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impulso 97 nº26 Luto e Criação em A Interpretação de Sonhos * Mourning and Creativeness in The Interpretation of Dreams R ESUMO Em 23 de outubro de 1896, o professor Sigmund Freud vivenciou a experiência da morte de seu pai. O propósito do presente trabalho é trazer à su- perfície alguns movimentos psíquicos do mundo interno do pai de A Interpretação de Sonhos , em especial aqueles que se referem ao doloroso processo de elaboração do luto normal. Percorrendo as cartas de Freud a Fliess no período de 1896 a 1900, foram seguidas as pegadas das etapas do luto de Freud pela morte do pai, desde a idealização inicial do objeto perdido, a culpa do(s) sobrevivente(s), os sen- timentos de ódio que transtornam a idealização, o triunfo sobre o morto e a culpa. Abraçando o aporte teórico de Klein sobre o luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos, destacam-se os passos do luto de Freud, desembocando nos movimentos de reparação, sublimação e criação. Foi pela análise dos próprios so- nhos e sob a força da elaboração do luto que nasceu a obra que lançou a psica- nálise no mundo. Palavras-chave : luto – reparação – sublimação – criação. A BSTRACT On October 23 rd , 1896, Professor Sigmund Freud lived through the experience of the death of his father. This paper intends to uncover some psychic movements within the inner world of the father of The Interpretation of Dreams , especially those relating to the painful process involved in normal mourning. By investigating his letters to Fliess from 1896 to 1900, the stages of Freud’s mour- ning process for his father’s death are followed, from the initial idealization of the lost object to the guilt felt by the survivor(s), the feelings of hate that disturbs ide- alization, the triumph over the deceased and guilt. Applying Klein’s theoretical ap- proach to mourning and its relationship to maniac-depressive states, the stages of Freud’s mourning are thrown into relief, culminating in movements of reparation, sublimation and creativeness. It was through the analysis of his own dreams and under the stress of mourning that Freud prepared the book that brought psycho- analysis into the world. Keywords : mourning – reparation – sublimation – creativeness. * Nota do editor (N.E.): a autora deste artigo opta pelo título original da obra, A Interpretação de Sonhos , seguindo as primeiras traduções para o português e guardando fidelidade à versão inglesa, The Interpreta- tion of Dreams , bem como ao original alemão Die Traumdeutung . M ARIA T ERESA G IMENEZ Professora da Faculdade de Psicologia da U NIMEP , supervisora de Estágio e mestre em Psicologia Clínica. [email protected]

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    Luto e Criao em

    A Interpretao de

    Sonhos

    *

    Mourning and Creativeness in The Interpretation of Dreams

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    ESUMO

    Em 23 de outubro de 1896, o professor Sigmund Freud vivenciou aexperincia da morte de seu pai. O propsito do presente trabalho trazer su-perfcie alguns movimentos psquicos do mundo interno do pai de

    A Interpretaode Sonhos

    , em especial aqueles que se referem ao doloroso processo de elaboraodo luto normal. Percorrendo as cartas de Freud a Fliess no perodo de 1896 a1900, foram seguidas as pegadas das etapas do luto de Freud pela morte do pai,desde a idealizao inicial do objeto perdido, a culpa do(s) sobrevivente(s), os sen-timentos de dio que transtornam a idealizao, o triunfo sobre o morto e a culpa.Abraando o aporte terico de Klein sobre o luto e suas relaes com os estadosmanaco-depressivos, destacam-se os passos do luto de Freud, desembocando nosmovimentos de reparao, sublimao e criao. Foi pela anlise dos prprios so-nhos e sob a fora da elaborao do luto que nasceu a obra que lanou a psica-nlise no mundo.

    Palavras-chave

    : luto

    reparao sublimao criao.

    A

    BSTRACT

    On October 23

    rd

    , 1896, Professor Sigmund Freud lived through theexperience of the death of his father. This paper intends to uncover some psychicmovements within the inner world of the father of

    The Interpretation of Dreams

    ,especially those relating to the painful process involved in normal mourning. Byinvestigating his letters to Fliess from 1896 to 1900, the stages of Freuds mour-ning process for his fathers death are followed, from the initial idealization of thelost object to the guilt felt by the survivor(s), the feelings of hate that disturbs ide-alization, the triumph over the deceased and guilt. Applying Kleins theoretical ap-proach to mourning and its relationship to maniac-depressive states, the stages ofFreuds mourning are thrown into relief, culminating in movements of reparation,sublimation and creativeness. It was through the analysis of his own dreams andunder the stress of mourning that Freud prepared the book that brought psycho-analysis into the world.

