se distinguem”

(op. cit., p. 63). Veja-se:

O jogo ideal de que falamos não pode ser realizado por um homem ou por um

deus. Ele só pode ser pensado e, mais ainda, pensado como não-senso. Mas,

precisamente: ele é a realidade do próprio pensamento que forma uma série em

um tempo menor que o mínimo de tempo contínuo conscientemente pensável. É

cada pensamento que emite uma distribuição de singularidades. São todos os

pensamentos que comunicam em um Longo pensamento, que faz corresponder ao

seu deslocamento todas as formas ou figuras da distribuição nômade, insuflando

por toda parte o acaso e ramificando cada pensamento, reunindo “em uma vez” o

“cada vez” para “todas as vezes”. Pois só o pensamento pode afirmar todo o

acaso, fazer do acaso o objeto da afirmação. E, se tentamos jogar este jogo fora

do pensamento, nada acontece e, se tentamos produzir um resultado diferente da

obra de arte, nada se produz. É pois o jogo reservado ao pensamento e à arte, lá

onde não há mais vitórias para aqueles que souberam jogar, isto é, afirmar e

ramificar o acaso, ao invés de dividi-lo para dominá-lo, para apostar, para

ganhar. Este jogo que não existe a não ser no pensamento, e que não tem outro

resultado além da obra de arte, é também aquilo pelo que o pensamento e a arte

são reais e perturbam a realidade, a moralidade e a economia do mundo. (idem)

Considerando, desse arquivo expandido, somente o que ganhou

publicidade com o aval de Saer, pode-se perceber que a presença das não-ficções

é decisiva na configuração do universo-Saer, dando-lhe a consistência de uma

gramovocomultiplicidade convulsa e beligerante, de registros e posições

(enunciativas, estéticas, políticas etc.).

completa explicitação do pano de fundo cromático sobre o qual se desenvolve o tonalismo, que

vem à tona engando todo diatonismo e todo movimento cadencial. Ele expõe à evidência um

tonalismo pelo avesso: o diabolus cobra seu preço” (idem. p. 143).

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Segundo Dalmaroni (2011), um dos potenciais da obra narrativa de Saer

está em que não cessa de suscitar afecções em leitores muito heterogêneos entre

si. São esses leitores que, em contraposição geracional indicam circunstâncias e

mudanças de interesse e ênfase que contingenciam o que parecia ser ponto

pacífico na leitura do escritor, multiplicam o potencial de variação latente na

escrita saeriana. Essa sobrevivência do potencial de interpelação da narrativa

saeriana que a sucessão de gerações de leitores insta e dá testemunho parece

convergir com a força de refração que a obra de Saer faz em relação aos

diagnósticos definitivos acerca de seu potencial de mobilização.

Pois bem, nesses espaços tangenciais, nos termos como os imagino e

percorro aqui, as fórmulas saerianas atuam como força dinâmica e incitadora de

problemas. Essas fórmulas — as que, como aquela em torno da qual este escrito

escolhe constelar, habitam os ensaios, na contramão de sua má fama — servem

constantemente como termo de mobilização e deslocamento, no âmbito da crítica

especializada, de reflexões em torno da obra narrativa. Esse dado indica mais que

a obviedade que esses leitores das narrativas de Saer são também leitores de sua

ensaística. Leio aqui um indício do constrangimento que podem suscitar os

ensaios de Saer, em função de sua debilidade flagrante e o caráter mais que

questionável de muitos de seus movimentos, quando o interesse é se utilizar deles

como obras que se sustentam por si mesmas. No quadro geral, sugerem-se como

construções precarizadas por suas próprias opções malfadadas.

No entanto, essa impressão se dissolve quando, no contato com os ensaios,

se percebe que ele é entremeado, segundo uma intermitência sem padrões —

espasmódica —, de singularidades expressivas e insights, sem que deixe de pesar

a precariedade de conjunto, que não vêm à superfície nos mesmos termos tais

como emergem na narrativa. Por outro lado, a estranheza desses textos em relação

à obra narrativa também não dá salvoconduto para que deles se utilizem como

paratexto ou ilustração da narrativa. (E, mesmo que desse, de que isso serviria?)

Digo isso, pois, curiosamente, essas singularidades expressivas (quando se tem a

sorte de serem elas as escolhidas) são continuamente apropriadas como

ferramentas de leitura ou termos de ilustração (em seus procedimentos de citação

respeitosos da exemplaridade e da correlação) para o que se coloca como

desafiador na obra narrativa e poética de Saer. Ora, seria possível extrair esses

curtos momentos de felicidades, pinçando-os dos ensaios de Saer como se eles

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não co-habitassem com esse ranço de moralidade e autoritarismo de sua voz que

parece ameaçar a sobrevivência do que há de mais promissor no que é pinçado?

A constatação da precariedade dos ensaios, contudo, não me levou às

mesmas conclusões, àquelas que insistem que a fragilidade desses textos se torna

ainda mais flagrante quando postos diante do “êxito” saeriano no trabalho

narrativo. Uma das minhas decisões e supostos metodológicos é recusar ler essa

fragilidade como prova de ineficácia em face de um êxito que se poderia provar

com mais elementos a partir da narrativa saeriana. Aqui e lá, as composições

escriturais de Saer são como palafitas em rio de múltiplas desembocaduras.

Entre os ecos da crítica que se propagam no espaço das relações sugestivas

entre a fórmula e a novela estão os trabalhos de Brian Gollnick (1995), Gabriel

Riera (1996), Paulo Cezar Thomaz (2001), Carlos Barriuso (2003), Cabral e

Alckmin (2010), Graciela Ravetti (2011), entre outros. Essas explorações das

relações entre a fórmula e a novela dramatizam um problema no limiar da qual

este subcapítulo se delineia e ao qual procura responder.

O ensejo dessa operação é dado por Gabriel Riera, porque talvez ele seja,

junto com Alexandre Nodari — com quem converso na sequência —, o leitor de

Saer com quem tenho mais afinidades. Quando Riera decide, assim como eu,

colocar em série a fórmula e a novela, a fim de propor relações que não são

íntegras, diz o crítico, nós concordamos. Porém, no antes, no durante e no depois

do tratamento e da proposição dessas relações, Riera faz algumas concessões que

recuso. A leitura de Gabriel Riera se baseia em um suposto que, apesar de

relativizado, é pedra de tropeço. Veja-se:

Propor-me-ei, no que segue, a levar a cabo uma elucidação (não sem

problematizar o teor da fórmula “antropologia especulativa”), a partir da leitura

de um texto para o qual, ou a partir do qual, a dita fórmula parece estar

confeccionada: O enteado. E, a tal ponto, que poderíamos arriscar uma sorte de

equivalência: O enteado = uma “antropologia especulativa,” ou seja, “O enteado

ou o conceito de ficção como ‘antropologia especulativa.’” Não obstante e, ao se

tratar de uma leitura que começa sem saber o que entender por “antropologia” e

por “especulação”, menos ainda por “antropologia especulativa”, a fórmula não

poderá constituir o marco de referência capaz de conter e resolver (como se disso

se trata-se) todas as aporias e paradoxos postos em jogo por O enteado.* A

pretendida equivalência entre o texto em questão, o conceito de ficção e a

fórmula que pretende defini-la não é uma equivalência plena e, por ende, todo o

peso da leitura não pode mais que cair sobre o como que nos permite por em série

os diferentes termos. (Riera, 1996. p.370)

* O grifo é meu.

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A tese defendida é a de que a fórmula é confeccionada como modo de

resposta ao experimento levado a termo na novela. Pautado neste suposto, propõe

uma nova fórmula que seja capaz de englobar a fórmula e a composição difusa da

narrativa, uma operação que se faz, curiosamente, com a intenção de preservar a

complexidade dos envolvidos. Fórmula que se define nos seguintes termos: O

Enteado = uma antropologia especulativa, donde se pode deduzir, O Enteado ou a

ficção como antropologia especulativa. O Enteado, nessa linha, circunscreveria a

“teoria do homem” que não se deixa ver, nos termos de Riera, por inteira na

fórmula. Esse caráter elusivo da fórmula é lido por Riera como o signo de uma

carência que é preenchida pela novela. A argumentação de Riera tenta contornar

certo desconforto quando diz que a margem sobre a qual se constitui a identidade

entre os dois termos da relação, que passam a ser dois por causa do seu

emparelhamento (quando deveriam traçar relações em mais direções) é uma zona

cinza, e que essa identidade é precária, pois sabe que sua parcialidade não esgota

tudo que podem dar os envolvidos.

Na leitura do seu ensaio (a leitura de Riera) se vê que tanto a fórmula

quanto a narrativa não se submetem pacificamente à redução. Sua reformulação

da fórmula, inclusiva da novela, deseja-se aberta às variações das duas agências,

contudo, no modo como propõe interposições entre as quais, acaba por encarcerá-

las de forma dramática nos termos da equação que propõe. Aqui o formulaico se

confunde, malogradamente, a uma receita.

Não basta dizer que há ausência de hierarquia quando se trabalha a partir

dela. Esse solapamento das singularidades se manifesta de forma indicial na

utilização, pelo crítico, do sinal matemático [o de igual (=)] como substitutivo da

partícula como (instauradora de uma dimensão de ficção e, portanto,

virtualizadora da heterogeneidade). Há entre os dois signos um desvio flagrante.

As constelações reunidas por cada uma das duas cadeias de sinais não

estabelecem, tampouco, uma relação homonímica. Há uma discordância de

significantes, o signo matémático vetoriza correlação, o como, um interstício de

variações cujas possibilidades de mutação que configura não são inventariáveis e,

além disso, parecem fazer guerra à identificação (cf. Nodari, 2015).

A tradução é infeliz, pois os lastros materiais que corporificam as duas

constelações indiciam vetores relacionais distintos. O como é uma partícula

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instauradora de uma relação de variação, fundamentalmente tradutiva — no caso

do símile, por exemplo, uma figura de linguagem, a relação que a partícula como

configura é diacrítica e bilateral. A partícula como, assim como o “era uma vez”,

também é um caso convencional de partícula instauradora de uma dimensão

fabular-fictícia, e essa é também, só mais uma de suas tantas valências

pragmáticas. Quando Gabriel Riera diz que a fórmula é como que confeccionada

para a narrativa e a recodifica a partir do sinal de igual, as relações que a fórmula,

a nova proposta por Riera, passa a tornar eficientes são as da correlação e da

analogia. A nova fórmula, além disso, faz com que — se há êxito na igualação dos

desiguais — se estabeleça uma relação de sucessão e de suplantação entre as duas

manifestações da fórmula: a de Saer e a de Riera.

Em que isso redunda? Em um descuido das singularidades que se sente

desde o enfraquecimento da partícula como e da variedade de relações que a

fórmula e a narrativa, entre si e cada qual a sua maneira, estabelecem ou às quais

se recusam a aderir. Digo isso, pois, apesar de pô-las em série, é a submissão de

uma à outra, a exploração de correlações entre a fórmula e a narrativa bem como

uma leitura em chave ilustrativa e hermenêutica que têm mais vigor na leitura de

Riera.

É a partir de dois ensaios de Saer que Riera presume uma “teoria da

ficção”, com a mediação da qual se arrisca à leitura do que está em jogo em O

enteado, nos termos de uma antropologia especulativa. O outro ensaio evocado

por Riera, além de “O conceito de ficção”, é “Zama: entre la incomprensión y el

olvido”24

. Este último ensaio compreende o posicionamento de Saer contra os

críticos que reduziram a obra de De Benedetto a uma “novela histórica” em um

sentido convencional. Defesa que se faz, paradoxalmente, pela afirmação da

novela como histórica em outra chave. Segundo Riera, Saer valoriza

hiperbolicamente essa obra e, a partir disso, cria uma “linhagem” – que, por sua

vez, não sendo propriamente sua, foi inaugurada por Borges, uma linhagem com o

24

“Toda narración transcurre en el presente, aunque habla, a su modo, del pasado. El pasado no es

más que el rodeo lógico, e incluso ontológico, que la narración debe dar para asir, a través de lo

que ya há “perimido”, la incertidumbre frágil de la experiencia narrativa que tiene lugar, del

mismo modo que su lectura, en el presente. El esfuerzo de Di Benedetto tiende, por lo tanto, a

exaltar la validez del presente y a hacerla más comprensible mediante un alejamiento metafórico

hacia el pasado.” (SAER. “Zama: entre la incomprensión y el olvido”, Clarín, “Cultura y Nación”

(Suplemento Dominical), Buenos Aires, 1986. Apud Riera, 1996, p. 370s)

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qual as relações que Saer estabelece são nominalmente pensadas como

problemáticas (Saer, 1999).

Riera defende que Saer “propõe, através de Zama, uma leitura de O

enteado, com a [qual] compartilha certas preocupações” (Riera, 1996, p. 370).

Zama é, para Riera, o “ancestral textual” (idem) de O enteado. Segundo Riera,

essa leitura desarma outras, empobrecedoras, às quais a novela é submetida nos

limites de suas vinculações historiográficas, como quando é lida como um relato

contratestemunhal do que se passou na ditadura militar argentina (cf. Gollnick,

1995). O retorno ao passado como “rodeio”, para Riera, “expõe a narração a um

espaço intersticial desde o qual o presente não pode nem ser nostalgicamente

recuperado, nem superado por um simples gesto de otimismo progressista.”

(Riera, 1996, p. 371)

Penso que exista uma alternativa a essas leituras que dão ênfase, quando

tratam das relações entre a fórmula e a novela, aos vieses etnográficos. Isso quer

dizer que estou, assim como esses outros leitores, me dirigindo às descrições e

digressões fictoetnográficas desenvolvidas no fluxo do relato pelo narrador-

personagem, mas não, como se sugere nessas outras leituras, em exclusivo.

Quando se travam relações com uma narrativa a fim de repensá-la de um modo

global como antropologia especulativa — algo que é reivindicado pela fórmula —

, isso requer reconhecer tais ficções sem desconsiderar sua singularidade, os

vínculos que contrai, as reflexões que desenvolve, as reações que suscita — sem

que, ao mesmo tempo, nenhuma dessas derivas forneçam chaves interpretativas.

Isto é, conceber as ficções como antropologias especulativas significa, nos termos

propostos pela fórmula, render-se à deriva incontrolável de sua multiplicidade —

multiplicidade que é pensada, e esta é uma tática de sobrevivência, como

disruptivas. Tal pretensão englobante, no entanto, deve ser responsiva à

circunstância de que a leitura não pode desconsiderar que tudo isso se processa

segundo uma inflexão ficcional. Como diz em “O conceito de ficção”: são

“[inseparáveis] do que [tratam]” (CF2). E, eu acrescentaria, não se mostram senão

nos vínculos que estabelecem (ou são forçadas a estabelecer: quando os vínculos

viram cadeias).

Quando perguntado em entrevista sobre o que significa entender a ficção

como antropologia especulativa, Saer assinala que ler a ficção sob espécie de

antropologia implica considerar a disposição antropológica que cada obra

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ficcional materializa em particular, sem se esquecer que a pretensão englobante da

fórmula não exorta somente à consideração da obra a partir dos vínculos que

contrai e das séries infinitas que vetoriza, mas também da ideia de que toda ficção

pode ser englobada por essa ideia.

O que é, diga-se de passagem, deveras problemático se se entende, nos

termos de Riera, que a fórmula subscreve uma antropologia coincidente com

aquela que a novela O enteado dá a ver. Mais problemática ainda se torna essa

identificação, entre as antropologias da fórmula e da novela, quando se percebe

que a antropologia tida por Riera como a inscrita por O enteado se confunde com

a ênfase que o narrador dá, aparentemente, ao ritual antropofágico dos colastiné

bem como às orgias que se sucedem ao ritual, como uma espécie de contraparte da

prática canibal. Saer contribui para essa visão quando, em outra entrevista, afirma,

como vimos, que isso que chama de disposição antropológica diz respeito à

“teoria do homem” que cada ficção torna material.

Como defende Daniel Balderston, no seu prólogo dedicado à novela

escrita entre 1979 e 198225

, O enteado é um caso de estranheza, uma “exceção

notável” (Balderston, 2011, p. 135), entre as narrativas de fôlego de Saer (além de

Las nubes e La ocasión), pois não se passa na en la zona. A estranheza da novela

é marcada, também, pela diferença de seu comportamento em relação à obra

pregressa de Saer — orientada por um experimentalismo formal. Em O enteado, a

exigência de narrar recobra primeira importância (Balderston. op. cit., p.). No que

toca à zona, ainda, aos seus habitantes, refiro-me aos personagens e ambiências

ficcionais que reaparecem de forma recorrente em diversas narrativas saerianas e

são vinculados à província de Santa Fé e imediações, a zona em que Saer viveu

até se mudar para Paris e não cessou de reocupar pelo trabalho escritural. Veja-se:

Como William Faulkner, como Juan Carlos Onetti, Saer inventa um elenco de

personagens, acarinha-se deles, e vai registrando ao largo de uma obra de anos

suas festas, suas pelejas, suas tragédias e alegrias. Carlos Tomatís, Barco, Pichón

Garay e seu irmão Gato Garay, Elisa, o Matemático, Ángel Leto, Marcos

Rosenberg. Washington Noriega e vários outros aparecem e reaparecem em uma

série de relatos e novelas extraordinárias26

. (idem, p. 134)

25

Balderston pontua que a novela foi escrita durante a última ditadura militar na Argentina. Para

mais informações acerca da gênese da novela, ver a edição crítica de El entenado e Glosa da

Colección Archivos (sob os cuidados de Julio Premat [Saer, 2010]). 26

Essa constelação de lugares e personagens, que reaparecem continuamente nas narrativas

saerianas, pode ser encontrada nas novelas Responso, La vuelta completa, Cicatrices, El limonero

real, Nadie nada nunca, Glosa e Lo imborrable; e em contos de En la zona, Palo y Hueso, Unidad

de lugar, La mayor e Lugar.

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Essa problemática de delimitação dos espaços desde os quais o escritor

escreve, que extrapola os exercícios narrativos27

, é uma das tópicas mais fecundas

da escrita saeriana e de sua recepção crítica. “Desde os primeiros relatos de En la

zona já se delineava a paisagem característica da obra posterior: o rio Colastiné,

braço do rio Paraná e seus afluentes; a ponte pênsil; as pequenas ilhas; a cidade.”

(Checchia, 2012, p. 158). Para Saer, esse “lugar” que acompanha o escritor para

“onde quer que vá” é menos semelhante ao “lugar de fala” (Pêcheux, 1975; e

Foucault, 1997), espaço de ocupação a partir do qual se dá a enunciação dos

sujeitos, e mais indicativo de algo que não se decide entre um permeio da voz e

um filtro da percepção, intervalo em cujo trânsito a escrita e os espaços se

entrecruzam e se constituem mutuamente, sem apoio em causalidades. Cito:

[O] escritor escreve sempre desde um lugar, e ao escrever, escreve ao mesmo

tempo esse lugar, porque não se trata de um simples lugar que o escritor ocupa

com seu corpo, um fragmento do espaço exterior de cujo centro o escritor está

contemplando-lo, mas de um lugar que está bem mais dentro do sujeito que se

voltou em paradigma do mundo e que impregna voluntária ou involuntariamente,

com sabor peculiar, o escrito. (Saer, 2012, p. 99)28

Quando o escritor é Juan José Saer e o espaço no qual sua vida se insurge

como força de contágio é a novela El entenado, o que se passa? Quais trânsitos se

dão nesses intervalos? Que zonas são escritas em O enteado quando essa força de

contágio, que se antecipa à escrita e a envolve, se exerce? Para complicar um

pouco qualquer tentativa de resposta a essas perguntas, está o sistemático

apagamento por parte de Saer dos rastros biográficos que deixa atrás de si,

constatação a que se chega quando se procura perscrutar o lastro biográfico do

escritor para ver, no reverso, o que se mostra nos seus escritos. Entre as variações

em resposta a um questionário enviado por Gramuglio, há uma entrada

curiosamente intitulada “Uma concessão pedagógica” que dá testemunho desse

trabalho de apagamento. Nela, se pode flagrar uma das poucas ocasiões em que o

escritor santafesino se autobiografa por um microrrelato destituído de gravidade.

Veja-se:

Dito isto, sim, eu nasci em Serodino, província de Santa Fé, em 28 de junho de

1937. Meus pais eram imigrantes sírios. Nosso translado até Santa Fe se deu em

27

Contra Checchia (2012, p. 158), que associa, privativamente, ao exercício narrativo — mesmo

no ensaio El río sin orillas — o trabalho contínuo de delimitação da zona saeriana. 28

A esse respeito ver também Scavino, 2004, pp. 60-64.

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janeiro de 1949. Em 1962, fui viver no campo, em Colastiné Norte, e em1968,

por muitas razões diferentes, voluntárias e involuntárias, fui para Paris. Tais são

os fatos mais salientes da minha biografia. (Saer, 2010, p. 316)

A região de borda (las orillas) da Bacia do Rio do Prata, que contagia a

escrita de Saer e por ela é vinculada, está na vizinhança e na tangente de O

enteado. A novela toma um desvio dela e, não obstante, toma-a de permeio. Esse

englobar se faz por uma operação de recuo temporal e espacial até a cena da

conquista dos territórios, o período crítico das invasões que massacraram vários

dos povos ancestrais que viviam naquelas regiões. Isto é, muito antes das

províncias de Santa Fé e imediações se constituírem enquanto territórios. Tal

recuo não exime de uma relação com os palimpsestos inscritos nesses territórios

pelo devir geopolítico e histórico que distancia o escritor desse período crítico

anterior à catástrofe (percurso que é percorrido de forma incisiva pelo longo

ensaio El rio sin orillas [1999]). Ele é, de través, promotor de uma relação cujos

vínculos são insolúveis. A novela histórica oferece uma visão imaginária do

passado e passagens imaginárias até o passado, um exercício de trânsito. Essa

zona do escritor (entre o permeio da voz e o filtro da percepção), ressalte-se, não

se confunde com uma assinatura autoral-biográfica.

Até aí, nenhuma novidade. A singularidade do caso, no entanto, não está

somente no assinalar de uma intempestividade (que é tempo-espacial)

indecomponível nos seus termos, mas em uma espécie de exacerbação do

aforismo shakesperiano the time is out of joint29

— a ponto de contagiar os elos

das relações que essa fórmula sugere. Explico-me. Segundo uma narrativa

convencional do moderno, o aforismo shakesperiano serve como imagem sintética

da instauração de uma nova sensibilidade, a partir da emergência das

“modalidades modernas de experiência” (com muitas aspas), que se sobrepõem a

uma outra, anterior, pré-moderna. No caso da narrativa saeriana, ela aloca a

operação de transtornar os tempos em seus gonzos no limiar que precede o “êxito”

na conquista e na invasão. Ela o faz quando torna esse intervalo anterior e o

introduz no coração dos documentos. O período em que esteve o narrador entre os

índios inscreve um dispositivo de conjuração e uma presença desconcertante que

se antecipam à conquista, invadindo-a e ocupando-a antes da imposição violenta

29

Shakespeare. Hamlet, I, 5.

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do seu ponto de virada da colonização como uma força de contraconquista.

Contraconquista que se antecipa à voz dos conquistadores e as toma de permeio.

No que diz respeito aos procedimentos de contraconquista pela ficção, está

o trabalho de pesquisa e composição dos personagens da novela e a operação

fictohistórica que tal trabalho efetua. Os índios da novela de Saer são pintados

com um compósito de caracteres pinçados de diversos povos ancestrais que

viviam na região e além (no tempo e no espaço), embora recebam o nome dos

colastiné (os colastiné da Colastiné de Saer). O repertório desses vestígios

históricos é processado pela imaginação ficcional ao ponto de trazerem muito

pouco consigo da consistência de fóssil e de documento histórico e etnográfico. O

reprocessamento desses índices históricos pela imaginação ficcional, diz Saer,

acaba por descaracterizar significativamente, também, os rastros biográficos dos

índios “reais” que, porventura, tenham servido de inspiração para os índios de

Saer. Veja-se:

Colastiné é o nome autêntico de uma tribo. Uma norma que eu sigo quando cito

um nome histórico, por exemplo de uma tribo, de um personagem, de um lugar, é

que sempre se tem de saber o menos possível disso. Na lista que dá Antonio

Serrano sobre os tributários dos guaranis nesta zona aparecem os índios colastiné,

dos quais não disse nada, dos outros diz alguma alguma coisinha, destes só está o

nome. Mas esse nome se transformou em uma toponímia muito importante em

Santa Fé, há um rio, há dois povos, Colastiné Norte e Colastiné Sul. (...) É uma

coisa muito atraente, porque é um nome que existe e que, ademais, tem uma linda

sonoridade, mas do qual não se sabe nada. Para mim, as novelas, estas sobre

personagens históricos, nas quais se reproduzem os rasgos históricos dos

personagens e se lhes atribuem coisas, não me atraem em nada. Muitos nomes, eu

os escolho por seu som, por como podem soar ao leitor. (Saer et al., 2005)30

O trecho é eloquente de uma das forças de refração que a novela instancia.

Se a ambição do leitor é a de presumir uma correlação entre a novela e a fórmula

com a qual Saer define a ficção como antropologia especulativa no nível da

constituição de um documento etnográfico ou de um relato histórico, a empresa

fracassará. Saer não parece interessado em fazer justiça aos povos nativos que

habitavam a região antes do mau encontro que redundou na colonização desses

territórios e no genocídio de muitos desses nativos. A etnografia e a historiografia

sobre os povos que habitavam a região nas quais a narrativa se baseia indicam que

é improvável que os Colastiné vivessem ali, no período das invasões. É mais

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provável, a julgar pelos relatos etnográficos, que os nativos que ali viviam fossem

os Lules. Dos lules se sabe que não eram antropófagos, diferentes dos indígenas

de O enteado. Dos colastiné, por sua vez, uma tribo que realmente existiu e que

residia, como apontam os documentos, em outra região que não aquela, não

naquele trecho da história, só fica o seu nome e por questões de sonoridade,

provoca o escritor.

O escritor, porém, perde a mão na provocação quando diz que dos

colastiné nada se sabe. A simples existência de relatos etnográficos sobre esse

povo contradiz de forma cabal a “constatação vazia” de Saer. É bem verdade que

não há muita documentação sobre como viviam os antigos colastiné; porém, isso

não é o mesmo que dizer que deles só tenha restado seu nome. Esse caráter de

minimum do fóssil histórico, o índice quase vazio inscrito pelo nome colastiné

(para o escritor, escolhido por sua sonoridade relacional, o modo como reverbera

nos ouvidos dos leitores), não é, em absoluto, desrespeitoso do fundo etnográfico

a que se vincula.

Esse procedimento é um dos que compõem a pesquisa arqueológica de que

se alimenta a novela, em sua dieta variada: uma pequisa, como se pode perceber,

errática.31

Tal procedimento dispersivo parece responder, na narrativa, a uma

ambição de mobilizar o solo aperceptivo. Não a percepção, mas o que vem antes

dela e a desvia a esmo. Essa mobilização, finalmente, se confunde com uma das

tônicas da narrativa: a vida entre os índios e a vida dos índios se aloca no antes da

experiência, um antes que a informa. Tal espaço anterior é o do “rumor arcaico”, o

mesmo que se agitava nos corpos dos índios de Saer e, em seus hábitos, com o

perdão do trocadilho, indigeríveis para o narrador. Trata-se do entressonho, o

entrecho da percepção em que se confundem o percebido, o sonhado e a memória.

O rio reverberante em que a memória e o relato se agitam.

As paredes brancas, a luz da vela que faz tremer, cada vez que se estremece,

minha sombra na parede, a janela aberta para a madrugada silenciosa na qual a

única coisa que se ouve é o pequeno risco da pluma e, de quando em quando, os

rangidos da cadeira, as pernas que, com cãibras, se remexem debaixo da mesa, as

30

Entrevista por Julio Premat, Diego Vecchio e Graciela Villanueva. Entrevista concedida no dia

04 de março de 2005 e publicada na edição crítica de Glosa/El entenado (Alción/Colección

Archivos). 31

A recepção crítica de Saer tem trabalhado com a tese de que os índices arqueológicos, históricos

e etnográficos que compõem os materiais de pesquisa utilizados por Saer no relato não se

restringem a uma fonte ou povoado em específico. Para mais informações a esse respeito ver

Romano Thuesen, 1995; Riera, 1996; Gollnick, 2003; Balderston, 2011; Ravetti, 2011 et al.

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folhas que vão se preenchendo com minha escritura lenta e que vão se encimar

com as já escritas, produzindo um estalo particular que ressoa na peça vazia —

contra este muro espesso vêm se chocar, depois do jantar, se não for um

entressonho rápido e frágil, o vivido. Se o que manda, periódica, a memória

consegue rachar esta espessura, uma vez que o que se filtrou vai se depositar,

ressecado, como escória, na folha, a persistência espessa do presente se recompõe

e se torna outra vez muda e lisa, como se nenhuma imagem vinda de outras

paragens a tivesse atravessado. São essas outras paragens, incertas,

fanstamagóricas, não mais palpáveis que o ar que respiro, o que deveria ser minha

vida. E, entretanto, por momentos, as imagens crescem, sinto como num vaivém,

entre dois mundos: o tabique fino do corpo que os separa se torna, ao memo

tempo, poroso e transparente, e neste instante é como se fosse agora que estou na

grande praia semicircular, que atravessa, de quando em quando, em todas as

direções, corpos compactos e nus, e na qual a areia frouxa, em desordem por

causa das pegadas desfeitas, mostra, aqui e ali, detritos reessecados depoistados

pelo rio constante, pontas de paus negros queimados pelo fogo e pela intempérie,

e até mesmo a presença invisível do que é estranho à experiência. (OE, p. 69)

Esse recuo ambicioso e cambaleante em direção ao indecidívelengloba e

desvia a percepção e o percebido dos corpos que se envolvem em sua leitura —

como no embate com um oponente que domina o kung fu bêbado, ele desarma

(quando instaura o paradoxo de bater em bêbado) e é capaz de contragolpear, ao

sabor da oscilação de seu corpo (quando o lutador é atacado por quem ignora o

paradoxo).32

O passo atrás trôpego da novela deixa rastros arqueológicos

oscilantes, ajudando a compor uma mitologia — não importa se a posteriori —

em torno de sua gênese, uma mitologia de miragens e afecções que não obstruem,

por completo, o acesso ao fóssil. Entre esses fósseis parcialmente encobertos, um

em especial salta difuso aos olhos, e é menos uma “peça” e mais uma relação,

uma relação com e aos fósseis históricos no trato com os quais a novela estabelece

vínculos decisivos. Quando Saer reflete sobre as operações históricas e

etnográficas (a proto-história e a proto-etnografia) que El entenado reivindica e

reinventa, o escritor dá pistas acerca desta tópica. Em “Memória del río” (2000), o

escritor santafesino informa que, na intenção original, a novela O enteado era

declinada por um desejo. Veja-se:

O que me incitou a escrever O enteado foi o desejo de construir um relato cujo

protagonista não fosse um indivíduo, mas um personagem coletivo. Na intenção

original nem sequer havia narrador: se tratava de várias conferências de um

etnólogo sobre uma tribo imaginária. Mas um dia, lendo a História argentina de

Busaniche, topei com as quatorze linhas dedicadas a Francisco del Puerto, o

grumete da expedição de Solís que os índios retiveram durante dez anos e

liberaram quando uma nova expedição chegou à região. A história me seduziu de

32

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=74OBuMA2qEk>. Jui Kuen II, 1994.

