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A noção de nação em ação: lusotropicalismo e cultura institucional na província ultramarina de Angola (1953-1973). Gilson Brandão de Oliveira Junior * Esse caráter humano da colonização portuguesa, se no Brasil é que teve a sua expressão mais larga e ao mesmo tempo mais feliz, é, entretanto, commum á obra colonizadora de Portugal (Gilberto Freyre, 1940). O lusotropicalismo não é válido para explicar a formação do Brasil e é inteiramente falso para as circunstâncias do colonialismo português na África (“Buanga Fele”, Mário Pinto de Andrade, 1955). Lusotropicalismo, lusotropicologia & civilização/cultura lusotropical: entre a construção, a apropriação e a crítica conceitual ** . Introdução: entre a teoria e a ideologia. O conjunto de ideias concebidas pelo escritor brasileiro Gilberto Freyre, bem como os conceitos que o caracteriza (lusotropicalismo – lusotropicologia – civilização/cultura lusotropical), traz consigo uma série de alusões de caráter pretensamente teórico, que estão pautadas por premissas eminentemente ideológicas em sua formulação. Essa dupla condição (teórico-ideológica) a que este conceito está submetido, é essencial para as reflexões sugeridas neste trabalho, a saber: a vinculação das suas ideias ao problema da decadência ibérica oitocentista, que respectivamente reafirma e resgatam elementos da mística imperial portuguesa diante da emergência dos novos paradigmas capitalistas – a modernidade anglo-saxã –, e a inovação teórico-metodológica utilizada para explicar alternativamente as particularidades do processo de colonização da América Portuguesa * Doutorando em História Social pela Universidade de Brasília; professor de História da África e História Ibérica do ICADS (Instituto de Ciências Ambientais e Desenvolvimento Sustentável) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). ** As reflexões presentes neste trabalho fazem parte do primeiro capítulo (em fase de construção) da tese em andamento, provisoriamente intitulada De Agostinho da Silva a Agostinho Neto: a apropriação da ‘brasilidade’ na África e da ‘africanidade’ no Brasil.

Lusotropicalismo, lusotropicologia & civilização/cultura ... · 3 O termo está relacionado à “gênese”, ao processo de formação do povo português, que por sua vez, remete

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A noção de nação em ação: lusotropicalismo e cultura institucional na província ultramarina de Angola (1953-1973).

Gilson Brandão de Oliveira Junior∗

Esse caráter humano da colonização portuguesa, se no Brasil é que teve a sua expressão mais larga e ao mesmo tempo mais feliz, é, entretanto, commum á obra colonizadora de Portugal (Gilberto Freyre, 1940). O lusotropicalismo não é válido para explicar a formação do Brasil e é inteiramente falso para as circunstâncias do colonialismo português na África (“Buanga Fele”, Mário Pinto de Andrade, 1955).

Lusotropicalismo, lusotropicologia & civilização/cultura lusotropical: entre a

construção, a apropriação e a crítica conceitual∗∗∗∗∗∗∗∗.

Introdução: entre a teoria e a ideologia.

O conjunto de ideias concebidas pelo escritor brasileiro Gilberto Freyre, bem como os

conceitos que o caracteriza (lusotropicalismo – lusotropicologia – civilização/cultura

lusotropical), traz consigo uma série de alusões de caráter pretensamente teórico, que

estão pautadas por premissas eminentemente ideológicas em sua formulação. Essa dupla

condição (teórico-ideológica) a que este conceito está submetido, é essencial para as

reflexões sugeridas neste trabalho, a saber: a vinculação das suas ideias ao problema da

decadência ibérica oitocentista, que respectivamente reafirma e resgatam elementos da

mística imperial portuguesa diante da emergência dos novos paradigmas capitalistas – a

modernidade anglo-saxã –, e a inovação teórico-metodológica utilizada para explicar

alternativamente as particularidades do processo de colonização da América Portuguesa

∗ Doutorando em História Social pela Universidade de Brasília; professor de História da África e História Ibérica do ICADS (Instituto de Ciências Ambientais e Desenvolvimento Sustentável) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). ∗∗ As reflexões presentes neste trabalho fazem parte do primeiro capítulo (em fase de construção) da tese em andamento, provisoriamente intitulada De Agostinho da Silva a Agostinho Neto: a apropriação da ‘brasilidade’ na África e da ‘africanidade’ no Brasil.

que, por sua vez, se ampara pelos elementos citados anteriormente, e foi posteriormente

generalizada a todo “o mundo que o português criou”1.

Ao arriscar uma definição preliminar, poderíamos caracterizar os seus

fundamentos da seguinte maneira: a predisposição genética2 e genésica3 dos portugueses

ao contato com as populações autóctones das regiões tropicais (extra-europeias). Como

veremos adiante, os elementos basilares deste ideal já estavam presentes em suas obras,

antes mesmo da formulação conceitual propriamente dita.

Em sua obra inaugural, Casa grande e senzala (1933), o autor faz uso deste

complexo teórico-ideológico para tentar explicar as origens do Brasil, enquanto

extensão da colonização empreendida pelos portugueses na América. Até então, a forte

presença de negros africanos e seus descendentes advindos da secular vigência do

sistema escravista luso-afro-brasileiro era vista com preocupação pelas elites políticas e

culturais deste país, diante do consequente retrocesso que a sua presença representaria

no discurso identitário e nacional, segundo os paradigmas da época. A originalidade da

sua proposta residia especificamente na exaltação da mestiçagem enquanto fator

propulsor de uma civilização/cultura diferenciada e adaptada aos trópicos, que seria por

sua vez, caudatária da tradição ibérica – particularmente portuguesa.