    Keywords

    : mourning reparation sublimation creativeness.

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    * Nota do editor (N.E.): a autora deste artigo opta pelo ttulo original da obra,

    A Interpretao

    de

    Sonhos

    ,seguindo as primeiras tradues para o portugus e guardando fidelidade verso inglesa,

    The Interpreta-tion of Dreams

    , bem como ao original alemo

    Die Traumdeutung

    .

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    ARIA

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    ERESA

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    IMENEZ

    Professora da Faculdade de Psicologiada U

    NIMEP

    , supervisora de Estgioe mestre em Psicologia Clnica.

    [email protected]

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    Num final de tarde do inverno de 1898, o professorSigmund Freud entrou no cemitrio de Viena paracolocar um ramo de flores na sepultura de seu paiJacob. Encontrou casualmente um ex-amigo, encami-nhou-se para o tmulo paterno e confidenciou, amar-gurado: Meu pai morreu. Meus pais espirituaisesto enterrados. Estou sozinho diante de mim e noodeio mais ningum. Agora o pai sou eu. Talvez acena de Freud decifrando o mistrio da paternidadeno tenha sido exatamente esta, mas foi assim queJean-Paul Sartre decidiu terminar o roteiro cinemato-grfico que fez em 1959, um gigantesco trabalho,publicado em 1984, em Paris, com o ttulo

    Le Scena-rio Freud

    .

    O CENRIO

    uando Jacob Freud desposou Amalia Nathansohn, sua ter-ceira mulher, em 1855, ele estava com quarenta anos, vintea mais que sua esposa. Tinha dois filhos do primeiro casa-

    mento o mais velho, Emanuel, casado e com filhos, e Philipp, sol-teiro. Moravam vizinhos. Emanuel era mais velho do que a jovem eatraente madrasta que o pai trouxera de Viena, ao passo que Philipptinha apenas um ano menos do que ela. Igualmente intrigante era ofato de que um dos filhos de Emanuel fosse um ano mais velho queo prprio Sigismund, nome original que se alteraria mais tarde na vidado pai de

    A Interpretao de Sonhos

    . Portanto, ao nascer, Freud j eratio de John, que se tornaria amigo inseparvel, companheiro de brin-cadeiras e tambm seu principal inimigo de infncia.

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    Em 6 de maio de 1856, na pequena vila de Freiberg, nasceu oprimognito dessa unio Sigismund. Sendo o pai, Jacob, comerciantede ls, pobre, os Freud moravam numa casa simples, de dois andares,acima dos aposentos do proprietrio do imvel, um ferreiro. Ali, sobreuma ferraria, nasceu Freud.

    Os Freud no ficaram muito tempo em Freiberg. Em 1859 mu-daram-se para Leipzig e, no ano seguinte, para Viena. As dificuldades

    2

    Um amigo ntimo e um inimigo odiado sempre foram requisitos necessrios de minha vida emocional,confessou Freud em

    A Interpretao dos Sonhos

    . Eu sempre soube me prover constantemente de ambos(FREUD [1899], 1980b, p. 516). Na sua primeira infncia este duplo papel foi desempenhado pelo sobri-nho. Mais tarde, durante a dcada de suas descobertas iniciais, Freud converteu Wilhelm Fliess nesse neces-srio amigo e, depois, inimigo.

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    financeiras da famlia eram presentes. Numa passagem autobiogrficaque inseriu em um artigo de 1899, ele descreveu a si mesmo como fi-lho de pais originalmente abastados que, creio eu, viviam naquele bu-raco de provncia com bastante conforto.

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    O uso dessa hiprbole um prenncio do que Freud viria a chamar mais tarde romance fa-miliar, essa disposio generalizada entre as pessoas de achar seus paismais prsperos ou mais famosos do que na realidade so. Escreveu ele:depois de uma catstrofe no ramo industrial em que meu pai estavaempregado, ele perdeu sua fortuna.

    4

    Na verdade, no se poderia di-zer do pai que fosse algum que tivera e no conseguira conservar.

    Por outro lado, a fertilidade procriadora da me Amalia Freud no contribua para aliviar a precria situao financeira da famlia.Por ocasio da mudana para Viena, havia dois filhos Sigismund eAnna. Um outro filho, Julius, morrera aos sete meses. Ento, numa se-qncia rpida, entre 1860 e 1866, Freud foi presenteado com quatroirms Rosa, Marie, Adolfine e Pauline e com o caula, Alexander.