Último acesso em 15/08/2016.

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imediato e decidi não ler mais nada sobre o caso para poder imaginar mais

livremente o relato. O único que conservei foi o desenho que deixavam entrever

as quatorze linhas de Busaniche. O resto é invenção pura. (Saer, 2000, s.p.)

No intervalo entre a intenção original e a realização, se coloca uma

interferência que desvia os rumos da novela, antes de “nascida” (do lat. ante

natus: enteado, “antes de nascido”). O que incide são “quatorze linhas” (idem) da

História argentina de José Luís Busaniche (1984).33

Nesse fragmento, Saer se

depara com uma nota sobre Francisco del Puerto, único sobrevivente da expedição

de Juan Díaz de Solís aos arredores do rio da Prata, que viveu entre os índios

durante dez anos. Esse personagem histórico não tem sobrenome, órfão e filho dos

portos: Del Puerto, um homeless. Alguns cronistas dizem que esse destino trágico

da tripulação se deu porque foram devorados pelos índios; outros, que o que se

deu foi um naufrágio. Os documentos não são conclusivos, exceto sobre a

ausência de sinais e notícias sobre qualquer testemunho deixado pelo sobrevivente

de próprio punho.

A exceção a essa ausência de vestígios, o que impede que se diga que é

irrestrita, é indicada por Busaniche quando diz que o sobrevivente atesta a

veracidade de alguns dos rumores acerca dos povos ancestrais que vivam naquelas

margens. O testemunho, trocando em miúdos, é uma confirmação de expectativas:

os rumores são verdadeiros: “del Puerto afirmou que eram certas todas as notícias

recolhidas no Brasil sobre a Serra da Prata.”

A narrativa ficcional que a novela, por sua vez, leva a termo se localiza e

atua nessa lacuna. A novela faz uma opção ao variar em torno da experiência

desse grumete de nome Francisco del Puerto que viveu dez anos entre os índios

não se sabe bem se como refém ou hóspede. Que opção? O caso é que o destino

ficcional que a novela dá para a tripulação é, com exceção do grumete, a

devoração pelos índios em um ritual antropofágico. Isso não significa, porém, que

o transcurso do narrado se reduza ao registro desse período. Nas modulações da

percepção e da perspectiva e sua densificação pela experiência marcante dos anos

entre os índios — o que não se restringe, em absoluto, ao ritual propriamente dito

33

“Na costa norte do rio de Solís, só ficou como recordo do descobrimento um pobre grumete da

expedição, Francisco del Puerto, que se salvou da hecatombe e permaneceu abandonado entre os

índios. Francisco del Puerto se manteve na região até a chegada de Caboto, dez anos depois. (...)

Pouco depois se apresentou a Caboto, Francisco del Puerto, aquele marinheiro de Solís que vagava

pelas ribeiras do rio. Francisco del Puerto afirmou que eram certas todas as notícias recolhidas no

Brasil sobre a Serra da Prata.” (Busaniche, 1984, p. 14 e 17)

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—, o narrador encontra o “espaço de evidência” (OE, p. 107) da narrativa. O

retorno contínuo ao “grande ontem único de [sua] vida” (OE, p. 129) dá

tonicidade aos seus olhares, desde as primeiras linhas, e contamina cada episódio,

descrição, digressão e afeto que a narrativa corporifica. O rio da memória, sua

difusão irrestrita, vincula afeto e olhar.

Dessas costas vazias me restou, sobretudo, a abundância do céu. Mais de uma vez

me senti diminuído sob esse azul dilatado: na praia amarela, éramos como

formigas no centro de um deserto. E se, agora que sou um velho, passo meus dias

nas cidades, é porque nelas a vida é horizontal, porque as cidades dissimulam o

céu. Lá, de noite, ao contrário, dormíamos, a céu aberto, quase achatados pelas

estrelas. Estavam como ao alcance da mão e eram grandes, inumeráveis, sem

muito negrume entre uma e outra, quase faiscantes, como se o céu tivesse sido a

parede perfurada de um vulcão em atividade que deixasse entrever, por seus

orifícios, a incandescência interna. (OE, p. 11)

São tópicas da narrativa: a insurgência e a projeção. Do espaço intensivo

da percepção do narrador, a memória do período em que esteve entre os índios se

intromete no narrado sob a forma de um filtro e, ao mesmo tempo, como um

fundo. O percebido se contraprojeta e interfere, explícita e sub-repticiamente,

desde o começo do relato, como um modalizador da sucessão de imagens difusas

cuja localização não se sabe se está nas margens do rio, de onde flui toda

memória, ou na memória que revisita incessantemente o rio. O fluir da memória

torna as margens indecisas. O caso é que a memória acionada pelo relato e que o

alavanca não se distingue com nitidez da paisagem e do que se lhe impõe como

influência, o que promove sua variação. O comércio e a variação entre olhar,

paisagem, memória, afeto e variações climáticas modulam a narrativa do início ao

fim. Em outras palavras, a inconstância perspectiva se confunde ao arco da

narrativa.

Nesse imiscuir irrestrito, o vivido e o testemunhado entre os índios

mobilizam a escritura do relato, bem como do que vem antes e depois dele. Em

dado momento em que fala sobre Zama (Saer, 2012) de Antonio Di Benedetto, diz

que se trata de um caso de novela histórica. Saer, como é de praxe em sua

operação ensaística, trabalha mais no sentido de problematizar as noções, do que

de as instituir (ou reinstituir). O esforço no sentido da difusão de sentidos,

recolocando a tópica da “novela histórica” em disputa, quer fazer guerra à

estabilidade da operação correlacionista na operação conceitual-reflexiva. O

desvio é curto, mas não um mero detalhe. A geometria do conceito de novela

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histórica é desejosa de ortogonalidade em relação aos termos convencionais como

o problema se coloca e, por mais que redunde em outros convencionalismos,

trabalha no sentido de indistinguir a integridade das margens do que ela expulsa.

Se, como vimos no subcapítulo anterior, o lastro existencial tende a fazer refração

quando manipulado segundo uma disposição instrumental, é co-responsável pelo

afastamento do tratado. A percepção é interpelada para que possa ser implicada

por seu protagonismo. Cito:

Não se reconstrói nenhum passado, mas se constrói simplesmente uma visão do

passado que é própria do observador e que não corresponde a nenhum fato

histórico preciso.

A pretensão de escrever novelas históricas — ou de estar lendo-as — resulta de

confundir a realidade histórica com a imaginação arbitrária de um passado

perfeitamente improvável. (Saer, 2012, p. 45)

Tomar o que se propõe no ensaio como chave de leitura da ficção causa

prejuízos que envolvem os dois. A leitura se restringe às relações instrumentais.

Porém, ao por em série as singularidades, a ficção e a ensaística, supostas

enquanto variantes estranhas entre si e, não obstante, passíveis de relação (suas

virtualidades tornam-nas afins), tal afirmação sobre Zama se torna útil. Ela varia e

faz variar a novela. O Enteado, sua variante histórica, se configura pelos botes e

margens (orillas), entre o ficto e o histórico, que palmilham e desviam o

transcurso do narrado: o grumete, os colastiné e o rio da Prata. No viés desse

procedimento, a novela parece se oferecer como contraponto problemático para a

própria tese de Saer sobre a novela histórica que se descortina em sua reflexão

sobre a novela de De Benedetto.

O que a operação ficcional empreendida por Saer põe em relevo é que, em

primeiro lugar, a distinção entre ficção e história operativa na tese sobre Zama é,

no mínimo, problemática. Ao defender que Zama não leva a cabo uma

reconstituição linguistica (em “pastiche ou imitação” [Saer, 2012, p. 45]) do

idioma colonial, ou do período colonial, pauta-se por uma operação paródica. É o

arremedo, no estabelecimento de uma relação descontínua com os eventos em

relação aos quais a novela se oferece como tradução, que leva a Saer a deduzir da

novela benedettiana tanto a operação paródica quanto o que a caracteriza em

diferença à imitação ou pastiche. O dialético, no caso, se mostra no traçado de

relações incompletas entre a novela e a dimensão histórica (que, nesse caso, é a

“língua-fonte” da operação de tradução). O procedimento consiste em impor uma

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barragem ao, cito Saer, se recobrir o modelo (cf. Saer, 2012, p.45) pela tradução.

Na paródia benedettiana, esse recobrir é parcial. O “modelo” permanece,

parcialmente, exposto. A paródia, nesse caso, fornece um modelo de relação

incompleta, interrompida, nos limites da comunicação, inclinada para a afecção

ficcional, entre ficção e história. Saer, nesse momento, parece mais interessado

nas relações que propriamente nos seus termos: “a paródia [logra], (...) a partir da

relação mútua [que estabelece em termos parciais], um novo sentido.” (idem).

Na tangente, penso que a evitação da reconstituição linguística em Zama

— o que também se passa com O enteado —, pode levar a conclusões muito

diferentes dessas. O enteado é um caso de narrativa que fragiliza esse tipo de

distinções rígidas e inférteis como essa entre imitação, pastiche e paródia. Meu

interesse, porém, não está nessa filigrana conceitual. O que me interessa, aqui, é a

ideia de que o protagonismo da reflexão de Saer sobre Zama recaia na relação que

deve ser entre incompletudes, segundo a gestão de um procedimento que impõe a

si as barragens que o interrompem e, prodigiosamente, redobram-lhe a vitalidade,

sublinhando que, na ênfase posta por essas relações, a leitura passa por um

deslocamento. Em segundo lugar, me interessa que esse caráter de novela

histórica de O enteado, não sendo ambicioso da reconstituição de nada do ponto

de vista historiográfico-documental, se desenrola em vinculação estrita com

acontecimentos históricos de grande relevância para o que “virá a ser” a zona

saeriana, os territórios que a precedem. Por fim, a presença de botes

historiográficos marca a navegação até o passado por uma novela que não

pretende falsear temporalidades, mas fundi-las e atritá-las. São vincos na costura

da ficção, e não, casualidades. Sua inclusão habita o antes da novela e o

transtorna.34

O narrador da novela não consegue oferecer senão os seus próprios

espelhos e audições parciais, moduladas pelas passagens por que passa seu corpo

e os corpos dos índios. O olhar poroso desse narrador, poroso às interferências

ambientais e afetivas de si e de outrem, serve como filtro de base da construção

contínua de perspectivas com que se confunde o relato. Um filtro mutável,

maleável, poroso e permeável — diga-se. É uma constante na narrativa a variação

em torno da ideia de que a percepção passa por alterações. O intercurso da

34

O que antes era um projeto de livro de conferências de um etnógrafo ficcional passa a ser, após a

inclusão do fóssil histórico, um relato ficcional em primeira pessoa.

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narrativa se confunde com as modulações da percepção narradora, a percepção do

que se narra (cujo modo de manifestação é o de perspectivas e contraperspectivas

— o que se manifesta de través à perspectiva do narrador ou que se contraefetua a

partir de sua interposição —, modo patente de inconstância), e, finalmente, a

percepção da narrativa. Essa estrutura não subsiste, no entanto, sem o apoio do

leitor-ouvinte. O leitor é o anverso, sem o qual, a narrativa não passa de um

solilóquio.

Esse vetor de variação incidente sobre e a partir da percepção em narração,

um de seus modos de efetuação na novela, é o exercício de um registro de

enunciação complexa. Embora se fale em primeira pessoa, a consistência da

posição enunciativa é colocada continuamente em inflexão. A percepção se

declina obsessivamente. Essa oscilação perspectiva se manifesta na alteração dos

estados de percepção e declinação das condições de sua apropriação. Na novela, o

que se vê não pode, de forma alguma, ser isolado do próprio acontecimento

perceptivo que é o relato (numa novela que se empenha em um experimento da

percepção) e das vinculações múltiplas no trato com as quais ele se constitui. As

percepções alteradas: a dos personagens (sobretudo a do personagem-narrador) e

a da novela, porque supõe (quase que exigindo) mobilizações e remobilizações

constantes da percepção do leitor.

Narrador em que não se pode confiar, diga-se. Desconfiança que não se

coloca por requisição de uma premissa moral: a desconfiança é tomada como

matéria do relato e, do ponto de vista do narrador, deriva de um pano de fundo

cosmológico — aquele em que os índios estão imersos como soterrados. A

perspectiva é cambiante e isso parece ter relação com o gesto de transmissão que

o relato instancia. Nessas oscilações, o relato se configura como uma rede de

relações imanentes ao relato que, não obstante, impossibilitam qualquer

construção de identidade estável. Quando a identidade espreita, seu assédio é

destituído de pretensões de absoluto, mas não é sempre assim.

Sofre as intempéries das condições em que suas corporificações se

efetivam. Submerge sob as variações a que é submetida pelas variantes do clima,

pela convivência com os índios, pela vida em alto-mar, pela vida nos portos, pela

vida notívaga no convento etc. Se, para Beatriz Sarlo, Saer “narra a percepção”

(cf. Sarlo, 1980); eu acrescentaria que, em O enteado, Saer trabalha sob os

transtornos da percepção. O enteado, assim, me parece um experimento de

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variação da perspectiva cuja limitação catalisadora, o mote a partir do qual

desajusta as perspectivas, é: completar.

Esse limitador pró-variação é, em termos elliotianos, a barragem que o

escritor se impõe, agora sim segundo uma determinada moralidade de escritor,

para se abrir à emergência (que nunca é garantida) da singularidade do

acontecimento.

Como bloco de texto, sua construção lembra a do monolito, muito embora

marcado pela multiplicidade de percursos e por sua configuração material, um

dispositivo multivetorizado. Essa lembrança do monolito quer significar aquela

impressão que se tem diante do que parece ser íntegro. Como segmentar o que

está vivo? Como distinguir o que se mostra sob espécie de homogeneidade?

Essa primeira circunstância que se interpõe ao leitor desde o modo como o

corpo do texto, de longe, ganha forma, mesmo que sob as ondulações da miragem,

se coloca como uma dificuldade, sobretudo àquele leitor crítico de O enteado que

pretende dispor da novela sob os modos da tradução e versão de uma existência

ou evento que preceda ao gesto escritural. Refiro-me, ao trabalho do tradutor, que

supõe dois eixos de reorganização do traduzidos nos termos do próprio idioma35

.

O leitor, diante disso, trabalha com filtros focais e um deles pode ser a

marcação provisória do texto a partir da sucessão dos episódios que compõem a

narrativa, entre outras marcações, aquelas deixadas pelo próprio narrador, para

sinalizar as variações de percepção, de fases lunares do olhar e do olhado, do

clima que fazem incidir sobre os corpos que frequentam a narrativa, a passagem

do tempo, a mudança de quadro perceptivo (entre as casas do antes, durante e

depois da convivência com os índios, ou em torno desse divisor de águas que

compreende o período de dez índios que faz variar toda a novela). O narrador é

uma testemunha ocular e auricular, tátil e degustativa (em síntese, de corpo) cuja

enunciação e enunciado são capturados pela condição de borda da testemunha.36

Em outros momentos, nesse mesmo jogo de espelhos — que não somente

refletem, mas também refratam, fractalizam, desviam, revertem e, sobretudo,

35

Refiro-me aos eixos de segmentação, de transposição, suplantação e etc. do sequencial e do

intensivo no idioma, do que não se pensa se não sob o fluxo que o governa, como é caso,

respectivamente, dos eixos paradigmático e sintagmatico do idioma (duas traduções, segundo a

tradição estruturalista, desses eixos, nos termos do intercruzamento de fundo na construção das

uinidades significativas do idioma, o de segmentação e o de sequencialidade, que se articulam e

não se dissociam, no fluxo de um enunciado e se mostram desde as mínimas aparições fonéticas

até a manipulação de construções complexas).

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estilhaçam (nas muitas direções de seus pedaços) — a narrativa encena

dramaturgicamente e se encena como drama. A perspectiva dramatizada e como

via de dramatização. Esse é somente um dos vetores de entrada, e uma das

veredas, nas quais o texto se polifurca. (E, como nas viagens passíveis de

aventura, também são patentes os riscos de divergência e discrepância entre

viajantes e destinos. Pode-se sempre chegar a outro lugar. Mesmo uma toca,

segundo [e seguindo] os roedores, se bifurca em rotas.)37

A cena desse encontro e os jogos perspectivos que se entretêm no seu

deslinde são reprocessados em O Enteado também sob espécie de ficção. Essa

tendência se mostra na leitura de Riera, em mão única e em trilhos bem lineares,

da proximidade que existe entre certa antropologia corporificada na novela e a

“cena original” freudiana e, nela, a antropofagia lida como prática patricida e

narcísica, nos termos expostos em Totem e Tabu (Freud, 2012). Esse perigo se

espraia na sugestão interpretativa de que se trata de uma novela sobre e com

índios, mesmo que sejam, somente, índios fictícios. Nesse caso, a ancestralidade

corre o risco de ser capturada pela ferida narcísica, aquela que se deixa ver nas

reflexões etnográficas do narrador sobre os índios, mas não somente e não de

forma unívoca. Tal correspondência não se completa somente porque essa

cosmovisão não é exclusiva dos índios. Ela se irrealiza no que é tomada de

permeio pela percepção do narrador, a corporificação do lembrado, e no que isso

não se dá de forma unívoca e íntegra. A perspectiva do narrado é pulverizada e, ao

mesmo tempo, móvel. O arremedo das tangências e sugestões, os espelhamentos e

contraespelhamentos das cosmologias bem como algumas das reflexões de

narrador estão submetidos a um regime variável de percepção.

Em decorrência, coloca-se ênfase demais, uma similar à posta por muitos

interlocutores do grumete após os anos em que viveu entre os índios, no ritual

36

A esse respeito ver também Klinger, 2007. 37

Aqui eu me recordo de uma curiosíssima zona de confluência (e não de convergência), aquilo

que Deleuze e Guattari chamaram de agenciamentos homem-animal (sob a gestão do devir), entre

o coelho de Lewis Carroll (Alice no País das Maravilhas) e os índios de César Aira (La liebre) —

e muitos outros agentes hábeis nos trânsitos sub e infraterrâneos. Em ambos os casos, a ideia

explorada é que a incursão sob a terra, ou a infratérrea, essa da ficção, não deixa de se inscrever

como uma fábula moral, uma que oferece uma interessante contrafiguração para o que se passa

sobre a terra — considerando que, no seu anverso de fábula moral, o anverso da dimensão do

mito, tocado pelas duas narrativas, se abre como ocasião de aprendizagem de uma lição para os

que vivem sobre a terra [a alteração posicional aqui indica mais uma mudança de ethos do que da

localização gravitacional dos corpos] quando incursionam com o auxílio dos guias iniciados nos

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antropofágico e na bebedeira orgiástica que lhe sucede. (Mesmo isso, no entanto,

está sob derrisão, o que leva a perguntar se a antropologia de O enteado é ou

mesmo quer ser, mesmo em termos ficcionais, uma etnografia do ritual

antropofágico.) Quando se tenta, assim, não enfatizar o ritual antropofágico nem a

orgia que se segue a ele, nos termos de totem e tabu (porque aí é muito forte a

pregnância da pretensão de absoluto ou da antropologia do centro (e não somente

do presente, como diz Gollnick, da história humana) — uma das orelhas

referenciais da novela, orelha cujas margens de audição são afetadas (para não

dizer contagiadas) pelo modo de enunciação complexa de que se utiliza Saer em O

enteado.

2.3

A fórmula e a obliquação

A redefinição performativa do conceito de ficção como antropologia

especulativa, tal como proposta por Saer, tem servido como termo de mediação

para aproximações entre o pensamento de Eduardo Viveiros de Castro e o

literário. Essas aproximações à literatura se fazem muito em virtude das relações

sugestivas que o pensamento do antropólogo-etnólogo entretém no âmbito dos

estudos literários (pensamento esse que é marcado por uma dimensão, como já se

disse, cosmoestética). Entre os que se arriscam a essa aproximação, entre o

literário e as antropologias e etnografias que são levadas a termo por Viveiros de

Castro, está o trabalho de Alexandre Nodari, em especial o seu percurso recente,

marcado pelo esforço de experimentar essas aproximações com o auxílio do

conceito de ficção saeriano.

Neste subcapítulo, coloco em questão os caracteres da “exemplaridade” e

da “anomicidade”, quando atribuídos ao acontecimento literário (Derrida, 2014 e

Nodari, 2013), pela operação de aproximação equivocadora entre o conceito

saeriano de ficção como antropologia especulativa e a antropologia filosófica

marcada por uma dimensão essencial de ficção. Essa anomicidade, nessas

aproximações, tem sido pensada ora como prerrogativa ora como redundância da

outros percursos da terra que não os calcados: aqueles que os que vivem sobre a terra não

percorrem sozinhos.

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singularidade de uma experiência que se promete no trânsito, algo que é pensado

como uma singularidade do literário que o distingue de outros jogos de linguagem

e agenciamentos de enunciação, por se oferecer como via privilegiada de

experiência da alteridade na linguagem. Em suma, refiro-me a um quadro mais

amplo em que opera o suposto de que a experiência artística constitua algum tipo

de excepcionalidade entre as outras experiências no fluxo da existência daqueles

que por ela são atravessados. Este é um modo de entender a arte e a ficção literária

cuja difusão é ampla no espectro da produção artística e da reflexão estética no

Ocidente, inclusive em muitas de suas manifestações contemporâneas.

Há algum traço de excepcionalidade do literário na concepção de literatura

a partir da qual Nodari trabalha? A circunscrição de uma “República das Letras”

(Nodari, 2015, p.77) não seria refundante de uma imagem do homem fugitiva da

terra/Terra (e da vida terrana), isto é, a literatura como liconomia e via simpatética

da experiência não seria promotora de uma modalidade excepcional de

experiência do humano? A liconomia e a experiência simpatética seriam

promotoras de um regime de exceção à excepcionalidade do humano?

O problema, talvez, esteja em dois pontos (que são, talvez, três): o trabalho

do correlacionismo das fontes (a configuração de uma coerência de vozes, em

concerto); a interlocução exitosa (motivo que se comunica com o anterior, mas

nele não se restringe, pois ele diz respeito à configuração de um regime de

enunciação marcado pelo êxito de sua construção na promoção dos efeitos que ele

sublinha — um alinhamento entre o dizer e o querer dizer); e, por fim, a alteridade

liconômico-acontecimentalizadora (a experiência da construção de pontes para a

experiência simpatética que, quando exitosa, abre um caminho de precedência,

uma via privilegiada de experiência da alteridade do que não existe, inclusive).

Essa precedência da enunciação literária, como um ato performativo-intensivo de

inscrição ou de fala. Não seria este um gargalo, triplamente constituído, diga-se, a

partir do qual se experimenta não só o êxito, e a experiência do sucesso, mas

também um ideal de eficácia da linguagem?

Entre meu tratamento e o de Nodari se estabelecem relações de

semelhança e dessemelhança. A semelhança é a tentativa de reação ao

pensamento de Eduardo Viveiros de Castro, em especial a partir do conceito de

perspectivismo ameríndio e tudo que ele performa: uma agenda de descolonização

permanente do pensamento; uma teoria das multiplicidades das humanidades e

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linguagens; aquilo que o pensamento de Viveiros de Castro inscreve e

monumentaliza no que diz respeito à literatura, à leitura de literatura e da

apropriação numa chave alternativa da literatura.

O modo como essas possibilidades são exploradas por Alexandre Nodari e

com o qual tenho afinidade é a exploração em chave reversa – a apropriação

reversa, como se. Reapropriação da redefinição performativa do conceito de

ficção, segundo Saer, uma manifestação equívoca e equivocadora nos termos da

literatura do que se promete, em outros termos, no âmbito da antropologia

filosófica de Eduardo Viveiros de Castro (em que se realce seu pendor crítico e o

modo como reivindica e se exercita em um espaço de experimentação

cosmoestética), de sua reflexão etnográfica que passa em crivo crítico uma

tradição etnográfica e do modo como experiência limítrofe, essas duas

manifestações acabam se prestando como um testemunho e materialização de um

esforço de pensamento que se faz na xamanização, nos cruzamentos entre os

pensamentos dos antropologizados, dos etnografados, sem que qualquer um deles

possa ter uma posição de privilégio. E, se algum privilégio é dado, é às “razões”

dos outros: um gesto contraperformativo que inscreve na materialidade do gesto

de pensamento sua própria performance, que se faz em efeito de abismo em um

jogo de espelhos infinito e fractalizado.

O pensamento de Eduardo Viveiros de Castro não manifesta somente uma

dimensão estética: nos termos de uma experimentação cosmoestética vocalizadora

e tradutiva da imaginação conceitual dos povos ameríndios — que procede

segundo um suposto de autodeterminação ontológica desses povos (e,

reciprocamente, de outros povos, inclusive os nossos). Vocalização (em que se

inclua a escrita) e tradução cuja constituição é marcada por uma dimensão

essencial de ficção. Além disso, Viveiros de Castro se arrisca à reflexão nos

termos da literatura quando propõe e pensa ressonâncias (nem todas inauditas) da

imaginação conceitual dos povos ameríndios, o perspectivismo multinaturalista,

no contato com textos como “Meu Tio, O Iauaretê” (2001) de Guimarães Rosa, a

ficção de Clarice Lispector (em especial A paixão segundo G.H. [2009]) e, por

fim, a diversificada produção de Oswald de Andrade: a poética, os manifestos, os

aforismos e o quadro amplo de sua escrita-discurso.

É um caso digno de nota que as antropologias (segundo uma

multiplicidade que admite, inclusive, [contra-]antropologias) de Viveiros de

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Castro suscitem reflexão no âmbito dos estudos literários. No que diz respeito à

noção de perspectivismo, o pensamento de Viveiros de Castro têm servido de

mote para reflexões dedicadas ao literário e ao artístico; nesses casos, a hipótese

perspectivista age como força mobilizadora. São variados esses gestos críticos que

experimentam vinculações à arte e à literatura em reação aos experimentos de

pensamento de Viveiros de Castro. Penso eu que pouco se tem refletido sobre

essas pontes. Em face dessa carência de reflexão sobre os sucessos recentes do

pensamento do antropólogo no âmbito dos estudos literários, em perspectiva dos

poucos estudos dedicados a essas experimentações, me pergunto: essa

multiplicidade de gestos críticos, quando reivindica e experimenta vinculações

com o pensamento do antropólogo, aderem aos seus supostos?

A noção de perspectivismo ameríndio — o testemunho e a performance de

uma experiência radical de contato entre os mundos do antropólogo e os mundos

de seus antropologizados — se orienta, como diz o próprio antropólogo, por

“ideias-valores”. Elas por assim dizer pretendem ser repercussivas do pensamento

do outro que intenta etnografar e antropologizar nos termos de um pensamento-

outro: o nosso pensamento, de ocidentais, alterizado.

Em face dessas circunstâncias que emergem e configuram os gestos de

pensamento do antropólogo, e de outras que também lhes são imanentes,

pergunto-me, novamente: essas reações que seu pensamento suscita em terreno

estético, aderem a essas mesmas exigências? Em outros termos: elas aquiescem

aos mesmos radicais e, aparentemente, inegociáveis da resposta em que investe e

de que se investe o pensamento de Viveiros de Castro? Ora, segundo um

precendente aberto pelo pensamento de Eduardo Viveiros de Castro, a operação

tradutória é equivocadora dos dois termos postos em relação pela tradução. Esse é

um dos termos dessa resposta radical: ela, por suposto, não somente se expõe à

contaminação do outro, quando se dedica à sua tradução; como também deixa

algo de si no traduzido. Por isso, em reação a esse traço de singularidade do

pensamento do antropólogo, também me pergunto: quando essas reações críticas

respondem ao pensamento de Eduardo Viveiros de Castro, elas o equivocam? A

que perigos está exposto o pensamento de Viveiros de Castro quando é tomado

como o outro constitutivo dessas outras reações?

Um desses casos é o de Alexandre Nodari, sobretudo em alguns trabalhos

recentes dedicados à experimentação de modos de releitura do literário “sob o

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prisma do perspectivismo ameríndio” (Nodari, 2015, p. 75). O destaque que esses

trabalhos recebem se justifica pelo papel que a fórmula saeriana, segundo a qual

escritor argentino propõe e exercita uma redefinição performativa de ficção como

antropologia especulativa, recebe nessas reflexões. Essa escolha nos aproxima.

Também me aproprio, nestas notas, da fórmula saeriana como uma espécie de

tradução (reversa [cf. Wagner, 2010]), porque literária, do perspectivismo

ameríndio.

Além da contingência biográfica incontornável sobre a qual falei antes: fui

apresentado à escrita e à fórmula de Saer por Nodari; há outras afinidades eletivas

entre minha leitura e a dele na adesão a esse empreendimento.