A “maturação” deste complexo teórico-ideológico lhe permitiu a ampliação do

seu horizonte interpretativo: ao generalizar a experiência do nordeste brasileiro que

utilizara para explicar as origens do Brasil, Freyre passou a conceber que os elementos 1 Alusão ao título da obra publicada por Freyre em 1940, O mundo que o português criou: aspectos das relações sociaes e de cultura do Brasil com Portugal e as colônias portuguesas, na qual expande as suas interpretações sobre o processo de colonização empreendida pelos portugueses no nordeste brasileiro, a todas as áreas exploradas por estes em escala mundial. 2 Este termo está associado à transmissão hereditária de caracteres físicos (neste caso, também culturais). Segundo este princípio, as características particulares do ethos português seriam herdadas biologicamente; a sua configuração seria caudatária de uma formação mestiça europeia, maometana e judaica – ímpar entre os povos europeus – e também estaria associada às particularidades genésicas deste povo – ver definição adiante. Em ambos os processos (genético e genésico) a crença na capacidade inata do português em miscigenar-se (biológica e culturalmente) é a força motriz da argumentação de Freyre, da sua caracterização singular, atribuída à formação deste povo. 3 O termo está relacionado à “gênese”, ao processo de formação do povo português, que por sua vez, remete às particularidades históricas pautadas pelos contatos intrínsecos de povos extra-europeus e pela amalgamação étnico-cultural que lhe é subjacente – miscigenação. O termo “gênese” também está eivado de um sentido religioso que, dentro da tradição cristã (genesis) representa a origem inexorável e o destino teleológico de um povo considerado eleito. Este último sentido é importante, pois, como veremos adiante, podemos perceber nas obras de Freyre a presença de elementos míticos (de caráter ideológico) de matriz religiosa, os quais se pautam por argumentos semelhantes a estes e que estão imbuídos de conotações fundamentais à compreensão dos seus trabalhos: a ideia de “missão civilizadora” (também evangelizadora) de um povo “mais cristocêntrico que etnocêntrico”.

imanentes a este complexo – as características genésicas e genéticas atribuídas aos

colonizadores portugueses – estariam presentes em todas as áreas tropicais em que estes

estiveram presentes, construindo destarte, uma “unidade de sentimentos e cultura”

(FREYRE, 1940, p. 42).

Somente mais de uma década depois (1951), em um contexto amplamente

distinto – após o desfecho da Segunda Guerra Mundial e o início da emergência das

ações e dos discursos anticoloniais – é que o conceito viria a ser formulado, na ocasião

de uma viagem feita por Freyre aos territórios portugueses (a partir de então chamados

de) “ultramarinos” 4 a convite do Ministro do Estado Novo, Sarmento Rodrigues – esta

viagem marca o início de uma série de relações amistosas e conturbadas entre o regime

de Salazar e o escritor brasileiro, e é a matéria-prima para duas importantes obras deste

autor: Aventura e rotina (1953a) e Um brasileiro em terras portuguesas (1953b) nas

quais os conceitos em questão apareceram grafados pela primeira vez. A utilização

destes conceitos foi de grande valia para a manutenção do império português, sobretudo

por seu embasamento tradicional-ideológico, de cariz pretensamente teórico.

Dessa forma, a análise conceitual desse complexo teórico-ideológico será feita

concomitantemente a breves análises das obras deste autor:

• Os fundamentos dos seus aportes teóricos e tradicional-ideológicos presentes

desde a sua obra inaugural (Casa grande e senzala, 1933);

• A manutenção da sua “tese” diante da ampliação do seu espaço amostral (O

mundo que o português criou, 1940);

• A pretensão científica e o seu embasamento tradicional-ideológico, no contexto

da sua construção conceitual (Aventura e rotina e Um brasileiro em terras

portuguesas, ambas de 1953);

4 As alterações dos conceitos “colônia” & “colonial” para “ultramar” & “ultramarino” estão relacionadas à revogação do Acto Colonial de 1933, ocorrida em 1951, diante de pressões sofridas pelo Estado Novo por parte de organismos internacionais como a ONU e a OTAN, num contexto em que a descolonização estava na ordem do dia. A partir de então, o governo português passou a investir em uma imagem exterior desvinculada dos antigos sistemas coloniais, promovendo assim, a autorrepresentação de um império que se concebia como uma totalidade indivisível que se estenderia do “Minho ao Timor”. O patrocínio da viagem de Freyre pelos territórios colonizados por Portugal faz parte desse conjunto de iniciativas.

• A apropriação ideológica pelo Estado Novo, pautada por motivações

legitimadoras do seu cariz científico (Integração portuguesa nos trópicos e O

luso e o trópico, 1958 e 1961, respectivamente);

É significativa para as nossas futuras análises que a inauguração das reações

críticas (quase) imediatas à formulação deste conceito tenham surgido no seio das

províncias ultramarinas, nomeadamente em Angola, sob a condenação severa do

intelectual e ativista político Mário Pinto de Andrade, sob o pseudônimo de “Buanga

Fele”, no artigo intitulado Qu´est-ce que le lusotropicalismo? da revista Presence

africaine de 1955 (epígrafe). Discutiremos aqui, o processo de construção do complexo

teórico-ideológico freyreano. A sua consequente utilização pelo Estado Novo, as críticas

conceituais – iniciadas por esta verrina nacionalista angolana – e a verificação nas

fontes de como esse ideal foi inserido em Angola, são temas que pretendemos tratar na

apresentação durante o evento.

A construção do “luso” + “trópico”: breve história de um conceito?