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    Seguiu-se uma catstrofe familiar, com a priso do tio paterno, in-diciado por negociar com rublos falsos. Esse tio no benquisto porFreud, que invadia seus sonhos, foi lembrado em

    A Interpretao de So-nhos

    , numa passagem na qual menciona que os cabelos de seu pai em-branqueceram de desgosto em poucos dias. Alm do desgosto, prova-velmente se somava a angstia, porque, ao que tudo indica, Jacob e seusfilhos mais velhos teriam alguma participao nos negcios desse tio.

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    Os sentimentos dbios de Freud em relao ao pai foram alcan-ando cada vez mais a superfcie. Conta ele: Devia contar dez oudoze anos, quando meu pai comeou a levar-me em seus passeios e arevelar-me em suas conversas seus pontos de vista sobre as coisas domundo em que vivemos.

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    Um dia, para mostrar como a vida haviamelhorado para os judeus da ustria, Jacob Freud contou esse casopara o filho: Quando eu era jovem, fui dar um passeio, certo sbado,pelas ruas do seu lugar de nascimento; estava bem vestido e usava umnovo gorro de pele. Um cristo dirigiu-se a mim e, com um s golpe,jogou meu gorro na lama e gritou: Judeu, fora da calada! Com vi-da curiosidade, Freud perguntou ao pai: E que fez o senhor?. E ob-

    3

    FREUD [1899], 1980a, p. 343.

    4

    Ibid.,

    p. 343.

    5

    O nome Alexander foi escolhido pelo menino Freud, ento com dez anos, baseado na lembrana da mag-nanimidade de Alexandre e sua bravura como lder militar macednio.

    6

    FREUD [1899], 1980b, p. 208.

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    teve a calma resposta: Desci da calada e apanhei meu gorro. A rea-o do pai, diria ele, no me pareceu herica.

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    Veio a dvida: ento,o pai no era um homem grande e forte?

    Estabeleci um contraste entre essa situao e outra quese ajustava melhor aos meus sentimentos: a cena emque o pai de Anbal, Amlcar Barca, fez seu filho jurarperante o altar do lar em tirar vingana dos romanos.Desde aquela poca, Anbal ocupara um lugar em mi-nhas fantasias.

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    Alfinetado pelo espetculo de um judeu covarde rebaixando-sefrente a um cristo, Freud parece ter buscado um lder corajoso comquem se identificar o magnfico e intrpido semita Anbal, que jurouvingar Cartago, por mais poderosos que fossem os romanos. Fantasiasde vingana desenvolveram-se no seu ntimo. Nunca veriam a ele,Freud, apanhando seu gorro da sarjeta imunda.

    A escolha do imortal comandante como seu heri favorito trazcomo razo bsica ter Anbal, contra todas as possibilidades, quaseconquistado a odiada e odiosa Roma. Ao dar nome de Alexander aoseu irmo mais novo, ele estava tambm reverenciando um conquis-tador cuja fama tornara-se maior do que a de seu pai, Felipe daMacednia; da mesma forma, com Anbal ele poderia identificar-seimaginariamente com outra poderosa figura cuja fama sobrepujara ade seu pai, Amlcar. Ambos os heris suplantaram os feitos dos pr-prios pais.

    Em

    A Interpretao de Sonhos

    , Freud incorreu num lapso curioso,ao chamar o pai de Anbal de Asdrbal, em vez de Amlcar, e ele pr-prio julgou mais tarde que tal lapso se relacionava com sua insatisfaopela conduta de Jacob Freud frente aos anti-semitas.

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    Mas, muito pro-vavelmente, havia ainda um elemento edipiano intenso nas escolhas deseus heris: ele poderia se mostrar superior a seu pai quer dizer, ven-cer a luta edipiana sem precisar rebaix-lo demais. Com isso, no m-bito familiar, Freud seria vitorioso, ao mesmo tempo respeitando seuinimigo.

    Para se alcanar uma noo mais abrangente da dimenso da lutaedipiana de Freud, interessante seguir um dos mais tocantes indcios,disperso em

    A Interpretao de Sonhos

    : o tema de Roma. Era uma ci-dade que ele queria avidamente conhecer, mas seu desejo acabava sub-

    7

    FREUD [1899], 1980a, p. 209.

    8

    Ibid

    .

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    Vide a compreenso integral do lapso em FREUD [1901], 1980c, p. 266.