Por muitos motivos, somo esforços a Nodari, sobretudo, quando ele

entende que o conceito de ficção se promete, como uma manifestação que traduz

(reversa e reversivamente) o perspectivismo ameríndio em termos literários. Se o

perspectivismo ameríndio é uma teoria antropológica e, também, uma teoria da

teoria indígena (cf. Viveiros de Castro, 2015a, p. 71-96), segundo o suposto de

autodeterminação ontológica dos povos ameríndios, que é marcada por uma

dimensão essencial de ficção; em chave reversa, o conceito de ficção como

antropologia especulativa se constitui como um gesto de resposta às

singularidades da ficção (entendidas em um sentido largo, global, como algo que

se abre a uma dimensão infletida da experiência, do vivente e do quem com ele

vive [as ficções, aqueles que vivem nelas e ao seu redor], e não como uma

modalidade discursiva que se identifique a um gênero ou gesto específico), e,

além disso, como uma teoria da percepção da ficção (percepção, diga-se, sempre

agente, mesmo que na ineficácia de um objeto que refrata, indefinidamente, um

ideal de eficácia) propositiva e elusivia: quer que se veja a ficção de outra

maneira, como antropologia especulativa, porém, nos termos do ensaio, adia tal

empresa e a “encobre parcialmente”, impedindo-a que ela se torne íntegra e se

revele integralmente.

Existem, ainda, outras semelhanças, sobre as quais não deixo de me voltar

enquanto levo adiante a empresa que, de fato, me interessa aqui: o traçado das

dessemelhanças.

A primeira delas e, ao mesmo tempo, a que deflagra com mais eloquência

a diferença entre nossas abordagens diz respeito à consideração das vinculações

que a fórmula estabelece nos limites de seu habitat. No caso de Nodari, muito

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embora se coloque ênfase na fórmula saeriana e nesse seu potencial promissor:

enquanto tradução em termos literários do conceito de perspectivismo, o ensaísta

não dedica muita atenção ao complexo de pensamento e de escrita do qual a

fórmula emerge e com o qual ela está vinculada. Nas aparições em que a fórmula

é convocada por Nodari, em seus textos, ela usualmente aparece isolada de seu

entorno problemático: a ensaística de Saer; as antropologias que se delineiam em

suas narrativas, sobretudo, O enteado; e as reações que lhe são dirigidas.

Essa inclinação na leitura de Nodari, cujos vigor e agudeza me parecem

indiscutíveis, se oferece, também, como um índice que manifesta uma tendência

no modo como se cultiva relações entre a fórmula saeriana e o perspectivismo.

A fórmula se comporta como um corpo estranho entre os ensaios

saerianos. Além disso, no ensaio em que aparece, insta uma invasão estrangeira:

não há indícios, antes da aparição da fórmula, de que se quer propor uma

redefinição daquela natureza. As reflexões que o ensaio compõe até o parágrafo

de proposição da fórmula: o último, com exceção do tema da intratável matéria

vivida do biografado, não dão pistas do movimento final: a projeção da ficção em

antropologia. Porém, mesmo diante dessa sua estranheza patente que habita entre

as estranhezas dos ensaios de Saer (em relação à sua produção narrativa e

poética), a fórmula saeriana estabelece vinculações com esse habitat que são

alterativas de suas repercussões. Não me parece promissor ignorar o fato que a

fórmula habite um ambiente tão hostil a algumas valências que sua aparição

suscita. A fórmula é tangenciada pelas apropriações redutoras que o próprio

escritor argentino faz dela, tornando-a, inclusive, nociva à literatura e à percepção

da literatura — quando diz que as ficções que se permitem ler como antropologias

especulativas são casos de “boa literatura” e que, em cada uma dessas ficções, se

inscrevem uma “disposição antropológica” e “uma teoria do homem”. A fórmula,

apesar de sua estranheza, não deixa de ter relações de parentesco com diversas

tendências do pensamento e das intervenções críticas também de Saer que

cumprem, muitas vezes, os papeis de obstáculo e antagonista no intento de

potencializar as liberações que a fórmula promete e exercita, pois sua

configuração não se desassocia por completo de um ensaio em que essas marcas

de afinidade se expressam de forma eloquente. O Saer do ensaio não é só o Saer

das promessas de liberação, é também, o Saer conservador e dogmático.

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Segundo Nodari, ler a ficção como antropologia especulativa é promissor

de uma alteração da percepção das ficções, estas entendidas também em um

sentido amplo: como humanidades — o que inclui outros casos de ciências

humanas —, que permita por uma dupla operação de constituição e reconstituição

de mundos, resumidas no que chama de obliquação do “eu”; uma operação que

permita tomar estes mundos em que cá estamos como contingentes. Cito:

Se a leitura é esse entrecruzamento (fazer o mundo consistir e também

desconsisti-lo, dando consistência a outros mundos descobertos), então ela não se

reduz à leitura de textos escritos, isto é, à leitura em sentido estrito, mas constitui

uma experiência de contato com o mundo e suas diferentes intensidades, uma

prática ético-política (ou ecológica) de adquirir uma consistência singular, mas

sempre fugidia, no encontro com as multiplicidades, um habitat (sempre precário

e finito) no cosmos, ou seja, uma experiência de antropologia e cosmografia, uma

antropologia especulativa. Todo mundo lê (o mundo) o tempo todo. (Nodari,

2015, p. 78)

Se, como o trecho atesta, Nodari lê na fórmula a promessa de um modo

alternativo de entender e exercitar a leitura. Essa não se deixa encarcerar em um

sentido privativo: se pronuncia como uma configuração singular e sempre fugidia

que deflagra a contingência do mundo, ele poderia ser de outro jeito, e constitui

outros mundos contingentes: os mundos da imaginação, em que estes mundos em

que cá estamos já se mostram como outros. Por se manterem nessa dinâmica —

entre a consistência de um mundo singular, indissociável das contingências que o

constitui, e a desconsistência do mundo em que está, este nosso, para que se

revele como contingente —, as antropologias especulativas — que não são,

somente, as literaturas — são uma prática ecológica e, ao mesmo tempo,

reivindicam que sejam lidas como tais. Ora, se a hipótese faz sentido ou não; isto

é, se é essa a dinâmica ou não que a fórmula saeriana acontecimentaliza, só se

saberá se a fórmula saeriana for também lida ecologicamente. Aonde quero chegar

com essa especulação? À impressão que os trabalhos de Alexandre Nodari deixam

quando se apropriam da fórmula: nesses trabalhos, o ensaísta tende a

desconsiderar que a fórmula saeriana habita um ambiente hostil à fórmula,

ambiente que, por essa hostilidade, torna-a problemática. Esta consideração bem

como as que se seguem não respondem àquela tendência cretina de muitos críticos

que cobram dos que lêem que façam algo que não estão dispostos a fazer. O que

se quer não é cobrar, mas tentar ler Alexandre Nodari na chave do que ele mesmo

propõe. Em outras palavras, submeter Nodari a Nodari.

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Um dos pontos em que a leitura de Nodari parece mais sensível ao

pensamento de Viveiros de Castro no que ele é promotor de reflexões desde os

termos do literário, é quando propõe — também com o auxílio de outras vozes,

com destaque para a de Clarice Lispector — a noção de obliquação. Por

obliquação, nos termos de Nodari, entenda-se o ego-experimentalismo que a

experiência do ficcional supõe e propicia. Obliquar-se, nesse sentido, se trata de

um "processo ilimitado de objetivação do sujeito". Processo ilimitado de reversão

do anthropos do homem. Pela experiência da ficção, o “eu” é submetido à

objetivação e vivenciado como um “mim” — o ensaísta se vale do que supõe a

ideia morfológica do pronome do caso oblíquo: em que a posição enunciativa da

primeira pessoa do singular é ocupada como se fosse a de um terceiro — um eu

como outrem. Na obliquação (no como se fôssemos eles, quaisquer eles, da

ficção), cria-se uma ocasião em que um “nós” (cujas formas de vida se abrem a

uma dimensão de ficção) e outros “eles” participamos de uma mesma humanidade

de fundo, vicária e intersticial. Nodari entende que neste ensaio de Saer em que

desponta a fórmula, “a ficção parece se situar na mesma encruzilhada entre

objetividade e subjetividade” (Nodari, 2015, p. 81).

Nessa chave, a ideia que ele sustenta acerca das antropologias

especulativas — são promotoras de práticas ecológicas: criações de mundos sob

contingenciamento —, ou, como ele diz em trabalho posterior, em relação a

alguns dos poemas de André Vallias, sem dúvida alguma uma operação crítica

mobilizada por esses poemas, que ler é uma prática tradutiva perigosa que coloca

em cheque leitor e lido, na medida em que a leitura é uma operação intersticial de

interlocução entre agentes capazes de intervir um no comportamento do outro,

constituem-se ecológica e, portanto, mutuamente, creio que seja o caso de se

perguntar acerca dessa contingência do pensamento de Nodari, quando destaca a

fórmula e faz desaparecer alguns dos rastros de sua aparição.

O diagrama que segui até aqui se desdobrou em três vetores de

desenvolvimento. No primeiro deles, dediquei-me ao modo como a fórmula

desponta, na ensaística de Saer, como uma sorte de corpo estranho. O esforço se

fez no sentido de oferecer resistência e propor um viés alternativo de leitura para a

tendência, que se repete na recepção crítica da ensaística, de aplainar as

complexidades da fórmula, bem como de outras formulações de potencial

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mobilizador, ao nível do varejo de outras teses triviais que frequentam os ensaios.

No segundo, busquei novamente propor uma inflexão alternativa que colocou em

quadro outra tendência entre os leitores de Saer: associar o que se promete na

fórmula ao que se exercita em suas obras narrativas. No terceiro, coloquei em

questão os caracteres da “exemplaridade” e da “anomicidade” que normalmente

são atribuídos ao acontecimento literário (Derrida 2014; Nodari, 2013), ora como

prerrogativa ora como benefício de sua experiência, algo que é pensado como uma

singularidade do literário que o distingue de outros jogos de linguagem e

agenciamentos de enunciação, por se oferecer como via privilegiada de

experiência da alteridade na linguagem. Em suma, referi-me a um quadro mais

amplo em que opera o suposto de que a experiência artística constitua algum tipo

de excepcionalidade entre as outras experiências no fluxo da existência daqueles

que por ela são atravessados. Modo de entender a arte e a ficção literária cuja

difusão é ampla no espectro da produção artística e da reflexão estética no

ocidente, inclusive em muitas manifestações contemporâneas.

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Da antropologia como ficção

Apresentação

Este capítulo quer potencializar repercussões e extrair consequências da

hipótese perspectivista, nos termos conhecidos de Eduardo Viveiros de Castro,

para o âmbito do debate teórico-crítico vinculado à experiência artística — em

especial no que ela implica e quer fazer devir cruzamentos aperceptivos.

Essa “grave” (ou “alta”) ambição é levada a termo por Eduardo Viveiros

de Castro no escopo de “experimentos de pensamento” comprometidos com a

repercussão tradutória da imaginação cosmológica indígena, sob equivocação, nos

termos de nossa imaginação conceitual ocidental.38

A radicalidade de tal

experimento está no que o antropólogo supõe no horizonte do perspectivismo

como “ideia-valor” (Viveiros de Castro, 2002a, p. 14) — a possibilidade de uma

adesão fundamental ao solo de ‘certezas’ e ‘incertezas’ que informa o pensamento

indígena, seu solo pressuposicional. Tal adesão é um requisito para que o referido

ideal de tradução seja efetivo, isto é, promotor daquilo que Marilyn Strathern

chama de “efeito etnográfico” (Strathern, 2014, p.345-405) — aí está o modo

como proponho compreender o que seja um cruzamento aperceptivo.

Em reação, me pergunto: o que aconteceria com nosso pensamento

vinculado à arte se, desde suas “raízes” — segundo um diagrama rizomático e não

conforme estruturas radiculares (cf. Deleuze e Guattari, 2011, p. 17-49) — esse

pensamento fosse ocupado por interesses e motivações que lhe são estrangeiros

ou, em grande medida, estranhos ao que o forma e o “informa”? Quero pensar,

nesse exercício, nas operações críticas como bioconfigurações, em larga medida

propícios às sobrevivências desses focos de permanência nas mesmidades, que se

definem relacionalmente em oposição à estrutura-Outrem (Deleuze 2009, p. 311-

38

Sobre a noção de experimento de pensamento e seus efeitos de repercussão ou ressonância, ver

Viveiros de Castro, 2013; Strathern, 2014 e Librandi-Rocha, 2012 e 2013. Sobre a ideia de

equivocação tradutória no processo de transcriação do pensamento indígena, ver Viveiros de

Castro, 2004 e 2015a.

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330) (aquela a que se quer aceder pela hipótese perspectivista), às práticas sociais

e culturais no seguimento das quais se conjura continuamente a forma-Estado etc.,

Mas também como espaços de contato-contágio com a arte e com seu próprio

devir-selvagem, os devires-selvagens da crítica desnudada de suas “pretensões de

absoluto” (Saer, CF 4).

Nesse sentido, quero me perguntar de que maneira a reflexão crítica pode

alcançar um deslocamento de seu solo pressuposicional, a partir da remobilização

de alguns de seus pressupostos e da potencialização de outros. Busco levar tal

experimento adiante por meio de uma leitura que transversalize a hipótese

perspectivista e alguns nichos do debate teórico-crítico estético contemporâneo —

somando esforços, inclusive, a outras empresas que também trabalham no reforço

e na invenção de possibilidades de experimentação dessas transversalizações

entre, de um lado, a antropologia filosófica de Eduardo Viveiros de Castro e

colaboradores, e, de outro, o âmbito estético. O exercício de leitura com que se

confunde este capítulo se desdobra por meio dos seguintes movimentos

reflexivos, quais sejam:

Começo por refletir sobre minha condição de não antropólogo enquanto

me arrisco a ler a obra de Eduardo Viveiros de Castro e outros antropólogos e

etnólogos colaboradores a partir de um precedente aberto pelo próprio

antropólogo, embora sob outra inflexão de leitura, quando positiva o seu lugar de

leitor antropólogo de literatura. Levando a sério uma provocação dirigida pelo

antropólogo a críticos e teóricos da literatura, por ocasião de suas incursões pelo

âmbito da antropologia disciplinar, quando invoca as errôneas abordagens desses

estudiosos no tratamento da esfera antropológica para legitimar o seu viés

transversal de leitura e as possíveis liberdades tomadas nesse sentido.

Na seção seguinte, intitulada Se os índios têm razão, dedico-me pensar

sobre as maneiras como o antropólogo procede nessa reorientação fundamental de

pensamento que propõe e, em especial, naquilo que me parece suposto em sua

configuração — o exercício e a suposição do cruzamento aperceptivo. Meu ponto

de partida é uma das ocasiões em que o antropólogo se dedica a explicitar em que

consiste tal empreendimento ambicioso: a última seção do ensaio “Perspectivismo

e multinaturalismo na América indígena” (Viveiros de Castro, 2002a), a “Nota

final” que abriga a “formulação canônica” (Almeida, 2008) da noção que faz

índice para o que o antropólogo chama de “qualidade perspectiva” do

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“pensamento indígena”, isto é, do conceito de perspectivismo transespecífico ou

multinaturalista (Viveiros de Castro, 2002a, p. 347). A evocação desse escrito se

justifica pela presença, nesse trecho do ensaio, de uma certa metáfora, a metáfora

do compasso. Aproprio-me dessa imagem, nos termos propostos por Eduardo

Viveiros de Castro, em chave aproximativa com outra imagem, aquela que propus

no início desta tese – a imagem de uma bússola orientadora e desorientadora do

desejo. O contágio entre as duas imagens se baseia nas próprias relações que se

sugerem na polissemia de compasso – palavra que denota tanto o instrumento

composto de duas hastes para traçar circunferências e tirar medidas que a imagem

de Viveiros de Castro privilegia, quanto o instrumento de navegação e orientação

espacial, a bússola, que eu mesmo tomo quis tomar como um catalisador.

Proponho tal aproximação para acentuar o que seria um regime de experimentação

“estética do pensamento” (Luft, 2012), regime considerado por Viveiros de Castro

como uma “dimensão essencial de ficção” à proposição do conceito de

perspectivismo transespecífico (Viveiros de Castro, 2002b, p. 123).

Em um terceiro movimento, retomo a imagem lévi-straussiana do estado

de confinamento que a arte e o pensamento selvagem compartilhariam, evocando

também a reapropriação que Eduardo Viveiros de Castro dessa ideia em chave

ligeiramente modificada. Desejo com isso colocar em quadro o argumento da

afinidade entre o “pensamento selvagem” (Lévi-Strauss, 2011, p. 257) e a arte,

refletindo, em perspectiva, sobre a tendência largamente popularizada no debate

teórico-crítico contemporâneo segundo a qual as “cercas” que confinavam a

experiência artística se vêem, no contemporâneo, severamente ameaçadas,

fendidas.

3.1

Como ler um antropólogo não sendo um

Como ler um antropólogo não sendo um? Esta é uma outra pergunta que

me coloquei muitas vezes desde o começo desta pesquisa, pergunta que penso ser

uma variação “imprevista” das perguntas que encabeçam esta tese — as quais,

por sua vez, são, ao modo de uma variação jazzista, uma releitura das perguntas

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que, como um anverso metateórico, provocam a proposição da noção de

perspectivismo transespecífico em Eduardo Viveiros de Castro:

O que acontece se recusarmos ao discurso do antropólogo sua vantagem

estratégica sobre o discurso do nativo? O que se passa quando o discurso do

nativo funciona, dentro do discurso do antropólogo, de modo a produzir

reciprocamente um efeito de conhecimento sobre esse discurso? Quando a forma

intrínseca à matéria do primeiro modifica a matéria implícita na forma do

segundo? Tradutor, traidor, diz-se; mas o que acontece se o tradutor decidir trair

sua própria língua? O que sucede se, insatisfeitos com a mera igualdade passiva,

ou de fato, entre os sujeitos desses discursos, reivindicarmos uma igualdade ativa,

ou de direito, entre os discursos eles mesmos? Se a disparidade entre os sentidos

do antropólogo e do nativo, longe de neutralizada por tal equivalência, for

internalizada, introduzida em ambos os discursos, e assim potencializada? Se, em

lugar de admitir complacentemente que somos todos nativos, levarmos às

últimas, ou devidas, conseqüências a aposta oposta — que somos todos

‘antropólogos’ (Wagner, 2010), e não uns mais antropólogos que os outros, mas

apenas cada um a seu modo, isto é, de modos muito diferentes? O que muda, em

suma, quando a antropologia é tomada como uma prática de sentido em

continuidade epistêmica com as práticas sobre as quais discorre, como

equivalente a elas? Isto é, quando aplicamos a noção de “antropologia simétrica”

(Latour, 1994) à antropologia ela própria, não para fulminá-la por colonialista,

exorcizar seu exotismo, minar seu campo intelectual, mas para fazê-la dizer outra

coisa? Outra coisa não apenas que o discurso do nativo, pois isso é o que a

antropologia não pode deixar de fazer, mas outra que o discurso, em geral

sussurrado, que o antropólogo enuncia sobre si mesmo, ao discorrer sobre o

discurso do nativo?” (Viveiros de Castro, 2002b, p. 115)39

Não se trata aqui apenas de recusar o papel constrangedor de dublê do

antropólogo — o que se impõe não por medo do ridículo, mas como dispositivo

de evitação do charlatanismo. O desejo de responder à antropologia de Viveiros

de Castro transcriando as inquietações e disposições citadas acima promove aqui

um exercício de leitura que quer levar absolutamente a sério essa antropologia

(cf. Viveiros de Castro, 2009) — nos termos das [contra]antropologias que

gestualiza e traduz performativamente (cf. Viveiros de Castro, 2015b) e a partir

das tangências que essa antropologia entretém com o estético. Trata-se de tomá-la

como uma estética de pensamento no que faz rizoma com a experiência estética e

atravessa um solo problemático, um solo “em crise”, também frequentado pela

arte, literatura e suas teorias e críticas. Para além da discussão disciplinar

antropológica, o que se deseja aqui é atentar às repercussões (muitas promovidas

por incursões deliberadas) desse pensamento nos terrenos da arte, em especial nos

debates críticos vinculados aos acontecimentos artísticos.

39

A indicação das entradas bibliográficas do autor no interior do trecho foram substituídas pelas

edições das mesmas obras nas edições que consultei para esta pesquisa.

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Além desses vetores de leitura, dirijo-me à antropologia de Eduardo

Viveiros de Castro evitando fingir-me de antropólogo disciplinar, ao me valer,

embora em chave reversa e relativamente reversiva, de um precedente aberto pelo

próprio antropólogo, quando se arrisca a ler criticamente a literatura. Tenho em

mente um gesto provocativo de leitura que ele realiza obliquamente, no sentido de

complicar o suposto do “lugar de leitura” entendido como traço compulsório da

projeção narcísica no ato da operação de leitura crítica, o que nos nossos dias

parece informar todo um clima de opinião, em especial aquele que dá diagnósticos

das falências da crítica.

Em tais diagnósticos, os supostos esgotamentos da crítica são muitas vezes

reportados a uma propensão de ler e se apropriar do lido em chaves de leitura que

são, malogradamente, estranhas ao objeto. A estranheza aqui não é um signo

propiciador da metamorfose, mas a desculpa que justifica muitas empresas

coloniais e imperialistas de leitura crítica, nas quais a literatura (a arte, o mundo e

a vida) são absorvidos por um esquema de leitura despreocupado com a tradução

na medida em que impõe, a fórceps, suas categorias de leitura sobre o lido.

Se a ferida narcísica encontra, no pensamento de Viveiros de Castro, e seu

convite por fazer com que a imaginação teórica seja ela mesma imaginada por

outras imaginações, em movimento contrário ao que reconhece justamente como

“falta de imaginação dos teóricos”, isso não quer dizer que se desconsiderem,

como se fossem uma ninharia, os efeitos nocivos da projeção narcísica.

Voltando à discussão sobre o lugar de leitura, refiro-me à pressuposição de

que, quando se lê de um lugar qualquer, é este lugar o que se deixa ler,

compulsoriamente. A leitura não faz mais do que reafirmar o lugar (e a ótica) do

leitor — concepção que me parece perigosamente tomar como inexoráveis a

ferida narcísica e os esquemas de projeção do mesmo sobre o outro. De que modo

se pode ler de um lugar, sem desprezar tal localidade, e ao mesmo tempo ler (de)

alhures?

Um gesto provocativo nesse âmbito é performado em uma conferência

recente intitulada “A força de um inferno: Rosa e Clarice nas paragens da

diferOnça” (Viveiros de Castro 2013), na qual o antropólogo “faz críticas” às

leituras de teóricos e críticos literários, ao propor a sua leitura assumidamente

idiossincrática de Guimarães Rosa e Clarice Lispector na chave do perspectivismo

transespecífico. Lendo Guimarães Rosa e Clarice Lispector como casos dede

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erupção – do tema da antropofagia na literatura brasileira, o antropólogo

desconsidera deliberadamente a extensa fortuna crítica dedicada aos dois autores.

Para Viveiros de Castro, a atitude de descaso é proposital e reciproca o descaso

dos críticos e teóricos da literatura quando se arvoram a fazer considerações

antropológicas equivocadas.

Eu vou criticar o que os críticos literários fizeram com a minha disciplina. Eu vou

fazer algumas críticas ao uso da antropologia pelos críticos literários.

Vou fazer a mesma coisa. Vou estar pronunciando aqui generalidades pouco

rudimentares sobre duas obras de literatura sobre a qual eu não tenho

competência para julgar. Eu estouto devolvendo (inaudível) coisas não muito

densas que foram ditas a respeito dos aspectos antropológicos sobre [o texto de

Guimarães Rosa, sobretudo], dizendo coisas não muito densas sobre o texto em

si. (Viveiros de Castro, 2013a, s.p.)

Os equívocos dos teóricos e críticos literários em matéria de antropologia

são o ensejo para sua desconsideração de todo um escopo crítico constelar aos

dois autores, universo crítico que, de certa maneira, dá o tom dos modos como

esses autores repercutem no âmbito dos estudos literários.

Se o equívoco dos críticos e teóricos literários justifica as virtuais tomadas

de liberdade a que o antropólogo se permite em sua leitura, isso é feito menos para

desqualificar as investidas antropológicas dessas leituras que no sentido da

afirmação ou, como eu disse acima, da positivação de seu lugar de leitura da

literatura enquanto antropólogo.

Viveiros de Castro empreende, assim, a sua apropriação crítica em chave

deliberadamente provocativa. Embora esse movimento pareça por vezes trair a

percepção de que os estudiosos da literatura tendem a uma certa falta de rigor no

trato com o saber antropológico, deduzo que ele se faz também no sentido de dar

cidadania a uma modalidade de leitura experimental impregnada pela condição de

estrangeiro à literatura. O antropólogo não subalterniza sua leitura, como se

observa ao reverso no modo como Cliford Geertz vê suas próprias incursões pelos

terrenos da crítica literária como um caso de amadorismo (Geertz, 2003, p. 28-9)

— visão em que se acentua que o lugar do antropólogo, quando faz as vezes do

crítico, é o de um não-profissional. O lugar ocupado por Viveiros de Castro não

deixa de ser nem o do leitor antropólogo de literatura nem o do crítico amador;

contudo, como se pode ver em uma primeira camada de sentido de seu gesto

crítico, tais lugares são, como já disse, positivados.

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Além disso, a desconsideração da fortuna crítica dedicada aos escritores

com quem o antropólogo conversa na conferência é vista, para os fins da leitura

ali publicizada, como uma vantagem. Se Eduardo Viveiros de Castro se equivoca,

colateralmente, em matéria literária, isso é o “de menos” da coisa, pois o que o

antropólogo quer levar a termo é uma leitura de antropólogo. Sendo assim, se há

um pendor para o amadorismo em suas incursões pelo literário, fazendo as vezes

de um crítico estrangeiro da literatura, esta inclinação não é marcada pela falta.

Ao contrário, o antropólogo parece confiante na vitalidade de seu gesto de leitura.

Nesta conferência, a produção de autores como Clarice Lispector,

Guimarães Rosa e Oswald de Andrade, este último convocado lateralmente, tem

sua relevância redobrada à medida em que, para o antropólogo, quando estamos

diante desses três, nos deparamos com casos de escritores que são mais que

“meros escritores”. Eles seriam casos de uma prodigiosa manifestação de

sensibilidades filosófico-antropológico-literárias de escritores-filósofos. Essas

qualificações são, ao modo de uma trança, o entrelaçamento a partir do qual a

escrita-discurso literária ascende à posição de relevância para o antropólogo nos

termos desta conferência. Para Eduardo Viveiros de Castro, esses são casos de

pensadores pioneiros da/na língua) que, ao modo poundiano, seriam como que as

“antenas da raça” (Pound, 2006, p. 77). Nas palavras de Viveiros de Castro:

Oswald de Andrade, Clarice Lispector e Guimarães Rosa foram os maiores

pensadores brasileiros do século XX. Pensadores literalmente. Ou seja, esse é

um tema clássico na história da cultura, na teoria da literatura, a saber: que nas

linguas menores, que não são as línguas das grandes tradições europeias (o

inglês, o francês e o alemão), e nos países menores (nos países periféricos),

quem pensa são os escritores. Quem faz essa função (...) dos filosófos da grande

tradição são os literatos. (Viveiros de Castro, 2013, s.p.)

Como ler um antropólogo não sendo um? Com esta pergunta esboço um

modo de absorver e redirecionar. Em suma, aproprio-me para fazer variar, ao

modo de uma variação jazzista, de um precedente aberto pelo próprio antropólogo

quando lê a literatura afirmando-se como antropólogo. Em um sentido deleuziano,

ler é recusar a semelhança enquanto se repete e se faz repercutir o lido, quando há

devir, em diferença (Deleuze, 2006, p. 365-417).

Se um antropólogo, porventura, se interessasse por ler este subcapítulo,

não seria pela originalidade do tratamento antropológico ao pensamento de

Viveiros de Castro. Esta é uma leitura da antropologia e de suas repercussões nos

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estudos literários da alçada de um leitor de literatura. Isso, no entanto, e é aí que

ela se afirma, não significa que seja uma leitura patenteada pela falta ou pelo

excesso: a mais-valia e a menos-valia se alimentam de um mesmo esquema

perceptivo segundo o qual o valor nunca se expressa em termos de imanência.

Não farei esse julgamento sobre o meu trabalho, mesmo porque o que ele planteia

é justamente levar adiante um gesto indisciplinado de leitura (cf. Viveiros de

Castro, 2005, s.p.).

O risco desse empreendimento me parece evidente — risco muito bem

formulado por Pedro Cesarino (Cesarino, 2015, s.p.), ainda que eu deduza do

mesmo quadro problemático delineado por Cesarino consequências distintas em

relação àquelas que o autor realça. Trata-se de presumir uma correlação de fundo

que permita a transposição para debates que nos interessam a nós ocidentais

daquilo que entorna a noção de perspectivismo ameríndio – cujas formulações por

Viveiros de Castro e colaboradores supõem uma vasta e complexa rede de

vinculações com um repertório etnológico vasto que não se quer aqui reduzir.

Quando se promove o exercício dessas transversalizações, não há

garantias, diz Cesarino, sequer que se concorde sobre os regimes de materialidade

(Cesarino, idem). Nos radicais contrastes entre nossas práticas materiais e as dos

indígenas — como testemunham com delicadeza os contrastes trabalhados por

Cesarino entre o que está implicado na poética do xamanismo na amazônia e

algumas de nossas práticas artístico-poéticas —, as diferenças são tão

significativas que parecem fazer esfarelar ideias das quais nos apropriamos muitas

vezes sem nenhum constrangimento para tratar de questões que atravessam o

debate artístico como “comum”, medium ou, mesmo, de uma partage du sensible.

Parece-me que há uma distinção decisiva entre o experimento de

pensamento de Viveiros de Castro — infletido aperceptivamente pela hipótese

perspectiva, em chave contra-antropológica, isto é, pela condicional

paradoxalizante “se os índios têm razão” (Viveiros de Castro, 2002a, p. 398) — e

as práticas exploratórias tão características das tendências colonizadoras,

imperialistas, extrativistas, escravagistas etc., que fazem dos índios (entre outros

outros) uma matriz de soluções para os problemas em que nós mesmos, ocidentais

sob majoração, nos colocamos.

Cada uma das variações abaixo exploram, também, o precedente e o

procedimento formulaicos. O próprio antropólogo também se vale desse

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precedente e procedimento em suas intervenções. A escrita-discurso de Viveiros

de Castro xamaniza a blague, a arenga, os cantos, as parábolas, as estéticas

conceituais, as frases de efeito, a vociferação, as polemizações, a elocução

sapiencial, as simetrizações, as tautologias, os paradoxos, os paralogismos, entre

outros procedimentos. Das bocas abertas pelo antropólogo, saem vozes, e vozes

sob distorção (diacriticizadas), com as quais não podemos confortavelmente nos

identificar.