Dentre as inegáveis qualidades de Gilberto Freyre, enquanto grande escritor que era,

está o seu apreço cuidadoso na construção e aplicação de conceitos. É significativo o

fato dele, embora seja sumariamente acusado de ser o autor da formulação “democracia

racial”, nunca ter escrito tal expressão em suas obras, optando pelos conceitos de

“democracia étnica” ou “democracia cultural” – embora os substratos ideológicos

sempre lhes estivessem subjacentes. O mesmo acontece com a adoção dos conceitos

“ultramarino” e “ultramar”, enquanto substituição eufemística dos surrados termos

“colonial” e “colônias”, num contexto em que as iniciativas de colonização

(subjugação) era extremamente criticada pelas novas potências econômicas mundiais

(EUA e URSS), portadores de um discurso a favor da autodeterminação dos povos –

após a Segunda Guerra Mundial5. Dessa forma, podemos dizer o mesmo sobre o

5 Na obra Integração portuguesa nos trópicos (1958) Freyre faz uma interessante discussão conceitual acerca da polaridade entre os conceitos “assimilação” e “integração”, defendendo que as relações que os portugueses desenvolveram nos trópicos pendem para esta última, dado que as suas características culturais se fundiram a tal ponto com as “populações de climas quentes”, que acabaram por se integrar em uma nova civilização/cultura lusotropical. É importante mencionar que esta obra foi publicada

cuidado que este autor teve na constituição conceitual legada aos termos

lusotropicalismo, lusotropicologia e civilização/cultura lusotropical.

Antes da análise propriamente dita, façamos algumas considerações acerca do

estudo dos conceitos, a partir das reflexões do historiador Reinhart Koselleck (1992),

que servirão de orientação para as nossas ponderações posteriores.

Segundo este historiador, “cada palavra remete-nos a um sentido, que por sua

vez indica um conteúdo. (...) Os conceitos para cuja formulação seria necessário um

certo nível de teorização e cujo entendimento é também reflexivo” (p. 134-5). Assinale-

se que, como vermos adiante, os conceitos freyreanos em questão são compostos por

termos que carregam uma significativa carga semântica (luso + trópico), que se

dinamizam nos diversos contextos de sua aplicação – sendo que o termo “luso” traz

consigo elementos tributários de um mito fundador (portanto, mais estáveis), enquanto o

termo “trópico” passa por um processo de mutação semântica contextual (o significado

atribuído à categoria dos “outros”). Ao analisarmos esta questão, diante do contexto em

que estes conceitos foram criados, a interpretação dos seus componentes constitutivos é

bastante significativa, pois Freyre aparentemente tentou extrair da sua antítese6, a

originalidade da sua “teoria”, reabilitadora da presença daqueles “outros” na construção

de um novo paradigma civilizacional: aquilo que ele chamou de civilização/cultura

lusotropical.

Outra questão importante para a nossa análise diz respeito ao processo de

maturação destes conceitos. Embora a novidade da interpretação já tivesse sido

esboçada por Freyre em obras anteriores, a sua configuração conceitual só se deu mais

tarde e, como já foi dito, em um contexto amplamente diversificado daquele em que

fora concebido. Para além desta alteração geracional, é importante lembrar que a carga

semântica (e simbólica) dos termos que formam estes conceitos, tem sido lapidada

simultaneamente em português e inglês, e fora destinada às diversas embaixadas mundo afora – esta atitude é parte das iniciativas de apropriação dos ideais lusotropicalistas e da difusão de uma imagem internacional desvinculada dos velhos métodos coloniais – assunto que trataremos adiante. 6 Como vermos adiante, o termo “luso” se refere às origens míticas, quase épicas, da formação do povo português, enquanto o termo “trópico” estaria associado, a priori, com um significado pejorativo atribuído aos bárbaros, ou selvagens. Essa antítese se pautava na tão propalada dicotomia existente entre “civilização” & “barbárie”, ou entre um abstrato “nós” e os “outros”, tão comum no século XIX e, no caso de Portugal, até meados dos anos 1950. A originalidade da explicação de Freyre, para a viabilidade da manutenção do colonialismo português, reside exatamente na inversão dos termos dessa equação, como pretendemos mostrar a seguir.

paulatinamente, alterando (mas também mantendo) muitos dos seus sentidos que, são

resignificados na longa duração. A esse respeito, é necessário

nos interrogar acerca dos limites e fronteiras que separariam palavras em si teorizáveis, e acerca de que palavras seriam em si reflexivas. Trata-se na verdade de uma determinação aleatória. Pode-se eventualmente, através da Begriffsgeschichte, indicar a partir de quando um conceito tornou-se fruto de uma teorização e quanto tempo levou para que isso acontecesse (Ibidem, p. 135).

Nesse sentido, acreditamos que, muito embora o seu conteúdo já estivesse

presente nas obras anteriores de Freyre, os conceitos formados pelos radicais “luso” +

“trópico”, com as implicações contextuais que lhes são caracteristicamente intrínsecas,

não poderiam ter surgido antes da Segunda Guerra Mundial. Isto porque, deveremos

levar em consideração as alterações contextuais – e também conceituais – em que as

obras freyreanas acerca dessa questão foram produzidas, pois, além das transformações

políticas que motivaram a sua apropriação pelo Estado Novo, a própria concepção

acerca dos conceitos em questão mudou significativamente – sobretudo, o conteúdo

daquilo que se entendia por “trópico”. Diante disso, é importante lembrar que

todo conceito articula-se a um certo contexto sobre o qual também pode atuar, tomando-o compreensível. Pode-se entender esta formulação tornando-o mais instigante. (...) O que significa dizer que todo conceito está imbricado em um emaranhado de perguntas e respostas, textos/contextos (Ibidem, p. 137-8).

Estes conceitos ganharam um aspecto generalizante ao serem aplicados às

relações entre os portugueses e “os outros”, passíveis de uma pretensa teorização que se

alicerçou nos elementos tradicional-ideológicos que lhe são pertinentes, já que “um

conceito relaciona-se sempre àquilo que se quer compreender, sendo portanto a relação

entre o conceito e o conteúdo a ser compreendido, ou tomado inteligível, uma relação

necessariamente tensa” (Ibidem, p. 136).