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    vertido por uma espcie de proibio fbica. Mais de uma vez passoufrias na Itlia mas, paradoxalmente, o lugar mais prximo da capitalitaliana a que chegara fora o lago Trasimeno, a setenta e cinco quil-metros de Roma. Era o lugar em que Anbal tambm se detivera.

    No fim de 1897, sonhou que ele e Fliess poderiam organizar umde seus congressos em Roma. E, no incio de 1899, sugeriu de l seencontrarem na Pscoa. Roma aparece na temtica freudiana como arecompensa mxima, mas tambm como a incompreensvel ameaa.A propsito, disse a Fliess, meu anseio por Roma profundamenteneurtico. Ele est ligado ao meu entusiasmo dos tempo de escola peloheri semita Anbal.

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    Na verdade, conquistar Roma era triunfar noprprio quartel-general. Freud interpretava sua ambivalncia porRoma como o contraste entre a tenacidade do povo judeu e a orga-nizao da Igreja Catlica. Porm, sugere algo mais: conquistar Romaseria triunfar na sede, dominar o pai, subjug-lo, castrar ou ser castra-do. Um srio conflito, uma sria batalha!

    Freud mesmo sugeriu que sua fobia tinha uma natureza edipianaquando evocou o antigo vaticnio apresentado aos Tarqunios, de oprimeiro a beijar a me se tornar o governante de Roma. A implicaopsicanaltica desse beijo, embora Freud no o diga explicitamente, avitria sobre o pai. Roma representava os mais fortes desejos erticose tambm os mais intensos impulsos agressivos estes apenas menosocultos do que aqueles. Ao publicar

    A Interpretao de Sonhos

    , Freudainda no chegara a conhecer Roma. Numa metfora, no conquis-tara Roma.

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    A M

    ORTE

    DO

    P

    AI

    Na primavera e no vero de 1896 seu pai esteve morte, e issofoi muito mais absorvente para Freud do que seus afazeres neurolgicose at mesmo do que as neuroses. Informou a Fliess no fim de junho de1896: Meu velho pai (81 anos) est em Baden, uma estncia a meiahora de Viena, no mais frgil estado, com insuficincia cardaca, pa-ralisia da bexiga e coisas semelhantes.

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    Pouco mais adiante, escreveu: realmente creio que so seus l-timos dias. A perspectiva, quase certeza, da morte do pai no o de-

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    MASSON, 1986, carta de 3 de dezembro de 1897, p. 286.

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    A natureza edipiana das fobias foi amplamente descrita por Freud ([1909] 1980d), postulando que oponto de fixao delas localiza-se nos conflitos em torno da situao triangular da fase flica do desenvolvi-mento libidinal. Igualmente, Gimenez (1983) aponta esse fator psicodinmico predominando em uma dasquatro classes de fobia escolar em estudo. Ir escola ou... ir a Roma, ambas podem evocar profunda con-flitiva emocional de carter edpico, com resultados semelhantes.

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    MASSON, 1986, carta de 30 de junho de 1896, p. 194.

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    primiu a princpio. Expressou que no relutava em admitir seu mere-cido descanso. Disse dele Ele

    era

    um ser humano interessante, inte-riormente muito feliz,

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    num lgubre pretrito, enquanto JacobFreud ainda respirava. Mas, em 23 de outubro de 1896, Jacob Freudmorreu, sustentando-se corajosamente at o fim, pois, de modo geral,era um ser humano fora do comum.

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    No era o momento paraapreciaes crticas equilibradas; o homem que apanhara seu gorro dasarjeta e no conseguira se sair bem em Viena foi afetuosamente es-quecido. Por algum tempo, Freud sentiu apenas orgulho pelo pai.

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    UTO

    Um fenmeno que Freud observou em si mesmo durante essesprimeiros dias de pesar foi a culpa do sobrevivente. Na carta a Fliess de2 de novembro de 1896, escreveu sobre a auto-recriminao que re-gularmente surge entre os sobreviventes.

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    Klein

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    estabelece ligaesentre o luto normal e a posio depressiva infantil. Aponta que, na afli-o do indivduo em luto, a pena pela perda real da pessoa querida em grande parte aumentada pelas fantasias inconscientes de ter perdidotambm os objetos bons internos. Surge o sentimento de que predo-minam seus objetos internos maus e seu mundo interno est em perigode romper-se. A perda da pessoa amada leva o indivduo enlutado areinstalar no ego esse objeto amado perdido. No s o objeto perdido,mas junto com ele outros objetos bons interiorizados, os quais so sen-tidos como destrudos. Ento, a posio depressiva mais primitiva, ecom ela as ansiedades, os sentimentos de culpa, de perda e aflio, dasituao edipiana e de outras fontes tudo isso reativado.