3.2

Se os índios têm razão

Na “Nota final” de “Perspectivismo e Multinaturalismo na América

Indígena”, Eduardo Viveiros de Castro (2002a) propõe uma hipótese provocativa

que redunda de uma já heterodoxa construção de pensamento — o que o ensaio

que a ‘precede’ propõe — e faz pronunciar um dos mais inquietantes

desdobramentos do que até ali se desenrola. Tal desdobramento já é um contorno,

dobra, de algumas das direções seguidas pela reflexão precedente. Não há

novidade em termos de tese nessa notal final em relação ao que se delineia no

grosso do texto que a precede. Lemos ali:

[Se] os índios têm razão, então a diferença entre os dois pontos de vista [ocidental

e indígena] não é uma questão cultural, e muito menos de mentalidade. Se os

contrastes entre relativismo e perspectivismo ou entre multiculturalismo e

multinaturalismo forem lidos à luz, não de nosso relativismo multicultural, mas

de doutrina indígena, é forçoso concluir que a reciprocidade de perspectivas se

aplica a ela mesma, e que a diferença é de mundo, não de pensamento” (Viveiros

de Castro, 2002a, p. 398-99, grifo meu)40

A proposição da hipótese se faz em sentido debelador. Ele quer propor,

pela extração e intensificação de consequências vitais da “involução”

coopernicana da perspectiva e do saber antropológicos, para a qual a noção de

perspectivismo transespecífico é a “ponta de lança”, os efeitos reversivos do que

seriam, a princípio, as propensões compulsórias do saber ocidental. Isso se dá na

direção de suplantar tais propensões por outro solo pressuposicional: para que os

40

Sobre a noção de multinaturalismo, termo que Viveiros de Castro opõe provocativamente a

multiculturalismo, para enfatizar a percepção de que, no universo ameríndio, teríamos a rigor uma

cultura e muitas naturezas, ver Viveiros de Castro, 2015a, pp. 55-69.

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saberes e as formas de vida que os acompanham sejam reocupados, por assim

dizer, por um outro fundo cosmológico que não aquele em que se sustentam

nossos saberes e outras práticas sociais e culturais quando docilmente declinados

por nossas “cosmologias ‘multiculturalistas’ modernas” — ou, em um nível ainda

mais fundamental, por um princípio antrópico que procede pela concessão de

privilégios específicos e privativos a uma imagem “extraterrestre” (Nodari, 2013,

p. 251-53). Nos termos de Eduardo Viveiros de Castro, apropriados livremente,

uma imagem exdígena do humano e, por emanação, da arte, do mundo e da vida.

Refiro-me, para indicar tal apercepção substitutiva (em rubrica também

farmacológica como uma actância suscitadora de irritação epidérmica) ao “ideal

de subjetividade (...) constitutivo do xamanismo como epistemologia indígena”

(Viveiros de Castro In: Viveiros de Castro e Sztutman, 2008, p. 43) operante no

quadro das “cosmologias ameríndias” (Viveiros de Castro, 2015, p. 92). Relembro

que tal hipótese é implicativa do que a proposição da noção etnoantropológica e

infrafilosófica de perspectivismo transespecífico, a “antropologia indígena por

excelência”, tangencia e do que, quando a ela se adere, é repercussivo de

alterações fundamentais (Viveiros de Castro In: Viveiros de Castro e Sztutman,

2008, 127).

Tal involução também ganha outras modulações a partir de

empreendimentos antropológicos afins, um curioso caso de contágio que tem se

convertido em laços de colaboração, como os que se estabelecem entre os

trabalhos de Eduardo Viveiros de Castro e o de outros antropólogos como Roy

Wagner, Marylin Strathern, Bruno Latour, Tânia Stolze Lima etc.: antropólogos

que tem se empenhado na empresa de retirar as posições do “nativo” e do

“antropólogo” e suas variantes de estruturas viciadas de relação que resultam em

etnografias que acabam por submeter o nativo ao lugar de objeto e instrumental

do saber antropológico: um mero objeto de estudo e o foco das emanações de uma

mesma imagem do humano perpetuada pela reflexão antropológica que reafirma

os privilégios do lugar do observador ocidental.

Essas são consequências vitais que vicejam no exercício de um pensar que

se delineia, também, pela requisição de um vitalismo constitutivo. É o pensar do

antropólogo como a performance de uma reorientação dos desiderativos da

antropologia e da etnologia sob a gestão de uma “ideia-valor” em que se radica a

reflexão: o reconhecimento do protagonismo da alteridade indígena. Ao lado das

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experimentações inventivas promotoras de possibilidades outras de modos de

subjetivação, a reflexão filosófica de Eduardo Viveiros se faz segundo o desejo de

ser um pensar-viver. O experimento consiste em se posicionar de forma

teoricamente criativa, o que também significa, nos termos de Viveiros de Castro,

um modo de ocupação do, no, pelo e, sobretudo, com o pensamento selvagem.

Trata-se de um pensamento cuja movimento alterativo singular se traduz nos

termos de um empenho vital na invenção de pontes em direção à e à disposição

da emergência de formas de existência alteradas e alterativas dos estados em que

se encontra a vida entropizada – formas de existência projetadas para o exercício

da colaboração.

Tal dedução de consequência aponta para um movimento continuamente

afirmado, e que tem sido intensificado pelo pensamento de Eduardo Viveiros de

Castro em duas direções: fortalecer uma adesão ao selvagem pela incursão da

“inimizade no conceito”, cuja materialização está implicada no exercício de

tradução suposto e perpetuado pela noção de perspectivismo; e fazer proliferar

seus efeitos pela experimentação de possibilidades de acedência rexistente ao

indigenato (cf. Viveiros de Castro, 2016). Nos termos da “proposta

cosmopolítica” de Isabelle Stengers, isso corresponderia a um modo de

permanência (o exercício imanente da ocupação) e de abertura à ingerência (a

experiência intensiva — com consequências extensivas —do câmbio perspectivo).

Vimos que nessa Nota Final, Viveiros de Castro se vale de uma metáfora.

Evoca a imagem de um compasso para propor e exercitar uma inflexão de

pensamento radical: trata-se de algo que eu chamarei aqui, com certa

irresponsabilidade, de cruzamento aperceptivo. O antropólogo, ao mesmo tempo

em que diz que os dois vetores aperceptivos constrastados pelo ensaio são

incompossíveis, explora também uma possibilidade que é aberta pelo precedente

xamânico da hipótese do perspectivismo transespecífico, qual seja: se os pontos

de vista outros, segundo a ontologia relacional indígena são incompossíveis – não

se pode ser assumido por um ponto de vista de “gente” e de “onça” ao mesmo

tempo –, isso não quer dizer que a variação perspectiva não seja possível.

Se os índios têm razão, a razão que eles têm — considerando-se,

sobretudo, os modos como o pensamento indígena é requisitado como “platô” de

um experimento de pensamento que pretende se por à prova por essa vinculação

ambiental —, há de ser outra razão, distinta das “razões” do Ocidente.

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O contraste entre perspectivismo e relativismo (dogmatismo) — cujas

linhas se expandem no delinear de “linhas de fuga” que traçam (e vetorizam) os

sentidos de uma equidistância irredutível aos quadrantes que se podem formar a

partir da matriz cosmológica ocidental, alimentada por uma imagem privativa do

humano e, por conseguinte, dos exercícios artísticos e críticos. O contraste não se

configura segundo um resíduo de natureza, desde o qual as distinções são

distribuídas. A variação que se pensa aqui se dá em um nível mais fundamental do

que aquele que se supõe a instância basilar de nossas cosmologias

multiculturalistas.

Se entendo bem, conforme o diagrama proposto pelo antropólogo, não se

pode pensar como índio e como não-índio ao mesmo tempo. A passagem de uma

“posição” perspectiva à outra supõe uma sorte de mudança radical do que

subsume a orientação de pensamento. Não penso que seja o caso — contra uma

impressão de sugestiva proximidade —, de aproximar o que se está falando aqui,

o precedente xamânico, da experiência da conversão religiosa (ou, segundo

formulações dadas por outras matrizes filosóficas ou míticas de iluminação,

revelação e iniciação.). Nos termos do antropólogo,

[t]odo ser a que se atribui um ponto de vista será então sujeito, espírito; ou

melhor, ali onde estiver o ponto de vista, também estará a posição de sujeito.

Enquanto nossa cosmologia construcionista pode ser resumida na fórmula

saussureana: o ponto de vista cria o objeto — o sujeito sendo a condição

orignária fixa de onde emana o ponto de vista —, o perspectivismo ameríndio

procede segundo o princípio de que o ponto de vista cria o sujeito; será sujeito

quem se encontrar ativado ou ‘agenciado’ pelo ponto de vista. (Viveiros de

Castro, 2002a, p. 373. Ver, ainda, nota de rodapé, na mesma página: nota de

rodapé)

Assim concebido, o cruzamento aperceptivo se associa ao conceito de

perspectivismo como realização material de um exercício de metafísica

experimental, especulativa, em vistas de uma experiência de alheamento que deve

estar na base de uma experiência antropológica que pretenda se fazer ao modo de

uma configuração responsiva e mostrativa da alteridade das cosmologias

indígenas. O cruzamento aperceptivo deverá então ser índice de um

empreendimento cuja continuidade é um dos meios precários de sua “salvação”,

sua força de refração que o resgata da captura por uma forma-Estado [Deleuze e

Guattari, 2012b, pp. 12-118]) Isso é feito de modo intensivo: levar os índios a

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sério “seriamente” (Viveiros de Castro, 2009, p. 18). Veja-se, a esse respeito, um

trecho de uma entrevista recente concedida pelo antropólogo:

Bem, no meu caso, fiz uma experiência de pensamento com a noção de

experiência de pensamento. Propus definir a antropologia como uma metafísica

experimental, que realiza experimentos com o pensamento alheio, o pensamento

indígena, tomando-o, por exemplo, como um pensamento filosófico. Como se

aquilo que os índios estivessem pensando exprimisse “um pensamento”, como se

fala em “pensamento grego”, “pensamento pré-socrático” etc. Vamos tomá-lo

como se fosse, o que não quer dizer que ele não seja. Vamos tomá-lo nesse

sentido específico, como representando um pensamento. Experimentar esse

pensamento, pensar como, imaginar como seria pensar como um índio. E ao

mesmo tempo é pensar com o pensamento indígena, porque pensar como o

pensamento indígena a gente sabe que só poderia fazer em pensamento, não se

pode fazer na realidade porque nós não somos indígenas, mas pensar com esse

pensamento é algo que não só se pode como eu entendo que se deve, é um

experimento de pensamento fundamental. (Viveiros de Castro In: Viveiros de

Castro e Barcellos, 2012, p.252)

Em outro momento ele nos diz que seu objetivo “é uma reconstituição da

imaginação conceitual indígena nos termos de nossa própria imaginação”

(Viveiros de Castro, 2002a, p. 15). Ao pensar no quadro de motivações que o

levaram a proposição do conceito de multinaturalismo, Viveiros de Castro dá a

ver a tenuidade entre a configuração de suas teorias e o plano desiderativo que a

orienta. Fazer com que os termos de que se dispõe no pensamento ocidental

possam ser alterados e vetorizados para a mostração do pensamento indígena —

como no caso de seu trabalho com conceitos filosóficos repertoriados pela

tradição filosófica ocidental — é ao mesmo tempo a ambição e a empresa cifradas

pela noção de experiência de pensamento.

Como fator de interferência nesse plano desiderativo, estão também outras

ideias-valores — inflexões e procedimentos crítico-metodológicos que implicam

investimentos e posicionamentos histórico-existenciais — a partir das quais as

teorias do antropólogo brasileiro e também de vários destes seus colaboradores já

citados se orientam como atitudes de resposta, desejosas de serem responsivas, a

manifestações de alteridade étnica radical. Isso não quer dizer, porém, que o

desejo seja pensado (somente) como um limitador metodológico. Muito

(relativamente) pelo contrário. O que se quer colocar em primeiro plano agora é a

ingerência de um componente desiderativo, em que se privilegia o caso de

Viveiros de Castro, da dimensão ficcional que esses antropólogos acessam em sua

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pretensão de fazer a performance com o pensamento do outro ao mesmo tempo

em que se propõem uma redefinição performativa da antropologia.

Antes de qualquer coisa, é preciso dizer que a aproximação do antropólogo

em direção à ficção é multimodal. A aproximação se faz tanto pela adoção de uma

dimensão ficcional, “essencial” (Viveiros de Castro, 2002a, p. 123) em seu

trabalho, quanto por exercícios perspectivistas que o antropólogo arrisca por um

contato recorrente com interlocutores literários-ficcionais, tais como, por

exemplo, sua já citada aproximação das ficções de Guimarães Rosa e Clarice

Lispector ou, ainda mais recentemente, da ficção científica.

Um modo de ler este percurso reflexivo de Viveiros de Castro, um modo

que se justifica nas palavras do próprio antropólogo, é como um esforço

continuado de problematização e experimentação em torno dos dispositivos de

que se vale a antropologia filosófica para lograr a aparição da alteridade. Uma

problematização que se dá sob o modo de uma experimentação fundamentalmente

formal e afetiva e empenhada em clivar por interesses outros as formas de escrita

de que se dispõe quando se faz antropologia – interesses indiciais e vetorizadores

de outras cosmologias que nos permitam o gozo de outras modalidades de sonho-

invenção.

A um dos desiderativos em repercussão do qual se perpetuam essas

modalidades de experimentação formal-afetiva, Viveiros de Castro chama de

“descolonização permanente do pensamento” (Viveiros de Castro In: Viveiros de

Castro e Barcellos, 2012, p. 254). “A alteridade e a multiplicidade como forças

revolucionárias. A revolução, ou a essa altura será melhor dizer, a insurreição e a

alteração começam pelo conceito. Para além das variações em imaginação, a

variação da imaginação” (Viveiros de Castro, 2012a, p. 155).

Estamos falando da adoção de um ideal de conhecimento relacional em

que “nativos e antropólogos ressurgem como posições precárias, reversíveis e

intercambiáveis, assim como o são humanos e não humanos para o pensamento

ameríndio” (Sztutman in: Viveiros de Castro e Sztutmann, 2008, p. 15.). A

operação é tida como formal porque supõe que essa reapropriação de nossos

conceitos filosóficos se faça por procedimentos que os submetam à “equivocação”

(Viveiros de Castro, 2004) ou, nos termos de Strathern (2014), “obviação”.

No entanto, nos limites da antropologia disciplinar, deve-se ressaltar que

esse projeto crítico tem os contornos de uma revisão programática que parte de

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um trabalho de retomada e desdobramento da própria tradição antropológica (de

Lévi-Strauss, em especial) e de reapropriação heterotodoxa de nossos conceitos

filosóficos.

Acredita-se que sob esse impulso é possível colocar em curso, e reabilitar,

a pretensão de alteridade que está no centro dos interesses da antropologia.

Esforço que se faz contra tendências etno e epistemicidas que ameaçam corromper

a disciplina antropológica desde sua origem, considerando-se que o seu

surgimento e desenvolvimento está diretamente ligado, para não dizer

comprometido, com a efetivação da empresa colonial e imperialista. No caso da

antropologia, assume-se que se deve descolonizar o pensamento a partir de uma

recusa da instrumentalização das manifestações de alteridade cultural radical. Tal

experimento tem como horizonte não só a manifestação da alteridade, o que já

seria um projeto muito ambicioso, mas uma sorte de defesa de direitos. Sendo

assim, o trabalho do antropólogo, desde o seu trabalho com os conceitos, não está

comprometido somente com um imperativo de alteração, mas também de

conservação ou ao menos das condições que permitam com que a alteridade étnica

se conserve como tal: ao imperativo de descolonização permanente do

pensamento se alia a divisa da autodeterminação ontológica dos povos (Viveiros

de Castro, 2009, p. 1).

Em conferência recente, em que Viveiros de Castro passa em retrospectiva

parte de sua trajetória intelectual, o antropólogo identifica que essa pretensão de

alteridade, autoalteração e alterconservação animou sua produção desde as opções

teórico-metodológicas que fez. Cito:

[O] desafio que nos oferecia essa opção pela antropologia da alteridade cultural –

e que poderíamos rotular, sem nenhum ironia, de exotismo estratégico – era o de

conectar a crítica dos fundamentos metafísicos do colonialismo, empreendida (ou

iniciada) pela antropologia de Lévi-Strauss, com a crítica dos fundamentos

colonialistas da metafísica, empreendida pelo pós-estruturalismo filosófico

(Viveiros de Castro, 2012a, p. 155-56).

Considerando-se as tradições de pensamento que pretende fundir, pode-se

dizer que a contribuição de Viveiros de Castro não se limita ao espaço disciplinar

da antropologia. Focalizando-se o esforço de investigação da antropologia

simétrica, sob essa mesma demanda, nota-se que a simetrização não se confunde

com uma ambição realista, lidar com o outro na verdade (cf. Foster, 2014, p.

164); trata-se, antes, de uma condição metodológica. Não se trata, portanto, de um

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mecenato ideológico, mas de um investimento crítico que considera ser muito

problemático o protagonismo do antropólogo, desde suas condições metafísicas,

na constituição das condições de um saber fundamentalmente processual e que

não conta com termos estáveis. Assim, esse elemento inconstante na constituição

material desses saberes ganha relevo quando põe em tela de juízo não só uma

qualidade do pensamento nativo, neste caso ameríndio, mas os termos da relação

que se pode estabelecer com essa qualidade, considerando o ponto de vista do

nativo sobre a mesma e os problemas que resultantes dessa opção perspectiva.

Ressalte-se também que se está falando de um esforço permanente,

continuado, e vinculativo. Sendo assim, a tarefa de revisão e reversão crítica, e

não exclusivamente de rejeição, de nossos pressupostos metafísicos não é uma

tarefa que se possa fazer sozinho ou de uma só vez – a alteração passa pela

constatação de que a relação com o outro exige o exercício continuado de uma

abertura cosmopolítica (cf. Stengers, 2005). É nesse sentido que se fala em ideal

de conhecimento da antropologia simétrica, na medida em que se promove uma

sempre inacabada descolonização da imaginação ocidental pela requisição de

relações laterais com espaços insubmissos aos nossos dispositivos e pressupostos

epistemológicos, apostando-se que esse embate pode liberar uma força

revolucionária capaz de promover alternativas a esses nossos dispositivos e

pressupostos.

O acento está também na pretensão, outro dos traços característicos do que

Latour (1994) chama de “antropologia simétrica” e Wagner de “antropologia

reversa” (2010), de levar adiante uma orientação metodológica em antropologia

que não atribua qualquer vantagem epistemológica ao antropólogo ou ao nativo

no deslinde da operação teórica. É partir dessa presunção que a antropologia

simétrica ou reversa dá, segundo Viveiros de Castro, contornos materiais a uma

agenda de descolonização permanente do pensamento que acaba por se converter

em ideia-valor mobilizadora da reflexão.

Esse desejo, do qual se recolhe um princípio de movimento, algo entre

uma causa e um objetivo eficiente (não sendo uma coisa nem a outra), tem como

variante e resultante a descolonização e se concentra, sobretudo, no modo como se

percebe e se administra a relação entre nativo e antropólogo no escopo da reflexão

antropológica, entendida, também, em um sentido largo que ultrapassa os limites

da antropologia disciplinar.

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Considerando-se, sob o pano de fundo aqui erguido, os modos como se

experimentam vinculações entre antropologia e ficção, seja por parte da

antropologia em sentido estrito seja a partir da ficção, pode-se notar uma outra

tangência entre esses interlocutores que convoco: pretendem uma alteração radical

das bases em que é feita a sua intervenção, alteração cujos efeitos objetivam uma

apropriação crítica do campo, com impacto e repercussão sobre

“contemporâneos” e “companheiros de profissão”. Pretendem realizar essa

aproximação segundo uma inflexão alternativa: ora, no sentido de lançar luz à

rentabilidade dessas vinculações, ora na medida em que questionam o modo como

elas podem ser e/ou já têm sido feitas.

Em passagem já citada nesta tese, vimos que Viveiros de Castro constata

que seu trabalho como antropólogo, em especial aquele por meio do qual propõe a

noção de perspectivismo, é marcado por uma “dimensão essencial de ficção”; ele

é explícito: “[o] que fiz em meu artigo sobre o perspectivismo foi uma experiência

de pensamento e um exercício de ficção antropológica (Viveiros de Castro,

2002b, p. 123)..Exercício que se apropria do ficcional segundo uma inflexão

específica e não usual: “não se trata de imaginar uma experiência, mas de

experimentar uma imaginação. (...) [A] ficção é antropológica, mas sua

antropologia não é fictícia” (op. cit.). Em um sentido usual, diz Viveiros de

Castro, a ficção possibilitaria “uma entrada imaginária na experiência pelo

(próprio) pensamento”, enquanto que a dimensão ficcional de seu exercício

teórico intentaria a “entrada no (outro) pensamento pela experiência real” (op.

cit.).

Curiosamente, a vinculação entre antropologia e ficção encorajada por

Saer em “El concepto de ficción” se indispõe justamente com o tipo de disjuntiva

de que parte Viveiros de Castro, ao menos neste ensaio, quando fala de uma

dimensão ficcional de sua noção de perspectivismo ameríndio. A vinculação entre

ficção e antropologia encorajada por Saer adquire rentabilidade porque se oferece

como antídoto para o tipo de visão rudimentar sobre a ficção, como a que se

sustenta na oposição entre ficcionalidade e realidade empírica ou ainda entre

experiência imaginária e experiência real. Eu diria que a recusa dessa visão

rudimentar da ficção – um fator, para Saer, “principalíssimo” – pode ter um

impacto semelhante àquele que Viveiros de Castro atribui ao perspectivismo

ameríndio: pôr “sob suspeita a robustez e a transportabilidade [de] partições

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ontológicas” sobre as quais se sustentam “[os] termos de nossos debates

epistemológicos” (cf. Viveiros de Castro, 2002a, p. 378). Em sua recriação

assumidamente ficcional do universo ameríndio, Viveiros de Castro sublinha a

dificuldade ou impossibilidade de transportar partições como natureza-cultura,

universal-relativo, fato-valor etc. — tal dificuldade torna patente a instabilidade

de nossos conceitos, digamos assim. Perceber a ficção de um modo global como

antropologia especulativa, como quer Saer, inclui, por outro lado, assumir o

suposto de que a ficção se assenta em instabilidade.

Parece claro que Eduardo Viveiros de Castro trabalhaa com uma noção de

ficção que se diferencia da noção de “ficção literária”, distinta, portanto, daquela

em que, a princípio, se baseiam os ficcionistas stricto senso — se é que se pode

falar em “sentido estrito” quando os ‘nativos’ são as tribos tão heterogêneas dos

escritores — no limite das quais, cada indivíduo pode se chamar falange. No

entanto, o antropólogo parece também, em diversos movimentos de seu

pensamento, desconsiderar tal delimitação cuja precisão me parece enganosa e

debilitadora tanto do que se experimenta em seu pensamento, desde sua dimensão

estética até em suas incursões pelo artístico, quanto do que se experimenta na arte,

inclusive naquelas manifestações para as quais o antropólogo se volta em muitas

ocasiões.

Em uma das tentativas de aproximação entre o perspectivismo e o âmbito

da experiência e reflexão literária a que Alexandre Nodari tem se dedicado

recentemente, o pesquisador (e colaborador direto do antropólogo) propõe uma

curiosa repercussão entre o que o perspectivismo ameríndio divisa e as

circunstâncias que informam a experiência do contemporâneo (entendido como o

tempo presente).

À sombra do Antropoceno, entra-se, finalmente, em uma escala perceptiva

que impele a uma “politização ativa” do fundo geológico (talvez a última cerca

que mantinha a natureza à mercê de uma politização. Nos termos com que

Eduardo Viveiros de Castro se apropria da filosofia de Deleuze e Guattari, em

face do que circunstancia o tempo das catástrofes, diríamos que entramos

finalmente no tempo da “geologia da moral” (Viveiros de Castro, 2012b, p. 152).

Em um nível que acreditávamos protegido da intervenção humana constata-se, de

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forma sensível e incorntornável, a intervenção da agência antropicamente

constituída.

A curiosa repercussão a que me refiro é aquela proposta por Alexandre

Nodari (2015), que lê, em chave aproximativa, tal mudança de escala como

análoga ao exercício autoral em escrita literária. Os movimentos das placas

tectônicas são propícios à imprevisibilidade da autoria ‘humana’, e do gesto

esteticamente investido. Lembrando de acentuar que tal analogia se processa em

um espectro de comparação em que as escalas estão em colapso, pode-se dizer

que, do ponto de vista de tal rearranjo do nosso solo de certezas, esses

movimentos tectônicos não se distinguem dos efeitos estéticos de um poema.

Não é forçoso dizer que o abalo se dá, se é o caso de incluí-la também à

sombra dessa situação sem precedentes que o tempo das catástrofes circunstancia.

Esse abalo pode ser lido como um desdobramento possível para uma significativa

mudança de ênfase no percurso do pensamento do antropólogo. Refiro-me à

“[inflexão] decisiva” no pensamento do antropólogo-etnólogo em reação ao

“fenômeno de colapso generalizado das escalas cosmológicas (...) e essa entrada

em ressonância crítica dos ritmos da natureza e da cultura, signo precursor de uma

iminente megatransição de fase” (Viveiros de Castro 2012a, p. 152). Em termos

variados em relação à formulação da Nota Final, em uma espécie de testamento-

panegírico ensaístico-filosófico, a “politização ativa da natureza” — a alternância

das pernas do compasso cósmico — é pensada como uma via alternativa, pelo

antropólogo, em relação aos avatares que estão na vanguarda da extinção dos

vivos (Viveiros de Castro 2012a, p. 152). Ele se refere às práticas de extração

sistemática de combustíveis fósseis, as barbáries justificadas pelo

desenvolvimentismo, o capitalismo cognitivo, as práticas necropolíticas, o

terrorismo de Estado, a submissão de toda política ao interesse econômico (e

manutenção da prerrogativa de determinar qual deve ser o interesse econômico de

todos os outros na mão de alguns poucos, os de sempre, e os das “pequenas mãos

colaborativas”, como dizem Stengers e Pignarre (2005): um pouco de todos nós).

Cito:

Nos últimos anos, tendo, ao que tudo indica, atingido o que os cientistas chamam

de filosopausa (fim do período produtivo no sentido empresarial do termo,

começo de uma etapa de retrospecção marcada por certa elocução sapiencial),

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venho buscando refletir sobre as implicações filosóficas da antropologia como

disciplina, explorando as transições e as transações entre ela e certos ramos da

filosofia, em particular a metafísica, especulativa ou experimental. (Viveiros de

Castro 2012a. p. 151)

O fenômeno de colapso a que o antropólogo se dirige, fazendo eco a

Isabelle Stengers (2015), é a “brusca “intrusão de Gaia” no horizonte histórico

humano” (Viveiros de Castro, 2012a, p. 151). Trata-se, como se disse, da entrada

do planeta em uma nova era geológica: o antropoceno. Nos termos de Paul

Krutzen, isso se entende como a passagem do homem da condição de agente

biológico à condição de força geológica. Passagem que, nas palavras de Viveiros

de Castro, é impetuosa e suscitadora de “uma tarefa prática e teórica bem mais

urgente”, a já referida “politização ativa da natureza” (op. cit., p. 152).

Desde que trocou “a geofilosofia de campo pela especulação ontográfica”,

o Viveiros de Castro tem se dedicado à procura de “métodos mais eficazes de

transfusão das possibilidades realizadas pelos mundos indígenas para dentro da

circulação cosmopolítica global”, prática de intromissão pensada como antídoto

(administração por uma introjeção contínua de focos de resistência e atratores de

reversão, derrisão, mitigação etc.) contra as catástrofes política, econômica,

ecológica, climática etc., cujo reconhecimento a cada dia mais compulsório deixa

àqueles que sempre nos sentimos muito seguros em nos autodenominarmos de

homens. Trata-se de uma catástrofe que redunda do acirramento da imposição

irrestrita de um dos mais “antigos arcanos do poder” (Ludueña Romandini, 2012,

p. 18): a constituição e a projeção de uma prática de domínio e exploração que se

sustenta em uma imagem privilegiada do “homem” — pelo turno de voz, pela

autoridade etnográfica, pela escrita, pela técnica, pela economia, pelo

esquadrinhamento da geografia etc.

Isso poderia ser sintetizado pela construção hipotética e provocativa “se os

índios têm razão” (Viveiros de Castro, 2002a, p. 398). A oração condicional que

dá nome a este capítulo e a esta seção, é aquela a partir da qual o antropólogo

propõe e performa o seu pensamento, deixando-a entreaberta como um convite a

uma tarefa que sempre está por se fazer.

A tarefa leva a termo uma operação multivetorizada de contraste entre

dotações teórico-empíricas dos “incompossíveis” pontos de vista “ocidental” e

“ameríndio” (Viveiros de Castro, 2002a, p. 398).

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Como se disse, para oferecer uma figura para o modo como essa

incompossibilidade se estabelece, o antropólogo lança mão da imagem de um

compasso. Um compasso é, sabe-se, um instrumento de aferição e inscrição de

figuras geométricas cujo traço é curvilíneo; e constitui-se materialmente de duas

hastes (ou pernas) cuja utilização convencional depende de que se fixe uma das

pernas para que a outra possa se mover. A perna móvel é aquela cuja ponta

inscreve os tais traços curvilíneos.

Com o auxílio da metáfora do compasso, Viveiros de Castro argumenta

que, segundo a dotação teórica que propõe, a operação de contraste entre as

nossas cosmologias “ocidentais” e essas outras, “ameríndias”, supõe e leva a

termo uma redistribuição entre natureza e cultura (2012a).