Acerca dessa tensão7, verificamos na obra de Freyre uma inversão de valores do

paradigma anteriormente concebido como “civilização” & “barbárie”, associado aos

radicais “luso” & “trópico”, mas que foram resignificados em sua aplicação: da sua

teorização inicial (1933, 1940) até a sua conceituação propriamente dita (1953, 1958), o

contexto modificou-se amplamente, bem como a acepção valorativa atribuída aos

termos que formaram os conceitos em questão – sobretudo “trópico”. Diante disso,

acerca da teorização dos conceitos, Koselleck nos alerta que

A história dos conceitos coloca-se como problemática indagar a partir de quando determinados conceitos são resultado de um processo de teorização. Essa problemática é possível de ser empiricamente tratada, objetivando essa constatação, por meio do trabalho com as fontes (Ibidem, p. 136).

Nossa perspectiva é a de que os trabalhos de Freyre se pautam por uma pretensa

teorização, regulada por elementos tradicional-ideológicos, e transmitidos pela carga

semântica contida nos termos com os quais operou as suas formulações conceituais.

Essa análise crítica se aplica, tanto na sua formulação, mas, sobretudo, na utilização

destes conceitos pelo Estado Novo8, a partir da nova realidade que se encontrava no

período pós-guerra: dependentes das zonas coloniais e, portanto, ávidos pela

manutenção do seu império ultramarino. Nesse sentido, o termo “luso”, eivado de

conotações de caráter nacionalista, se adequou muito bem aos intentos da manutenção

deste império. Em decorrência das alterações contextuais, o termo “trópico” tornou-se

adequado para a ocasião, pois, significava ao mesmo tempo, os “outros” que outrora se

pretendia civilizar, e que agora (ao menos no plano discursivo) se buscava integrar; mas

também, diz respeito às áreas geográficas das quais este império dependia, sobretudo

economicamente. Nas formulações conceituais operadas por Freyre, os termos foram

mantidos, enquanto os seus sentidos se alteraram, já que

A história dos conceitos mostra que novos conceitos, articulados a conteúdos, são produzidos/pensados ainda que as palavras empregadas

7 Em sua perspectiva antagônica, Koselleck os caracterizou como “conceitos antitéticos assimétricos” (2006, p. 98). 8 A “vulgata lusotropicalista”, assim definida por Yves Leonard (1997, pp. 223-224).

possam ser as mesmas. (...) da mesma palavra um novo conceito foi forjado, e que portanto ele é único a partir de uma nova situação histórica que não só engendra essa nova formulação conceitual, como também poderá se tornar através dela inteligível (Ibidem, p. 141).

Sobre a configuração dos conceitos, ainda segundo Koselleck, “a diacronia está

contida na sincronia”: na construção dos conceitos formados pelos radicais “luso” +

“trópico” existe uma ambivalência importante para os objetivos da nossa análise: no que

tange à aplicação dos conceitos em questão, a presença do termo “luso” remete à

nacionalidade portuguesa, à sua mística imperial e aos intentos da sua manutenção.

Enquanto isso, o termo “trópico”, tendo o seu sentido ideologicamente modificado pelo

contexto, acaba por se destinar ao “novo mundo criado pela ação dos portugueses”

nessa parte do globo. Isso porque, como afirmamos há pouco, ele tem conotações ao

mesmo tempo espaciais (geográfica) e culturais, como veremos adiante.

Entretanto, “esta força diacrônica deve ser passível de ser mensurada de alguma

forma, quando se pretende trabalhar empiricamente” (Ibidem). Poderemos verificar que,

é justamente aí que residem as críticas ao complexo conceitual criado por Freyre,

nomeadamente, a sua restrição pragmática: os fatos descritos por ele na tentativa de

sustentar as suas construções conceituais não puderam ser verificados empiricamente,

sobretudo nos espaços coloniais onde pretensamente se desenvolveriam as relações que

caracterizariam a “nova civilização/cultura lusotropical”. Isso explica, por um lado, o

fato das críticas emanarem prioritariamente daí, e por outro, descortina-lhe o seu

aspecto mais tradicional-ideológico que teórico.

Análise conceitual: formulações ‘teóricas’, impregnadas de ‘tradição’ e ‘ideologia’.

Os conceitos em questão são formados por dois radicais (luso + trópico) acompanhados

de sufixos que acabam por alterar-lhes substancialmente o significado. Comecemos a

nossa análise por uma breve consideração da sua sufixação, para então analisar os

radicais que o compõe – que de fato, descortinam a matriz tradicional-ideológica deste

complexo pretensamente teórico.

Lusotropicalismo: o conceito é formulado por dois radicais seguidos do sufixo “ismo”.

É significativo o fato das inúmeras análises críticas que se dedicam ao estudo destes

fenômenos partirem do termo em questão, sendo que nas obras de Freyre as aparições

terminológicas mais frequentes são “lusotropical” (em sua forma adjetiva) e

“lusotropicologia” (substantivo). Nesse sentido, a sufixação do termo pode indicar a

escolha dos analistas em classificar o fenômeno como um complexo mais ideológico9

do que científico, como pretendia Freyre. Entretanto, para este autor, tal formulação era

apenas uma parte do seu complexo teórico mais amplo (lusotropicologia), sendo que

“lusotropicalismo designaria somente a atitude, a predisposição, a tendência e suas

consequências dispersas ou esporádicas, ou também somente literárias ou artísticas, em

cujo caso a palavra teria o sentido – nada pejorativo – que damos a termos como

impressionismo ou expressionismo” (IÑIGUEZ, 1999, p. 60).

Lusotropicologia: A sufixação deste conceito está prontamente associada a uma

pretensão científica, já que deriva do grego “logos” que está associado à razão, ao

estudo e à ciência. Freyre o aborda, de maneira aprofundada, em duas ocasiões

específicas: na introdução “a uma possível luso-tropicologia” em Um brasileiro em

terras portuguesas (1953b) e em Integração portuguesa nos trópicos (1958). Trata-se de

um tipo diferencial de ciência “engendrada na prática” e exercida empiricamente, eivada

de características intrínsecas aos portugueses, e que fora advinda do seu pioneirismo

expansionista, pois, segundo ele,

Na obra de conhecimento de terras, culturas e populações africanas, orientais, americanas, ainda virgens de olhos europeus, destaque-se, ainda uma vez, que sábios, peritos ou simples observadores portugueses salientaram-se por uma série de trabalhos pioneiros que abriram ou amaciaram o caminho aos estudos de outros europeus. Foram eles grandes orientalistas e, sobretudo, tropicalistas dos séculos XV ao XVII (FREYRE, 1953b, p. 100, grifo nosso).