    Como sabemos, a pessoa enlutada consola-se recordando a bonda-de e as qualidades do morto, devido tranqilidade que experimenta aoconservar idealizado o seu objeto amado. As fases passageiras de elaoso devidas ao sentimento de possuir dentro de si o perfeito objeto ama-do, porm idealizado. Entretanto, a qualquer momento os sentimentosde dio podem irromper e transtornar o processo de idealizao.

    Ento, a inevitvel reao se manifestou. Freud sentiu dificulda-des at em escrever cartas. Agradecendo as condolncias de Fliess, afir-ma que a morte do velho me comoveu muitssimo. Eu o estimavaprofundamente, entendia-o muito bem e ele teve grande efeito na mi-

    13

    MASSON, 1986, carta de 15 de julho de 1896, p. 196. Nessa traduo para o portugus, o tempo deverbo utilizado por Freud teria sido o passado, ele

    foi

    ; na traduo de GAY (1989, p. 96), a nfaserepousa no tempo pretrito. De qualquer forma, Freud j contava com o pai morto.

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    Ibid.,

    carta de 26 de outubro de 1896, p. 202.

    15

    Ibid

    ., carta de 2 de novembro de 1896, p. 203.

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    KLEIN [1940], 1981.

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    nha vida, com sua tpica mescla de profunda sabedoria e sua fantsticadespreocupao.

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    Subseqente morte do pai, Freud experimentouum intenso bloqueio no processo que vinha empreendendo de suaauto-anlise. Em maio de 1897, escreve a Fliess que algo est fer-mentando e fervilhando em mim.

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    Em meados de junho, confessouestar preguioso, intelectualmente estagnado. Logo mais, comunica:estou num casulo, e sabe Deus que tipo de bicho vai sair dele.

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    Ain-da a Fliess: Algo proveniente das mais recnditas profundezas de mi-nha neurose ope resistncia contra qualquer progresso na compreen-so das neuroses (...).

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    O grande risco na elaborao do luto provm do reverso contrasi mesmo, do dio pela pessoa amada. Uma das formas como se ex-pressa o dio atravs do triunfo sobre a pessoa morta. A morte, em-bora acabrunhadora, sentida como uma vitria, originando triunfo,mas tambm culpa. Klein

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    observa que os sentimentos de triunfo tmo efeito de retardar a superao do luto e contribuem ainda mais paraas dificuldades e penas do enlutado. Isso no s torna o ente queridoperseguidor mas tambm abala a crena nos objetos bons. Perturba si-multaneamente o processo de idealizao, necessrio para se salva-guardar dos objetos maus e vingativos.

    A morte de seu pai tinha redespertado todo o passado em seu n-timo. Agora sinto-me totalmente desenraizado.22 Klein23 afirma que,durante o luto normal, reativam-se as primeiras ansiedades psicticas.Observa que o indivduo de luto atravessa um estado manaco-depres-sivo modificado e transitrio, e consegue sobrepuj-lo, repetindo as-sim os processos que a criana atravessa normalmente em seu desen-volvimento. Alternam-se os estados de perseguio, em que o objetoodiado pode infligir as mais terrveis penas ao sujeito, e os estados deidealizao, atravs dos quais o sujeito exalta maniacamente as quali-dades do objeto perdido. Essas duas espcies de estados mentais cor-rem paralelas e dissociadas.

    Dificilmente seria essa a reao comum de um filho de meia-ida-de diante do fim de um pai idoso. A tristeza de Freud foi excepcio-nalmente intensa. E foi excepcional tambm pela forma como ele aempregou para uso cientfico, distanciando-se um tanto de sua perda

    17 MASSON, 1986, carta de 2 de novembro de 1896, p. 203.18 Ibid., carta de 16 de maio de 1897, p. 244.19 Ibid., carta de 22 de junho de 1897, p. 255.20 Ibid., carta de 7 de julho de 1897, p. 256.21 KLEIN [1940], 1981.22 MASSON, 1986, carta de 2 de novembro de 1896, p. 203.23 KLEIN [1940], 1981.