Desde um longínquo difícil de localizar, muitas geontologias ou formações

de poder — cujo comportamento também é marcado por um regime de variação

contínua (Povinelli, 2014, s.p.) — têm se valido da prerrogativa da humanidade

do homem (ou outras de suas variantes nocivas, como as distinções residuais entre

zoé e bios, demos e ágora, entre outros helenismos) para exportar

compulsoriamente e impor predatoriamente suas formas de vida, em que se inclua

as biotas a que estão associadas.41

Para nossas antropologias — as humanamente possíveis —, a “verdade

inconveniente” do antropoceno soa como uma sonora advertência acerca da

iminência do fim do mundo, e dessas antropologias que estão na posição de

comando dos destinos do mundo. Nossas práticas (digo, de nós ocidentais) e a

repercussão que elas chegaram a ter do ponto de vista climático-geológico nos

levaram a uma encruzilhada, arrastando “muita gente (humana e não humana)

conosco, a começar, como sempre, pelos que não têm nada a ver com isso”

(Viveiros de Castro, 2012a, p. 152). O “como sempre”, aí, envia ao espectro dessa

catástrofe que se avizinha, agora, de nós que antes nosacreditávamos livres das

ameaças patentes para tantas outras formas de vida (e suas humanidades) que,

quando apartadas das partilhas do sensível geridas pelo princípio entrópico, se

viram subitamente obrigadas a conviver com o mundo dos homens brancos.

É nesse sentido, e não somente, que o antropólogo diz que “os índios são

especialistas em fim do mundo.” (Viveiros de Castro, 2013b, s.p.).

41

Para mais informações sobre a noção de biotas, ver Crosby, 2011.

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Seguindo o raciocínio, poderíamos dizer o mesmo, nós que temos

antropologias que maquinamos e apressamos a morte dos nossos próprios

mundos, também, dos anciãos, das crianças, das mulheres, dos animais, dos

negros, dos pobres, dos jovens, das multiplicidades sexuais (encurraladas e

perseguidas pelas inquisições e heteronormatividades), e tantas outras vítimas de

nossos macro/microfascisimos, em que se inclua mprocedimentos fascistas

convertidos em práticas institucionais [necropolíticas] entre nossos estados

democráticos e relações naturalizadas. Cito, novamente:

Nosso abrupto choque com a Terra, a comunicação aterradora do geopolíotico

como geofísico, tudo isso faz desmoronar a distinção fundamental (...) entre a

ordem do cosmológico e a do antropológico (...) — em duas palavras, natureza e

cultura. (Viveiros de Castro, 2012a, p.151-2)

Para avançar na discussão sobre os estados críticos da crítica, sobre o

universo da reflexão estético, pode ser útil considerar alguns modos como se tem

pensado, na antropologia, a relação entre arte e pensamento selvagem.

3.3

A arte como reserva ecológica da vida selvagem

Na revisão rigorosa e revitalizadora a que Viveiros de Castro submete o

pensamento de Claude Lévi-Strauss, interessa-me especialmente a apropriação,

em chave ligeiramente modificada, de uma imagem proposta pelo etnólogo

francês para fazer ver um traço de afinidade entre a arte e o pensamento selvagem.

Com essa imagem proposta em O pensamento selvagem (2011), Lévi-Strauss

entrevê e explora afinidades circunstanciais entre a arte ocidental, considerada ao

mesmo tempo de forma particular e englobante, e outras formas de vida

selvagens:

(...) seja isso deplorável ou motivo de alegria, conhecem-se ainda zonas onde o

pensamento selvagem, tal como as espécies selvagens, acha-se relativamente

protegido: é o caso da arte, à qual nossa civilização concede o estatuto de parque

nacional, com todas as vantagens e os inconvenientes relacionados com uma

fórmula tão artificial (Lévi-Strauss, [1989] 2011, p. 257)

Segundo essa ênfase, cujas escalas não cessam de variar, a arte (em que se

inclua a ficção) se afigura como um espaço de sobrevivência para o pensamento e

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formas de vida selvagens no seio de nossas práticas sociais. Para Lévi-Strauss, a

arte é ao mesmo tempo um traço civilizacional (como vai dizer em outra ocasião)

e uma reserva de alteridade entre nossas práticas culturais.

No modo como é reapropriada por Viveiros de Castro, a imagem do

parque nacional serve para enfatizar que a arte e a “vida selvagem” vivem entre

nós sob confinamento e, além disso, para fazer ouvir outras tonalidades da

imagem, associando-a ao quadro amplo da “economia geral da alteridade”

indígena que o conceito de perspectivismo indicia. Entre os índios e nas “reservas

ecológicas” da arte no mundo dito civilizado, seríamos confrontados com “ideais

de subjetividade” insurgentes e insubmissos, selvagens, aos ideais de experiência

e conhecimento hegemônicos, dominantes, ou ainda majoritários na constituição

dos espaços decisórios da política, das estéticas de existência, da valoração dos

saberes etc.

Retorno adiante à imagem levistraussiana e à variante proposta por

Eduardo Viveiros de Castro, mas antes gostaria de evocar algumas considerações

do etnólogo francês acerca de sua visão sobre estados críticos da arte no presente,

estados que podem ser lidos como o espectro de uma mutação contínua. Em

entrevista dada à Folha de São Paulo em 1993, ao ser instigado a falar sobre a

utilidade da crítica de arte no presente, Lévi-Strauss reage, por um lado,

questionando a pertinência da pergunta e as expectativas do entrevistador, e, por

outro, ponderando sobre a (im)possibilidade de existência da arte em um sentido

específico. Cito:

Desde sempre, o papel da crítica foi tanto traduzir, por meios literários, a emoção

do espectador diante da obra, quanto tentar compreender justamente as razões e

os mecanismos dessa emoção. O problema é que acho que hoje não existe mais

arte. Há alguns modos de expressão, que continuamos chamando por nomes

tradicionais — pintura, música, literatura —, mas creio que sejam outras coisas.

Não são mais as mesmas artes. (Lévi-Strauss, 1993, s. p.)42

Está claro que, da ótica de Lévi-Strauss, há nesses modos de expressão um

comportamento distintivo, uma espécie de atualidade insubmissa que denuncia

uma inadequação das categorias de que nos utilizamos quando nos referirmos às

experiências estéticas que lhe são contemporâneas. No entanto, algo mais me

parece interessante nessa intuição negativa — não há mais arte, formulação

42

LÉVI-STRAUSS, Claude. “Acho que não existe mais arte.” São Paulo, Folha de São Paulo, 03

de Outubro de 1993. Caderno Mais!.

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sintética e, apesar do tom, nada pontificial. Lévi-Strauss não se contenta em

denunciar uma inadequação semântica – dá também testemunho de uma atenção

ao concreto, ao desejo expresso de reagir a um campo, este último compreendido

como um complexo circuito de produção, recepção e circulação que não se sugere

somente como insubmisso a certas categorias classificatórias dos domínios de

expressão artística do ponto de vista institucional.

A sugestão de que há um aspecto dinâmico, temporal nessa constante de

alteração é acentuada pela própria retórica do antropólogo. A presença de

modalizadores temporais (desde sempre; hoje; continuamos chamando; não mais)

torna pregnante esse efeito no movimento de percepção conjuntural. No entanto,

tal movimento não corresponde a uma interpretação de cunho historicista. O

caráter paradoxal da posição de Lévi-Strauss parece constituir uma espécie de

atualidade não cronológica.

No contexto da entrevista, embora haja um teor errático nas respostas de

Lévi-Strauss, há fios de continuidade que ajudam a dar coloração a essa ideia da

inexistência da arte. A noção, que aponta para a imposição de uma

circunstancialidade do presente sobre a produção e a recepção artísticas, é

modalizada por uma operação contínua de relativização. Como pano de fundo

para essa discussão, está o status da relação entre os chamados pensamentos

domesticado e selvagem, uma relação que é descrita na entrevista de forma

sumária e episódica.

Restrinjo-me às considerações que produzem efeitos imediatos para a

discussão que desdobro aqui, em face de uma demanda de alteridade: a exploração

dessa zona de afinidade pode servir a uma alteração da percepção dirigida às

circunstâncias presentes que me concernem e, ao mesmo tempo, um modo de

remobilizá-las.

Na mesma entrevista, há uma outra passagem exemplar da sutileza das

posições de Lévi-Strauss a esse respeito:

FOLHA: Em Olhar, Escutar, Ler, o senhor escreveu que há momentos na história

da arte em que a qualidade estética diminui quando crescem o saber e a

habilidade técnica. É o que acontece hoje?

LÉVI-STRAUSS: Não. Quando escrevi isso, estava pensando na história da

tapeçaria. A mais bela tapeçaria que conhecemos é a dos séculos em que o

tapeceiro dispunha de número limitado de cores. Esse número de cores só

aumentou nos séculos 18 e 19. Em vez de cem cores, hoje temos 10 mil ou 100

mil. A qualidade se enfraquece. O problema da arte moderna, ao menos nas artes

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plásticas, não é um enriquecimento dos meios técnicos, mas, ao contrário, um

considerável empobrecimento. Isso é verdade para as artes plásticas, mas não

para a música, que se torna cada vez mais erudita. Não gosto nem um pouco da

música contemporânea, mas reconheço que ela é extremamente erudita. (Lévi-

Strauss, 1993, s. p.)

O par empobrecimento/enriquecimento a que alude o trecho traz à

lembrança um vasto repertório de desdobramentos da arte chamada moderna,

cujas implicações socioeconômicas ocupam um papel privilegiado no âmbito de

teorias estéticas as mais variadas. Nos limites do fragmento citado, no entanto, a

observação tem um alcance pontual: resiste a uma aplicação geral, como se

observa na recomendação do antropólogo sobre o alcance limitado de sua

consideração. Em perspectiva, a tese apontada acima, acerca da inexistência da

arte, sugere um aspecto supostamente contraditório, no que sublinha uma patente

inadequação de um espectro amplo e heterogêneo de modos de expressão

artísticos a uma categoria englobante. A oposição se expressa, sobretudo, se se

considera que esse aspecto inclui, do ponto de vista de sua insubmissão à

classificação, um grupo amplo de domínios expressivos, a saber: as artes plásticas

e a música, mas também a literatura, o cinema, a fotografia, a dança etc. A

oposição não se estende ao fato de ambas as posições se pautarem sobre a

particularidade irredutível dos acontecimentos artísticos, apesar da diferença de

escala. As expressões concordam, também, no que reagem a um âmbito específico

de problemas que podermos associar à dita arte moderna, cujo potencial

reverberativo ainda suscita questões.

Há na entrevista outra incursão do antropólogo pelo tema da arte que

gostaria de sublinhar. Ela consiste em um contraponto a uma manifestação sua de

otimismo em relação à história e à arte, no final de Olhar, Escutar, Ler (1997): a

história da arte constitui um marco civilizatório, talvez o único, para o Ocidente.

Ao retificar a provocação do interlocutor afirmando que sua posição resultaria

numa consequente desvalorização das noções de arte e mito entre os indígenas

(povos supostamente sem história), Lévi-Strauss se preocupa em não se restringir

à reprimenda.

As sociedades ameríndias têm posição de destaque na obra de Lévi-

Strauss. Sobre a preponderância do americanismo no pensamento de Lévi-Strauss,

diz Viveiros de Castro: “[permite] uma leitura de toda a sua obra como em

continuidade epistêmica com as formas de pensamento ameríndias que nela

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sempre tiveram posição de destaque” (Viveiros de Castro, 2012a, p. 154). Deve-se

sublinhar, também, que a noção de “sociedades indígenas” a que se referem os

dois etnólogos diz respeito a um amplo conjunto de etnias do qual não se pode

deduzir a unidade linguística, cultural, geográfica, econômica ou política.

Segundo o portal Povos indígenas no Brasil, “[estima-se] que existam hoje no

mundo pelo menos 5 mil povos indígenas, somando mais de 350 milhões de

pessoas”. Segundo essa estimativa do ISA (Instituto Socioambiental), com base

no censo do IBGE, “há no Brasil “mais de 240 povos indígenas”.43

Considerando-se ainda o caso brasileiro, deve-se ressaltar que esse número,

segundo o mesmo instituto, exclui membros ou comunidades emigrantes,

formadores de uma espécie de diáspora indígena.). Cito agora o trecho da

entrevista a que me referia:

FOLHA: No mesmo livro [Olhar, Escutar, Ler], o senhor diz que só a progressão

da história da arte mostra que algo aconteceu entre os homens, que houve uma

civilização. Essa idéia não desvalorizaria a noção de arte e de mito entre os

índios, uma vez que, no caso, não há progressão?

LÉVI-STRAUSS: Você poderia generalizar mais uma vez o problema e dizer que

se trata da questão dos povos com ou sem história, mas sempre me manifestei

contra essa concepção. Nossa diferença em relação aos ameríndios, aos

melanésios ou aos africanos de outrora é que não damos a mesma importância, o

mesmo lugar, à história. Esse juízo que fiz é evidentemente subjetivo, o juízo de

membro de uma sociedade e uma civilização. Não estou generalizando, estou me

referindo à arte na minha civilização. (Lévi-Strauss, 1993, s.p.)

No fragmento transcrito, nota-se que o antropólogo desmonta a inconsistência da

pergunta, denunciando um equívoco interpretativo, ao mesmo tempo em que

acentua positivamente o aspecto relativo de sua própria posição.

A construção “equívoco interpretativo” poderia se sugerir tautológica. Não

é o caso em absoluto. A noção de “equívoco” pode ser concebida como uma

categoria operativa, com a qual se podem lograr conquistas interpretativas, e, ao

mesmo tempo, como uma condição da própria atividade crítica, nos termos aqui

descritos: como um comportamento. Pode-se sugerir que tal postura em relação à

história da arte seja contraditória com respeito a um relativismo antropológico de

base, ao qual é comumente associado o pensamento de Lévi-Strauss.

A posição do etnólogo, como evidencia o trecho, destitui de validade essa

suposição: em primeiro lugar, ao negar que a distinção operativa, desenvolvida em

43

https://pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/populacao-indigena-no-brasil. Último acesso em

15/08/16.

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O pensamento selvagem (2011), entre sociedades frias e quentes se identifique à

distinção simples entre povos com e sem história. Esse raciocínio simplificador,

explícito na provocação do entrevistador, trai uma incompreensão das relações

entre pensamento selvagem e domesticado, bem como uma insensibilidade ao que

há de complexo nos casos que os termos evocam.

E isso a começar pelo ponto defendido: o fato de, em outras sociedades

não ocidentais, a história não ocupar o papel privilegiado que tem em nossa

civilização não se traduz necessariamente em termos de privação de uma

dimensão histórica. Em outras palavras, o reconhecimento da história da arte

como marco civilizatório (ou do valor que se pode atribuir ao progresso histórico

e ao acúmulo da experiência como fundamentos da autoridade da ciência, do

direito, da política ou de qualquer outro discurso que advogue para si caráter de

verdade) têm efeitos no espaço de nossa cultura e esse reconhecimento guarda

íntima relação com a importância que atribuímos ao componente histórico em

nossa apercepção cultural: “[não] estou generalizando, estou me referindo à arte

na minha civilização”, insiste Lévi-Strauss.44

O relativismo levistraussiano se realiza na imposição de um suposto ético

e metodológico: de que uma cultura qualquer não dispõe de critérios absolutos

suficientemente confiáveis para julgar outras. Por mais abrangentes que sejam os

procedimentos, dispositivos e critérios de avaliação no escopo da cultura ocidental

(o desenvolvimento técnico, as circunstâncias históricas, a ciência, por exemplo),

eles não fornecem garantias de superação de sua própria apercepção em direção à

apropriação absoluta do sentido das práticas de outras culturas. A problematização

de Lévi-Strauss da amplitude das categorias com que operamos adquire contornos

radicais na medida em que não poupa a mais geral destas, a noção de humanidade.

Em uma já muito citada passagem de Raça e história (Lévi-Strauss, 2013),

o etnólogo francês ressalta a historicidade do modo como nos utilizamos de tal

noção: como carácter extensivo. Por outro lado, no deslinde da experiência

etnográfica, um lastro de alteridade se inscreve também por ação das outras

formas de vida com que se trava contato, lastro capaz de contrailuminar os limites

de percepção de nossa própria cultura.

44

A título de esclarecimento, cabe explicitar que o que estamos chamando de relativismo

antropológico diz respeito, em primeiro lugar, ao contexto da obra de Lévi-Strauss, não sendo

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A aproximação proposta por Lévi-Strauss entre a arte e o pensamento

selvagem desenvolvida em O pensamento selvagem aparece na passagem célebre,

já citada, em que o etnólogo se refere a uma semelhança de circunstâncias da arte

ocidental e do pensamento selvagem, à noção de que a arte é, em nossa civilização

uma espécie de “parque nacional” no qual o pensamento selvagem continua a

prosperar (Lévi-Strauss, 2011, p. 257).

O tema tratado aqui é o da história sob o impacto da experiência

antropológica, tema que, apesar de secundário, tem extenso lastro na obra de Lévi-

Strauss (Cf. Goldman, 1999). A passagem inscreve uma crítica à tendência

diacronista de interpretação das relações entre pensamento selvagem e

domesticado. Entendida como progresso, a história se efetiva como culminação do

marco civilizatório, ocupando um papel primordial no processo de humanização

do homem. É a história como ontogênese, o esteio de ultrapassagem de um estado

de natureza: “um modo de atividade mental anterior ao outro” (Lévi-Strauss,

2011, p. 257). Nestes termos, a relação entre pensamento selvagem e pensamento

domesticado é de caráter retrospectivo, o primeiro sendo um estágio anterior do

segundo, algo em cujas bases se sustentaria a civilização ocidental.

O equívoco de tal concepção está, critica Lévi-Strauss, em identificar o

pensamento selvagem a um período da história arcaico e longínquo (estágio

primitivo da história humana) e não só na fragilidade dos motivos que sustentam

essa crença:

Esse pensamento selvagem que não é, para nós, o pensamento dos selvagens nem

o de uma humanidade primitiva e arcaica mas o pensamento em estado selvagem,

diferente do pensamento cultivado ou domesticado com vistas a obter um

rendimento. (Lévi-Strauss, 2011, p. 257, grifo meu)

Para Lévi-Strauss, a experiência antropológica conduz a uma compreensão

alternativa da relação entre pensamento selvagem e domesticado, afigurando-os

como forças co-ativas. Forças que coexistem e se interpenetram tanto no

arcabouço da civilização ocidental quanto no de outras sociedades. Assim, a

diferença entre os termos em destaque se configura antes de modo intensivo que

progressivo.

exatamente a mesma coisa que a usual noção de relativismo cultural. A esse respeito ver,

sobretudo, Lévi-Strauss, 2013.

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O investimento do etnólogo se concentra em ampliar e potencializar os

efeitos de crítica da discussão antropológica sobre um dos mais arraigados

pressupostos do pensamento ocidental, qual seja: a ideia de que a história constitui

perspectiva privilegiada na interpretação dos fatos humanos reconstituídos em

retrospectiva, como a sucessão ordenada e causativa de acontecimentos e relações

constituintes de uma dada configuração presente. O problema, contudo, não está

especificamente nessa espécie de fixação pela história de nossa cultura (cujo

pertencimento não é negado por Lévi-Strauss), mas na apropriação desse quadro

explicativo como característico da ontogênese e suas implicações para a

constituição de uma concepção universal de sociedade (também cronológica,

sucessiva, linear e teleológica). Cito:

É fácil explicar ou pelo menos justificar essa opção: a diversidade das formas

sociais, que a etnologia capta desdobradas no espaço, apresenta o aspecto de um

sistema descontínuo: ora, imagina-se que, graças à dimensão temporal, a história

nos restitui não etapas separadas mas a passagem de um estado a outro sob uma

forma contínua. E, como acreditamos apreender nós mesmos nosso devir pessoal

como uma mudança contínua, parece-nos que o conhecimento histórico vem ao

encontro da evidência do sentido íntimo. A história não se contentaria em nos

descrever seres em exterioridade, ou melhor, em nos fazer penetrar, por

fulgurações intermitentes, interioridades que seriam tais cada uma por sua conta

ainda que permanecendo exteriores umas às outras: ela nos faria encontrar, fora

de nós, o próprio ser da mudança. (Lévi-Strauss, 2011, p. 299)

Como visão de conjunto, a experiência etnográfica se contraporia a essa

concepção determinista de história desde a sua forma: apresenta o aspecto de um

sistema descontínuo. Mais do que isso, para Lévi-Strauss, esse determinismo não

“corresponde a nenhuma realidade” (idem). Do ponto de vista metodológico, o

dado histórico não é mais disponível que quaisquer outros, submetido que está ao

teor de abstração da reflexão histórica bem como ao aspecto arbitrário de sua

seleção, do ponto de vista de seus condicionantes.

A distinção entre sociedades de “história fria” e de “história quente”, cabe

ressaltar, não se traduz em uma diferença simples e estável entre povos com e sem

história, pois diz respeito nos termos de Lévi-Strauss a uma diferença intensiva de

atitude de uma determinada sociedade em relação à história, de como negociam

com a dimensão histórica da existência.

Não se trata, como já foi dito, de qualidades exclusivas, sendo antes forças

em embate que constituem diferenças de atitude entre sociedades que,

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hegemonicamente, adotam a história como forma privilegiada de saber (subjetivo

e social), “o motor do seu desenvolvimento”, e outras que procuram

continuamente conjurar os efeitos da história. Embora não seja o caso de conceber

essa diferença como estabelecida entre termos estanques, a centralidade do

componente histórico na constituição daquilo que Viveiros de Castro chama

“nossa mitologia evolucionista moderna” (Viveiros de Castro, 2002a, p. 355) —

em que o homem civilizado, sujeito de cultura e de história, figura como o último

elo evolutivo — serve como termo de contraponto para a descrição etnográfica de

um imaginário cosmológico radicado em outras bases. Nos termos de Lévi-

Strauss:

Imputar a mim a mesma concepção errônea implica um equívoco sobre o sentido

e o alcance da distinção que propus fazer entre "sociedades frias" e "sociedades

quentes". Ela não postula, entre as sociedades, uma diferença de natureza, não as

coloca em categorias separadas, mas se refere às atitudes subjetivas que as

sociedades adotam frente à história, às maneiras variáveis com que elas a

concebem. Algumas acalentam o sonho de permanecer tais como imaginam ter

sido criadas na origem dos tempos. É claro que elas se enganam: tais sociedades

não escapam mais da história do que aquelas — como a nossa — a quem não

repugna se saber históricas, encontrando na ideia que têm da história o motor de

seu desenvolvimento. (Lévi-Strauss, 1998, p. 108).

As sociedades não escapam da história. Não obstante a essa

inexorabilidade englobante, Lévi-Strauss entende a arte, o seu habitus, como área

em que ainda é franqueado o sonho e o usufruto da alteração. Espaçamentos, e

não espaços, entre os quais se conserva e se deseja conservar uma força de

alteração e de alteridade. Assim como outros “tantos setores da vida social ainda

não desbravados” (Lévi-Strauss, 2011, p. 257), a arte se oferece como promessa

de sobrevivência e experiência do pensamento selvagem no seio de nossas

práticas sociais.

O uso que Lévi-Strauss faz de um repertório de expressões de cunho

ecológico não parece gratuita. Assim como não é difícil imaginar o modo como a

expansão civilizatória ameaça a sobrevivência de outros indivíduos não humanos

ou de cuja humanidade não se toma com seriedade (Viveiros de Castro, 2009).

Porém, não dispomos da mesma clareza para determinar a natureza dos perigos

que assediam a, até agora, vaga condição da arte em estado selvagem. Para tanto,

retorno à tese levistraussiana da inexistência da arte a fim de enfocar um de seus

pressupostos.

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O reconhecimento desse componente dinâmico por Lévi-Strauss, como já

sublinhamos, responde a uma atenção ao concreto. Ao concreto da alteração das

condições de produção e recepção artísticas, destituinte de uma percepção que

apreenda a arte de forma unitária e privativa.

Como exemplo dessa redisposição de perspectiva sobre a arte que

responde a inflexões do contexto de produção, recepção e circulação, podemos

tomar o caso, em certa medida anacrônico, dos movimentos históricos de

vanguarda. Para as vanguardas históricas, essa alteração destituinte se realiza

como dupla reivindicação, com efeitos sobre a produção e a recepção — uma

alteração tamanha do contexto de produção que resulte em obras capazes de

deslocar os esquemas de sua própria apreensão. A referência aos movimentos de

vanguarda como históricos já circunstancia sua apropriação como fenômeno

localizado. O que não quer dizer, porém, que essa categoria em específico não

tenha utilidade metodológica, sobretudo para fins alusivos e pedagógicos. O

contrário sugere que seus efeitos estão circunscritos a um período limitado da

história cuja reemergência é solapada pelas circunstâncias presentes. Em

contrapartida, a dupla reivindicação aparece aqui primeiro como esforço de

problematização dos limites formais restritivos da atividade artística, sobretudo

em termos de experimentação formal; e, segundo, como aposta de superação do

esteticismo, para que dê lugar a uma prática artística dissoluta (ou ao menos

problematizadora) dos limites entre arte e vida.

Eduardo Viveiros Castro, por seu turno, retoma a imagem dialética de

Lévi-Strauss com foco no estado de confinamento compartilhado entre arte e

outras formas de vida selvagens. A arte habita nosso meio sob confinamento por

se tratar de um espaço alternativo de experiência – um espaço que é semelhante (e

dessemelhante) àquele que se sugere nas descrições etnológicas do imaginário

cosmológico indígena. A particularidade da posição de Viveiros de Castro diz

respeito à associação desse ideal de experiência ao que ele chama epistemologia

xamânica:

Aquele ideal de subjetividade que penso ser constituitivo do xamanismo como

epistemologia indígena, encontra-se, em nossa civilização, encerrado no que

Lévi-Strauss chamava de parque natural ou reserva ecológica dentro dos

domínios do pensamento domesticado: a arte. No caso do Ocidente, é como se o

pensamento selvagem tivesse sido oficialmente confinado à prisão de luxo que é

o mundo da arte; fora dali ele seria clandestino ou “alternativo”. Para nós, a arte é

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um contexto de fantasia, nos múltiplos (inclusive pejorativos) sentidos que

poderia ter a expressão: o artista, o inconsciente, o sonho, as emoções, a estética.

A arte é uma “experiência” apenas no sentido metafórico. Ela pode até ser

emocionalmente superior, mas não é epistemologicamente superior a nada, sequer

ao “senso prático” cotidiano. Epistemologicamente superior é o conhecimento

científico: é ele quem manda. A arte não é ciência e estamos conversados. É

justamente essa distinção que parece não fazer nenhum sentido no que eu estou

chamando de epistemologia xamânica, que é uma epistemologia estética. Ou

estético-política, na medida em que ela procede por atribuição de subjetividade

ou “agência” às chamadas coisas. Uma escultura talvez seja a metáfora material

mais evidente desse processo de subjetivação do objeto. O que o xamã está

fazendo é um pouco isso: esculpindo sujeitos nas pedras, esculpindo

conceitualmente uma forma humana, isto é, subtraindo da pedra tudo aquilo que

deixava ver a “forma” humana ali contida. Os filósofos costumam usar a palavra

“antropomorfismo” como censura. Eu, ao contrário, acho o antropomorfismo um

gesto intelectual fascinante. (Viveiros de Castro. In: Viveiros de Castro &

Sztutman, 2008, p. 42-43.)

Essa passagem, talvez por ser extraída de uma entrevista, aponta para muitas

direções. No entanto, eu a destaco aqui por um motivo específico: para o

antropólogo, ainda se conserva na arte um ideal de conhecimento e experiência

alternativo à ciência que representa o ideal de objetividade predominante na

compreensão dos fatos humanos no Ocidente. É justamente por este motivo

específico, por instar uma presença efetivamente contrastante, que essas

experiências estéticas produzem implicações estético-políticas e, por que não,

cósmicas e, por isso, representam um certo perigo.

Importa ressaltar que o traço de semelhança a que me refiro acima tem, na

argumentação do etnólogo, efeitos restritos: concerne ao espaço que a arte e essas

outras sociedades ocupam, no que preservam um ideal de experiência e

conhecimento equidistante daquele predominantes em nossas sociedades. É

preciso dizer também que Viveiros de Castro fala como antropólogo, por isso é

preciso descontar certa desconsideração de segmentos da produção, recepção e

circulação da arte que em muitos aspectos contradizem sua caracterização.

Isso não quer dizer que essa caracterização não tenha efeito sobre uma

série de questões muito recorrentes no contexto da arte e da crítica, questões

patentes inclusive para esses segmentos da arte que manifestam insubmissão à

caracterização do antropólogo. Sobre esse potencial reverberativo, de ressonância

na arte, da provocação do antropólogo, penso, sobretudo, em um fator: se a arte

reside em nosso meio sob a forma de um encerramento, não deixa de fazer

refração e deslocar seu entorno implicativo.

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Como pensar essa capacidade de refração e de produzir deslocamento em

face de alguns dos termos do problema da autonomia da arte e do estatuto do

humano tais como enfrentados pela produção literária e sua crítica

contemporâneas? Crítica em que se inclua as incursões dos antropólogos-filósofos

acima citados pela arte, em especial a partir da assunção e exploração em suas

reflexões de uma dimensão ficcional, dimensão esta que se lhes afigura como

imanente aos seus movimentos de pensamento.

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O canto do Kãñïpaye-ro

Apresentação

Escrever sem escrever. Escrever para seguir

escrevendo.

Mario Bellatin.

Na madrugada de 26 de dezembro de 1982, o xamã araweté Kãñïpaye-ro

inventou-proferiu um canto. Era “fruto de uma inspiração não-vinculada a

qualquer ritual, mas que se desdobrou em peyo terapêutico de sua esposa (que

tinha dores no peito)” — Viveiros de Castro inicia assim o seu relato do canto-

pajelança que lhe coube, na época, testemunhar (1986, pp. 549-50).

Por sua complexidade e densidade imagética e cênica, essa abertura

poderia compor um relato ficcional ou uma sequência dramatúrgica. O trecho é

parte do trabalho etnográfico do antropólogo, ressoante e reatualizador de sua

experiência de campo entre os Araweté, povo tupi-guarani do submédio Xingu.

Assim, pela mediação de seu relato-testemunho, composto de sentenças e

sequências como as transcritas acima, o narrador da cena é também traço de

constituição ocular e auricular do canto, ao menos desde os registros dessa

tradução, na qual deposito confiança para seguir com essa leitura.

O narrador-testemunha é o etnólogo brasileiro, e o relato é parte do livro

que resultou de sua tese de doutorado sobre os Araweté. Ao mesmo tempo em que

se trata de um documento cuja pretensão é a de se oferecer como tradução e

testemunho, o escrito é pensado aqui nos termos de uma reação ao canto. Nessa

reação, que é também documentação, Viveiros de Castro aposta no precedente de

uma operação xamânica: busca fazer uma tradução desde a borda entre a

percepção do etnólogo e a do nativo, na ocupação da qual se gesta o gesto

etnográfico. Tradução que também se perpetua como performance de leitura

crítica e reflexiva.