9 “Com o despertar da ciência e dos demais ramos do conhecimento, o sufixo –ismo parece ter sido um elemento de grande contribuição para novas palavras. Houaiss ainda acrescenta que no século XIX e XX, seu uso disseminou para designar movimentos sociais, ideológicos, políticos, opinativos, religiosos e personativos (...)” (GIANASTACIO, 2010, p. 07, negrito nosso). Curiosamente os termos em destaque estão diretamente associados aos conteúdos, usos e abusos desta parte da obra de Freyre, como veremos ao longo deste trabalho.

Tratava-se de uma proposta de ciência que teria os seus antecedentes nos

contatos efetivados no ultramar, como ele tenta nos persuadir ao citar as

particularidades ‘científicas’ de uma infinidade de agentes portugueses que lá atuaram,

mas que ainda aguardava a sua plena sistematização. Isso ocorreria diante do

reconhecimento das virtudes diferenciais dos portugueses ao lidar com populações

extra-europeias, que teriam criado um novo tipo de cultura/civilização nos trópicos,

visando assim, a transformação dos usuais paradigmas eurocêntricos:

se algum dia se constituir em ciência a sistemática lusotropicológica aqui sugerida, terá nesse processo de superação da condição étnica pela cultural, mercê da qual o mais preto dos pretos da África tropical se considera português sem ter que renunciar a alguns dos seus hábitos de homem ecologicamente do trópico, um dos seus principais objetos de estudo (FREYRE, 1958, p. 36-37).

Lusotropical: A forma adjetiva surge na obra de Freyre para caracterizar todos aqueles

elementos pertinentes ao “novo mundo nos trópicos”10 formado pela atuação

amalgamadora do colonizador português nas áreas extra-europeias, que, segundo

Freyre,

Criou um mundo de valores aparentemente contraditórios mas na verdade harmônicos. Um mundo novo, uma civilização nova, uma cultura nova a que por antecipação pertenceram portugueses dos séculos XVI a XVIII para os quais voltamos hoje como para pioneiros do que pode, ou deve, chamar-se civilização ou cultura luso-tropical (FREYRE, 1953b, p. 130).

É importante prestarmos atenção aos conceitos que foram caracterizados por esta

adjetivação: civilização e cultura. Para além destes, também aparece outro qualificativo

no título desta conferência: moderno11. Dessa forma, estes três conceitos estão

associados aos radicais “luso” e “trópico”. Trataremos deles adiante, quando tecermos

as nossas considerações sobre este último radical, pois, acreditamos estar nele, a

inovação conceitual de Freyre – viabilizada pela alteração contextual a que nos

referimos anteriormente. Outro fator que podemos perceber nas citações anteriormente

10 Alusão ao título de outra obra de Freyre, intitulada New world in the tropics (1963), que teve a sua 1a edição brasileira, aumentada e atualizada em língua portugesa, em 1971. 11 “Uma cultura moderna: a luso-tropical” (FREYRE, 1953b, p. 125).

apresentadas, que também pretendemos discutir posteriormente, é o período no qual

Freyre situa a formação do complexo lusotropical: entre os séculos XVI e XVIII. Nossa

hipótese é a de que os elementos tradicional-ideológicos partilhados por Freyre situam-

se naquilo que Sérgio Campo Matos chamou de “Decadência e filosofia da história

nacional” do século XIX (1997, pp. 377-384).

Passemos à análise dos radicais que formam os conceitos:

Luso: A escolha deste termo é significativa, pois, se considerarmos simplesmente os

elementos que caracterizariam a ação amalgamadora portuguesa nos trópicos (os

princípios da miscibilidade, mobilidade e aclimatabilidade12), atrelados ao seu passado

“indefinido entre África e Europa”13, eivado de contatos com populações muçulmanas e

judaicas, os conceitos deveriam estar associados à totalidade da Península Ibérica – da

qual também faz parte a Espanha.

Tratar-se-ia então de uma iberotropicologia, ou hispanotropicologia (relativa à

denominação romana Hispania, generalizada ao território “reconquistado” pelos

cristãos14)? De fato, em momentos ocasionais, Freyre insere os espanhóis neste novo

tipo de civilização/cultura, afirmando inclusive que a lusotropicologia é uma forma mais

específica do conhecimento europeu acerca dos trópicos (tropicologia), associada à

outra forma intermediária: “uma hispanotropicologia ou uma hispanologia” (FREYRE,

1958, p. 34).

Entretanto, a escolha do termo luso (associado à Lusitânia15) representa a

distinção dos portugueses dentro da antiga Hispânia, que marcaria a diferença entre

12 Respectivamente associado à capacidade de miscigenar-se com populações tropicais (advindos dos seus contatos com populações muçulmanas), à capacidade de uma população exígua em mobilizar regiões extensas (advindo da influência judaica) e à capacidade de adaptar-se a climas quentes (advindo da sua localização geográfica mediterrânea, além da mestiçagem que lhe é imanente). Cf. CASTELO, 2011, p. 263. 13 Cf. FREYRE, 2006, p. 66. Na página seguinte ele continua o argumento: “A indecisão étnica e cultural entre a Europa e a África parece ter sido sempre a mesma em Portugal como em outros trechos da Península”. 14 De qualquer forma, tal denominação não admitiria substratos herdados das denominações “Sefardita” ou “Andaluzia”, respectivamente relativos à presença de judeus e árabes neste território, identificado a sua filiação à ideologia cristã da reconquista – diferentemente do que se poderia (ingenuamente) supor pelo elogio que Freyre faz a mestiçagem. 15 A Lusitânia era uma das três províncias romanas da Hispânia (atual Península Ibérica) que correspondia ao que é hoje o Sul do Douro em Portugal e à Estremadura na Espanha. Os lusitanos eram um dos povos

estes, e os espanhóis16, inclusive em termos comportamentais e religiosos, que os havia

“unido” no passado, de acordo com a ideologia da reconquista17.