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    e, ao mesmo tempo, reunindo material para suas teorias. Se por umlado contava com seus quarenta anos de idade, de outro estava sob aspresses dos ataques contra seus lances tericos sobre a etiologia dahisteria, as chacotas e zombarias de seus pares, inclusive do mestreCharcot e de Krafft-Ebbing, com seus comentrios de que parece umconto de fadas cientfico, referindo-se ao que Freud apresentara naAssociao de Psiquiatria e Neurologia, em abril de 1896. Alm disso,a instabilidade financeira e a escassez de sua clientela particular repre-sentavam no s privaes econmicas, mas sobretudo um golpe suaauto-estima.

    GUINADAS NAS FORMULAES TERICAS

    Antes que pudesse extrair benefcios de sua dolorosa perda,Freud foi encurralado a duvidar, questionar e, por fim, abandonar asua teoria da seduo. Se at meados de 1890 a assero de que todasas neuroses seriam resultantes do abuso sexual de uma criana, prati-cado por um adulto, geralmente o pai, a clnica dos casos de histeria,um sonho ertico que ele mesmo teve com uma de suas filhas, almdos casos de histeria existentes dentro da prpria famlia Freud, con-duziram-no a absolver o pai. Se as investidas paternas eram as nicasfontes de histeria, precisaria que tal conduta fosse praticamente uni-versal. Tal perverso generalizada contra as crianas pouco provvel,raciocina Freud. Alm disso, atina que no estava claro distinguir entrea verdade de um lado e, de outro, a fico carregada pela emoo. Es-tava pronto para adotar o ceticismo de mtodo que a experincia cl-nica lhe ensinava. Portanto, concluiu que as revelaes dos pacienteseram, pelo menos em parte, produtos da imaginao deles.

    Em outubro de 1897, abriu-se o caminho para uma mescla deautoconhecimento e clareza terica. H quatro dias, informou a Fli-ess, minha auto-anlise, que considero indispensvel para o esclare-cimento de todo o problema, tem continuado em sonhos e me ofere-cido as mais valiosas explicaes e pistas.24 Foi quando ele lembroua respeito da bab catlica de sua infncia, o vislumbre de sua menua, seus desejos de morte contra o irmo mais novo e outras lem-branas infantis reprimidas. Quem j passou pelo doloroso processode elaborao de um luto sabe do que se est falando. Segredos muitotristes da vida remontam at suas primeiras razes; muitos orgulhos eprivilgios so remetidos s suas origens mais modestas.

    24 MASSON, 1986, carta de 3 de outubro de 1897, p. 269.

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    Aps os dias em que se arrastava toa por no conseguir enten-der o sentido de um sonho ou uma fantasia, vieram os dias em queo claro de um relmpago iluminou as ligaes e me permite entendero que se passara antes como um preparativo do presente.25 Comonum jogo de quebra-cabeas, ele reconhecia que sua lembrana da pai-xo pela me e cimes do pai era mais do que uma idiossincrasia pes-soal. Pelo contrrio, afirmou que a relao edipiana da criana com ospais era um acontecimento generalizado na primeira infncia.26 Pa-ralelamente, identificava com clareza esse complexo amoroso na situ-ao triangular de dipo e Hamlet.

    Outras descobertas surpreendentes povoavam seus dias. O sen-timento inconsciente de culpa, as fases do desenvolvimento sexual, oelo causal entre mitos gerados internamente e a crena religiosa, o ro-mance familiar em que tantas crianas desencadeiam fantasias gran-diosas sobre seus pais, a natureza reveladora dos lapsos e das aesdescuidadas, o poder dos sentimentos agressivos reprimidos e, last butnot least, os intrincados mecanismos de produo do sonho. E foipelos sonhos, via rgia do inconsciente, que Freud iniciou o complexopercurso da elaborao do luto pela morte do pai; e pela via da subli-mao, fez sua (mais importante) criao.

    LUTO, SUBLIMAO E CRIAO

    Com a morte do pai, com o avano da auto-anlise e o ritmomais acelerado de sua teorizao psicanaltica, Freud parece ter revi-vido seus conflitos edipianos com singular intensidade. Ao escrever AInterpretao de Sonhos, ele desafiava seus pais substitutos os pro-fessores e colegas que o haviam adotado, mas que agora ele deixavapara trs.27

    Acerca desse movimento no processo de elaborao do luto,Klein28 sugere que gradualmente, ganhando confiana nos objetos ex-ternos e em valores de vrias espcies, possvel fortalecer a confianana pessoa amada e perdida. Da, ento, o enlutado pode aceitar aimperfeio do objeto, conservar a f nele e no temer sua vingana.Quando isso se realiza, sinal de que foi dado um passo importanteno trabalho do luto e na sua superao.