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Nos termos desse gesto de execução-reflexão, o etnólogo ocupa a posição

de interlocutor privilegiado para outras reações ao canto, que serão, na

apresentação deste capítulo, pontuadas e brevemente descritas, com destaque para

as ressonâncias produzidas por Antônio Risério, Álvaro Faleiros e Ricardo

Domeneck.45

Se, nesta breve introdução, busco inventariar e descrever algumas

reações ao canto Araweté, é para esboçar um pano de fundo para o que vem em

seguida: a minha própria tentativa de produzir uma escrita responsiva ao

acontecimento do canto, a parte principal deste capítulo.

Mas comecemos então por Viveiros de Castro, o primeiro a nos franquear

o canto. Além do testemunho de corpo presente, o antropólogo registrou um áudio

da ocasião; e, no capítulo IV de Araweté: os deuses canibais, dedica uma seção à

transcrição, tradução, descrição e comentários do canto xamanístico. No percurso

que nos leva a este capítulo IV do livro, aprendemos sobre a forma de vida que

constitui o entorno do canto — sobre a cosmologia Araweté de um modo geral, e

também, em particular, sobre os cantos e rituais xamanísticos nos quais deuses e

mortos se manifestam aos humanos, como no canto em tela. Não seria o caso

tentar resumir aqui o formidável trabalho do antropólogo, mas cabe sublinhar pelo

menos um aspecto, relativo ao modo como os Araweté compreendem a gênese e a

cosmografia do mundo atual, ainda que de forma violentamente simplificada. Um

“cataclisma inaugural”, deflagrado por um insulto proferido contra uma

divindade, teria ocasionado entre outras coisas a separação entre os Mai, os

deuses, e os Bïde, os humanos, também chamados pelos Araweté de “os

abandonados” (Viveiros de Castro, 1986, p. 184). Guarda-se entre os Maï e os

Bïde, a despeito da traumática separação, uma relação de desejo (espíritos têm

aqui apetite sexual) – mas seu reencontro só se dá após a morte. O xamã é, na

tribo, aquele que é capaz de, pelo canto, promover a interlocução entre os vivos,

mortos e os deuses.

É o que faz o pajé Kãñïpaye-ro numa madrugada de 1982. Não tendo

nome, a sua performance cantada foi chamada pelo antropólogo de “O canto da

castanheira”, em conformidade com “a imagem focal que desenvolve” (Viveiros

45

No Anexo deste trabalho, encontram-se: (I) a tradução de Viveiros de Castro para o referido

canto; (II e III) as re-traduções que Antônio Risério e Álvaros Faleiros fizeram com base no

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de Castro 1986, p. 550)46

. A tradução e a glosa do canto são, para Viveiros de

Castro, o melhor caminho para “situar a imagística e espírito dos Maï marakã”

[cantos xamanísticos] e para dar uma ideia de seu complexo “sistema recursivo”

(Viveiros de Castro, 1986, p. 549).

Esquematicamente, o entrecho em que o etnólogo se dedica ao “Canto da

castanheira” se desdobra em duas etapas: a primeira oferece uma transcrição do

canto em Araweté47

; e a segunda consiste em uma pretensa “tradução livre”,

intercalada por glosas, descrições pormenorizadas e pontilhada por comentários

em relação a trechos e associações suscitadas pelo canto. Comentários, diga-se,

que implicam a visão dos informantes de Viveiros de Castro a respeito das

matérias analisadas.

A transcrição do canto em Araweté é ainda pontilhada por rubricas

(similares às rubricas teatrais) que explicitam traços situacionais que

circunstanciam o canto (a entonação do cantor, que movimentos de seu corpo e de

seu chocalho acompanham tal ou qual trecho do canto, o modo como se dirige à

sua mulher e à audiência e a reação da audiência em relação ao canto).48

Diz-se

que a tradução é livre, porque sua execução se “alimenta” e é desejosa de um

esvaziamento da ambição por parte do antropólogo, esvaziamento levado a termo

pela manutenção de duas recusas: à sobressignificação do canto, e da ocasião que

o entorna; e ao risco de transposição especular, no registro de uma tradução

decalcadora do sentido, do canto e do que se lhe vincula.

trabalho de Viveiros de Castro; e (IV) um poema de Ricardo Domeneck, escrito sob o impacto do

canto Araweté. 46

Sobre isso, Viveiros de Castro esclarece: “[a] imagem focal é a de uma grande castanheira

celeste (ia’i oho) sendo decorada com a plumagem branca da harpia pelos deuses, que assim

fazem sua “face” (folhas) brilhar à distância. O(s) Mai faz(em) isso (...) porque estariam irados (e’

e) com a morta, e ardendo de desejo por ela” (Viveiros de Castro, 1986, p. 544). O antropólogo

admite que nunca chegou a compreender a relação entre o ato de emplumar a castanheira e esse

desejo divino: “tal imagem é nova, criada nesse canto, mas encontrou aceitação e foi entendida por

todos; ela associa dois discursos canônicos sobre o céu: as castanheiras e as harpias” (idem). 47

“[L]íngua da família tupi-guarani, mas bastante individualizada” (Viveiros de Castro, 1986, p.

144) 48

À guisa de exemplo, eis a transcrição do verso 32, seguida da tradução correspondente, sem as

glosas (Viveiros de Castro, 1986, p. 551 e p. 561, respectivamente):

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Esse risco é afim àquele da identificação unívoca entre, de um lado, o

discurso etnográfico e a percepção do etnólogo e, de outro, o canto e o discurso (e

a percepção de seu próprio canto e discurso) por parte do nativo — tal como se

mostra no registro material da monografia etnográfica, na tradução do canto e nas

considerações que o acompanham. Nos termos do que defendi até aqui nos

movimentos deste trabalho, penso que a operação tradutória do etnólogo inscreve

um gesto crítico, em seu movimento e nos riscos que contrai. Gesto que penso nos

termos da execução de uma atitude responsiva (cf. Despret, 2008).

O antropólogo nunca deixa de ser um estrangeiro para a tribo, e não diz o

contrário, e, como ele mesmo sublinha, não tem acesso irrestrito (nem mesmo os

membros da tribo o têm) ao sentido de certos pontos obscuros do canto. Não têm

acesso à posição enunciativa (e repercussiva da enunciação) de falante (e ouvinte)

nativo, no que toca à percepção e aos modos de ser sensível às peculiaridades do

idioma. É isso que o leva sempre, no tratamento do que é indecidível em sua

leitura do canto, a se abandonar ao que dizem seus informantes — decisão à qual

temos acesso somente a partir do relato do etnólogo.

A operação tradutória de Viveiros de Castro se sabe e se pretende

controlada pelos limites de sua experiência — nos termos de uma ficção

controlada—, por mais que essa experiência seja uma experiência de borda

(quase-xamânica) e encare essa prerrogativa como inegociável. Portanto, o que

Viveiros de Castro chama de tradução livre talvez fosse melhor que fosse

chamado de tradução fictoliteral. É inventiva, e nisso está um grau de liberdade

que se processa no modo como o antropólogo inventa repercussões entre a

experiência dos Araweté e a sua e quer “levar absolutamente o sério” o que os

índios dizem (Viveiros de Castro, 2009).

Em sua fictoliteralidade, o texto de Viveiros de Castro se deixa reconhecer

talvez como um caso de “escrita de ouvido”, nos termos de Marília Librandi-

Rocha (2012). Ao longo do tratamento do canto xamanístico, o antropólogo dá

sinais que apoiam essa intuição – assinalada também por Risério (1992) e Faleiros

(2012) –, quando diz que não é “musicólogo, e pior, [tem] um péssimo ouvido

musical” (Viveiros de Castro, 1986, p. 546). Aqui, a observação do etnólogo não

parece feita no sentido da autodepreciação, mas para expor os limites de suas

impressões sobre o canto (impressões que importam sobremaneira sobre o ato

tradutório) e, assim, conjurar o risco de instrumentalização a que sua leitura expõe

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a experiência indígena desses e nesses cantos. O antropólogo tem parcimônia,

controla seu discurso, diante do que lhe soa indecifrável no canto, porque não é

nativo, mas também por suas limitações em sua própria cultura. Não é

musicólogo. A particularidade de sua voz incide sobre sua descrição. A sua

tradução ocupa, pelos dois lados, a borda.

A “ausência” de liberdade na tradução não é, a rigor, somente uma

contingência da condição de estrangeiro do tradutor. O desejo é sustentar uma

operação tradutória que performe uma modalidade de saber muito particular, um

saber responsivo e alterado pela intervenção daquele que é “o sabido”. O saber do

antropólogo é um saber cujos objetos são sujeitos.

Segundo Viveiros de Castro, o “Canto da castanheira” é um caso singular

entre os cantos xamanísticos Araweté, sendo isso o que o motivou à operação

multivetorizada de tradução, descrição e comentário a seu respeito. Manifesta-se

como uma atualização singularmente complexa da construção remissiva e do

imbricamento de enunciação típicos do canto xamânico, que se desdobra em um

regime múltiplo e oscilante de variação de vozes de enunciadores — os vivos, os

mortos e os deuses:

A música dos deuses é um solo vocal, mas é, linguisticamente, um diálogo ou

uma polifonia, onde diversos personagens aparecem de diversas maneiras. Saber

quem canta, quem diz o que para quem, é o problema básico. (Viveiros de Castro,

1986, p. 548)

Mais adiante, Viveiros de Castro resume assim o canto particular que toma por

objeto, o “Canto da castanheira”:

Esse canto, econômico no que toca ao vocabulário, é porém uma boa amostra

do regime enunciativo das canções xamanísticas, além de deixar claro qual a

partida que se joga com os deuses. A enunciadora principal não é nomeada em

momento nenhum – seria Kãñïpaye, uma filha do xamã que morreu pequena (dois

anos) em 1978. Ela se dirige, conforme um jogo de pergunta e resposta que marca

todo o canto, aos deuses, ao pai, a um “avô morto” (Modida-ro), a um irmão de

seu pai, Arariñã-no (...) Além da menina, outra alma fala, a do seu “pai” morto,

Yowe'i-do, que sé seré nomeado no verso 33, mas que já fala no verso 17. Este

personagem, como o outro morto citado, tem parentes próximos vivos na seção

residencial do xamã. O canto, assim, põe em cena mortos e vivos de uma

parentela restrita, localizada. (Viveiros de Castro 1986, pp. 552-553)

Como se poderá talvez experimentar na leitura completa do canto,

acrescentado em diferentes versões no Anexo desta tese, a performance de

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Kãñïpaye-ro gera grande perplexidade e admiração – e não apenas pela aludida

complexidade do jogo polifônico que ali tem lugar. Uma atenção a esse

acontecimento pode ser especialmente fértil para uma pesquisa que, como esta,

têm em vista as relações entre arte, crítica e alteridade radical.

Antes de passar à minha própria tentativa de resposta, gostaria de

considerar, conforme antecipei, três outras reações ao “Canto da castanheira”,

todas possíveis graças ao trabalho de Viveiros de Castro.

A segunda reação ao canto de que me aproximo é então uma recensão

crítica escrita por Antonio Risério. No exercício dessa resposta particular, que se

dirige ao canto do xamã e à tentativa de sua tradução por Viveiros de Castro, nota-

se, a exemplo do que ocorre com a tradução de Viveiros de Castro em seus

próprios termos, que o canto xamânico enseja uma reação disjuntiva: em eco e sob

inflexão crítica.

A diferença de Viveiros de Castro em relação a Risério está em seu

investimento no sentido da manutenção da implicitude e do esvaziamento da

ambição instrumentalizadora no trato do canto xamanístico. Isso contraria de

saída o compromisso com uma linguagem esteticamente eficaz que, como

veremos, Risério irá defender. A reação de Antonio Risério se faz por ocasião da

recensão crítica que escreve em resposta à tese de Eduardo Viveiros de Castro, em

especial ao momento em que o etnólogo se dedica ao “canto da castanheira”.

Embora os desenvolvimentos metafísicos e cosmológicos da monografia de

Viveiros de Castro interessem a Risério, seu foco é a “textualidade” da

cosmopoética xamanística dos Araweté. Risério responde ao texto de Eduardo

Viveiros de Castro, em especial à tradução e à descrição estético-etnográfica que o

etnólogo dedica ao canto, na medida em que ela deixa entrever o “fascínio pela

arte verbal” dos Araweté e uma atitude crítica, por parte do etnólogo, no sentido

de sua recusa, na tradução, à especularidade.

Risério esclarece que a pretensão de sua recensão não é um tratamento

etnográfico extensivo da cosmologia dos Araweté, embora reconheça a relevância

das associações cosmológicas suscitadas pelo canto entre os Araweté e nos termos

das reflexões etnográficas de Viveiros de Castro, em seu tratamento do canto e

também no quadro geral da tese. Mas Risério está mais interessado na

complexidade da poética xamânica ameríndia e na série de associações a motivos

clássicos da cosmopoética indígena suscitados pelo canto e pela operação

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etnográfica a ele dedicada por Viveiros de Castro. Embora manifeste sua

admiração pela originalidade e relevância do trabalho do seu interlocutor

privilegiado e, em parte, incontornável — uma vez que o mediador do documento

é, também, um mediador no documento: não se dispõe do relato e da descrição

xamânica desde a voz e o ponto de vista de seus próprios a(u)tores —, coloca-se

em posição de discordância. Traça-se a si mesmo como uma leitura na tangente

em relação à tradução de Viveiros de Castro.

Como Viveiros de Castro assinala e, na terceira reação ao canto, a ser

considerada adiante, sublinha Faleiros (2012), a função referencial da linguagem

se pronuncia nos cantos xamanísticos dos Araweté, em diferença do que mais se

agudiza nos cantos de guerra, nos quais se sobressalta a função poética da

linguagem. A leitura de Risério se faz na direção de se contrapor a esse

movimento. Ele sublinha que, do seu ponto de vista, o que merece ênfase é, no

mesmo canto em que se enfatizou o “referencial”, a dimensão poética.

A reação de Risério se desenvolve em dois planos: no primeiro, ele se

dedica a desenvolver reflexões sobre a xamanística indígena araweté no quadro

mais amplo de outros temas da cosmopoética indígena; no segundo, propõe-se

retrabalhar a tradução de Viveiros de Castro, a fim de ressaltar essa

preponderância do poético no canto. Despe-a, para isso, dos sinais que lê de uma

propensão ao referencial, contrariando o que se diz nessa narrativa-testemunho,

por uma operação de reforço nos seus traços de opacidade. A linguagem poética,

como se pode notar aqui, é imaginada no limite de um ideal de eficácia segundo o

qual o texto-discurso é tanto mais eficazmente literário quanto mais opaco, denso

e relativamente impenetrável aos seus leitores e ouvintes.

O texto de Risério também é produtor, segundo dois vetores, de sua

própria autonomia – a autonomia de seus movimentos no seu trato com o canto e

com as reflexões de fundo antropológico, cosmológico e poético que a ele se

vinculam. O primeiro vetor é esse, expresso em sua ensaística, na direção de

outros desenvolvimentos etnográficos relativos à cosmologia e à cosmopoética

dos povos amazônicos, a partir da relação entre desejo e devoração, tal como se

mostra na tradução de Viveiros de Castro do “Canto da castanheira”, sobretudo no

que toca à noção de “imagem focal” (desejo e devoração, a folha da castanheira e

a plumagem da harpia).

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Por fim, há uma última ideia de Risério, cujo caráter problemático cabe

sublinhar, uma ideia que se manifesta quando ele propõe sua tradução e suas

reflexões ensaísticas como parte de um exercício de leitura crítica do potencial

cosmopoético do canto xamanístico, bem como na avaliação dos êxitos da

operação tradutória por Viveiros de Castro. Esse caráter problemático de fato já

começa a se delinear desde o que está na nascente de seus movimentos. Antes de

se dedicar propriamente à complexidade do canto, Risério convoca os poetas à

tarefa conjunta e imperativa de promover a visibilidade das cosmopoéticas

indígenas “em linguagem esteticamente eficaz” (Risério, 1992, p. 28).

A convocação supõe tanto uma valoração crítica da tradução de Viveiros

de Castro, e de um quadro mais amplo da tradição etnográfica a respeito dos

cantos xamanísticos e de temas da poética indígena, quanto uma identificação da

linguagem poética às suas manifestações sub specie de opacidade. Segundo

Risério, “a linguagem” Araweté, no tocante às escolhas tradutórias de Viveiros de

Castro, é deflacionada pelo “bom comportamento” expresso no nível das

experimentações (não) arriscadas pelo etnólogo narrador-testemunha.

Há aqui uma denúncia da pretensão literalista, que Risério supõe como

orientadora da tradução proposta por Viveiros de Castro, como manifestante de

um conservadorismo no registro formal. Risério não para por aí e, no horizonte do

pedido de colaboração aos poetas, transmite sua posição, trabalha a partir de um

valor operativo em sua leitura e em sua tradução, posição que postula e privilegia

o primado de uma linguagem esteticamente eficaz.

É interessante e elogiável o convite de Risério aos poetas. O que merece

desconfiança são suas razões e pretensões, que parecem se fundar em uma

compreensão redutora e privativa da experiência estética e de seu valor em termos

dos fins que obtêm em relação aos seus êxitos expressivos, por assim dizer. Isso

fica bastante claro, por exemplo, quando, a certa altura da resenha, ele põe o que

reconhece como um traço performático dos cantos xamanísticos ameríndios, em

comunicação direta com a “vanguarda” da reflexão estética (cf. Risério, 1992).

O artigo de Alvaro Faleiros (2012), a terceira reação crítica ao canto do

xamã que gostaria de trazer aqui, retorna às traduções e reflexões críticas de

Viveiros de Castro e de Risério. Têm em comum com esses seus dois

predecessores o fato de configurar uma reação multiangular: dirige-se canto

xamanístico sob a influência marcante, e não determinante, do testemunho ocular

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e auricular de Viveiros de Castro; reage à tradução-crítica de Viveiros de Castro

— posicionando-se diante de suas escolhas, problematizando-as, inclusive —; e,

como se pode inferir do que já foi desenvolvido, responde a outras reações aos

cantos xamanísticos indígenas, cantos xamânicos vinculados a outros povos

tradicionais que não os Araweté, na articulação de sua resposta ao “canto da

castanheira”.

Faleiros não para por aí nas afinidades com os outros dois leitores do

“Canto da castanheira” até aqui citados: ele também intenta uma tradução. O

curioso do gesto tradutor de Faleiros é o modo como se constitui no que toca à

construção de vinculações e ao estabelecimento de diferenças. Reivindica uma

vinculação ao gesto tradutório de Viveiros de Castro, ao mesmo tempo em que

recusa a inflexão crítica de Risério (sem deixar de reconhecer seus méritos).

Faleiros entende que a tradução de Risério, como ele mesmo desejava, resulta em

uma versão opaca — opacidade que é revalorada em outra chave, por Faleiros, na

medida em que a entende como um obstáculo, uma vedação à sua experiência (cf.

Faleiros, 2012).

Como a leitura do texto completo no Anexo mostrará, a sua tradução se

distingue das demais pelo modo como enfatiza o traço dramatúrgico-performático,

sobretudo pelo reforço do motivo das reiterações tradutivas e das rubricas

(explicativas da pragmática do canto). Em outras palavras, na tradução de Faleiros

a potência/latência teatral da transcrição/tradução de Viveiros de Castro é como

que superlativizada.

Essa atitude por parte de Faleiros responde, no modo como lê o gesto

tradutório de Viveiros de Castro, a um interesse de reinscrição que torne

“evidente”, dentro do possível, o que se passa na performance e o que se dispõe na

experiência pelo canto. A tradução de Faleiros tenta levar em consideração as

reflexões de Viveiros de Castro e outros antropólogos acerca da “qualidade

perspectiva do pensamento ameríndio” (Viveiros de Castro, 2002a, p. 347).

Propõe uma tradução performativa que se configura serial e processualmente pela

obra de Viveiros de Castro e compõe um feixe de variações que extrapola a

monografia sobre os Araweté e a particularidade do canto da castanheira, embora

dele não se desvincule, como se já disse aqui a respeito da preponderância do

xamanismo no que tange o “estatuto” do perspectivismo.

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A crítica que se poderia fazer ao resultado tradutório de Faleiros é o seu

didatismo — a tradução parece movida por um desejo (algo onipotente?) de

informar. Quer incorporar no próprio canto quase tudo o que era glosa em

Viveiros de Castro. Comparem-se, por exemplo, as traduções de Risério e Faleiros

para um mesmo trecho:

RISÉRIO

Assim Maï vai me levar, me cozinhar na panela de

[pedra.

Vamos comer seu finado pai, disseram e redisseram

[os Maï.

Vão me cozinhar na panela de pedra, disseram os

[os Maï.

Mais uma vez vão me comer no avesso do céu, eles

[disseram.

Mande a menina, disse Maï – nai dai dai – flechar os

[grandes tucanos comigo, disse Maï.

FALEIROS

Assim o espírito me levará, para cozinhar-me em

sua

[panela de

pedra.

Comeremos seu finado pai, os espíritos disseram

[repetidamente.

Vão cozinhar-me em sua panela de pedra, disseram

[repetidamente.

Vão me devorar, é o que disseram, do outro lado do

[céu.

[É ele mesmo Kãñïpaye-ro quem fala]

Peça à sua filhinha, disse o espírito,

Nai dai dai

Nai dai dai

Nai dai dai...

Para nós dois irmos, disse o espírito, flechar os

[tucanos

grandes.

[Ir flechar tucanos, ir pro mato fazer sexo; o

espírito te deseja menina, se fores,

teu pai, Kãñïpaye-ro, quando morrer, poderá

ser devorado pelos espíritos,

tornar-se um afim]

Muito se poderia avançar num exame comparativo das duas reações e de

suas relações com a “matriz” de Viveiros de Castro. Para os meus propósitos,

basta indicar, nos dois casos, a dificuldade de “manter os valores do outro como

implícitos” (Viveiros de Castro, 2009a, p. 10). Onde Risério aparenta dificuldade

de controlar o impulso de sobrepor ao canto valores poéticos ocidentais, Faleiros

parece um pouco afoito em sua confiança nas virtudes de uma reconstrução

poético-descritiva da performance do xamã, recaindo num certo didatismo. Nos

dois casos, eu dizia, a dificuldade é “manter os valores do Outro como implícitos”

— “o que não significa celebrar algum mistério numinoso que eles encerrem.

Significa sim (...) mantê-los como possibilidades — nem descartá-los como

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fantasias alheias, nem fantasiar sobre como poderiam conduzir à verdadeira

realidade” (Viveiros de Castro 2009a, p. 10).

A última reação a considerar, de Ricardo Domeneck, poderia talvez

apontar um caminho em meio a essa dificuldade. Ela se faz em dois registros. O

primeiro é um verbete publicado na revista eletrônica Modo de Usar & Co., da

qual o poeta é um dos curadores e colaboradores mais prolíficos. O segundo é,

diria talvez, uma glosa poética.

No verbete, assim como Faleiros e Risério, Domeneck se reporta,

sobretudo à tradução-crítica de Eduardo Viveiros de Castro para o canto da

castanheira. Seu gesto de resposta é, no entanto, marcado por suas preocupações

de poeta, curador, antologista e crítico de poesia (e da crítica de poesia). Mais do

que isso, e isso também é traço marcante de sua leitura, sua leitura é marcada pela

ênfase nos marcos contextuais da enunciação poética e de sua execuções que

sempre se fazem no particular de uma performance. Não há a poesia, mas, tantas

poéticas quantas circunstancializações são possíveis e executáveis. Uma das teses

críticas pela qual milita Domeneck é a da indissociabilidade da oralização,

escritura, performance, leitura, crítica etc. do gesto poético em relação aos seus

traços contextuais: àquilo que o circunstancia. A militância, no caso, se faz tanto

no sentido de reinvestir de sentido a singularidade do gesto poético, para além das

amarras da leitura literarizante,, quanto de marcar a preponderância da oralidade

como traço singularizante desse gesto. Além disso, a militância também se

entrincheira contra as leituras e valorações trans-historicizantes dos fenômenos

poéticos, que acabam por cristalizar uma tradição de leitura e, segundo a visada de

Domeneck, obstruir a emergência de outras formas de visibilidade e de

“audibilidade” do fenômeno poético – formas marcadas por outras contingências

contextuais, assim como marcadoras de outras atitudes de resposta.

Como já foi dito, o poeta não para por aí: ele se arrisca em uma glosa

poética e o faz partindo do precedente xamânico de Viveiros de Castro, tanto do

ponto de vista de seu tratamento do xamanismo Araweté quanto no sentido de

tomar o ato tradutório como uma operação equivocadora. O canto, na leitura

proposta por Domeneck, torna possível o acontecimento poético pela

singularidade da performance e da corporalidade do xamã que o enuncia, — e é

nos limites dessa linha de corte que o canto se torna, para o poeta, interessante.

Não há canto xamanístico sem a singularidade da bricolage criativa da voz

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atravessada por outras vozes, este é o suposto da tradução como equivocação, com

o qual concordo.

O problema está — ponto nevrálgico que já se expressa na recensão crítica

de Domeneck (o verbete) e é levado ao paroxismo em sua glosa — é o de ver

aqui a confirmação de seus argumentos críticos (e a glosa poética reforça essa

intuição, no “canto da castanheira” e na descrição etnográfica). Não me refiro à

colocação em primeiro plano da experiência sexual. Se Eduardo Viveiros de

Castro ressalta o viés sexual do “Canto da castanheira” e conserva sua aparição

sob o modo da figura, a “imagem focal” da castanheira e das investidas dos

deuses que ardem de desejo pela filha morta do xamã, é com a glosa de

Domeneck que esse vetor ganha uma ressonância inaudita, dada pelo corpo do

cantor, e flagrantemente oposta àquela proposta por Viveiros de Castro.

Se a tradução-crítica de Viveiros de Castro reconhece e respeita a

exigência de manutenção da implicitude, a glosa de Domeneck investe na

explicitação, mesmo que indireta e parcialmente cifrada (nas cifras de outra tribo,

a do outro povo-menor cujos pertencimento e afirmação são performados pelo

poeta) de algo que, para o gesto poético que Domeneck arrisca na glosa, precisa

vir à superfície da voz. O cantor da glosa, que declina segundo a singularidade de

seu desejo e das relações que estabelece, não que manter a implicitude. É uma

decisão, o risco com que seu gesto remarca o gesto de Viveiros de Castro (assim

como Faleiros e Risério, ressaltando traços latentes da tradução-crítica de

Viveiros de Castro, ao mesmo tempo em que traçam, em relação a ele, uma

tangência).

Agora eu.

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Reagindo ao canto

§.

Este livro de poemas resultará de uma compilação de fascículos

previamente publicados com periodicidade mensal. Cada um dos fascículos terá

cerca de dez poemas. As impressões serão feitas em offset reciclado.

Os fascículos, assim como o livro, serão todos nus, sem apresentação,

orelha ou outros penduricalhos. Um livro cujo primeiro atrito a ser procurado será

o dos dedos.

Nenhum poema que o compõe pode ocupar mais de uma página. A

mancha tem de deixar espaços de respiração e para a permanência dos dedos em

todos os seus extremos. Os poemas não precisam marcar, no entanto, o centro da

página.

Uma página pode ter rugas? Qual o mais áspero dos papeis que sirva

como livro? Não perderia manuseabilidade? (Conferir.)

Em sua primeira concepção, tinham como mote os ganidos derradeiros que

os cães soltam à beira da morte. De que maneira um poema poderia fazer esse

som?

Depois, o projeto foi se expandindo e passou ao registro em tradução dos

últimos rastros, sons, cheiros ou impressões materiais (e não-verbais) que algo ou

alguém fizesse antes de sua desaparição ou morte. Não se tratava de inscrever a

desaparição, mas de fixar o vir a grito que precede o desapego da matéria vital, o

derradeiro antes. Não é preciso dizer quanto esforço de atenção o intento exige.

Talvez, assim, se consiga, de novo, retornar às vozes que os ecos afastaram.

O projeto, portanto, deixou de se chamar ganidos. Não se encontrou ainda

um nome, um que pegasse só de ouvir e fizesse justiça à ambição do novo

redimensionamento. As tentativas do substitutivo, até aqui, beiraram o ridículo.

Por esse motivo, ninguém, nem os mais interessados, foi ainda comunicado da

mudança de rumos. O sigilo ameaça a empresa de não entrar no papel. A

dificuldade não se impõe, somente, na tarefa de dar um nome ao projeto. O mais

difícil é dar cabo da pesquisa. Os diários e cadernos que compreendem as

colagens e notas de pesquisa até aqui registradas já compõem uma pilha cuja

cereja é um desorganizado hd.

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A iniciativa atende a um conselho de um amigo, um iniciado nos mistérios

(do mundo espiritual, dos poemas e do frasismo), em razão das queixas do autor

desses fascículos, que ficou muito obcecado pelo tema dos ganidos dos cães.

Colocava o amigo a par da situação, os sintomas iam a todo vapor: insônia e

audição, durante a madrugada, de ganidos. Em outras vezes, a visão de um cão de

pêlo felpudo atravessando a sala. Isso se dava, dizia ao amigo clarividente, desde

que o seu cão, antes de ter o corpo esmagado, soltou um ganido. E uma golfada de

sangue. O amigo retrucou: escreva sobre isso, até a exaustão.

Mesmo um escritor que faça as honras de feiticeiro para si, não passa de

um exorcista fracassado.

Voltando aos fascículos, nenhum foi publicado, ainda. Nenhum deles foi

sequer concluído. Talvez alguns cacos de versos que, sobrepostos a outros, façam

o click sobre o qual o filósofo vienense fala.

As fixações, à margem do conselho, estão a toda. Continuam mais

constantes e velozes que a escrita que fomentam.

A demência me acaricia/ os cabelos e um sonho me desperta. Quase em

todas as notas, se pode sentir, explícita ou implicitamente, o afeto e a gravidade

desses dois versos, que desde que foram escritos magnetizam a atenção e, a

despeito dos esforços para repeli-los, parecem tiranizar a maioria das entradas.

Também insiste a impressão de que roubou de alguém esses versos. Não sente

culpa por isso.

O fato é que ninguém aguenta mais escritores que se finjam de loucos.