Além de demarcar a sua cisão em relação à Espanha, a carga semântica

impregnada no termo luso relaciona-se com a manutenção dos elementos sobre os quais

a nacionalidade portuguesa se alicerça: a referência ao ancestral comum “Luso”,

presente na epopeia camoniana18 – considerada por Freyre como uma das mais vivas

demonstrações lusotropicológicas – a associação dos lusíadas ao contato com os

muçulmanos desde a reconquista19; a noção de missão imperial de caráter cristão

durante e após a expansão ultramarina20, a noção de providência do “Quinto Império”21

etc. Não é a intenção deste pequeno trabalho demonstrar detalhadamente tais conexões.

Contudo, podemos salientar dois aspectos importantes dos valores

consubstanciados no termo em análise: a cisão em relação aos espanhóis (considerados

“europeus”) e em relação aos muçulmanos22, diante dos quais se elevaram os pilares da

nacionalidade portuguesa – alicerçada por motivações religiosas – e que estão presentes

na carga semântica atribuída ao termo luso.

Afirmamos anteriormente, que a origem tradicional-ideológica de Freyre residia

nos debates acerca da decadência portuguesa no século XIX. A noção da decadência

que marcara a historiografia portuguesa neste século pôde ser sentida desde o seu

princípio: com a perda da sua mais importante colônia23 (Brasil), a dependência dos

territórios africanos tornou-se intensa24. Tal decadência estava relacionada com a

que habitavam esse território na época pré-romana, sendo considerados os descendentes de uma legendária personagem chamada “Luso”, que frequentemente são evocados na epopeia camoniana. 16 A diferença entre portugueses e espanhóis foi bem delimitada por Freyre desde Casa grande e senzala: “(...) o caráter português dá-nos principalmente a ideia de vago impreciso (...) e essa imprecisão é que permite ao português reunir dentro de si tantos contrastes impossíveis de se ajustarem no duro e anguloso castelhano, de um perfil decididamente gótico e europeu” (Ididem, p. 68-69). 17

Cf. NOGUEIRA, 2001. 18 A criação de uma imagem que exalta as qualidades do português se faz a partir da detração dos árabes. Cf. BOECHAT, 2007. 19 Cf. OLIVEIRA MARQUES, 1998. 20 Cf. HESPANHA, 1995. 21 Cf. BOSI, 1998. 22 “A tradição antropológica portuguesa não é a da construção de um império, mas a da construção de uma nação (...) [pois] a maioria dos estudos que podemos incluir na categoria de antropológicos relativos aos árabes se tenham desenvolvido (...) no campo disciplinar da história e do território português e frequentemente associados à construção identitária nacional ou regional” (SILVA, 2005, p. 783). 23

Cf. RUIZ, 1980 e ALEXANDRE, 1993. 24

Cf. ALEXANDRE, 1980.

emergência de novos paradigmas trazidos por novas potências, nomeadamente, a

Inglaterra. O seu apoio à emancipação brasileira, bem como o ultimato de 1890, foram

momentos significativos para a constatação de que nacionalidade portuguesa estava

sendo ameaçada pelo capitalismo moderno.

Foi neste contexto que se passou a buscar em Portugal, as causas desse “atraso”,

debatendo “sobre as possibilidades de modernização e/ou regeneração das nações

ibéricas”. Nasceram assim, diversas tendências para explicar e tentar solucionar a crise

que os assolava, sendo os debates do Cassino e, por decorrência, os da geração de 1870,

bastante significativos para refletirmos sobre os rumos que este país poderia tomar.

Os debates da geração de 70, que se estenderam pelos anos de 80 e 90 do XIX, são testemunhos dos conflitos entre as possibilidades econômicas, colocadas por uma nação localizada na periferia do capitalismo contemporâneo de tintas imperialistas, e as representações da nação nos termos do binômio decadência/atraso que marcavam a visão de mundo dessas elites e dos portugueses. (...) há interesse econômico na África, mas não há capital disponível para efetivar e executar as tarefas e atividades colonizadoras que, acreditavam muitos, regenerariam a nação e redimiriam do seu atraso (NEMI, 2006, p. 64).

Ana Nemi nos mostra duas das principais tendências que surgiram deste

contexto: o republicanismo tradicionalista e positivista de Teófilo Braga25 e o

socialismo crítico de Antero de Quental. Ambas investiam em identificar as causas do

atraso e apontavam caminhos divergentes para a regeneração da nação. Podemos

identificar a matriz do Estado Novo com a primeira tendência. De qualquer maneira, o

que estava em questão era a manutenção do império e da nação26, e todas as vertentes

apontavam para a África como signo da sua redenção.

Ainda sobre o século XIX, outra referência importante de salientar são as

relações e clivagens existentes entre o pensamento de Gilberto Freyre e Oliveira

Martins. Este historiador português, autor de O Brasil e as colônias portuguesas,

25 “[Este republicanismo] via na modernidade e nos seus produtos urbanos e tecnológicos fontes de corrupção das comunidades rurais e de desordem social. Não por acaso será esse nacionalismo tradicionalista que irá fundamentar a ditadura de Salazar” (NEMI, 2006, p.53). 26 “[O debate oitocentista] acabou por fortalecer um movimento de sacralização da memória nacional emblemada na imagem do Império como condição precípua para a preservação do caráter nacional que se pretendia regenerar” (Ibidem).

introdutor do ideal social darwinista em Portugal, era defensor da criação de “Novos