    25 MASSON, 1986, carta de 27 de outubro de 1897, p. 275.26 Ibid., carta de 15 de outubro de 1897, p. 273.27 Freud havia elevado seus mentores a uma posio inatacvel e estabelecera um vnculo de dependnciacom eles para com isso dominar os sentimentos de inferioridade que o assolavam. Ele idealizou seis figurasque desempenharam importante papel em sua vida: Brcke, Meynert, Fleisch-Marxow, Charcot, Breuer eFliess.28 KLEIN [1940], 1981.

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    Ao mesmo tempo que fica intensa a dor e o desespero frente prova da realidade de que o objeto no mais existe, surge a crena deque o objeto pode ser conservado internamente. Nesse estgio do luto,o sofrimento pode tornar-se produtivo. As experincias dolorosas detoda espcie estimulam a reparao e a sublimao, conduzindo a cria-es artsticas, literrias, cientficas, a partir de frustraes e pesares. Aaquisio de maior segurana no mundo interno e a permisso de queos sentimentos e os objetos internos bons voltem a surgir fazem comque se estabeleam os processos de criao.

    Quando a perseguio diminui, a dependncia hostil e o diotambm decrescem e as defesas manacas relaxam. Ento, o anseiopelo objeto amado e perdido serve de incentivo para a reparao e acriatividade. O anseio recriar o objeto perdido pelo amor a ele.

    Cada avano no processo do luto tem por resultado um apro-fundamento da relao do indivduo com seus objetos internos, tan-gencia a felicidade de reconquist-los depois de haver sentido sua per-da. As fases no trabalho do luto, quando as defesas manacas se dis-tendem e uma renovao interna se estabelece, promovem maior in-dependncia tanto dos objetos externos como dos internos.

    Assumindo os riscos, Freud estava seguindo seu prprio caminho.Rompia com seus pais substitutos, mergulhava nos recnditos de suamente, expunha seus desejos, conflitos e fantasias mais ocultos, devas-sava-se publicando seus prprios sonhos. Pudera criar profunda intimi-dade com a agressividade e o poder que ela encerra. Afinal, foi elequem revelou seu funcionamento em si mesmo: em suas cartas a Fliess,no mbito privado, e publicamente em A Interpretao de Sonhos. Seno tivesse publicado suas confisses, os desejos de morte contra seu ir-mozinho, seus sentimentos edipianos hostis contra seu pai, ou a ne-cessidade de um inimigo em sua vida, todo esse universo poderia con-tinuar para sempre conhecido apenas por ele mesmo.

    Em setembro de 1901 aconteceu, ento, a primeira visita deFreud a Roma. Foi o selo de sua independncia. Ao mesmo tempo, seuestado emocional tangenciava a derrota. O livro dos sonhos no alcan-ara a acolhida desejada. A ira, a decepo e o tdio predominavam noseu interior. Em 1901, escreveu A Psicopatologia da Vida Cotidiana,fez a redao do caso Dora, s publicado em 1905, e estava alinha-vando as idias sobre os chistes. O trabalho era-lhe uma forma de en-frentar o luto.

    Quando em 191529 escreve sobre a natureza da melancolia,comparando-a com o afeto normal do luto, Freud j estava a longa dis-

    29 FREUD [1917], 1980e.

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    tncia do que percorrera intimamente naquele fim de sculo. Guar-dando visvel distanciamento que ele se pe a afirmar que o luto,de modo geral, a reao perda de um ente querido, perda de al-guma abstrao que ocupou o lugar de um ente querido (...).30

    Tecendo consideraes sobre a melancolia, como seus traos dis-tintos aponta: desnimo profundo e penoso, cessao de interesse pelomundo, perda da capacidade de amar, inibio de toda e qualquer ati-vidade e diminuio dos sentimentos de auto-estima, culminandonuma expectativa delirante de punio. Prossegue afirmando que oluto profundo, a reao perda de algum que se ama, encerra o mes-mo estado de esprito penoso, a mesma perda de interesse pelo mundoexterno, a mesma perda da capacidade de adotar novo objeto de amore o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que no esteja li-gada a pensamentos sobre ele.