Ninguém aguenta, exceto eles mesmos (talvez), que cada vez mais existam

escritores que se finjam de loucos. E aqui se está falando somente dos que

parecem convincentes. É preciso alguma cerimônia com coisas tão sérias. De

acordo? A esse respeito, o filósofo vienense diz uma outra coisa: mentir é um

jogo de linguagem que, para que se faça a contento, precisa de aprendizado. As

crianças dão esse testemunho.

(Ainda não há entre as notas qualquer referência ao choro de crianças.)

Voltando aos versos, o caso é que eles respondem menos ao tema da

iminência irremediável da loucura e sua relação com o sonho, e os modos como

essa versão tacanha dos fatos polui a visão da ficção, da arte, do sonho, da

clarividência, do profetismo, da música, da respiração, do êxtase, da infância, dos

movimentos (extra, intra e transterrestes) dos corpos, etc.; e mais sobre a

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oscilação vertiginosa, as reversões a que parece passível o que existe e não-existe.

A instabilidade do incorrigível. Os dois versos dão conta de uma curtíssima e

cortante investigação a esse respeito.

Um dos temas frequentes dos relatos orais árabes, um cuja profundidade

me parece intuída por Borges, é aquele de que os limiares entre os sonhos (e

também da ficção e sua matéria sonhada) e as coisas que não são os sonhos (e

que não se atreverá aqui chamar de o real) marcam posições reversíveis,

transponíveis e tênues. E isso se dá a despeito da presença de testemunhas que,

por força do que viram, podem subverter a desordem dos fatos. O tema é aquele,

da sabedoria ancestral, que embaralha, e mantém sob a dinâmica de uma

oscilação incontida, a hierarquia entre o que se vive nos sonhos e após o

despertar. A qualquer leitor de Borges, para quem na língua materna o sonho se

chama sueño e serve também para nomear o sono, o tema é familiar. Não se pode

deduzir, a partir dos seus ensaios-relatos, se o despertar é ou não o começo de

um sonho, ou se o adormecer é o despertar de um sonho cuja saída foi o

adormecer.

Os fascículos continuam inacabados. E as fixações, embora tenham

cessado por um tempo, estão a todo vapor. Mais especificamente, a bonança se

restringiu ao intervalo entre a chegada dos dois filhotes gêmeos (mestiços de

labrador retriever e cocker) à casa do autor dos fascículos até a incorporação de

uma nova cadela à matilha, uma outra mestiça (com traços de pastor alemão).

Com a nova configuração, vieram as brigas constantes entre as duas

fêmeas e o retorno da melodia fremida. Quase se mutilaram em mais de uma

ocasião. Nos piores entreveros, a mais inapta para a briga, por pouco não foi

cegada. Como marcas de camuflagem (e maquiagem), ela conserva duas

cicatrizes, embaixo de cada um dos olhos. Quando ficavam belicosas, sem que

nada as fizesse desprender as mandíbulas que fincavam uma na outra, mesmo que

os focinhos estivessem ensanguentados, soltavam de forma intermitente uma

mistura de rosnado, choro e ganido. Dessa vez, a melodia, ouvida em vigília, não

antecipou nenhuma morte. As duas fêmeas foram forçadas a viver em casas

separadas. Ainda rosnam quando se veem.

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§

sobre Andy Serkis (contra o autômato jogador de xadrez)

animador, um ventríloquo

em seus próprios gestos

§

Foi a mãe quem lhe deu o nome, mesmo que tenha sido o do pai. Embora

tenha confessado a ele, muitas vezes, que queria que se chamasse Rodolfo. Porém,

mesmo tendo sofrido essa derrota, é pela introdução de um sobrenome dela, o

nome do animal, que ele foi salvo de se chamar Júnior ou Filho.

Desde muito pequeno, é lembrado por ela de sua semelhança com o avô.

Seu avô, ele era índio. Às vezes, ela lhe dizia que ele era lindo. Seu avô Francisco

tinha o cabelo lisinho, meu filho, era igual a você, assim, moreno e forte. Ele e

sua mãe nunca tiveram cabelo lisinho.

O avô morreu muito antes dele ter nascido. No Brasil, todo mundo é índio,

exceto quem não é. Um dia topou com essa frase proferida por um antropólogo,

que ora se parecia mais com um índio do que ele, ora era homem branco demais

— em ambos os casos, o riso denunciava.

Ele jamais viu sequer uma das fotografias do avô. Não sabia, e ainda não

sabe, como era com quem se parece. Sabe, somente, que herdou o queixo, o jeito

de andar e o impulso à belicosidade do pai e que, no restante, saiu todo a mãe.

Sempre teve muito carinho pelo avô. Dele, sabe que viveu em Fortaleza, no

Ceará. Lá onde nasceu sua mãe e alguns de seus tantos tias e tios. Não sabe

tampouco como o avô morreu. O obstáculo sempre foi a tia, que ainda vive em

Fortaleza, e guarda a sete chaves os rastros do avô. Ele ainda tenta, não sabe se em

vão, dispor dos documentos.

A avó, mãe de sua mãe, após as manhãs que passavam juntos, lhe fazia

religiosamente o cuscus no pano de prato. Sua avó despertava quando ainda era

noite. Faleceu, de dia, subitamente. Lembra que não chorou. A irmã teve ódio por

isso. Apesar das manhãs, ele e a avó se tratavam com uma distância consentida,

embora, para ele, custosa. Chamava-o, com deboche, de prinspe. Não entendia por

que pudesse ser culpado por não deixar que ninguém quebrasse os seus bonecos.

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Ele e seus bonecos do He-Man e Comandos em ação. Ela, sua caneca e seu masca

e cospe fumo de rolo. No meio disso, alguns primos. Ainda assim, sempre coube a

ele a tarefa de ir até a quitanda para repor o fumo da vó.

Hoje mesmo se lembrou de uma história de sua avó sobre seu percurso de

ônibus pro Rio, com alguns dos filhos ainda pequenos. A avó contava com

riqueza de detalhes que no meio do caminho caiu uma tempestade terrível. Em

dado momento da tempestade, em que o veículo passava por uma ponte, o ônibus

perigou tombar. Ela concluía o relato dizendo que, na hora, viu no fundo da

chuva, ao longe, o Crucificado e a Virgem Maria. Ela, a vó Maria, mais que

sincretizada, feiticeira, e sua mãe, que não fala sobre feitiços, participaram do

milagre.

§

Carxs Senhorxs,

Em algum momento da infância, muitos de vocês devem ter praticado o

ritual de riscar com giz um sol no chão, no quintal ou no portão de casa, para

garantir a praia do dia seguinte. Em algum momento de sua vida, este que vos fala

deixou de usar o giz e se abandonou aos cuidados da meteorologia.

Acontecimento infeliz que, à parte de seu caráter irrecuperável, também pode ser

familiar a muitos de vocês. Se o que levou à passagem de uma atitude à outra é

irrecuperável, o mesmo não passa com o ritual e o modo como a cena oferece uma

imagem instigante de sua eficácia como prática de magia. Em termos sintéticos,

essa prática ritual parece supor uma ciência complexíssima do tempo e dos astros

e de sua manipulação a favor do taumaturgo. Ciência cujos procedimentos

envolvem, fundamentalmente, um trabalho de chão, solo, terra etc. Há aqui,

também, o substrato bruto de uma teoria da arte e da ficção, uma tese sobre a

dança e, sobretudo, uma concepção do tempo e do clima que admite

holisticamente a cosmofísica, o conhecimento do solo e das ciências do clima e,

por fim, um trabalho de inscrição.

Esse círculo, a força de suas reverberações provocadas por uma relação

mutuamente invasiva e permeadora entre projétil, subjétil e arremesso — como a

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pedra que perfura, espalha e impede o espelhar das águas e, no entanto, se

inscreve —, se propaga como a música, o grito, o ruído e o rumor.

Voltando à parte do ritual em que se traça um círculo no chão, a prática,

seu aspecto manual, parece ser a condição de sua eficácia. Mais do que isso, o

traçado parece já ser sua realização mesma: no que impinge, contorna e

transpassa, como um círculo e um risco, a distância entre o solo e os astros. Os

movimentos são semelhantes às linhas e ondulações do cajado do xamã, que

percorrem o ar e espancam o chão. Parecem-se também com as curvas e

ondulações do inscritor Nambikwara que confundiu os caminhos do etnólogo

francês, em um dos tantos casos em que seu pensamento se mistura perigosamente

à floresta.

O poeta que elogia a usina, uma das principais inimigas da astronomia,

naquela que para muitos é sua obra magna, publicou o poema “Tecendo a manhã”.

As usinas tornam densos os caminhos do círculo, do rasgo, o percurso das

distâncias entre a terra e o céu. Mesmo o sol, contra a figura de fumaça que faz a

usina, nasce asfixiado. Nesses versos, cuja familiaridade beira à naturalização, o

poeta recupera a imagem, moeda corrente, do canto do galo: o galo madruga e

com seu canto tece o dia. Esse tropo, provavelmente campestre, quase serve de

exemplo para a ideia nietzschiana de metáfora cristalizada. Não é preciso dizer

que a escrita cabralina ameaça qualquer metáfora de corruptela, mesmo as

nietzschianas, no que pode expropriá-la de seu caráter translúcido. A opacidade

escritural é uma, uma entre tantas, possibilidades de corpo. E, mesmo quando é a

modalidade de um corpo, sua multiplicidade é irredutível. Não há corpo que não

seja holobionte.

Segundo a imagem suscitada pelo poema, que parafraseio ao custo de sua

desaparição, a manhã, o ocaso da noite, resulta de um trabalho colaborativo dos

galos. Não é preciso argumentar sobre a ligação entre o galo e o terreiro. Segundo

o poema, são eles, os galos que, ao fazerem redes com seus cantos, tecem o dia. O

dia é um trabalho colaborativo de canto e costura que é inaugurado por aqueles

que trabalham mais cedo ainda do que os que trabalham mais cedo, e esses

trabalhos se fazem ao rés do chão. Antes do trabalho dos que despertam e do

trabalho dos despertadores, muitas antecipações dão ritmos à variação favorável

do tempo.

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O conferencista não conhece galos que cantem (ou dancem) na chuva. Na

verdade, não conhece, pessoalmente, qualquer galo. Do poeta, ele não se sente

seguro para afirmar a mesma coisa. E esse impeditivo, de seu ponto de vista, não

se dá por força da mise-en-scene relativista, mas pelos imperativos da ignorância

acerca do que leva o galo a se levantar tão cedo e, ainda por cima, começar o dia

cantando. O caso é que, se existe um parlamento ou sindicato dos galos, ele não

tem, entre nós, a mínima representatividade. Que as máquinas que substituíram os

galos, os despertadores portáteis, trabalhem sozinhas e não teçam mais, em rede,

as manhãs, e que o despertar, com isso, tenha se pulverizado pelo dia, fazendo do

sono e dos sonhos algo que por todos os anéis escapa, isso tudo, e é aí que o

conferencista quer chegar, não deixa de dar um eloquente testemunho sobre esta

(cruel porque aparentemente submissa à ditadura do trabalho) maleabilidade , do

tempo, dos movimentos do mundo e do cosmos, e do modo como sob nossa

intervenção, aqueles que programam os despertadores, tudo pode ruir. A

desaparição dos galos prova isso. Sua desaparição também prova o quão pouco

sabemos sobre o que se passa enquanto dormimos. Quase nunca notamos a

invasão das raposas, e isso manifesta, ironicamente, uma sabedoria parabólica e

fabular: não notamos as invasões, os galos, quando cantam, convidam as raposas.

Talvez, por isso, se calaram, mesmo que tenham sido calados por nós, inclusive

por nossos poemas.

Os senhores devem estar se lembrando da conferência que ouviram pela

manhã: uma interessantíssima intervenção sobre a maneira como os índios se

orientam em astronomia. Essa outra astronomia ancestral, não lembro bem se

eram essas as palavras do colega, não se orienta como a nossa (que, muito

provavelmente, não é nossa, mas egípcia), segundo os rastros dos corpos

luminosos, seus atrasos, mas pelas zonas e intervalos obscuros que permeiam,

ligam e ultrapassam os pontos e movimentos de luz, ou seja, cuja presença se

manifesta no negativo e para além de “nossas luzes”.

A astronomia como a caça demanda ciência e aqui o céu e a terra, os

movimentos e as velocidades se atravessam em comunicação. Dizia o colega, na

ocasião memorável que foi sua conferência, que onde os homens brancos veem a

Via Láctea, os tupis-guaranis perscrutam o Caminho da Anta. “[Para] os tupis-

guaranis, as constelações são constituídas pela união de estrelas e, também, pelas

manchas claras e escuras da Via Láctea, sendo mais fáceis de imaginar. Muitas

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vezes, apenas as manchas claras ou escuras, sem estrelas, formam uma

constelação.”

A cosmologia Araweté versa sobre uma prerrogativa de seus deuses

canibais: são eles, os Mäi (os deuses canibais), que não permitem que o

firmamento caia sobre nossas cabeças. “Estamos no meio” — dizem, dos seres

humanos, os Araweté. Houve, para os Araweté, um acontecimento inaugural, uma

catástrofe depois da qual os humanos, “os abandonados”, e seu mundo foram

deixados para trás. Evento catástrofico após o qual o mundo, aquele em que os

humanos e os deuses canibais conviviam comunalmente, se filamentou em outros,

em um folheamento de mundos. Os deuses se cansaram dos homens, por isso

resolveram abandoná-los. A separação foi desencadeada por um deus insultado

que, junto ao seu sobrinho, pôs-se a chocalhar o seu chocalho (nesse caso, não

vejo uma opção mais justa que essa redundância) e a fumar. Um muro se interpôs.

Cantando, eles ergueram o solo de pedra em que estavam, até formar a abóbada

celeste. (...) A subida dos céus ocasionou a uma catástrofe. A pedra foi supressa,

pelos deuses, da terra. A terra se dissolveu sobre as águas, que tomaram o mundo

— uma inundação causada por um rio, ou segundo outras versões, por uma

chuva. Sob as águas, os homens em sua quase totalidade foram devorados por

bestas canibais marinhas: a piranha e o jacaré. Da ninharia que sobrou, uma

mulher e alguns poucos dos quais não se sabe o nome, se formou a humanidade

atual. Outros seres, também Mäi, escaparam das bestas marinhas e foram mais

fundo nas águas. E lá, no subterrâneo, habitam em ilhas de um grande rio. O

mundo subterrâneo possui uma conotação aquática.

Acima, o lugar para onde vão os mortos. Acima, o lugar para onde vai o

sol enquanto dormimos, para iluminar esses mundos superiores em que vivem os

deuses que podem nos devorar. Não somente acima, mas também abaixo, e

alhures, e ao redor do sono, e sua gestualidade e movimentação sob os escuros

que o sono instaura, e também dentro, na coloração inquieta de sonho: os Mäi

estão por toda e nenhuma parte. A floresta, casa de sonhos, está alhures, assim

como seus habitantes. As bruxas também voltam a ocupar as florestas, diz o outro

antropólogo, quando nós nos ausentamos de seus limites. Não há, aqui, qualquer

antropomorfismo ou superstição, o astro é a parte mutilada da cobra, um naco que

estrebucha; e as bruxas são as simples detentoras da arte, aquelas obrigadas pela

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história e pelo presente a aprender, de um profundo senso de oportunidade (que, a

despeito de seu rigor, sempre pode falhar).

Há bruxarias que mobilizam os céus. A infância é um terreno em que sua

manifestação parece propícia. Nisso não há qualquer visão idílica da infância, pelo

contrário. Está-se falando aqui da real possibilidade do céu cair. Construção de

tendas. Bem, os senhores já devem ter notado que o retorno à infância é mais que

por força da ilustração ou por uma compulsão começar pela referência à figura

(aquela que se faz em inícios de conferências cujo pensamento que nelas se

delineia tem a delicadeza e a maleabilidade do arame farpado, para que ela —

conferência — e suas repercussões pretensamente inauditas, ressoem pelos

percursos, como se planejou). O conferencista aposta nesse progredir à infância

como o cientista se confia ao método e os feiticeiros às fórmulas e receituários. Os

ingredientes, o giz que risca, o solo riscado e o sol indiciado pelo círculo não são

o essencial. Eles forçam o peso das circunstâncias com as quais a magia também

constroi sua eficácia. O feitiço não é latifúndio da elaboração, do artifício, da pro-

formalidade da forma e do gesto, como supõe o escritor argentino sobre o qual se

falou que promove uma redefinição performativa da ficção. O feitiço responde à

deliberação, ao augúrio, aos meandros em seus próprios desígnios e não somente

ao para onde estão inclinados. (clinamen)

É sempre necessário lembrar dos personagens, dos feiticeiros cuja eficácia

nem sempre é a esperada, mesmo quando não há o fiasco. Veja-se esse outro caso

muito pessoal, mas que parece ter grande força imagética no tratamento dessas

ideias. O conferencista confessa que na infância tinha especial admiração por

Chucky, o Boneco Assassino, não por que se tratasse somente da curiosa

manifestação de um boneco de criança animado pela alma de um criminoso-

feiticeiro. Ou, ainda, por ser a prova viva, e assassina, de uma artimanha: o

criminoso-feiticeiro, no limiar de sua morte, transfere sua matéria vital e “centro

de percepção” para o corpo de um boneco. Eram dois aspectos que pareciam

interessantes ao conferecista: o primeiro era a habilidade e a fluência do feiticeiro

em um idioma misterioso, a língua do feitiço; e, a segundo, a mobilização, na

execução do feitiço, dos céus. Enquanto leva a termo o ritual que objetiva o

transporte transcorporal de que se falava — do seu corpo de homem branco adulto

para o de um boneco de brinquedo para crianças (o Chucky) —, ritual que

consiste na pronuncia ritmada desse idioma irreconhecível, há, por parte do

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criminoso-feiticeiro, uma mobilização climática. Uma espécie de redemoinho de

nuvens, trovões e raios que se adensa sobre o sítio em que se realiza o ritual. O

outro traço que deixava o conferencista perplexo era o da fluência do feiticeiro em

um idioma, aos seus ouvidos, estrangeiro. Parecia-lhe curioso um detalhe que é

preciso sublinhar. Agora, ele se dirige àqueles que já toparam com feiticeiros cujo

uso do idioma dos feitiços pareça ser o de nativo: também não lhes parece

estranho que esses irreconhecíveis idiomas estrangeiros, na boca desses feiticeiros

errantes, se desenrolem com tanta fluência, como se a eles fossem familiares?

Um xamã, antes do Canto da Castanheira, bate com o seu cajado no chão.

E é preciso ainda deduzir as consequências de se falar em ciência, a partir

das ciências da caça, da astronomia, sem se esquecer do sempre iminente risco de

vulgarização dos assuntos (perigo muito real para aqueles que nos orientamos

pelo atraso das luzes, depois de termos nos tornado incrédulos em relação ao

trabalho de antecipação do bom tempo).

Continuando a composição desse painel inicial com que se começa a

conferência, antes de passar ao próximo movimento, cabe lembrá-los de outra

conferência à qual esta que é proferida agora também reage. A conferência se deu

por ocasião de um colóquio que repercutiu sobre a catástrofe climática e “sua

súbita intrusão nos assuntos humanos”. Nela, o conferencista compartilhou a

inquietante informação de que, por muito tempo, o Cacique Cobra Coral esteve na

folha de pagamento do Prefeito César Maia. O cacique prestava um serviço de

segurança climática para a prefeitura, que consistia em evitar (ou adiar) a chuva,

para que ela não atrapalhasse o espetáculo de fogos de artifício do réveillon.

A revolução, disse o antropólogo no mesmo evento, faz o bom tempo. E a

astronomia, vocês poderiam acrescentar em reação a esta conferência, demanda e

contraefetua uma força de mobilização política do tempo, e de um tempo que são

muitos tempos, como os tempos do clima que, contra a ficção do sistema

atmosférico (o grande ar-condicionado que faz sua própria manutenção) se

comunica indefinida e indiscriminadamente com o cosmos. O movimento dos

corpos luminosos, sua força de mobilização dos futuros possíveis para a

intervenção política em arte, parece ser o principal tema do ensaio Sobrevivência

dos vaga-lumes. Pasolini aqui é o intercessor de uma agenda alternativa, contra o

fundo luminoso ofuscante do horizonte da emancipação, que aprende do vaga-

lume, da fragilidade de seu facho de luz, uma imagem afirmativa e equívoca da

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vitalidade política, uma que resista ao horizonte de uma prática política

revolucionária e totalizante (dos princípios e das intenções). O potencial de

intervenção dessas manifestações luminosas precárias interessa ao crítico na

medida em que é possível aprender da imagem um modo de emergência da

atividade política, mesmo que precária, do fundo de escuridão que a permeia.

Uma emergência cuja forma de vida tem força de abertura de caminhos, ela se

promete como o traço de uma distância a ser percorrida da contingência do agora

até uma promessa alternativa, uma alternativa contingente, de futuro. Sendo

assim, a imagem interessa muito pela constelação de significados que evoca:

raridade, efemeridade, intermitência e, sobretudo, fragilidade. O risco do vaga-

lume é o círculo de giz dentro do qual o crítico de arte projeta sua bússola, aquela

que orienta a precariedade da intervenção política segundo um desejo de

resistência ao horizonte totalitário. O que o crítico de arte parece ignorar, sem o

prejuízo de sua imagem, é que é possível se orientar também segundo os sinais do

negrume.

Estas imagens que lhes são apresentadas agora precipitam o último

movimento desta conferência. Não se trata, porém, de um desfecho. E os senhores

já perceberão o porquê desse moto final não se confundir a uma conclusão stricto

senso, exceto por sua posição no fluxo linear de leitura: uma trivialidade.

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Figura 1: Revista UFO.

Figura 2: Revista UFO.

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Nas duas imagens dispostas acima, vêem-se duas fotografias aéreas,

tiradas de um helicóptero, de dois “agroglifos que no último trimestre do ano,

costumam aparecer em Ipuaçu, pequena cidade do oeste de Santa Catarina.”

(Revista UFO)49

As imagens são parte dos documentos que fundamentam o laudo

sobre a aparição sazonal (desde 2008) de agroglifos (crop circles) no interior do

sul do Brasil. O laudo é de autoria de Antonio Inajar Kurowski, professor

universitário, policial e perito criminal do Instituto de Criminalística do Paraná e

já colaborador da Revista UFO (uma publicação impressa e virtual dedicada aos

fenômenos ufológicos). Os serviços do especialista foram suscitados por A. J.

Gevaerd (o editor da revista). O laudo em perspectiva do modo como reagem aos

agroglifos, desde sua manifestação material (e do que envolve essas

corporificações de inscrições sobre uma superfície já alterada pela presença da

lavra, agrária) constitui um material muito inquietante de manifestação da questão

sobre a qual o conferecista reflete com vocês.

Antes de tratar desse complexo que se compõe da justaposição entre as

imagens, o laudo e o que envolve a aparição dos agroglifos, alguns

esclarecimentos são cabíveis para o bom andamento da conferência. Começo por

delinear o que se entende pelo termo. Por agroglifos, segundo sua etimologia,

leia-se glifos inscritos/desenhados em áreas agrárias. Em outras palavras, trata-se

de inscrições/desenhos que são feitos sobre outros: aqueles cuja intervenção

humana produziu nos ambientes, como diz o historiador da biologia, um

palimpsesto. No caso das regiões de Ipuaçu em que esses agroglifos apareceram,

as parcelas de solo, sua última apropriação, são plantações de trigo. Ainda em

relação à etimologia do termo, a presença de –glifo assinala uma ambiguidade das

inscrições mesmas. Diz o dicionarista: “Glifo. substantivo masculino. 1. Rubrica:

arquitetura: canelura ou traço gravado nas cavidades ornamentais existentes nos

membros arquitetônicos; 2. desenho ou caráter simbólico freq. gravado ou

cinzelado em relevo.”

Penso que não seja uma trivialidade que essas inscrições tenham

aparecido justo em um campo de trigo e no ano de 2008. Os senhores, que lêem

jornais, devem saber que o trigo é uma das commodities do chamado ciclo

virtuoso, como chamam alguns economistas, embora não se saiba bem de que

49

http://www.ufo.com.br/noticias/sai-o-laudo-dos-agroglifos-de-santa-catarina/

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virtude se fale. Por esse ciclo, entenda-se o processo geoeconômico a partir do

qual as commodities assumiram um papel de protagonismo em face da tarefa de

alimentação do mundo. Sabe-se também que essa virada se deu como um dos

modos de resposta dos estados-nação e dos grandes conglomerados

agroindustriais, associados ao capital especulativo, em face do crack econômico

de 2008. Os senhores também devem ter conhecimento da devastação imposta

pela colonização interna cujo avanço implacável provoca o empobrecimento de

toda floresta em ou em pasto, constitui uma das mais nocivas alterações

geológicas cujo avanço sobre a malha planetária parece implacável. Se o

alienígena de Chomsky, aquele que ao chegar ao nosso planeta conclui que o que

se passou na Torre de Babel não passa de um acontecimento de figura, lesse

esses palimpsestos (que são, também como máscaras mortuárias), antes da

inscrição dos agroglifos, que experiência faria do que está escrito no solo? Não

seriam os agroglifos uma modalidade de resposta, uma contrassinatura, às

inscrições deixadas pelos agricultores, e outros exploradores precedentes, no

solo?

O laudo de Kurowski (que já era colaborador da revista) sobre os eventos

que começaram a se passar a partir de 2008 se dedica, esquematicamente, a pensar

a particularidade do local em que as inscrições/desenhos se manifestaram, do que

envolve suas manifestações (em que pesa o relato de testemunhas oculares, de

algo cuja feitura, propriamente dita, não se tem registros), da materialidade das

inscrições e, por fim, das interpretações que podem ser atribuídas às inscrições

dessas fórmulas orientadas (não exclusivamente) pelas inscrições circulares. Digo

não exclusivamente, pois, como se pode notar nas descrições dos motivos

geométricos que caracterizam os dois agroglifos de Ipuaçu que são foco de

atenção do laudo (conforme as imagens acima), os temas circulares não são os

únicos das manipulações dessas faixas de solo dedicadas ao plantio de trigo.

As inscrições, escavadas, ganham visibilidade tanto em uma visão

panorâmica quanto ao rés da superfície. No reconhecimento a pé do solo, se notou

que o trigo, para a marcação de outro nível de inscrição sobre o solo, não foi

morto, mas deitado. Consideradas as análises, mesmo aquelas que se esforçam por

se manter respeitosas aos códigos de etiqueta do relato científico, nota-se uma

espécie de deriva ininterrupta à interpretação.

Ouçam essa descrição relativa ao agroglifo oeste (figura 1):

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Constatou-se, em uma área de cultivo de trigo já maduro (seco), situada a

aproximadamente 1 km do ponto central da cidade de Ipuaçu, a presença de um

desenho de grandes dimensões formado pelo contraste entre o trigo intacto e as

hastes de trigo deitadas e paralelas ao solo, localizado nas coordenadas

geográficas: latitude 23° 57’ 56” S e longitude 52° 27’ 44”. Trata-se de uma

espiral circular que se desenvolve no sentido horário a partir de seu centro,

contendo 13 faixas (voltas), com um diâmetro aproximado de 54,60 m, a qual

culmina em uma circunferência de aproximadamente 20,40 m de diâmetro, que se

desenvolve no sentido anti-horário, contendo uma formação que lembra uma

ampulheta em seu interior.

Contendo uma formação que lembra uma ampulheta em seu interior. O

conferecista pontua, novamente, esta frase, pois entende que ela como um abismo,

como o abismo habitado de imagens e ecos que se abre na pele do Onagro, faz vir

à tona toda operação e esforço de abdução de agência a que parece responder o

laudo. Há, aqui, uma sorte de incontinência interpretativa que parece promovida

pelas inscrições, sobretudo a partir de sua associação a fenômenos de ordem

extraterrestre.

Nesse momento, quando se insiste que as inscrições não podem ter sido

produzidas senão por uma deliberação inteligente, tal constatação, que parece

óbvia, inscreve uma fenda e um ponto cego no laudo. Nessa ocasião, se pode

notar o exercício de uma força de refração determinante às interpretações que são

empreendidas pelo próprio laudo dos dados técnicos que ele mesmo levanta

acerca das incrições e do que as envolve. É aqui o momento em que a ferida

narcísica profunda provoca dor aguda.

Veja-se. Não há testemunhas oculares da execução das inscrições. Há uma

testemunha que passeou com seu cão momentos antes da aparição dos baixos

relevos, e, nos instantes em que foi deixar o cão em casa, percebeu a súbita

aparição das inscrições. Os técnicos entendem que se trata de uma manifestação

ufológica, ou seja, trata-se de agências extraplanetárias que, para terem chegado

até aqui ou até aqui terem se mantido escondidos, devem dispor de algum de

recurso para a viagem ou prática de ocultação muito sofisticadas.

Enfim, embora existam todos esses sinais, cuja estranheza é digna de nota,

é por causa da geometria e da simetria das imagens que se supõe que se trata de

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inscrições cuja autoria só pode ser inteligente. Não é preciso apontar quão

sintomático é o caso. Ele fala por si e com gravidade.

§

O autor dos fascículos precisa, para que disponha das condições para levar

o projeto adiante, de um trabalho que lhe custe somente um terço da parte do dia

em que fica acordado.

A divisão do trabalho do autor de fascículos sempre foi a noite pelo dia.

Seu método de trabalho nunca foi capturado pela acumulação, exceto o de

anotações que, empilhadas, não se integram.

O autor de fascículos, como qualquer ser humano comum que faz três

refeições por dia e pode pagar a passagem de ônibus, precisa de oito horas de

sono. O autor de fascículos, sob o peso da realidade e a exigência das mil e uma

noites, sabe que precisa passar mais tempo desperto e de um trabalho que lhe

permita acompanhar a agressiva escalada do preço de estar vivo.

Talvez, por isso, o autor de fascículos se veja obcecado pela perfeita

sequência numérica de unidades (com um zero à esquerda) e dezenas — até o

máximo de sessenta. A obsessão pelas sequências numéricas, a contagem dos

elementos sujeitos a padrões matemáticos (paredes e pisos de azulejos, contratos

métricos de poemas, teclas em controles remotos, empilhamentos etc.): alguns dos

passatempos prediletos do autor de fascículos.