Brasis em África” através da racionalização da empresa colonial em Angola e da

subjugação dos africanos, os quais considerava uma raça inferior: “a civilização das

raças negras só pode caminhar pelo cruzamento com os negróides islamitas do Oriente:

o Ocidente não lhes dará, como espécies por ela assimiláveis, mais do que panos para se

vestirem, aguardente para se embriagarem, pólvora para se exterminarem” (Oliveira

Martins apud ALEXANDRE, 1979, p. 213). Este posicionamento (da impossibilidade

da assimilação de povos tropicais) foi alvo de críticas de Freyre:

Oliveira Martins fixa em sua História de Portugal os excessos ou as deformações, ainda em Portugal, do método depois ultramarino (...). Que aquele modo de assimilação doméstica de elementos exóticos, ainda quentes dos trópicos e das selvas prestava-se a fáceis deformações capazes de comprometer os próprios rudimentos da moral cristã e da família, é evidente. Mas o que não seria justo seria julgar-se o método em si por essas deformações, mesmo numerosas como certamente foram (FREYRE, 1953b, p. 33).

Apesar das suas divergências no tange à mestiçagem, e ao valor cultural

atribuído às influências dos sofridas por outros povos, Freyre certamente partiu das

problemáticas levantadas por Martins. Embora discordassem no aspecto da “pureza

racial”, a originalidade da tese de Freyre pode ser atribuída às reflexões e debates

travados com a leitura deste importante autor português, sobretudo no que tange a

herança da tradição portuguesa na constituição das bases culturais brasileiras, em

contraposição às influências de origem anglo-saxã:

Se é indiscutível que a teoria rácica que Martins subscreve, admitindo a existência de raças superiores e de raças inferiores (...) não deve esquecer-se o sentido crítico e o realismo com que descreve a acção dos europeus. (...) A mestiçagem constituía, a seu ver, um factor negativo de corrupção das virtualidades do carácter nacional. Em contrapartida, via positivamente o aumento da imigração latina de portugueses, galegos, italianos e espanhóis [para o Brasil], tendo em conta que, ao invés dos alemães e anglo-saxônicos, os latinos se aclimatavam sob os trópicos. Retomava assim a posição central do lusotropicalismo de Gilberto Freyre. E chega ao ponto de definir como ideal futuro para a nação brasileira o de “uma nação europeia e não mestiça”, “neo-latina, neo-ibérica, neo-portuguesa” (MATOS, 2001, p. 326).

Retomaremos esta questão adiante, quando tratarmos do conceito “moderno”

atrelado ao radical “trópico”. Por ora, vale dizer que o termo luso consubstancia

semanticamente toda uma série de elementos tradicional-ideológicos, ligados aos

alicerces da nacionalidade portuguesa. Por isso afirmamos anteriormente que, trata-se

de um conceito de conformação mais “estável”, se comparado ao radical “trópico”, pois,

apesar das alterações semânticas contextuais, ele está ligado a um complexo ideológico

de origem mítica, atrelado à ideia de nação27.

Estes elementos tradicional-ideológicos a que nos referimos, foram

instrumentalizados por Freyre na explicação da originalidade da colonização portuguesa

na América. Não é de estranhar, contudo, que os significados atribuídos a este radical na

obra freyreana, mesmo quando ainda não o havia concebido como conceito, tenha sido

rejeitado pelo Estado Novo entre os anos 1930-40, mas que fora incorporado a partir

dos anos 1950, como demonstrou Cláudia Castelo (1999, cap. 03). Retomando

Koselleck, “todo conceito articula-se a um certo contexto sobre o qual também pode

atuar, tomando-o compreensível”.

Trópico: A alteração contextual, do hiato existente entre as formulações ‘teóricas’ até a

sua conceituação, foi responsável por uma sensível e relevante variação do seu sentido.

Essas mutações estariam ligadas, por um lado, à elevação das vozes africanas e asiáticas

ex-coloniais pleiteando a autodeterminação de seus destinos, e por outro, ao declínio

dos antigos impérios, que estavam sustentados pela ideia de sua superioridade

étnica/cultural dos europeus diante dos demais.

Como já alertamos anteriormente, este conceito traz entranhado em si, duas

conotações complementares: uma espacial e, outra cultural28. A dimensão espacial

relaciona-se àquelas áreas submetidas à colonização de exploração – associada às

capacidades produtivas de artigos que não poderiam ser cultivados na Europa – ou seja,

a dimensão da sua exploração econômica. Tal exploração sempre fora exercida a partir

da opressão da mão de obra autóctone, e foi sobre esta composição que assistimos a

emergência dos impérios coloniais. Dessa forma, a vertente cultural atribuída a este 27 Nação enquanto “comunidade política imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e soberana”, Cf. ANDERSON, 1989, p. 14. 28 A problemática da nossa análise parte da articulação existente entre “Império, geografia e cultura”, tema da obra de Edward Said (2011) inspirada em análises literárias.

conceito estaria aí definida: as hierarquizações socioculturais existentes desde os

primeiros contatos, seja por meio de explicações teológicas – e depois “científicas” –

revelaram a detração que alicerçava a homogeneização do “outro” “extra-europeu”; este

habitava e confundia-se aos usuais espaços da exploração econômica: trópico29.

O termo “trópico” estaria associado, então, à negação da civilização: signo da

“barbárie”. Foi justamente a oposição a esta concepção de trópico, que logrou a Freyre,

a originalidade de sua obra30 inaugural, Casa grande e senzala. Embora ainda não

estivesse esboçado o conceito, os seus fundamentos estavam ali presentes.

Diversos são os motivos que podem ter levado Freyre a reagir a esta concepção

dos “trópicos” – do qual ele fazia parte. Entre eles, elenquemos a sua vivência

acadêmica, que aponta para duas questões gerais: uma de cunho pessoal, e outra

intelectual.