    Continuando suas teorizaes, ele se autoriza a afirmar que o tra-balho do luto se calca na necessidade de retirar a libido das relaescom o objeto perdido. As desvinculaes do objeto s podem ser exe-cutadas pouco a pouco, com grande dispndio de tempo e de energiacatexial. O objeto perdido fica presente ainda neste meio de tempo.Vrias das lembranas, expectativas, atravs das quais a libido est vin-culada ao objeto so evocadas e hipercatexizadas.31

    Sobre o processo de elaborao do luto, Freud postula que aslembranas e expectativas se defrontam com o veredicto da realidadede que o objeto no mais existe; e o ego persuadido pela soma dassatisfaes narcisistas que deriva da constatao de estar vivo, a rom-per sua ligao com o objeto perdido.32 E prope que o trabalho derompimento bastante lento e gradual, a ponto de, quando concludo,o dispndio de energia necessria para tal tambm ter se dissipado.Conclui que o luto compele o ego a desistir do objeto, declarando-o morto e incentivando o prprio ego a viver.33

    Ao escrever sobre o luto, salta aos olhos o cunho terico e o em-blema da prtica clnica que Freud imprime s suas proposies. In-discutivelmente estava muito distanciado de suas prprias vivnciaspregressas. Entretanto, algumas passagens biogrficas trazem luzaquele Freud do ano de 1900. Quando em 1920 Freud apresentousuas condolncias a Ernest Jones pela morte de seu pai, ao mesmo

    30 FREUD [1917], 1980e, p. 275. O termo alemo Trauer bem como o ingls mourning podem significartanto o afeto da dor como sua manifestao externa.31 Ibid., p. 277.32 Ibid., p. 288.33 Ibid., p. 290.

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    tempo advertiu-o delicadamente sobre os duros momentos que esta-vam por vir. O senhor logo vai descobrir o que isso significa para si.O acontecimento relembrou-lhe a tristeza que sentira por seu pai, qua-se vinte e cinco anos antes. Eu tinha mais ou menos a sua idade quan-do meu pai morreu e isso revolucionou minha alma.34

    A morte do pai foi uma profunda experincia pessoal da qualFreud extraiu implicaes universais; ela funcionou como um seixoatirado a um lago tranqilo, provocando sucessivos crculos de amplosraios. Ao refletir sobre o acontecimento em 1908, no prefcio se-gunda edio de A Interpretao de Sonhos, ele comentou que, para si,o livro tinha um forte significado subjetivo, o qual havia consegui-do entender aps sua concluso. Ele passara a v-lo como um frag-mento da minha auto-anlise, minha reao morte de meu pai isto, ao evento mais importante, perda mais pungente da vida de umhomem.35

    Aquela morte em outubro de 1896 proporcionou a Freud um vi-goroso impulso para edificar a estrutura que comeava a se transfor-mar na obra de sua vida. Como diria ele mais tarde, em 1931, no pre-fcio terceira edio inglesa: Ela encerra, mesmo segundo meu atualjuzo, a mais valiosa de todas as descobertas que tive a felicidade de fa-zer. Compreenso (insight) dessa espcie ocorre no destino de algumapenas uma vez na vida.36

    O orgulho de Freud no era descabido. Todas as suas descobertasdos anos 80 e 90 do sculo passado confluram para A Interpretao deSonhos. E mais. A obra prenuncia tudo o que seria escrito depois. Cons-titui uma fonte mpar para se compreender o autor. O livro resume tudoo que Freud aprendera na verdade, tudo o que ele era , recuando di-retamente at o labirinto de sua complexa infncia.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICASFREUD, S. [1899] Lembranas Encobridoras. Edio Standard Brasileira das

    Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,1980a, v. 3.

    _________. [1899] A Interpretao de Sonhos. Edio Standard Brasileira dasObras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,1980b, v. 4-5.

    34 Apud. GAY, 1989, p. 358.35 FREUD [1899], 1980b, p. XXXiV.36 Ibid., p. XLi.

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    FREUD, S. [1901] A Psicopatologia da Vida Cotidiana. Edio Standard Brasileiradas Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:Imago, 1980c, v. 6.

    ________. [1909] Anlise de uma Fobia em um Menino de cinco anos. EdioStandard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud.Rio de Janeiro: Imago, 1980d, v. 10.

    ________. [1917] Luto e Melancolia. Edio Standard Brasileira das Obras Psicol-gicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980e, v. 14.

    GAY, P. Freud: uma vida para o nosso tempo. So Paulo: Companhia das Letras,1989.

    GIMENEZ, M.T. Estudo clnico da fobia escolar. Instituto de Psicologia PUC-Camp. Campinas, 1983. [Tese de mestrado]

    KLEIN, M. [1940] O luto e sua relao com os estados manaco-depressivos. In:Contribuies Psicanlise. So Paulo: Mestre Jou, 1981.

    MASSON, J.F. A Correspondncia Completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess.Jeffrey Moussaieff Masson. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

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