Talvez esse também seja o motivo que faz com que o autor de fascículos

tenha tanto interesse pela antropologia política indígena e a ideia, conforme

propuseram alguns de seus pesquisadores, de economia de suficiência.

O autor de fascículos, em face de seu projeto — cujas ambições não

cessam de crescer e se enraizar em seus sonhos —, já tem experimentado, em

escrita, práticas contraeconômicas. Ao não conseguir, ainda, concluir um fascículo

sequer, pensa que, nos seus esforços intermináveis de escrita (que, para ele, nunca

foi vista como trabalho), o projeto se pronuncia como um rigoroso gesto de

resistência à economia de mercado corruptora e cooptadora das práticas de escrita

que a ela se submetem. A esse tipo de práxis, o autor de fascículos têm chamado

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de economia da insuficiência: ele nunca fica satisfeito e seus empregadores nunca

recebem os resultados.

O autor de fascículos, na iminência de uma entrevista de emprego — uma

em que terá de pôr a prova suas capacidades, aquelas exigidas em um trabalho que

não pode ocupar mais do que um terço do seu dia —, decidiu consultar o amigo

muloji, que, na língua do mistério, quer dizer feiticeiro.

Vá ao Mercadão, à banca de ervas, no terceiro andar, lá no fundo.

Compre catinga de mulata, manjericão (verde), saião, elevante, erva-prata e

colônia. Vai gastar vinte réis. Macera tudo em bacia, mistura em água fresca,

mineral. Depois do banho de asseio, com água e sabão, se banha, corpo e

cabeça, da mistura das ervas maceradas e água mineral. É bom que se durma

cheiroso. O procedimento é de tripla função: acalma, purifica e atrai (o banhado

se torna atrativo). No caminho da entrevista, masque cravo e canela e cuspa o

sumo em moita jovem. Purifica o hálito.

Tudo começa na boca.

§

usina

que fé moverá redemoinhos,

se os cafuzos trabalham sozinhos?

§

29 de fevereiro do ano bissexto de 2016

Primeira tarefa: recuperar (rememorar) as primeiras impressões “obtidas” quando

se ouviu o canto pela primeira vez.

Ressalva: a escolha por “obter” é problemática, pois o verbo pode sugerir que o

que se dispõe à experiência, considerando as experiências que a audição do canto

promoveu durante sua audição seja algo disponível à posse ou à conquista, nos

termos ambiciosos de esgotamento da linguagem científica e descritiva

convencional, ávida por induções e deduções. O que se quer assinalar aqui, e é o

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que parece ter deixado marcas pelo que se lembra da primeira audição do canto, é

a singularidade da experiência.

A primeira coisa que sentiu ao ouvir o canto foi vontade de dançar.

Sobre a súbita vontade de dançar na religião: é comum em cultos nas igrejas

pentecostais e neopentecostais o arrebatamento pela dança como modalidade de

resposta (desde que sob certa etiqueta que varia conforme a denominação) a algo

que se experimenta do sobrenatural. Um material que importa para o tratamento

do assunto são os registros audiovisuais dessas manifestações corporais

mobilizadas pela manifestação do espiritual terreiro cristão carismático.

[Memória atávica: em um programa de televisão, um programa exibido nas

manhãs de domingo, houve uma apresentação musical-espiritual de um grupo de

adoradores (como os músicos protestantes se autodenominam): apresentação

protagonizada pela Pastora Ana Lúcia e os Gideões, que cantaram, na ocasião, o

hit “Vem comigo (Dando Glória)”50

. Após essa primeira exposição à

singularidade desses louvores, viu-se uma outra “apresentação” deste mesmo

louvor, desta vez nos limites de uma congregação cristã neopentecostal. Entre

uma performance e outra, a diferença é muito significativa e se impõe, sobretudo,

pela diferença e, com o perdão da palavra, pela extática da segunda apresentação

em relação à primeira, em horário nobre do fim do semana.

A impressão que ficou dessa segunda apresentação musical foi a nítida afinidade

entre os motivos e os movimentos corporais suscitados pelo louvor (marcado por

uma percussão afro-orientada) e a musico-corporalidade das religiões tribais

africanas. Religiões tribais para as quais o cristianismo se impõe como a principal

ameaça geopolítica, ao menos no Brasil, considerando a expansão implacável de

Igrejas Evangélicas onde antes havia terreiros espíritas. Isso parece mais que

somente uma curiosidade, sobretudo se se tem em mente com que furor, também

dentro das congregações, há séculos, as religiões ancestrais não-cristãs são

perseguidas por suas súbitas manifestações.]

Martele a marmota.

50

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RrKRBbDJPaM>. Último acesso

15/08/16.

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[Ainda sobre a apresentação do louvor sob o ministério da Pastora Ana Lúcia e os

Gideões nos limites da Igreja, a experiência extática da comunidade é, sem dúvida

alguma, um dos dados mais inquietantes, sobretudo para quem nunca pisou em

um terreiro de candomblé, uma roda de maracatu ou jongo ou, finalmente, para

quem nunca viu o rodopio dos dervixes.]

Quando criança, se muito rodasse, poderia ver como veem, hoje, suas

lentes prediletas.

[Associação promissora: os dervixes, por seu giro, fazem do seu corpo um chakra.

Um chakra constitui um portal a partir dos quais os planos se divisam e se

interferem mutuamente. Um dervixe faz do seu corpo, todo ele, um olho de

ciclone. Promover estados de ficção, como os dervixes fazem em seu corpo,

potencializa a criação de portais, por agências e corpos remetidos (mesmo que

cadeados), a partir dos quais se pode variar-fazer o corpo variar o tempo e,

sobretudo, variar no tempo.]

[Tarefa por fazer: assinalar a urgência de práticas continuadas de sobrevivência e

de reivindicação cosmopolítica por estéticas alternativas da exisência que

indiquem uma alternativa para tudo isso que ninguém aguenta mais (rubrica:

fazer aqui a mímica, com a voz-letra, de um enunciador que não suporta — um a-

subjétil). Não é preciso se sustentar em estatísticas para saber que se terá fome

amanhã e, muito provavelmente, depois de amanhã.]

Atentar para: a ideia de que o corpo seja levado a dançar por um incipit de

natureza híbrida (cujo discurso prevalente ainda é o cristão), mas que no que se

abandona à dança e à música seja tomado de assalto por uma gestualidade

corporal flagrantemente não-cristã (e nem grega) só reafirma um argumento que já

foi repetido até aqui à exaustão: o outro espreita e se insurge, inclusive em searas

em que dele menos se espera a manifestação. Ou, ao contrário, o outro se insurge

em searas em que muito se espera sua aparição, mesmo que para o seu

solapamento. Há sempre o perigo da vizinhança entre dança e possessão, mesmo

(ou sobretudo?) sob as rubricas mais apolíneas. A problematicidade dessa

vizinhança parece se colocar como “centro” nervoso da etiqueta relativa ao uso da

dança nesses cultos. Dependendo de sua denominação, o humor da congregação e

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outros detalhes circunstanciais, uma dança mobilizada pelo sentimento de júbilo

ou por uma profecia pode ser lida como possessão diabólica.

Seria o caso de pensar essas intromissões do imaginário cristão, para o

escutador, como uma ocasião de promover o exercício da descolonização do

próprio imaginário que é subitamente assaltado por essas imagens? Ou pensar

dessa maneira seria, conforme a etiqueta do pensamento cristão, caçar as

próprias bruxas?

Lembrar-se de: talvez seja o caso de frequentar outros cultos (se ainda há tempo)

em que a dança, seu potencial de modalidade de resposta à ultrapassagem do

corpo pelas reverberações de outros corpos (mesmo que sejam corpos cujos

contornos e controles sejam desconhecidos) não se deixe raptar de forma tão

pacífica à dinâmica da solidariedade ou da inimizade que a pobre (embora,

paradoxalmente, riquíssima) e aparentemente maniqueísta visão cristã do diabo

(visão vizinha) oferece.

Pensar nisso tendo em mente, primeiro, aquilo que diz o filósofo: “Acreditar no

mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos

desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar

acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos

espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. (...) É isso ao nível de

cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a

submissão a um controle.”

Segunda tarefa: colocar em perspectiva o axioma reversível: toda poesia (e tudo

que ocupa o interesse da musicologia) corre perigo de se tornar etnopoesia (e

etnomusicologia) xamânica. A deliberação corporal, sua habitação pelo

estrangeiro à deliberação: a respiração, os poros, o caráter súbito de uma frase

(musical ou não) mal colocada, todos esses podem constituir ocorrências dessa

corruptela. Para correr efetivamente o risco, não basta vestir uma jaqueta com

franjas, tatuar um tema étnico ou vodu, provocar o êxtase pela administração de

chás, fumos e mantras ou abandonar-se à nudez (embora todas essas coisas

possam ajudar).

Não se esquecer de recuperar: Spiritual Cooking de Marina Abramovic. Há, no

trato com o registro discursivo do receituário e da fórmula, nesse escrito da

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performer, um uso do imperativo distinto daquele, dirigista, que se encontra nas

orientações de Cortázar.

A ideia de etnopoesia xamânica não é retirada, exclusivamente, de Piva ou

qualquer outro “partidário” da beat poetry. O que se tem em mente aqui é a

intuição de que a linguagem verbal (em acontecimento de poesia), entre outras

materialidades sensíveis ou (aparentemente) insensíveis (sob inflexão poética),

possa liberar, melhor dizendo, possa ser o promontório de uma liberação da

audição, da escuta de uma reverberação sonora, visual, táctil, emotiva etc., cuja

agência seja a de uma forma de vida selvagem (lembrando que o termo

“selvagem” continua sendo entendido, a partir da provocação do antropólogo, de

forma ampla: como o irredento e o insubmisso). O que parece ser “mais fácil” de

fazer em face da delicadeza da experiência que se quer registrar, ao menos como

parece a este que ouve o canto (canto que não se submete à retórica da canção,

não nos nossos termos — em que o carcará sempre corre o risco de ser sufocado

pela opinião), é a evocação fenomênica dessa experiência.

Talvez isso sirva a alguém como um caso particular de cosmozoografia

crítica — cujo desejo é a transcrição de uma alterfonia. A filósofa convoca a

“permanecer com o problema”, aqui se acrescenta que é preciso não somente

aprender a dormir com o barulho, mas de sonhá-lo em outros termos (e

términos).

No entanto, o que tem que de ser retomado, no que toca à manifestação da

etnopoesia (e etnomusicologia) xamânica, é a instigante maneira como o canto se

manifesta aos ouvidos, ouvidos que pretensiosamente, pelo menos por enquanto,

querem se manter protegidos do que dizem outras vozes a respeito do canto. O

canto não se correlaciona com a manifestação do júbilo, da profecia ou da

possessão. Se sua aparição se converte, em sua própria casa, em instrumento ou

sintoma, quando se escuta seu registro aqui, as repercussões parecem ser bem

outras.

Talvez essa impressão resulte de uma corruptela que se dá nos ouvidos,

no que estes pretendem manter as ressonâncias do canto nos limites do parque

ecológico. Talvez.

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Quando toda poesia corre o risco de se tornar etnopoesia xamânica, ela não

se dispõe, somente, como canal de manifestação da alteridade étnica (ou da

antropologia dos animais, diriam os antropólogos que se dedicam a isso) ou de

qualquer veleidade minoritária (embora a poesia nunca deixe de ser um poderoso

instrumento de resistência e de contra-ataque: para os que querem asfixiar, a

poesia pode ser mais perigosa que um travesseiro). Ela também pode ser a tropa

de choque do etnocentrismo, mesmo no convívio de ótimas intenções de leitura. A

etnopoesia xamânica que se tem em mente aqui é, antes de tudo, uma

cosmopoesia. E por cosmopoesia se entende não a propriedade privada das

palavras, mas o terreno sem medium da deliberação da voz, do gesto, da

respiração, da batida do cajado, das marcas que a pata e os agroglifos deixam na

terra e no corpo. E, nisso tudo, a súbita intrusão de um vozerio que não se sabe de

quem é, nem mesmo se é voz, mas que fala fundo e é eloquente. O poeta disse: a

poesia é um silenciofone. Este, um escutador de silenciofonias, diz que a poesia

também faz, para a vida, uma força de amplificação de seus ruídos.

Para Hakim Bey, em poesia ou nos termos da poesia, a prática do

terrorismo, o terrorismo poético, pode ser propícia à instauração de zonas de

autonomia temporárias em que se possa experimentar e levar a termo o

anarquismo ontológico. Anarquismo que opera como um contramonarquismo de

princípios. O que Bey se esquece de dizer é que a festa implica a execução de um

dispêndio. (Ideia que parece absurda para os que não têm nada e muito

provavelmente continuem sem ter nada depois de suas festas.)

Terceira tarefa: lidar com a sensação auditiva de uma afinidade entre o complexo

sonoro que se oferece no registro de audio do “canto da castanheira” — em que se

pode ouvir, entre outras vozes, sons, silêncios e ruídos, o canto do xamã

Kãñïpaye-ro — e outros registros sonoros de agências cósmicas, telúricas e

animais, registros cuja configuração material também os indica como complexos

(não se pode desvelar, correlativamente, a nascente da sonoridade; as atribuições

de autoria, sendo assim, são todas circunstanciais). Refiro-me a três constelações

sonoras: a, primeira, nomeada de “canção de Rosetta”, é o registro sonoro da

passagem de um cometa; a segunda é chamada de os sons da terra (e entre elas

estão a instalação no Inhotim chamada “o som da terra” e a narrativa de Conan

Doyle — em perspectiva, de ambos os casos, da ideia de grito da terra tal como

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pontuam os filósofos que escrevem em transautoria); e, por fim, nas canções das

baleias (o registro sonoro das canções — pois é assim que são chamadas —

emitidas pelas baleias, entre outras tentativas de traduções — versões,

transcriações e transluciferações desses ruídos brancos e, a seus ouvintes

humanos, surdos das baleias, como são os casos da narrativa de Melville e da

canção de Led Zeppelin, experimentações artísticas homônimas à baleia branca

Moby Dick).

§

Francisco era garçom. Viajou em pau-de-arara para peregrinação até

Canindé a fim de pagar um promessa.

Maria esperava o seu retorno, aos tragos de Genebra, madrugada adentro.

Pelas tantas, viu através do vão da porta — uma meia-porta — uma procissão

cujos integrantes portavam velas e trouxas de roupa na cabeça.

Pela manhã, a notícia de que Francisco sofrera um infarto pelo caminho.

§

O corpo duro de um gato preto deixado sob o pé de acerola.

Isso é magia negra.

Boato.

(O procedimento necrotaumatúrgico evocado aqui consistiria na

perfuração em diagonal da parte inferior do maxilar até o topo oposto da cabeça

do felino: como se se traçasse uma diagonal entre os vértices opostos do

quadrante que se faz em abstrato como razão para o esquadrinhamento da cabeça

do felino vista de perfil.)

No coração do pé de acerola, estranha concomitância, um amarrado

caprichoso de pipoca.

(Diz-se desses necrotaumaturgos que têm especial predileção pelos gatos

pretos como vítimas sacrificiais, sobretudo, se forem filhotes e tiverem olhos

negros.)

Mais tarde se soube que a causa da morte foi atropelamento, precedida de

sarna e omissão criminosa do direito inviolável à contracepção. Os

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corresponsáveis foram os de sempre. O antigo criador do filhote, ironicamente, foi

quem transportou — outro boato — o gato morto da pista até os pés da aceroleira.

Na madrugada, verdade notívaga, os gatos cruzam numerosos. Nessas

algazarras, as estridências não arranham nem lembram, elas fazem o choro de

recém-nascidos.

§

Jura por sua mãe mortinha debaixo de um trem?

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ANEXO

O canto da castanheira de Kãñïpaye-ro Araweté

I. Na tradução de Eduardo Viveiros de Castro

In.: Viveiros de Castro, Eduardo Batalha. Araweté: 0s deuses canibais. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed, 1986, pp. 553-558

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II. Na tradução de Viveiros de Castro retrabalhada por Antônio Risério

In. Risério, Antônio.Palavras canibais. Revista USP, 1992, pp. 26-43.

Nai dai dai

Por que você empluma a grande castanheira?

Por que os Maï emplumam a grande castanheira, Modidaro?

Por que os Maï solteiros emplumam a face da castanheira?

Eis aqui os Maï, Ararinhano, emplumando a face da castanheira,

Eis aqui os Maï, emplumando a grande castanheira.

Nai dai dai.

Kadïne-kãñï

Aqui aqui os Maï, emplumando a face da castanheira

Por que fazem assim os Maï – Kadïne-kãñï – emplumando a grande castanheira?

Aqui aqui os Maï – Kadïne-kãñï – emplumando a face da castanheira, aqui aqui os Maï.

Porque quer sua filha, diz Maï – Kadïne-kãñï – que empluma a grande castanheira.

Foi o que disse Maï – Kadïne-kãñï – ninguém comeu, disse Maï.

Por que fazem assim os Maï – Kadïne-kãñï – falando em emplumar a grande castanheira?

Veja aqui os Maï, Modidaro, emplumando a face da castanheira.

Alumia meu charuto caído, disse Maï.

Veja aqui os Maï, Ararinhano, emplumando a face da castanheira.

Aqui aqui os Maï, emplumando a grande castanheira.

Disseram entre si os Maï – Kadïne-kãñï – vamos emplumar a castanheira.

Porque querem nossa filha, os Maï emplumam a grande castanheira.

Por que fazem assim os Maï – Kadïne-kãñï – emplumando a grande castanheira.

Kadïne-kãñï

Nai dai dai

Por que você empluma na manhã a face da castanheira?

Por que você empluma a face da castanheira?

Por querer nossa filha, disse Maï a si mesmo, Ararinhano.

Por que ficam assim os Maï, errando flechas nos grandes tucanos?

Por vocês emplumam a face da castanheira, Maï?

Vamos, passe sua filha para cá, disse Maï.

Por você se emplumam as castanheiras – nai dai dai – ninguém me deu de comer,

[disse Maï.

Por que os Maï solteiros emplumam assim a face da castanheira, Modidaro?

Por que os Maï emplumam assim a face da castanheira? Vou comer o finado Kãñïpaye-

ro,

[disse Maï.

Assim Maï vai me levar, me cozinhar na panela de pedra.

Vamos comer seu finado pai, disseram e redisseram os Maï. Vão me cozinhar na panela

de

[pedra, disseram os Maï.

Mais uma vez vão me comer na avesso do céu, eles disseram.

Mande a menina, disse Maï – nai dai dai – flechar os grandes tucanos comigo, disse Maï.

Por que você passa urucum na face da castanheira?

Aqui aqui os Maï untando a face da castanheira.

Por que os Maï acendem assim a face da castanheira, Yoweído? Vamos, passe sua filha

para

[cá.

Eeeh um comedor-de-pequenos-jabutis espantou as grandes cotingas, disseram os Maï –

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[nai dai dai

Nossa futura comida afugentou as grandes juritis, disseram os Maï.

Plumagem das grandes cotingas, araras-canindé-eternas, disseram os Maï; vamos, vamos

[flechar os grandes tucanos.

Eeeh, quanto àquilo de Maï pedir a filha, não precisava pedir.

Nada me foi oferecido, disse Maï, vamos, dê jabutis para mim, disse Maï.

Por que você empluma a face da castanheira?

Eeeh, nossa futura comida afugentou as grandes juritis.

Por que você empluma a grande icirií?

Por querer levar mulher para caçar, Maï empluma a face da castanheira.

Por que você passa urucum na face da grande icirií?

Por que Maï acaba com meu tabaco?

Nosso chão é cheiroso, disse Maï – nai dai dai –

assim que untar icirií, vamos nos perfumar um ao outro, disse Maï.

Por que os Maï emplumam a face da castanheira?

Nai dai dai.

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III. Na tradução de Viveiros de Castro retrabalhada por Álvaro Faleiros

In. Faleiros, Álvaro. Emplumando a grande castanheira. Estudos avançados, 26 (76),

2012, pp. 65-68.

O Canto da Grande Castanheira Celeste, por Kãñïpaye-ro Araweté

[Madrugada de 26 de dezembro de 1982, Kãñïpaye-ro sai de sua maloca

e começa a entoar. Eu sou Kããnïpaye, filha morta de Kãñïpaye-ro,

escutem agora meu canto, escutem, que agora falo,

aqui, pela voz de meu pai...]

Nai dai dai

Nai dai dai

Nai dai dai...

Por que você, espírito, empluma a grande castanheira celeste?

Por que os espíritos agora emplumam essa grande castanheira?

Diga-me, Modida-ro, você espírito-avô que habita o outro lado do céu.

Por que os espíritos solteiros emplumam a face da grande castanheira?

Vejo aqui os espíritos emplumando a face da grande castanheira,

Ararïñã-no”, espírito-irmão do meu pai que habita o outro lado do céu.

Vejo aqui os espíritos emplumando essa grande castanheira.

[Plumagem branca de harpia, plumagem branca de harpia, cobre a grande castanheira,

assim fazem os espíritos porque irados com a morta; por ela ardem de desejo; descem

então à terra.]

[Início do segundo refrão. Aumento de volume vocal e de intensidade afetiva.]

Kadïne-kãñï [Arara azul-amarela, espírito-Mulher-Canindé]

Kadïne-kãñï [Arara azul-amarela, espírito-Mulher-Canindé]

Kadïne-kãñï [Arara azul-amarela, espírito-Mulher-Canindé]

[Kãñïpaye-ro entoa mais forte e alto, bate o pé repetidamente]

Kadïne-kãñï... Os espíritos estão aqui

Kadïne-kãñï... Emplumando a face da castanheira.

Kadïne-kãñï... Por que os espíritos fazem assim?

Kadïne-kãñï... Emplumando a grande castanheira.

Kadïne-kãñï... Os espíritos estão aqui, estão aqui.

Kadïne-kãñï... Emplumando a face da castanheira.

Kadïne-kãñï... Os espíritos estão aqui, estão aqui.

[Kãñïpaye-ro já não bate o pé]

Kadïne-kãñï... Porque deseja sua filha, por isso o espírito falou.

Kadïne-kãñï... Vamos emplumar a castanheira, foi isso que o espírito disse .

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Kadïne-kãñï... A gente não comeu jaboti, o espírito disse assim.

Kadïne-kãñï... Por que os espíritos fazem assim?

Vamos emplumar a castanheira, por que disseram assim?

Veja aqui os espíritos emplumando a face da grande castanheira,

Modida-ro, você espírito-avô que habita o outro lado do céu.

Veja aqui os espíritos emplumando a face da grande castanheira,

Ararïñã-no”, espírito-irmão do meu pai que habita o outro lado do céu.

Acenda meu charuto abandonado, disse o espírito.

[E a esposa do xamã acende seu charuto.]

Aqui os espíritos agora emplumam a grande castanheira, ei-los.

[Movimentos de chocalho sobre o peito da esposa.]

Kadïne-kãñï... É isso o que os espíritos disseram:

Vamos emplumar a grande castanheira, eles se entredisseram.

Porque desejam nossa filhinha,

Por isso os espíritos disseram: vamos emplumar a grande castanheira.

[Fala Yowe’ï-do, espírito-pai da menina morta]

Kadïne-kãñï... Por que os espíritos fazem assim,

Emplumando a face da castanheira?

[Retoma a palavra na voz do pai, Kããnïpaye, a menina morta]

[Longa pausa... Silêncio... Kãñïpaye-ro agachado fuma. Ouvem-se as batidas

cadenciadas de seu chocalho; quando repete o refrão inicial...]

Nai dai dai

Nai dai dai

Nai dai dai...

Por que você, espírito, empluma pela manhã a face da castanheira?

Por que você, espírito, empluma a face da castanheira?

Acenda meu charuto abandonado, disse o espírito.

Por que você empluma a face da castanheira?

[Responde Yowe’ï-do, espírito-pai da menina morta...]

Por desejar nossa filhinha, disse o espírito a si mesmo,

Ararïñã-no”, espírito-irmão do meu pai que habita o outro lado do céu.

[Volta Kããnïpaye, a menina morta...]

Por que os espíritos ficam assim, a errar suas flechas nos tucanos grandes?

Por que você, espírito, empluma a face da castanheira?

Ande, disse o espírito, passe sua filha para mim.

[E agora falam os espíritos assim...]

Por sua causa, realmente, se emplumam as castanheiras,

Nai dai dai

Nai dai dai

Nai dai dai...

Ande, disse o espírito, não me serviram o jabuti.

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[Volta Kããnïpaye, a menina morta]

Por que os espíritos solteiros emplumam assim a face das castanheiras?,

Diga Modida-ro, você espírito-avô que habita o outro lado do céu.

Por que os espíritos emplumam assim a face da castanheira?

[De novo fala o espírito...] Vou devorar o finado Kãñïpaye-ro.

[Ponto alto, aumento considerável de intensidade; voz mais grave, entoação macabra;

entusiasmo da audiência...]

Assim o espírito me levará, para cozinhar-me em sua panela de pedra.

Comeremos seu finado pai, os espíritos disseram repetidamente.

Vão cozinhar-me em sua panela de pedra, disseram repetidamente.

Vão me devorar, é o que disseram, do outro lado do céu.

[É ele mesmo Kãñïpaye-ro quem fala]

Peça à sua filhinha, disse o espírito,

Nai dai dai

Nai dai dai

Nai dai dai...

Para nós dois irmos, disse o espírito, flechar os tucanos grandes.

[Ir flechar tucanos, ir pro mato fazer sexo; o espírito te deseja menina, se fores,

teu pai, Kãñïpaye-ro, quando morrer, poderá ser devorado pelos espíritos,

tornar-se um afim]

Por que você, espírito, unta de urucum a face da castanheira?

[Volta a dizer Kããnïpaye, a menina morta]

Aqui estão os espíritos untando, untando toda a face da castanheira.

[Kãñïpaye-ro bate aqui o pé no chão, bate o chocalho sobre a esposa]

Por que os espíritos assim fulguram a face da castanheira?

Diga Yowe’ï-do, espírito-meu-pai que habita o outro lado do céu?

Ande, passe sua filhinha para mim.

[No patamar celeste, um homem – Kãñïpaye-ro – se aproxima, os espíritos o chamam de

comedor-de-pequenos-jabotis...]

Eeeeh!

Um comedor-de-pequenos-jabotis, disseram os espíritos, afugentou as cotingas.

Nai dai dai

Nai dai dai

Nai dai dai...

Nossa futura comida, disseram os espíritos, afugentou as grandes juritis.

A plumagem das grandes araras-canindé-eternas, as grandes cotingas,

Disseram os espíritos, ande, vamos flechar os grandes tucanos.

Eeeeh!

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[Kãñïpaye-ro sintetiza o diálogo ocorrido do outro lado do céu...]

Quanto àquilo de os espíritos pedirem a filha, não precisavam pedir.

Nada me foi oferecido, ande, disse o espírito, me passe os pequenos jabotis.

[O canto vai se concluindo, alternam-se a menina e o xamã...]

Por que você empluma a face da castanheira?

Eeeeh! Nossa futura comida afugentou as grandes juritis.

Por que você empluma a grande árvore cheirosa iciri’i?

Por vontade de levar a mulher para caçar,

O espírito empluma a face da castanheira.

Por que você unta de urucum a face da grande iciri’i?

Por que os espíritos acabam com meu tabaco?

Nosso chão é cheiroso, disse o espírito.

Nai dai dai

Nai dai dai

Nai dai dai...

Assim que untar a grande iciri’i, disse o espírito,

Vamos nos perfumar um ao outro com sua resina.

Por que os espíritos emplumam a face da castanheira?

[A partir do último verso, a voz vai morrendo aos poucos, repetindo o refrão...]

Nai dai dai

Nai dai dai

Nai dai dai...

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IV. Poema de Ricardo Domeneck, publicado na Revista modo de usar & co, em 5 de

junho de 2013. Disponível em: http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2013/06/canto-

da-castanheira-em-ou-sem-flor-de.html. Último acesso em 10/05/2016.

Canto da castanheira em ou sem flor

Ricardo Domeneck

Safo

Diz-me por que me deixou o que outrora fora só meu O Moço.

Safo Safo

Diz-me por que ora a outro dispensa os seus beijos meu Moço.

Não me importam na aleia as castanhas em flor sem sua pança.

Sem o menos casto dos moços é tão-só casmurra essa andança.

Agora se me assemelham simples castigo na aleia as castanhas.

Kastanienallee Kastanienallee sem seu tórax é carga tamanha.

Catulo

Por que me encasulo entre as castanheiras em flor sem O Moço?

Catulo Catulo

Com outro se encastela o que antes à flor de minha pele castanha.

A meus pés às castanhas sem O Moço na aleia é sempre outono.

É sem tom a Kastanienalle e o clima ensimesma sem O Moço.

Que diferença há nessa febre se inverno ou verão sem doutor.

Dão nojo sem castanhas a neve e o sol por entre galhos em flor.

Ovídio

Nenhuma Metamorfose há-de tornar-me o suor suábio d´O Moço.

Ovídio Ovídio

De Amores não há o que outrora fora O Moço e eu eu e O Moço.

Topônimos são todos anônimos se não servem a cantar dele o couro.

As metáforas já não ligam fonemas na Comunhão dos Jovens Touros.

Pai mãe poetas irmãs dai-me no mundo sem fundos o glabro senhor:

Eu sou Ricardo Domeneck o desMoçado entre as castanheiras em flor.

Arnaut

Sem O Moço sou eu para os judeus o zen e o cristão entre os mouros.

Arnaut Arnaut

Que cessem Cruzadas se não cruzo na aleia com o Todo-Glamuroso.

Meus pais Cida e João que me adiantou jogar-me no Mundo pré-Moço.

João e Cida meus pais antes o Nada que esse nadar em oceano desMoço.

Irmãs Elisângela Elaine não se irmana a meu corpo o glabro d´O Moço.

Elaine Elisângela quede o sangue que me aqueça na gleba pós-Moço.

Cavafy

Sem O Moço é além o lá e ali o aí e nenhures de nunca o agora o aqui.

Cavafy Cavafy

DesMoço estraga-me o tomate bigata-me a goiaba azeda-me o caqui.

Doravante

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E para sempre

O´Hara Codax

Brecht Dufrêne

E assim

Por diante

Pasolini Hilst

Eliot Lavant

Pelos séculos

Dos séculos

Amém

Que amem

Mas não há pajé

Ou xamã

Que desapodreça

A maçã

Desse almoço

Sem O Moço.

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