Estudante oriundo da periferia do mundo capitalista, Freyre teve boa parte da sua

formação nos Estados Unidos, em um dos principais centros de pesquisa em Ciências

Humanas da época (Universidade de Columbia). As perspectivas partilhadas no cerne

do capitalismo moderno eram bastante conflitantes com a sua vivência no nordeste de

matriz aristocrática, e podem ter inspirado Freyre nesta sua “reação” aos modelos

hegemônicos vigentes. Esse contraste se relaciona diretamente às divergências

culturais. Este último termo se alia ao segundo ponto elencado para análise: a influência

intelectual da antropologia cultural do seu tutor Franz Boas.

Podemos perceber desde a primeira obra de Freyre (1933) tentativas nítidas de

alteração dos significados dos conceitos cultura e civilização, favoráveis aos “outros”

detratados nos tratados antropológicos eurocêntricos oitocentistas, elogiando a matriz

cultural do amalgama da América Portuguesa. Trata-se de um contexto em que o

antagonismo “civilização” & “barbárie”, além das concepções racistas e racialistas,

estavam na ordem do dia.

29 Durante décadas, “trópicos” serviu ao Europeu para receptáculo geral de exotismos e estranhezas, numa espécie de “orientalização” do Sul pelo Norte que traz consigo conotações negativas. (...). O antro do primitivismo e da não civilização, portanto (BASTOS, 1998, p. 419). 30 Gilberto Freyre estava há anos empenhado em assinalar, descrever e explicar as características do complexo cultural que, culminando no Brasil, teria as suas origens na colonização portuguesa e no enaltecimento desta com povos e elementos culturais africanos (BASTOS, 1998, p. 423).

Na sua obra seguinte (1940) propôs o alargamento da sua interpretação para

todas as áreas de colonização portuguesa. A recepção a estas ideias não foram muito

simpáticas em Portugal, sobretudo pelas aspirações oitocentistas mantidas nas ciências

sociais, a partir da qual se criticava o pilar fundamental desta “teoria”: a mestiçagem.

Entretanto, depois da Segunda Guerra Mundial, o contexto se alteraria

substancialmente. Com o Eixo derrotado, a crença em impérios sustentados pela

superioridade racial de seu povo não poderia mais ser usada como fundamentação das

práticas coloniais. Pelo contrário, se viu um acirramento progressivo da descolonização

africana e asiática entre os anos 1950-1960, e da emergência do não alinhamento

terceiro-mundista (Conferência de Bandung, 1955).

Essa alteração contextual pode ser percebida na obra de Freyre, sobretudo, na

sua construção conceitual: utilizando o mesmo conceito (trópico) e a mesma

‘metodologia’ (generalização) ele caracterizou aquilo que acreditava ser uma nova

cultura e civilização, associando-os aos elementos tradicional-ideológicos contidos no

termo luso. Trata-se da ampliação do antigo debate existente entre “civilização” e

“barbárie”, no qual a homogeneização dos “outros” sintetizados pelo conceito

“trópicos” se elevaria em sua obra, agora com valores positivos.

Freyre tentava mostrar a partir de então31 que esta nova cultura/civilização era

mais adaptada à modernidade do que os modelos que emergiram com a Guerra Fria,

sobretudo aquele de tradição anglo-saxã, como era o caso dos Estados Unidos. O valor

que atribuía aos conceitos civilização, cultura e moderno, enquanto adjetivos do seu

complexo luso-tropical, mostra nitidamente a vontade de Freyre em “reagir” aos novos

paradigmas, resgatando os valores da tradição ibérica – particularmente lusa. Esta nossa

interpretação provisória, parte dos resultados de trabalhos recentes (LIMA, 2011;

SCHNEIDER, 2012) que mostram a necessidade de compreender a obra de Freyre a

partir da sua fundamentação tradicional-ideológica, ligada aos debates da decadência

ibérica oitocentista.

Assim, termo-conceito não poderia ter nascido na fase anterior a este contexto,

muito embora nas obras anteriores já existisse a ideia que lhe recobre. Acreditamos que

o conceito foi instrumentalizado nas viagens que Freyre realizara pelo continente 31

Os conceitos surgem em 1953, mas a sua instrumentalização política se deu, sobretudo, a partir de

1958.

africano, patrocinadas pelo regime de Salazar: o contexto da criação do “termo” marca o

início da sua conexão com o Estado Novo, mas também, da sua (pronta) apropriação.

Considerações parciais

Qual seria a relação entre os fundamentos da obra de Freyre com a mística imperial

portuguesa – consubstanciada no colonialismo do Estado Novo? Preliminarmente,

acreditamos que o fundamento de ambos partiram das questões oitocentistas, mostradas

sumariamente neste texto, ambas associadas com a constituição da nação, seja brasileira

ou portuguesa, respectivamente. A conveniência mútua do seu “encontro”, no contexto

em que os conceitos freyreanos foram apropriados pelo Estado Novo, pode estar

relacionada pela ameaça de um “inimigo comum”: o risco do esfacelamento do império

português, diante da emergência da nova ordem estabelecida – sobretudo a ONU e a

OTAN representando os EUA – representativa dos valores “modernos” classificados

por Freyre como herdeiros da tradição anglo-saxã.

Já Freyre, sempre esteve preocupado com as questões relativas ao Brasil. Em

suas obras, mesmo aquelas escritas neste contexto, é nítida esta sua preocupação. A

formulação dos seus conceitos, e o conteúdo tradicional-ideológico nele presentes foram

apropriados pelo Estado Novo – uma apropriação consentida, diga-se de passagem –

devido o seu prestígio como cientista de reconhecimento internacional. Este

reconhecimento explica parte do seu consentimento nesta apropriação.

Além disso, “defender Portugal” era proteger os resquícios daquela tradição

imperial que fundara o Brasil, paradigma de uma nova cultura lusotropical, mas que

agora corria o risco de esfacelar-se. Isso poderia explicar que, mesmo tratando-se de

uma “comunidade de sentimento e cultura”, Freyre fosse contrário (pelo menos entre o

final de 1950 e início de 1960) à descolonização, e muito pouco simpático aos

movimentos emancipacionistas da “África Portuguesa”.

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